Lenine e a Filosofia

Louis Althusser

24 de fevereiro de 1968


Origem: comunicação apresentada à Sociedade Francesa de Filosofia em 24 de fevereiro de 1968.

Fonte: Lenine e a Filosofia, Editora Estampa, Lisboa: 1974.

Tradução: Herberto Helder e Antônio Carlos Manso Pinheiro.

Transcrição: Thiago Paulino.

HTML: Lucas Schweppenstette.


Agradeço a esta Sociedade a honra que me concedeu, convidando-me a apresentar o que designa desde a sua fundação, e que sem dúvida designará ainda por muito tempo, por uma palavra comovente de nostalgia: uma comunicação(1).

I

É razoável que um sábio apresente uma comunicação perante uma sociedade de sábios. Uma comunicação e uma discussão só são possíveis quando científicas. Mas sê-lo-ão igualmente uma comunicação filosófica e uma discussão filosófica?

Comunicação filosófica. Esta expressão faria certamente rir Lenine, com aquele riso largo e franco no qual os pescadores de Capri reconheciam ser ele dos da sua raça e da sua causa. Isto há exatamente 60 anos, em 1908. Lenine estava então em Capri, em companhia de Gorki, de quem amava a generosidade e apreciava o talento mas tinha, no entanto, por revolucionário pequeno-burguês. Gorki convidara-o para vir a Capri tomar parte em discussões filosóficas com um pequeno grupo de intelectuais bolchevistas de que partilhava as teses: os Otzovistas. 1908: estávamos no período que se seguiu à primeira revolução de Outubro, a de 1905, durante o refluxo e repressão do movimento operário. Era, igualmente, uma época de confusão entre os “intelectuais”, incluindo os intelectuais bolchevistas. Muitos destes tinham formado um grupo que ficou conhecido na história pelo nome de “Otzovistas”.

Politicamente os Otzovistas eram esquerdistas, pelas suas posições radicais: retirada (Otzovat') dos representantes da Duma, rejeição de todas as formas de ação legais, passagem imediata à acção violenta. Mas estas proclamações esquerdistas escondiam posições teóricas de direita. Os Otzovistas tinham-se imbuído duma filosofia em moda, ou melhor, uma moda filosófica, o “empirocriticismo”, cuja forma tinha sido renovada pelo célebre físico austríaco Ernst Mach. Esta filosofia de físico e de fisiologista (Mach não era qualquer um; deixou um nome na história das Ciências) não era isenta de afinidades com outras filosofias fabricadas por sábios, como a de Poincaré, e por historiadores das ciências, como Duhem e A. Rey. São estes fenómenos que começamos a conhecer. Assim que certas ciências sofrem importantes revoluções (neste caso, as Matemáticas e a Física), logo surgem filósofos de profissão a proclamar a “Crise da Ciência”, ou das Matemáticas, ou da Física. Estas proclamações de filósofos estão, permita-se-me a expressão, na ordem do dia: há toda uma categoria de filósofos que passa o seu tempo a predizer, ou antes, a adivinhar a agonia das ciências para lhes administrar os últimos sacramentos da filosofia, ad majorem gloriam Dei.

Mas, o mais curioso, é aparecerem também sábios para falar da crise das ciências, e descobrir em si próprios, subitamente, surpreendentes. vocações filosóficas — eles que julgam converter-se como por encanto em filósofos, quando afinal nunca deixaram de “praticar” filosofia — pensam fazer revelações, quando apenas se limitam a repetir vulgaridades e velharias que pertencem ao que a filosofia é forçada a considerar como a sua história.

Nós, filósofos de ofício, seríamos levados a pensar que estes sábios sofrem, em relação a esta “crise”, uma doença filosófica evidente e espectacular, quando do desenvolvimento de uma ciência que eles aproveitam para a sua própria conversão, tal como uma criança que tem um ataque de febre. Mas, esta filosofia espontânea, quotidiana, apenas eles próprios dão por ela.

O empirocriticismo de Mach era uma crise filosófica deste género, como todos os seus subprodutos bogdanoviano, lunatcharskiano, bazaroviano, etc. Trata-se de acontecimentos crónicos. Para adiantar, sem discriminações, aliás, uma pequena ideia contemporânea deste facto, diremos da filosofia que alguns científicos biólogos, geneticistas, linguistas, etc., estão hoje em vias de fabricar sobre a “informação”, que ela pertence às pequenas “crises” filosóficas deste género, do tipo eufórico.

Ora, o que é notável nestas crises filosóficas de sábios é que são sempre filosoficamente orientadas num só e único sentido: retomam velhos temas empiristas ou formalistas, ou seja idealistas, rejuvenescendo-os: portanto, têm sempre por adversário o materialismo.

Temos que os Otzovistas eram empirocriticistas, mas como, sendo bolchevistas, eram marxistas, diziam que o marxismo devia desembaraçar-se daquela metafísica pré-crítica que era o “materialismo dialéctico” e, para se transformar no marxismo do século XX, deveria abraçar finalmente a filosofia que sempre lhe faltará, precisamente esta filosofia idealista, vagamente neokantiana, remodelada e autenticada por sábios: o empirocriticismo. Certos bolchevistas deste grupo queriam mesmo integrar o marxismo dos valores humanos “autênticos” da religião e, assim, chegaram a intitular-se os “construtores de Deus”. Mas deixemos isto.

Era intenção de Gorki convidar Lenine a discutir filosofia com o grupo dos filósofos Otzovistas. Lenine pôs as suas condições: meu caro Alexei Maximovitch, tenho o maior prazer em o visitar, mas recuso-me a participar em discussões filosóficas.

Era isto uma atitude táctica: sendo essencial manter a unidade política entre os bolchevistas emigrados, era necessário evitar dividi-los com uma discussão filosófica. Mas, podemos discernir, dentro desta táctica, muito mais que uma táctica, o que eu chamaria uma “prática” da filosofia e a consciência do que significa praticar a filosofia. Numa palavra, a consciência deste facto brutal, primário: a filosofia divide. Se a ciência une e se une sem dividir, a filosofia divide e só pode unir dividindo. Compreendemos agora o riso de Lenine: não há comunicação filosófica, nem há discussão filosófica.

Hoje só quero comentar este riso, que é, por si só, uma tese.

Espero que esta tese nos conduzirá a algum lado.

E conduz-me, para já, a pôr a mim próprio uma questão que não pode deixar de me ser posta: se não há comunicação filosófica possível, que discurso vou eu poder fazer? Evidentemente, um discurso perante filósofos. Mas, assim como não é o hábito que faz o monge, também não são os auditores quem faz o discurso. O meu discurso não será, portanto, filosófico.

Será, assim, por razões necessárias que decorrem da história teórica em que situamos, um discurso na filosofia, mas este discurso na filosofia não será, de todo em todo, um discurso de filosofia. Será, ou antes, deveria ser um discurso sobre a filosofia, o que significa que a vossa Sociedade veio ao encontro dos meus desejos convidando-me a apresentar-vos uma comunicação.

O que tentei dizer poderá, com efeito, merecer este título se, como espero, eu puder comunicar-vos alguma coisa sobre a filosofia, em suma, alguns rudimentos para a ideia de uma teoria da filosofia. Teoria, isto é, qualquer coisa que, de uma certa maneira, antecipa uma ciência.

Chamo a vossa atenção para a necessidade de entender assim o meu título: Lenine e a filosofia. Não a filosofia de Lenine, mas Lenine perante a filosofia. Com efeito, creio que a nossa dívida para com Lenine, que é imensa, sem esquecer os seus predecessores, se inicia, com a possibilidade de começarmos a ter uma espécie de discurso que antecipa o que será talvez, um dia, uma teoria não filosófica da filosofia.

II

Se, em face do que hoje aqui nos traz, é este o maior mérito de Lenine, podemos talvez começar por esclarecer uma velha questão pendente entre a filosofia universitária, incluindo a francesa, e Lenine. Como também sou universitário e professor de filosofia, pertenço àqueles “entendidos” a quem Lenine dirige a sua “saudação”.

Que eu saiba, à parte Henri Lefebvre que lhe consagrou um excelente trabalho, a filosofia universitária francesa não se dignou interessar por um homem que dirigiu a maior revolução política da História moderna e que, além disso, analisou longa e conscientemente, em Materialismo e Empirocriticismo, as obras dos nossos compatriotas H. Poincaré, H. Duhem e A. Rey, para só falar destes.

Que me perdoem os nossos mestres que eu esquecer, mas não consigo recordar, durante o passado meio século e excepção feita aos artigos de filósofos ou de cientistas comunistas, mais do que algumas escassas páginas sobre Lenine: Sartre na “Temps Modernes” em 1946 (Materialismo e Revolução), Merleau Ponty (nas Aventures de la dialectique) e Ricoeur (num artigo da Esprit).

Ricoeur refere respeitosamente O Estado e a Revolução, mas parece-me não ter tratado da “filosofia” de Lenine. Sartre diz que a filosofia materialista de Engels e Lenine é “impensável”, no sentido de um Unding, um pensamento que não pode sustentar a simples prova do próprio pensamento, por ser uma metafísica naturalista, pré-crítica, pré-kantiana, embora generosamente reconheça a função de “mito” platónico capaz de ajudar os proletários a ser revolucionários. Merleau Ponty desembaraça-se de tudo isto, com uma simples frase: A filosofia de Lenine é um “expediente”.

Não é certamente este o momento de abordar, mesmo com todo o tacto necessário, o processo da tradição filosófica francesa de há cento e cinquenta anos a esta parte, uma vez que o silêncio em que a filosofia francesa encerrou este passado vale bem todos os processos em aberto. Deve tratar-se de uma tradição cujo espectáculo é difícil de suportar, já que nenhum filósofo francês conhecido se arriscou até hoje a escrever-lhe publicamente a história.

Com efeito, seria necessária alguma coragem para dizer que a filosofia francesa, de Maine de Biran e Cousin, a Bergson e Brunschvicg, passando por Ravaisson, Hamelin, Lachelier e Boutroux, apenas se salvará perante a sua própria história, graças a alguns grandes espíritos contra os quais se encarniçou, como Comte e Couturat; e por alguns conscienciosos historiadores da filosofia, historiadores das ciências e epistemologistas que, paciente e silenciosamente, trabalharam na formação daqueles a quem a filosofia francesa deve em parte o seu renascimento, de há trinta anos para cá. Destes últimos que todos conhecem, permitam-me citar apenas os desaparecidos: Cavaillês e Bachelard.(2)

Afinal de contas, porque é que esta filosofia francesa, profundamente religiosa, espiritualista e reacionária há cento e cinquenta anos, depois, no melhor dos casos, conservadora e só tardiamente liberal e “personalista”, esta filosofia que magnificamente ignorou Hegel, Marx e Freud, esta filosofia universitária que só desde há algumas dezenas de anos, ou por vezes menos, começou a ler seriamente Kant, depois Hegel e Husserl e descobriu a existência de Frege e Russell, porque, repito, se iria interessar por este bolchevista, este revolucionário, este político que é Lenine?

Para lá das esmagadoras razões de classe que pesam sobre as suas tradições propriamente filosóficas, para lá da condenação lançada pelos seus espíritos mais “livres” contra “o impensável pensamento filosófico pré-crítico de Lenine”, a filosofia francesa que herdamos viveu sempre na convicção de que nada teria a aprender de filosófico com um político, ou com a política. Para citar apenas um exemplo, basta dizer que não foi há muito tempo que alguns filósofos universitários franceses se puseram a estudar grandes teóricos da filosofia política como Maquiavel, Spinoza, Hobbs, Brotius, Locke e mesmo Rousseau, o “nosso” Rousseau. Há trinta anos apenas, estes autores eram abandonados como sobejos aos literatos e aos juristas.

Ora a filosofia universitária francesa não se enganava ao rejeitar aprender o que quer que fosse com os políticos e a política e, portanto, também com Lenine. Tudo o que concerne à política pode ser mortal para a filosofia, pois esta depende daquela.

Não se pode dizer, certamente, já que ela nunca o leu, que Lenine não tenha pago à filosofia universitária na mesma moeda e, até, largamente, com “juros”! Ouçamo-lo em Materialismo e Empirocriticismo, onde invoca Dietzgen, o proletário alemão de que Marx e Engels tinham dito que descobrira “sozinho” o “materialismo dialético”, como autodidata e porque proletário militante:

“Os professores de filosofia são aos olhos de Dietzgen ”lacaios diplomados” cujos discursos sobre os ”bens ideais” só servem para embrutecer o povo com o seu idealismo cheio de afetação. ”Tal como deus é o contrário do diabo, o universitário clerical é o contrário do materialista.” A teoria materialista do conhecimento é uma ”arma universal contra a fé religiosa”, e não apenas contra ”a religião vulgar, autêntica, familiar a todos, a dos curas, mas também contra a religião elevada, professoral, dos idealistas obscuros”. Ao equívoco dos universitários”livres pensadores”, Dietzgen preferiria “a honestidade religiosa”; pelo menos há nela um “sistema” e homens íntegros, que não separam a teoria da prática. Para os Senhores Professores, “a filosofia não é uma ciência, mas um meio de defesa contra a social-democracia”.

Professores e assistentes todos os que se intitulam filósofos, caem mais ou menos, apesar da sua liberdade de pensamento, nos preconceitos, na mística. Para a social-democracia, não são mais que uma massa reacionária. Para definir o caminho, sem se deixar arrastar por absurdos religiosos e filosóficos, é necessário estudar o caminho dos caminhos que levam a filosofia a coisa nenhuma (“den Holzweg der Holzwege”)“. (M. e E. p. 314).(3)

Este texto é impiedoso, mas sabe distinguir entre os “livres pensadores” e os “homens íntegros”, mesmo os religiosos que têm um “sistema” não só especulativo, mas compreendido na sua prática. Também é lúcido; não é por acaso que ele se apoia nesta frase espantosa de Dietzgen, citada por Lenine: temos necessidade de seguir um bom caminho; ora, para seguirmos um bom caminho é necessário estudarmos a filosofia que é “o caminho dos caminhos que levam a coisa nenhuma” (“den Holzweg der Holzwege”). O que, por outras palavras, significa não poder haver caminho certo (entenda-se: nas ciências e, sobretudo, na política) sem estudo e, além disso, sem uma teoria da filosofia como caminho que leva a coisa nenhuma.

Em última análise, e para lá de todas as razões que acabo de invocar, é por isso, sem dúvida, que Lenine é insuportável à filosofia universitária e, para não entristecer ninguém, à grande maioria dos filósofos, senão mesmo a todos, sejam universitários ou não. É-nos ou foi-nos a todos, num ou outro momento, filosoficamente insuportável (a mim também, evidentemente). Insuportável, porque, no fundo e apesar de tudo o que se possa dizer sobre o carácter pré-crítico da sua filosofia, sobre o aspecto sumário de algumas das suas categorias, os filósofos sentem e sabem bem que não é essa a verdadeira questão. Sentem e sabem bem que Lenine troça profundamente das suas objeções, até porque já os prevenira de longa data. É o próprio Lenine quem diz: não sou um filósofo e estou mal preparado neste domínio (Carta a Gorki, em 7 de Fevereiro de 1908). É ele próprio quem afirma: sei que as minhas formulações e definições são vagas, mal delineadas; sei muito bem que os filósofos vão acusar o materialismo de ser “metafísico”. Mas Lenine acrescenta: a questão não é esta. É que não só não faço a filosofia deles, como não “faço” filosofia, de todo em todo, como eles. À sua maneira de “fazer” filosofia consiste em despender tesouros de inteligência e subtileza para nada mais que ruminar na filosofia. Quanto a mim, trato a filosofia de outro modo, prático-a, como queria Marx, de acordo com o que ela é. É isto o que eu julgo ser “materialista dialético”.

Tudo isto está escrito, claramente ou nas entrelinhas, em Materialismo e Empirocriticismo. E é por isso que Lenine como filósofo é insuportável à maioria dos filósofos, que não querem saber, isto é, que se apercebem sem o confessar, ser esta a verdadeira questão. À questão não está em saber se Marx, Engels e Lenine são ou não verdadeiros filósofos, se os seus enunciados filosóficos são formalmente impecáveis, se dizem ou não disparates sobre a “coisa em si” de Kant, se o seu materialismo é pré-crítico ou não, etc., porque todas estas questões se põem e continuam a pôr no interior de uma certa prática da filosofia. A verdadeira questão reside precisamente nesta prática tradicional que Lenine põe em causa, propondo toda uma outra prática da filosofia.

Esta outra prática contém em si qualquer coisa como a promessa, ou o esboço, de um conhecimento objetivo do modo de ser da filosofia. Um conhecimento da filosofia como “Holzweg der Holzwege”. Ora, a última coisa que os filósofos e a filosofia poderiam suportar, o intolerável, é precisamente talvez a ideia deste conhecimento. O que a filosofia não pode suportar é a ideia de uma teoria (quer dizer, de um conhecimento objectivo) da filosofia, capaz de transformar a sua prática tradicional. Esta teoria pode ser-lhe mortal, porque ela vive da sua negação.

A filosofia universitária não pode, portanto, tolerar Lenine (tal como Marx), por duas razões, que no fundo são a mesma e única razão. Por um lado, não pode suportar a ideia de ter alguma coisa a aprender com a política e com um político. Por outro, não concebe a ideia de que a filosofia possa ser objecto de uma teoria, quer dizer, de um conhecimento objectivo.

E que, para cúmulo, seja um político como Lenine, um “amador” e autodidacta em filosofia, quem teve a audácia de afirmar a ideia de que uma teoria da filosofia é essencial a uma prática verdadeiramente consciente e responsável da filosofia, ultrapassa evidentemente todas as medidas.

A filosofia universitária, ou qualquer outra, também neste ponto se não engana. Se resiste tão furiosamente a este combate aparentemente acidental em que um simples político lhe propõe começar a conhecer o que seja a filosofia, é porque este embate acerta no ponto mais sensível, no ponto intolerável, no ponto em que sangra a ferida, nisto de não ser a filosofia, tradicionalmente, mais que ruminação, precisamente no ponto em que, para se conhecer na sua teoria, a filosofia deve reconhecer ser apenas política investida de uma certa maneira, política continuada de uma certa forma, ruminada de uma certa forma.

Acontece que Lenine é o primeiro a dizê-lo. Acontece também que ele pode dizê-lo, porque é um político, não um político qualquer mas um dirigente proletário. Eis porque Lenine é intolerável à ruminação filosófica, tão intolerável, peso bem as palavras, como Freud o é à ruminação psicológica.

Vê-se que não há entre Lenine e a filosofia estabelecida apenas uns quantos equívocos e conflitos de circunstância. Nem sequer as reacções de susceptibilidade indignada dos professores de filosofia a quem o filho de um professor primário, modesto advogado que se tornou dirigente revolucionário, declara despreocupadamente que eles são, no seu conjunto, intelectuais pequeno-burgueses funcionando no sistema burguês de educação como ideólogos que inculcam na massa estudantil os dogmas, críticos ou pós-críticos, como se queira, da ideologia das classes dominantes(4). Entre Lenine e a filosofia estabelecida há uma relação de facto intolerável: aquela que toca em cheio na ferida, a filosofia reinante — a política.

III

Mas, para vermos bem as relações entre Lenine e a filosofia é necessário recuar um pouco e, antes de falar de Lenine e da filosofia em geral, temos de fixar a posição de Lenine na filosofia marxista e, por conseguinte, evocar a situação da filosofia marxista.

Não se trata aqui de esclarecer a sua história. Não estamos, aliás, em condições de o fazer, e isto por uma razão absolutamente determinante: seria necessário que conhecêssemos o que é este X de que se pretende fazer a história e, conhecendo-o, que estivéssemos em posição de saber se este X tem ou não uma História, isto é, se tem ou não direito a uma História,

Mais do que esboçar, mesmo vagamente, a “história” da filosofia marxista, gostaria de revelar, através dos textos e das obras que se têm sucedido na História, a existência de uma dificuldade sintomática.

Esta dificuldade provocou debates célebres que duram ainda hoje. Podemos assinalar a sua existência através dos estudos mais comuns destes debates: qual é o fundamento da teoria marxista? Trata-se de uma ciência ou de uma filosofia? O marxismo será fundamentalmente uma filosofia “a filosofia da praxis”, — mas então, que é feito das pretensões científicas proclamadas por Marx? O marxismo será, pelo contrário, fundamentalmente uma ciência, o materialismo histórico, ciência da história, mas então que é feito da sua filosofia, o materialismo dialéctico? Ou então, se aceitamos a distinção clássica entre o materialismo histórico (ciência) e o materialismo dialéctico (filosofia), como pensar esta distinção? Em termos tradicionais? Em termos novos? Ou ainda: quais são as relações entre o materialismo ou a dialéctica no materialismo dialéctico? Ou ainda: o que é a dialéctica? Um simples método? Toda a filosofia?

Esta dificuldade, que alimentou tantos debates, é sintomática. Gostaria de sugerir por este termo, que ele testemunha bem uma realidade em parte enigmática, em que as questões clássicas, que acabo de recordar, representam um certo tratamento, quer dizer, uma determinada interpretação. Diremos, muito esquematicamente, que as formulações clássicas interpretam esta dificuldade apenas em termos de questões filosóficas, portanto, no interior daquilo a que chamámos a ruminação filosófica, — quando é, sem dúvida, necessário pensar estas dificuldades através das questões filosóficas a que não podem deixar de dar lugar. Por outras palavras: em termos de problema, quer dizer, de conhecimento objectivo (portanto, científico). É só nesta condição que é, sem dúvida, possível compreender a confusão que fez pensar prematuramente em termos de questões filosóficas, o contributo teórico essencial do marxismo à filosofia, quer dizer, a insistência de um certo problema que pode produzir efeitos filosóficos, mas na exacta medida em que não é, em última análise, uma questão filosófica.

Se emprego deliberadamente estes termos, que supõem distinções (problema científico, questão filosófica) não é para julgar os que passaram por esta confusão, e todos nós passamos, e podemos pensar que ela era e ainda é inevitável, a ponto de a filosofia marxista lhe ter estado e continuar a estar presa por razões necessárias.

Porque, enfim, basta lançar os olhos sobre o que chamamos a filosofia marxista, desde as Teses sobre Feuerbach, para verificar que esta oferece um espectáculo deveras singular. Se estamos de acordo em que é necessário deixar de lado as obras da juventude de Marx (sei que esta é uma concessão difícil para alguns, apesar da força das razões apresentadas), e aceitamos a declaração de Marx, de que a Ideologia Alemã constitui o “ajuste de contas com a sua anterior consciência filosófica” e, portanto, é uma ruptura e uma conversão no seu pensamento, — e consideramos o que acontece entre as Teses sobre Feuerbach (primeiro indício do “corte”, 1845) e o Anti-Duhring de Engels (1877), não podemos deixar de ficar surpreendidos com o grande lapso de um vazio filosófico.

A XI Tese sobre Feuerbach proclamava: “os filósofos não fizeram mais que interpretar o mundo, quando se trata de o transformar”. Esta simples frase parecia prometer uma filosofia nova, que já não fosse interpretação mas transformação do mundo. Aliás, foi assim lida, após mais de meio século por Labriola, mais tarde por Gramsci, que definiram o marxismo, essencialmente, como uma filosofia nova, uma “filosofia da praxis”. No entanto, rendamo-nos à evidência esta frase profética não produziu imediatamente nenhuma filosofia nova nem, em qualquer dos casos, nenhum novo discurso filosófico. Pelo contrário, não iniciou mais que um longo silêncio filosófico. Este silêncio só foi publicamente interrompido por um facto que teve todas as aparências de um acidente imprevisto: uma intervenção precipitada de Engels, forçado a entrar na batalha ideológica contra Duhring, constrangido a “segui-lo no seu próprio terreno” para fazer face às consequências políticas dos escritos “filosóficos” de um professor de matemática cego, cuja influência se avolumava perigosamente sobre o socialismo alemão.

Eis, portanto, uma situação bem estranha: uma Tese que parece anunciar uma revolução na filosofia — depois um silêncio filosófico de trinta anos e, enfim, alguns capítulos improvisados de polémica filosófica publicados por Engels, por razões políticas e ideológicas, como introdução a um notável resumo das teorias científicas de Marx.

Devemos concluir daqui que somos vítimas de uma ilusão filosófica retrospectiva ao entender a XI Tese como o anúncio de uma revolução filosófica? Sim e não. Mas antes de dizer não, creio ser necessário dizer primeiro seriamente sim: sim, no essencial somos vítimas de uma ilusão filosófica. O que se anunciava nas Teses sobre Feuerbach, era, na linguagem necessariamente filosófica de uma declaração de ruptura com toda a filosofia “interpretativa”, uma coisa bem diferente de uma nova filosofia: Uma ciência nova, a ciência da história, de que Marx vai estabelecer os primeiros fundamentos, ainda extremamente frágeis, em A Ideologia Alemã.

O vazio filosófico que sucede ao anunciado na Tese XI é, portanto, o nascer de uma ciência, o nascer de um trabalho intenso, longo e penoso, que constrói uma ciência sem precedentes, na qual Marx vai consumir toda a sua vida até aos últimos rascunhos de O Capital, que nunca poderá acabar. É este desenvolver de uma ciência que representa a primeira razão profunda pela qual a Tese XI, mesmo se anunciava profeticamente um acontecimento capaz de marcar a filosofia, não podia dar lugar a uma filosofia, antes devia proclamar a supressão radical de toda a filosofia existente, para pôr em primeiro plano o trabalho de gestação teórica da descoberta científica de Marx.

Esta supressão radical da filosofia inscreve-se, como se sabe, claramente, na Ideologia Alemã. É necessário, diz ali Marx, desembaraçarmo-nos de toda a fantasia filosófica e dedicarmo-nos ao estudo da realidade positiva, rasgar os véus da filosofia e ver, enfim, a realidade tal como é.

A Ideologia Alemã fundamenta esta supressão da filosofia numa teoria da filosofia entendida como alucinação e mistificação ou, para dizermos tudo, como sonho, fabricado com aquilo a que chamarei os sobejos diurnos da história real dos homens concretos, sobejos diurnos revestidos de uma existência puramente imaginária, em que a ordem das coisas é invertida. A filosofia, tal como a religião e a moral, é apenas ideologia, não tem história, tudo o que parece passar-se nela passa-se na realidade fora, na última história real, a da vida material dos homens. A ciência é então o próprio real, conhecido pelo acto que o revela destruindo as ideologias que o ocultam; e à frente destas ideologias, a filosofia.

Suspendamo-nos neste momento dramático, para lhe perscrutarmos o sentido. A revolução teórica que anuncia a Tese XI é, portanto, na realidade, o início de uma nova ciência. Para nos servirmos de um conceito de Bachelard, supomos poder interpretar o advento teórico desta nova ciência, como um “corte epistemológico”.

Marx inicia uma nova ciência, isto é, elabora um sistema de novos conceitos científicos, onde antes só havia a ordenação de noções ideológicas. Marx funda a ciência da história, onde não existiam senão filosofias da história. Quando dizemos que Marx ordena um sistema teórico de conceitos científicos no domínio onde antes reinavam filosofias da história, usamos uma metáfora que não é mais do que isso mesmo, uma metáfora; porque sugerimos que num mesmo espaço, o da história, Marx substituiu teorias ideológicas por uma teoria científica. Na realidade, este domínio modificou-se a si próprio. Mas, sob esta reserva capital, proponho-me conservar provisoriamente a metáfora e dar-lhe mesmo uma forma ainda mais precisa.

Com efeito, se considerarmos as grandes descobertas científicas da história humana, parece que poderíamos descrever aquilo a que chamamos as ciências, como formações regionais do que designamos pelos grandes continentes teóricos. Podemos com a perspectiva de que agora dispomos e, sem nos anteciparmos a um futuro sobre o qual, tal como Marx, não especularemos abusivamente, retomar a nossa metáfora remodelada e dizer que antes de Marx, apenas dois grandes continentes tinham sido abertos ao conhecimento científico por cortes epistemológicos contínuos: o continente Matemáticas com os gregos (por Tales, ou o que mito deste nome designa) e o continente Física (por Galileu e os seus sucessores). Uma ciência como a química iniciada pelo corte epistemológico de Lavoisier é uma ciência regional do continente física; toda a gente sabe agora que é aí que a química se insere. Uma ciência como a biologia que há apenas uma dezena de anos terminou a primeira fase do corte epistemológico iniciado por Darwin e Mendel, integrando-se na química molecular, entra também no continente física. A Lógica, na sua forma moderna, pertence ao continente Matemática, etc. Em compensação é provável que a descoberta de Freud abra um novo continente, que apenas começamos a explorar.

Se esta metáfora suporta a sua prova, podemos então adiantar a seguinte proposição: Marx abriu ao conhecimento científico um novo e terceiro continente, o continente História, por um corte epistemológico cuja primeira parte, ainda vacilante, se insere em A Ideologia Alemã, depois de ter sido anunciada nas Teses sobre Feuerbach. Este corte epistemológico não é, evidentemente, um acontecimento localizável num ponto. Talvez se possa mesmo citá-lo como o pressentimento de um passado fazendo-o por recorrência e em relação a alguns dos seus pormenores. Este corte torna-se visível aos primeiros sinais, em todo o caso, mas esses sinais são apenas o começo de uma história sem fim. Como todo o corte, este é, com efeito, um corte contínuo no interior do qual se observam remodelações complexas.

De facto, pode observar-se empiricamente, na sequência dos escritos de Marx, a operação destas remodelações que afectam conceitos essenciais e o seu dispositivo teórico: no Manifesto e na Miséria da Filosofia, de 1847, na Contribuição à Crítica da Economia Política, de 1857, em Salários, Preços e Lucro, de 1865, no primeiro livro de O Capital de 1867, etc. Seguiram-se outras remodelações e desenvolvimentos nas obras de Lenine, em particular nessa obra inigualável de sociologia económica, infelizmente ignorada pelos sociólogos, que se chama Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia, no Imperialismo, etc. Ainda hoje, quer aceitemos, quer recusemos sabê-lo, estamos inscritos no espaço teórico definido e aberto por este corte. Tal como os outros cortes que descobriram os outros dois continentes que conhecemos, este inaugura uma história que nunca terá fim.

Eis porque não devemos interpretar a XI Tese sobre Feuerbach como o anunciar de uma nova filosofia, mas como declaração necessária de ruptura com a filosofia que cede lugar à fundação de uma nova ciência. Eis porque, da supressão radical de toda a filosofia até ao imprevisto “acidente” provocado pelos capítulos filosóficos do Anti-Duhring, vai este longo silêncio filosófico onde só tem voz a nova ciência.

Decerto que ela é materialista, como toda a ciência, e é por isso que a sua teoria geral toma o nome de “materialismo histórico”. O materialismo é, então, muito simplesmente, a atitude estrita do sábio perante a realidade do seu objecto, que lhe permite apreender, como dirá Engels, “a natureza sem qualquer interferência estranha”.

Na expressão um pouco singular de “materialismo histórico” (para designar a química não empregamos a expressão materialismo químico), o termo materialismo representa, primeiro, a ruptura prévia com o idealismo das filosofias da história e, depois, a instauração da cientificidade na história. Materialismo histórico quer então dizer: ciência da história. Se aquilo à que chamamos a filosofia marxista pode alguma vez surgir, parece que seria da própria gestação desta ciência, sua irmã, certamente original mas, na sua estranheza, irmã das ciências existentes, após um longo intervalo que.separa sempre uma remodelação filosófica da revolução científica que a provoca.

Para penetrar ainda mais fundo nas razões deste silêncio filosófico, somos levados a propor aqui, apenas ilustrada por dados empíricos, uma tese sobre as relações entre as ciências e a filosofia. Lenine começa o seu livro O Estado e a Revolução com esta simples anotação empírica: o Estado nem sempre existiu; apenas se observa a existência do Estado nas sociedades de classes. Da mesma forma, diremos: a filosofia nem sempre existiu; apenas se observa a existência da filosofia num mundo que comporta o que chamamos uma ciência ou ciências. Ciências no sentido estrito: disciplina teórica, isto é, ideal e demonstrativa e não conjunto de resultados empíricos.

Eis, em duas palavras, as ilustrações empíricas desta tese.

Para que a filosofia nasça e renasça é necessário que haja ciências. É por isso, talvez, que a filosofia no seu sentido estrito só começou com Platão, forçada a nascer pela existência da Matemática grega; abalada por Descartes, conduzida à revolução moderna pela física de Galileu; refundida por Kant, sob o efeito da descoberta de Newton; remodelada por Husserl devido ao aparecimento dos primeiros axiomáticos, etc.

Apenas sugiro este tema, que seria necessário submeter à experiência, para fazer notar, sempre empiricamente, que Hegel afinal não errava ao dizer que a filosofia se ergue ao cair da noite, quando à ciência, nascida de madrugada, já percorreu o tempo de um longo dia. Sobre a ciência que a faz surgir na sua primeira forma ou ressurgir nas suas revoluções, a filosofia tem sempre, portanto, o atraso de um longo dia, que pode durar anos, vinte anos, meio século ou um século.

É preciso crer que o choque dos cortes científicos se não faz sentir nesse momento exacto e que é necessário tempo para que a filosofia se remodele.

Assim, conclui-se que o trabalho de gestação filosófica decorre em parte do trabalho de gestação científica, intervindo cada um no trabalho do outro. É claro que as novas categorias filosóficas se elaboram no trabalho da nova ciência, mas também é verdade que em certos casos (precisamente: Platão, Descartes) aquilo a que chamamos filosofia serve também de laboratório teórico onde são aperfeiçoadas novas categorias necessárias à conceptualização da nova ciência. Por exemplo, não foi no Cartesianismo que foi elaborada a nova categoria da causalidade necessária à física galileana que tropeçava na causa aristotélica como sobre um “obstáculo epistemológico”? Se acrescentarmos que as grandes correntes filosóficas que conhecemos (a filosofia antiga assente em Platão, a moderna em Descartes) nos remetem manifestamente para a estimulante descoberta dos dois grandes continentes científicos, a matemática grega e a Física galileana, podemos enunciar (porque tudo isto permanece empírico) certas inferências sobre o que pensamos poder: chamar a filosofia marxista. Três inferências:

Primeira inferência. Se Marx abriu, verdadeiramente, ao conhecimento científico um novo continente, a sua descoberta científica deveria provocar qualquer coisa como uma importante remodelação na filosofia. A XI Tese antecipava-se proclamando um acontecimento maior na filosofia. Este caso parece ser legítimo.

Segunda inferência. A filosofia só existe em atraso em relação à provocação científica. A filosofia marxista deveria, portanto, estar em atraso relativamente à ciência marxista da história, o que parece ser o caso. É testemunha disto o deserto de trinta anos, entre as Teses sobre Feuerbach e o Anti-Duhring, e também alguns longos vazios ulteriores, em que ainda agora continuamos a marcar passo em numerosa companhia.

Terceira inferência. Temos probabilidades de encontrar na gestação da ciência marxista, elementos teóricos mais avançados do que contamos, para elaborar, com a perspectiva que agora temos sobre o seu atraso, a filosofia marxista. Lenine dizia que é em O Capital de Marx que devemos procurar a dialéctica — pela qual entendia a própria filosofia marxista. Deve haver em O Capital com que acabar ou forjar as novas categorias filosóficas: elas estão ali, seguramente, já prontas, no seu “estado prático”. Parece que também este possa ser o caso. É preciso ler O Capital e atirarmo-nos ao trabalho.

O dia é sempre longo mas, felizmente, já vai bastante avançado. A noite não tardará a cair. A filosofia marxista vai-se erguer.

Tomando-as como perspectivas, estas inferências põem, se me é permitido dizer assim, uma espécie de ordem nas nossas preocupações e esperanças e, também nalguns dos nossos pensamentos. Compreendemos agora que a razão última por que, se Marx, dividido como estava entre a miséria, o encarniçado trabalho científico e as urgências da direcção política, nunca escreveu esta Dialéctica (ou esta Filosofia) com que sonhava, não foi “a falta de tempo”, ainda que ele o pensasse. Compreendemos agora que à razão última por que Engels, lançado de um dia para o outro na necessidade de, como ele escreveu, “dar a sua achega às questões filosóficas”, não pôde convencer os filósofos de profissão, não foi a improvisação de uma polémica simplesmente ideológica. Compreendemos agora, que a principal razão dos limites filosóficos de Materialismo e Empirocriticismo se não deve apenas aos constrangimentos da luta ideológica.

Podemos dizê-lo hoje. O tempo que Marx não pôde encontrar, a iniciação filosófica de Engels, as leis da luta ideológica que forçaram Lenine a virar contra o adversário as suas próprias armas, tudo isto são muito boas desculpas, mas não são uma boa razão.

A principal razão é que o tempo não estava ainda maduro, é que a noite não tinha ainda caído, é que nem o próprio Marx nem Engels ou Lenine podiam ter escrito então a grande obra de filosofia que falta ao marxismo. De uma maneira ou outra, mesmo vindo após a ciência de que deriva, vinham ainda demasiado cedo para uma filosofia indispensável, que só pode nascer necessariamente atrasada.

A partir deste conceito de “atraso” necessário, tudo se pode tornar claro, tudo, incluindo o engano dos que, tal como o jovem Lukacs e Gramsci e tantos outros que não tinham o seu génio, se impacientaram perante esta filosofia demasiado lenta em nascer e a proclamavam nascida há muito tempo, desde as suas origens, desde as Teses sobre Feuerbach, portanto, antes do começo da própria ciência marxista, — e que, para o provarem, declaravam muito simplesmente que, sendo toda a ciência uma “super estruturá” e toda a ciência existente, portanto, no fundo, positivista, porque burguesa, a “ciência” marxista tinha de ser filosófica e o marxismo uma filosofia, filosofia pós-hegeliana ou, “filosofia da praxis”.

A partir deste conceito de “atraso” necessário, poder-se-iam esclarecer também muitas outras dificuldades, até mesmo da história política das organizações marxistas, os seus fracassos e as suas crises. Se é verdade, como assegura toda a tradição marxista, que o maior acontecimento da história da luta de classe — que o mesmo é dizer, praticamente, da história humana — é a união da teoria marxista e do movimento operário, concebe-se que o equilíbrio interior desta união possa ser ameaçado por estas fraquezas da teoria, a que chamamos desvios, por mais insensíveis que sejam; entende-se o alcance político destes encarniçados debates teóricos desencadeados no Movimento socialista, mais tarde comunista, a que Lenine chamava simplesmente “nuances” porque dizia ele em Que Fazer?, “de uma simples nuance pode depender o futuro do partido social-democrata por muitos, muitos anos”.

Podemos agora ser tentados a pensar que, sendo a teoria marxista, como é, uma ciência e uma filosofia e, tendo a filosofia de se atrasar em relação à ciência que foi travada no seu desenvolvimento, no fundo, estes desvios teóricos seriam inevitáveis, não só por causa dos efeitos da luta de classes sobre e na teoria, mas também por causa do desfazamento interno da própria teoria.

De facto, retrocedendo ao passado do Movimento operário marxista, podemos chamar pelo seu nome os desvios teóricos que conduziram aos grandes reveses históricos do proletariado, por exemplo o da II Internacional, para não citar outros. Estes desvios chamam-se: economismo, evolucionismo, voluntarismo, humanismo, empirismo, dogmatismo, etc. No fundo, estes desvios são filosóficos e foram denunciados como filosóficos pelos grandes dirigentes operários, sendo Engels e Lenine os primeiros a fazê-lo.

Estamos agora muito perto de compreender porque razão estes desvios submergiram até aqueles que os denunciavam: será que, de certo modo, não eram inevitáveis em função do atraso necessário da filosofia marxista?

Vamos vê-lo. Se assim é, e até na profunda crise que divide hoje o movimento comunista internacional, os filósofos marxistas bem podem sobressaltar-se e tremer perante a tarefa inesperada que a história lhes marca e confia. Se verdadeiramente, como tantos indícios o provam, o atraso da filosofia marxista pode ser hoje parcialmente preenchido, não é apenas o passado que poderemos esclarecer mas, também, talvez o futuro que poderemos transformar.

Nesse futuro será feita justiça devida aos que tiveram de viver a contradição entre a urgência política e o atraso filosófico. Justiça será feita a um dos maiores: Lenine. A sua obra filosófica poderá então ser acabada. Acabada, quer dizer, completada e corrigida. Devemos este serviço e esta homenagem ao homem que teve a sorte de nascer a tempo para a política, mas a desgraça de surgir demasiado cedo para a filosofia afinal quem pode escolher a data do próprio nascimento?

IV

Podemos agora, advertidos pela “história” da teoria marxista das razões do atraso da sua filosofia em relação à ciência da história, entrar resolutamente na obra de Lenine. Mas, então, dissipa-se o nosso “sonho” filosófico: as coisas não são assim tão simples.

Antecipo-me à minha conclusão. Não, Lenine não teria nascido demasiado cedo para a filosofia. Nunca se nasce demasiado cedo para a filosofia. Se a filosofia está em atraso, se o estar em atraso a torna filosofia, como é possível estar em atraso em relação a um atraso que não tem história? E se é preciso custe o que custar, falar ainda em atraso, somos nós que estamos em atraso relativamente a Lenine. O nosso atraso não é senão o outro nome de um equívoco, porque nos enganamos filosoficamente sobre as relações entre Lenine e a filosofia. Estas exprimem-se bem na filosofia, no interior do “trocadilho” que constitui a filosofia em filosofia, mas estas relações não são filosóficas, porque este “trocadilho” não é filosófico.

Gostaria de tentar expor os considerandos destas conclusões de uma maneira que, coligida e sistematizada, será necessariamente muito esquemática, tomando por objecto de análise a grande obra “filosófica” de Lenine: Materialismo e Empirocriticismo. Dividirei esta exposição em três pontos:

  1. As grandes Teses filosóficas de Lenine
  2. Lenine e a prática filosófica
  3. Lenine e a tomada de partido em filosofia

Ao desenvolver cada um destes pontos procurarei mostrar o que Lenine traz de novo à teoria marxista.

1 — AS GRANDES TESES FILOSÓFICAS DE LENINE

Por Teses entendo, como toda a gente, as tomadas de posição filosóficas de Lenine, registadas em enunciados filosóficos. Deixo de lado, por enquanto, a objecção que serviu de impedimento, ou pretexto, à filosofia universitária para não ler Materialismo e Empirocriticismo: a terminologia categorial, as referências históricas, digamos, as ignorâncias de Lenine.

É um facto, que, por si só, mereceria todo um estudo, que Lenine tem direito a todos os títulos à nossa consideração, logo a partir da admirável “abertura” de Materialismo e Empirocriticismo, que nos remete brutalmente para Berkeley e Diderot, para o espaço teórico do empirismo do século XVIII, portanto para uma problemática filosófica “oficialmente” pré-crítica, se considerarmos que a filosofia se torna “oficialmente” crítica com Kant.

Desde que se observa a existência deste sistema de referências, desde que se conhece a sua lógica estrutural, as formulações teóricas de Lenine explicam-se como outros tantos efeitos desta lógica, nelas se incluindo as inacreditáveis distorções a que Lenine sujeita a terminologia categorial do empirismo, para a voltar contra este. Porque, se ele pensa dentro da problemática do empirismo objectivo (Lenine fala mesmo do “sensualismo objectivo”) e, se o facto de pensar nesta problemática afecta muitas vezes não só as formulações mas até certas modulações do pensamento de Lenine, ninguém pode dizer que Lenine não pensa, isto é, não pensa sistemática e rigorosamente. É este pensamento que nos interessa na medida em que enuncia teses. Ei-las enunciadas, reduzidas ao essencial. Dentre elas distinguirei três:

Tese 1. A filosofia não é uma ciência. A filosofia é distinta das ciências. As categorias filosóficas são distintas dos conceitos científicos.

Esta tese é de capital importância. Cito o ponto decisivo onde se joga o seu destino: a categoria de matéria que, se é ponto sensível para uma filosofia materialista, também o é para todas as almas filosóficas que procuram a sua salvação, ou seja, a sua morte. Ora Lenine disse com todas as letras que a distinção entre categoria filosófica de matéria e conceito científico de matéria é vital para a filosofia marxista.

A matéria é uma categoria filosófica” (M. e E.., p. 110).

A única propriedade da matéria cuja admissão define o materialismo filosófico é a de ser uma realidade objectiva” (M. e E.., p. 238).

Segue-se que a categoria filosófica de matéria, que é conjuntamente Tese de existência e Tese de objectividade, nunca pode ser confundida com os conteúdos dos conceitos científicos de matéria. Os conceitos científicos de matéria definem conhecimentos relativos ao estado histórico das ciências, sobre o objecto dessas ciências. O conteúdo do conceito de matéria muda consoante o desenvolvimento, quer dizer, o aprofundamento do conhecimento científico. O sentido da categoria filosófica de matéria não se altera, pois não incide sobre nenhum objecto da ciência, mas afirma a objectividade de todo o conhecimento científico de um objecto. A categoria de matéria não pode mudar. É “absoluta”.

As consequências que Lenine tira desta distinção são de importância fundamental. Em primeiro lugar, quanto ao que, então, se chamava a “crise da física”. Lenine estabelece a verdade: a física não está de modo algum em crise, mas em pleno processo de crescimento. A matéria não se “evaporou”. Apenas o conceito científico de matéria mudou de conteúdo e mudará sempre, no futuro, pois o processo de conhecimento é infinito no seu próprio objecto. A pseudocrise científica da física é apenas uma crise ou um transe filosófico em que ideólogos, mesmo que se trate de sábios, atacam abertamente o materialismo. Quando proclamam que a matéria se evaporou, devemos entender o discurso silencioso do seu desejo: que o materialismo se evaporasse!

Foi Lenine quem denunciou e destruiu todos esses científicos filósofos feitos à pressa, que julgavam ter chegado a sua hora. Que é feito hoje dessas personagens? Quem os conhece ainda? Convenhamos que este ignorante em filosofia que era Lenine possuía pelo menos discernimento. E que filósofo profissional soube como ele, sem delongas nem hesitações, empenhar-se até tão longe e com tamanha segurança, inteiramente só numa batalha aparentemente perdida? Gostaria que me citassem um nome — exceptuando Husserl, aliado objectivo de Lenine contra o empirismo e o historicismo — embora aliado provisório e que não conseguiu reencontrar, pois Husserl julgava, como bom “filósofo” que era, poder chegar a “qualquer lado”.

Mas a Tese de Lenine vai mais longe que a conjuntura imediata. Se é absolutamente necessário distinguir a categoria filosófica de matéria de qualquer conceito científico, segue-se que os materialistas, que aplicam as categorias filosóficas aos objectos das ciências, como se elas fossem o seu conceito, se comprometem num “qui pro quo”. Exemplo: quem fizer uma utilização conceitual do binómio categorial matéria-espírito ou matéria-consciência tem muitas probabilidades de cair em paralogismos, pois “a oposição da matéria e da consciência só tem significado absoluto dentro de limites bastante restritos, unicamente nos da questão gnoseológica fundamental: o que é primordial, o que é secundário? (isto é, em filosofia). Para além destes limites (isto é, as ciências), a relatividade desta oposição não levanta qualquer dúvida” (M. e E.., p. 128).

Não quero insistir noutras consequências de grande alcance, por exemplo, sobre o facto de a distinção entre a filosofia e as ciências abrir, necessariamente, na perspectiva de Lenine, um campo de uma teoria da história do conhecimento que ele anuncia na sua teoria dos limites históricos de qualquer verdade (entenda-se: de qualquer conhecimento científico), que ele considera como teoria da distinção entre a verdade absoluta e a verdade relativa (nesta teoria são pensados, sob a forma de um só binómio de categorias, quer a distinção entre a filosofia e as ciências, quer a necessidade de uma teoria da história das ciências).

Quero ainda fazer notar o seguinte. A distinção entre filosofia e ciências, entre categorias filosóficas e conceitos científicos constitui, no fundo, uma tomada de posição filosófica radical contra todas as formas do empirismo e do positivismo: contra o empirismo e o positivismo de alguns materialistas, contra o naturalismo, contra o psicologismo, contra o historicismo (sobre este ponto muito preciso, ver a violência polémica contra o historicismo de Bogdanov).

Admitamos não ser nada mau (é até espantoso), por parte de um filósofo acusado, precipitadamente, de pré-crítico e pré-kantiano, que este dirigente bolchevista, que em 1908 não lera ainda, manifestamente, uma linha de Kant ou de Hegel, e se contentara com Berkeley e Diderot, dê provas, por estranho que pareça, de uma aguda “percepção” do adversário positivista e de um discernimento estratégico prodigioso, dentro do concerto religioso da filosofia, então hipercrítica, do seu tempo.

O mais espantoso é que Lenine tem a habilidade de assumir estas posições anti-empiristas no próprio campo da sua problemática empirista de referência. Que se possa chegar a ser anti-empirista pensando e exprimindo-se dentro das categorias-base do empirismo, eis um feito paradoxal que põe, apesar de tudo, um pequeno “problema” aos filósofos de boa fé que se disponham a examiná-lo criteriosamente.

Quererá isto dizer, por acaso, que o campo da problemática filosófica, as formulações categoriais, os enunciados filosóficos são relativamente indiferentes às tomadas de posição filosóficas? Ou será que, no fundo, nada de essencial se passa no que parece constituir a filosofia? É estranho.

Tese 2. Se a filosofia é distinta das ciências, existe entre a filosofia e as ciências um vínculo privilegiado. Este vínculo é representado pela tese materialista da objectividade.

Dois pontos são aqui essenciais,

O primeiro diz respeito à natureza do conhecimento científico. As indicações contidas em Materialismo e Empirocriticismo são retomadas, desenvolvidas e aprofundadas nos Cadernos sobre a dialéctica: Dão todo o sentido ao anti-empirismo e anti-positivismo de Lenine, no próprio interior da concepção da prática científica. A este respeito, também Lenine deve ser considerado uma testemunha que fala da prática científica como autêntico praticante. Basta ler os textos que consagrou ao Capital de Marx, entre 1898 e 1905, a sua análise do desenvolvimento do Capitalismo na Rússia, para ver que a sua prática científica de teórico marxista da história, da economia política e da sociologia se reforça constantemente por agudas reflexões epistemológicas que os seus textos filosóficos afinal retomam de uma forma geral.

O que Lenine põe em evidência e mais uma vez, através das categorias que podem ser contaminadas pelas suas referências empiristas (tal como a categoria de reflexo), é o anti-empirismo da prática científica, o papel decisivo da abstracção científica, melhor ainda, o papel da sistematicidade conceitual e, de maneira mais geral, o papel da teoria como tal.

Politicamente, Lenine é conhecido pela sua crítica do “espontaneísmo” que não visa, é preciso notá-lo, a espontaneidade, os recursos, a invenção, o génio das massas populares, mas uma ideologia política que, a pretexto de uma exaltação verbal da espontaneidade das massas, a utiliza para as empenhar numa política falsa. Geralmente não se vê-que, na sua concepção da prática científica, Lenine adopta exactamente a mesma posição. Se Lenine escreveu “sem teoria revolucionária, não há movimento revolucionário”, também poderia ter dito: sem teoria científica, não há produção de conhecimentos científicos. A sua defesa das exigências de teoria na prática científica envolve perfeitamente a sua defesa das exigências de teoria na prática política. O seu anti-espontaneísmo reveste então a forma teórica do anti-empirismo, antipositivismo e antipragmatismo.

Mas da mesma forma que o seu anti-espontaneísmo político supõe o mais profundo respeito pela espontaneidade das massas, também o seu anti-espontaneísmo teórico implica o maior respeito pela prática no processo do conhecimento. Nem por um instante, quer na sua concepção da ciência quer na da política, Lenine cai no teoricismo.

Este primeiro ponto permite a compreensão do segundo. A filosofia materialista está, para Lenine, profundamente ligada à prática científica. É necessário, parece-me, interpretar esta tese em dois sentidos.

Em primeiro lugar, num sentido extremamente clássico e que ilustra o que podemos observar empiricamente na história das relações que ligam qualquer filosofia às ciências. Para Lenine, o que se passa nas ciências interessa em alto grau a filosofia. As grandes revoluções científicas provocam reajustamentos importantes na filosofia. É a conhecida tese de Engels: o materialismo modifica-se a cada grande descoberta científica — tese que Lenine defende ao mostrar, de forma diferente e melhor que Engels, fascinado como este estava pelas consequências filosóficas das descobertas nas ciências da natureza (a célula, a evolução, o princípio de Carnot, etc.), que a descoberta decisiva que provoca o reajustamento obrigatório da filosofia materialista não provém tanto das ciências da natureza como a ciência da história do materialismo histórico.

Num segundo sentido, Lenine invoca um argumento importante. Já não fala da filosofia em geral, mas da filosofia materialista. Esta está, e de uma forma que lhe é característica, praticamente interessada no que se passa na prática científica, porque esta representa na sua tese materialista, as convicções espontâneas dos sábios relativamente à existência do objecto da sua ciência, e da objectividade do seu conhecimento.

Lenine repete constantemente, em Materialismo e Empirocriticismo, que quase todos os especialistas das ciências da Natureza são “espontaneamente” materialistas, pelo menos por uma das tendências da sua filosofia espontânea. Embora combatendo as ideologias do espontaneísmo na prática científica (empirismo e pragmatismo), Lenine reconhecia, na experiência da prática científica, uma tendência materialista espontânea da mais alta importância para a filosofia marxista. Relaciona então as teses materialistas requeridas para pensar a especificidade do conhecimento científico com a tendência materialista espontânea dos práticos das ciências: exprimindo ao mesmo tempo prática e teoricamente, uma só e única tese materialista, da existência e da objectividade.

Parece-nos que, a insistência leninista em afirmar o vínculo privilegiado entre as ciências e a filosofia materialista marxista confirma que se trata de um ponto nodal decisivo, a que chamaremos, se permitem, Ponto Nodal n.º 1.

Mas, precisamente através da citação da filosofia espontânea dos sábios, esboça-se qualquer coisa de importante que nos vai pôr em presença de outro ponto nodal decisivo, de natureza totalmente diversa.

Tese 3. Também aqui, Lenine retoma uma tese clássica que Engels expusera em Ludwig Feuerbach, mas dá-lhe um alcance sem precedentes. Esta tese incide sobre a história da filosofia conhecida como história de uma luta secular entre duas tendências: o idealismo e o materialismo.

É necessário dizer que esta tese, na sua brutalidade, atinge frontalmente as convicções da imensa maioria dos filósofos de profissão. Concordarão de boa-vontade, se quiserem ler Lenine, e um belo dia hão-de lê-lo, que as suas teses filosóficas não são tão sumárias como as reputaram. Mas receio bem que eles não resistam a esta última tese, que provavelmente os atingirá nas suas certezas mais profundas, por encarniçada que seja a sua posição. Parecer-lhes-á demasiado grosseira e só boa para debates públicos, ou seja, ideológicos e políticos. Dizer que toda a história da filosofia se reduz, em última análise, a uma luta entre materialismo e idealismo afigura-se como que fazer tábua rasa de toda a riqueza da história da filosofia.

De facto, esta tese volta a afirmar que, no essencial, a filosofia não tem verdadeiramente história. Que é afinal uma história que apenas consiste na repetição do choque de duas tendências fundamentais? As formas e os argumentos de combate podem variar, mas, se toda a história da filosofia é somente a história destas formas, basta reduzi-las às tendências imutáveis que representam, para que a transformação destas formas se torne uma espécie de jogo do nada. No seu limite a filosofia não tem história, é esse lugar teórico estranho onde não se passa propriamente nada, a não ser essa repetição do nada. Afirmar que não se passa nada em filosofia é dizer que a filosofia não leva a parte alguma, pois não vai para lado nenhum: os caminhos que abre são, como dizia Dietzgen antes de Heidegger, “Holzwege”, caminhos que não levam a parte alguma.

É isto, aliás, o que Lenine praticamente sugere, pois, desde as primeiras páginas de Materialismo e Empirocriticismo, explica que Mach apenas repete Berkeley ao qual opõe por sua conta, a sua própria repetição de Diderot. Pior ainda, apercebemo-nos que Berkeley e Diderot se repetem um ao outro, pois estão de acordo quanto ao binómio matéria-espírito, no qual se contentam em dispor os termos de outra forma. O vazio da sua filosofia não é mais que o nada dessa inversão de termos de um binómio categorial imutável (Matéria-Espírito) que representa, na teoria filosófica, o jogo das duas tendências antagonistas que se defrontam através deste binómio. A história da filosofia é apenas o nada dessa inversão repetida. Esta tese daria também novo sentido às famosas fórmulas sobre a inversão de Hegel por Marx, esse Hegel de quem o próprio Engels disse que não era senão uma inversão prévia.

Sobre este ponto é necessário reconhecer que a insistência de Lenine não tem considerações nem limites pelo menos em Materialismo e Empirocriticismo (porque nesta matéria o tom muda nos Cadernos), lança pela porta fora todas as gradações, distinções, astúcias, todas as subtilezas técnicas por meio das quais a filosofia tenta pensar o “objecto”: são apenas sofismas, distínguos, argúcias de professor, acomodações, compromissos cujo único objectivo é mascarar o ponto real do debate em que toda a filosofia está comprometida: a luta de carácter fundamental entre materialismo e idealismo. Tal como em política, não há uma terceira via, meias-medidas, posições intermédias. No fundo, há apenas idealistas e materialistas. Todos os que se não declaram abertamente como tal são materialistas ou idealistas “envergonhados” (Kant, Hume).

Mas é preciso ir mais longe ainda e dizer que, se toda a história da filosofia não é senão o repisar de argumentos onde se realize uma só e única luta, a filosofia é somente um choque de tendências, o “kampfplatz” de que falava Kant, mas que nos lança então na subjectividade pura e simples das lutas ideológicas. O mesmo é dizer que, propriamente falando, a filosofia não tem objecto, no sentido em que se diz de uma ciência possuir objecto.

Ora Lenine chega até aí, o que prova bem que ele pensa. Afirma que não se pode demonstrar os princípios últimos do materialismo, do mesmo modo que se não pode demonstrar (nem refutar; o que irritava Diderot) os do idealismo. Não se pode demonstrá-los porque eles são insusceptíveis de conhecimento, entendamos, de um conhecimento comparável ao da ciência que demonstra as propriedades dos seus objectos.

A filosofia não tem, portanto, objecto. Mas tudo tem a sua razão de ser. Se nada acontece na filosofia, é precisamente porque esta não possui objecto, enquanto que, com efeito, se alguma coisa se passa nas ciências é porque estas têm um objecto do qual podem aprofundar o conhecimento, o que lhes dá uma história. Como a filosofia não tem objecto, nada nela pode acontecer. O vazio da sua história não faz mais que repetir o vazio do seu objecto.

É aqui que nos aproximamos do Ponto Nodal n.º 2 que se apoia nessas famosas tendências. A filosofia apenas repete e rumina argumentos que, sob a forma de categorias, representam o seu conflito fundamental. É este seu conflito, inominável na filosofia, que sustenta a eternamente nula inversão de que a filosofia é o teatro retórico, a inversão do binómio categorial fundamental matéria-espírito. Como se manifesta então em tendência? Na ordem hierárquica que instaura entre os termos do binómio: uma ordem de domínio. Ouçamos Lenine:

“Fingindo discutir apenas Beltov e passando Engels em silêncio, Bogdanov indigna-se com estas definições que parece serem meras repetições da fórmula de Engels [...] segundo a qual, a matéria é o elemento primordial e o espírito o elemento secundário para uma tendência filosófica, afirmando à outra tendência o contrário. E todos os adeptos russos repetem, extasiados, a refutação de Bogdanov. A mínima reflexão provar-lhes-ia, no entanto, que, no fundo, não é possível definir as duas noções últimas da teoria do conhecimento, senão indicando dentre estas aquela que consideramos primária. Que é dar uma definição? É, acima de tudo, substituir uma dada concepção por outra mais lata [...] Trata-se agora de saber se existem concepções mais latas que as da existência e do pensamento da matéria e da sensação do físico e do psíquico, com as quais a teoria do conhecimento possa operar. Não, são elas concepções últimas, as mais latas, que a gnoseologia não ultrapassou até ao presente (abstraiam-se as nossas alterações sempre possíveis de terminologia). Só o charlatanismo ou a indigência intelectual podem exigir para estas duas “séries” de concepções últimas, infinitamente latas, definições que sejam mais que “simples” repetições: tanto uma como outra são consideradas como primárias” (M. e E., p. 127).

A inversão, que é, formalmente, o nada que acontece na filosofia, no seu discurso explícito, não é nula, ou melhor, é um efeito de anulação, a anulação de uma hierarquia anterior, substituída pela hierarquia inversa. O que se joga na filosofia, através das categorias últimas que comandam todos os termos filosóficos, é, portanto, o sentido desta hierarquia, o sentido desta colocação de uma hierarquia em posição de domínio, o que, na filosofia, é qualquer coisa que conduz irresistivelmente a pensar numa tomada do poder ou acesso ao poder. Filosoficamente, devemos dizer: um acesso ao poder é sem objecto. Um acesso ao poder será ainda uma categoria puramente teórica? Uma tomada do poder (ou acesso ao poder) é política, não possui objecto, tem apenas um fito, precisamente o poder, e um objectivo, os efeitos do poder.

É preciso fazer aqui uma breve pausa para ver o que Lenine nos traz de novo em relação a Engels. A sua contribuição é enorme, se quisermos medir bem os efeitos daquilo que, frequentemente, tem sido tomado por simples gradações.

No fundo, Engels, que tem espantosos rasgos de génio quando escreve sobre Marx, não tem um pensamento comparável ao de Lenine. Aconteceu-lhe muitas vezes justapor teses — mais do que pensá-las na unidade da sua relação.

Pior ainda: nunca se desfez inteiramente de um certo tema positivista de A Ideologia Alemã. Para ele a filosofia, de que, no entanto, recomenda o estudo sistemático, deve desaparecer, por ser apenas o laboratório artesanal, onde, no passado, se forjaram as categorias filosóficas necessárias à ciência. Esses tempos já passaram. A filosofia cumpriu a sua missão. Deve ceder agora lugar à ciência. Uma vez que as ciências estão cientificamente preparadas para apresentarem o sistema orgánico unitário das suas relações, não há já qualquer necessidade de uma Naturphilosophie nem de uma Geschichtsphilosophie.

Que resta à filosofia? Um objecto: a dialéctica, as leis mais gerais da natureza (mas as ciências providenciam nesse sentido) e do pensamento. Restam portanto as leis do pensamento que podemos desligar da história das ciências. No entanto, a filosofia não está completamente separada das ciências, daí o positivismo que ressalta de algumas fórmulas de Engels, quando este diz que ser materialista é admitir a natureza tal qual é, “sem nada que lhe seja estranho”. No entanto, Engels sabe que as ciências são um processo de conhecimento. É por isso que a filosofia tem, apesar de tudo, um objecto que, paradoxalmente, seria neste caso o pensamento puro, o que não desagradaria ao idealismo. Que faz hoje, por exemplo, Lévi-Strauss que se declara discípulo de Engels? Estuda também as leis, ou melhor, as estruturas do pensamento. Ricoeur mostrou-lhe, e com razão, que ele era apenas Kant sem o sujeito transcendental. Lévi-Strauss não o desautorizou. Com efeito, se o objecto da filosofia é o pensamento puro, nada mais fácil que reclamar-se de Engels e descobrir-se kantiano sem o sujeito transcendental. Pode exprimir-se a mesma dificuldade de outra forma. A dialéctica, objecto da filosofia, é considerada uma lógica. Poderá a filosofia ter o objecto da Lógica por seu próprio objecto? Tudo leva a crer que, de futuro, a Lógica se libertará progressivamente da filosofia: é uma ciência.

Evidentemente, Engels também defende ao mesmo tempo a tese das duas tendências, colocando, embora, materialismo e dialéctica de um lado e luta de tendências e progresso filosófico (determinado exclusivamente pelo progresso científico) do outro, que é coisa bem difícil de pensar em conjunto, ou seja, de pensar. Engels procura fazê-lo, mas, ainda que o não tomemos à letra (devemos compreender que não se trata de um especialista), torna-se evidente que lhe falta qualquer coisa de essencial.

Falta qualquer coisa de essencial no seu pensamento para permitir-lhe pensar. É graças a Lenine que podemos verificar que se trata de uma falta. Porque falta ao pensamento de Engels o que Lenine lhe acrescenta.

Lenine acrescenta-lhe um pensamento profundamente coerente, onde se insere certo número de teses radicais que provocam, sem dúvida vazios, mas vazios pertinentes. No núcleo deste pensamento existe a tese de que a filosofia não possui objecto, quer dizer: a filosofia não se explica pela simples relação que mantém com as ciências.

Aproximamo-nos agora do Ponto Nodal n.º 2. Mas ainda não o abordámos.

2 — LENINE E A PRÁTICA FILOSÓFICA

Para abordar este Ponto Nodal n.º 2, vamos entrar num domínio novo, o da prática filosófica. Seria interessante estudar a prática filosófica de Lenine nas suas diversas obras. Isto pressupõe que soubéssemos o que é a prática filosófica como tal.

Ora Lenine só efectivamente em raras ocasiões se viu constrangido, pelas próprias exigências da polémica filosófica, a expender uma espécie de definição da sua prática filosófica. Eis os dois textos em que isto é mais nítido.

“Direis vós que é vaga esta distinção entre verdade absoluta e verdade relativa. Eu diria que é suficientemente ”vaga” para impedir a ciência de se tornar um dogma no pior dos sentidos desta palavra, coisa morta, cristalizada, ossificada; mas é bastante precisa para traçar entre nós e o fideísmo, o agnosticismo, o idealismo filosófico e a sofística dos adeptos de Hume e de Kant, uma linha de demarcação decisiva e indelével” (M. e E., p. 117).

Decerto não é preciso esquecer que o critério da prática nunca pode, no fundo, confirmar ou refutar completamente uma ideia humana, qualquer que ela seja. Este critério, também suficientemente “vago” para não permitir aos conhecimentos do homem tornarem-se “absolutos” é, no entanto, bastante determinado para permitir uma luta implacável contra todas as formas do idealismo e agnosticismo” (M. e E., p. 123).

Outros textos confirmam a posição de Lenine. Trata-se manifestamente não de um formulário apanhado ao acaso, mas de um pensamento profundo. Lenine define portanto a essência última da prática filosófica como uma intervenção no domínio teórico. Esta intervenção reveste-se de uma dupla forma: teórica, pela formulação de categorias definidas; prática pela função destas categorias. Esta função consiste em “traçar uma linha de demarcação”, no interior do domínio teórico, entre ideias consideradas verdadeiras e ideias consideradas falsas, entre o científico e o ideológico. Os efeitos deste traçado também são duplos: positivos no que servem a uma determinada prática — a prática científica — negativos na medida em que defendem esta prática contra o perigo de certas noções ideológicas, neste caso as do idealismo e dogmatismo. São estes, no mínimo, os efeitos produzidos pela intervenção filosófica de Lenine.

Neste traçado de uma linha de demarcação, vemos defrontarem-se as duas tendências fundamentais a que já fizemos referência. É a filosofia materialista quem traça esta linha de demarcação para preservar a prática científica dos assaltos da filosofia idealista, o científico, dos ataques do ideológico. Podemos generalizar esta definição, dizendo que toda a filosofia consiste no traçado de uma linha de demarcação maior, por meio da qual repele as noções ideológicas das filosofias que representam a tendência oposta à sua; o risco deste traçado, portanto, na prática filosófica, é a prática científica, a cientificidade. Voltamos a encontrar aqui o nosso Ponto Nodal n.º 1: o vínculo privilegiado da filosofia com as ciências.

Reencontramos também o jogo paradoxal da inversão dos termos onde a história da filosofia se anula no nada que produz. Este nada não é nulo; tem por missão o destino das práticas científicas, do científico e do seu consequente ideológico. Ou as práticas científicas são exploradas, ou então são servidas pela intervenção filosófica.

Torna-se portanto inteligível que a filosofia tenha uma história, embora nada se passe nela. Porque a intervenção de cada filosofia, que desloca ou modifica categorias filosóficas existentes e produz portanto estas alterações nos discursos filosóficos onde a história da filosofia mostra a sua existência, esta intervenção, dizíamos, é simplesmente o nada filosófico cuja existência verificámos, já que efectivamente uma linha de demarcação nada é, nem sequer uma linha, sequer um traçado, mas o simples acto de demarcar, quer dizer, o vazio de uma distância determinada.

Esta distância deixa o seu sinal nas distinções do seu discurso filosófico, nas suas categorias e dispositivos modificados, embora todas estas modificações nada sejam em si mesmas, visto que apenas agem fora da sua própria presença, na distância ou não distância que separa as tendências antagonistas das práticas científicas, fito da sua luta.

O que pode haver de verdadeiramente filosófico nesta operação de um traçado nulo é somente a sua deslocação, mas esta é relativa à história das práticas científicas e das ciências. Porque existe uma história das ciências, que, seja segundo as transformações da conjuntura científica (quer dizer, consoante o estado das ciências e dos seus problemas), seja conforme o estado dos dispositivos filosóficos provocados por estas transformações, as linhas da frente filosófica ficam deslocadas. Os termos que designam o científico e o ideológico devem ser portanto continuamente repensados.

Trata-se, por conseguinte, mais de uma história na filosofia que de uma história da filosofia: uma história da deslocação da repetição indefinida de um traço nulo, cujos efeitos são reais. Esta história pode ler-se com proveito em todas as grandes filosofias, mesmo idealistas — mesmo naquela que resume toda a história da filosofia: Hegel.

Por isso Lenine leu Hegel com admiração — embora a leitura de Hegel dependa também da prática filosófica de Lenine. Ler Hegel como materialista é traçar-lhe linhas de demarcação.

Excedi sem dúvida os termos da carta de Lenine mas não penso ter-lhe sido infiel, em todo o caso. Digo simplesmente que Lenine nos oferece algo com que começar a pensar a forma específica da prática filosófica na sua essência é dar, retrospectivamente, um sentido a numerosas fórmulas consignadas nos grandes textos filosóficos clássicos. Porque, à sua maneira, já Platão falara da luta dos Amigos das Formas e dos Amigos da Terra e declarara deve o verdadeiro filósofo saber dividir, separar e traçar linhas de demarcação.

Permanece ainda uma questão fundamental: onde se encontram estas duas grandes tendências que se enfrentam na história da filosofia? Lenine dá a esta pergunta uma resposta violenta, mas uma boa resposta.

3 — A TOMADA DE PARTIDO EM FILOSOFIA

Esta resposta encontra-se na tese célebre e, digamos, para muitos escandalosa da tomada de partido em filosofia.

Esta palavra soa como palavra de ordem imediatamente política em que partido quereria dizer partido político, o partido comunista.

Basta ler bem Lenine, não somente Materialismo e Empirocriticismo, mas também e, sobretudo, as suas análises da teoria da história e da economia para ver que se trata de um conceito e não de uma simples palavra de ordem.

Lenine conclui simplesmente que qualquer filosofia toma partido, em função da sua tendência fundamental contrária, através das filosofias que a representam. Mas conclui ao mesmo tempo que a imensa maioria das filosofias tem a preocupação de declarar publicamente e de provar que elas não tomam partido porque não há que tomar partido.

Kant, por exemplo: o seu “Kampfplatz” é bom para as outras filosofias, as pré-críticas, mas não para a filosofia crítica. A sua própria filosofia está fora do “Kampfplatz”, noutro lugar onde se atribui a si própria a função de arbitrar os conflitos da metafísica em nome dos interesses da razão.

Desde que existe filosofia, desde o θεωρεΐν de Platão, até ao filósofo como “funcionário da humanidade” de Husserl e mesmo até ao Heidegger de certos textos, a história da filosofia é dominada também por esta repetição que é a repetição de uma contradição: a negação teórica da sua própria prática e dos gigantescos esforços teóricos para registar esta negação em discursos coerentes.

A resposta de Lenine a este facto surpreendente, que parece constitutivo da imensa maioria das filosofias, consiste em dizer-nos apenas algumas palavras acerca da insistência destas misteriosas tendências que se defrontam na história da filosofia. Segundo Lenine estas tendências estão indiscutivelmente relacionadas com disposições e, portanto, com conflitos de classe. Digo relacionadas, porque Lenine nada mais acrescenta e também nunca diz que a filosofia se reduz pura e simplesmente à luta de classes, ao que se chama, na tradição marxista, luta de classe ideológica. Para não exorbitar das declarações de Lenine, diremos que, segundo ele, a filosofia representa a luta de classes, ou seja, a política. Representa-a, o que supõe uma instância junto da qual a política é assim representada: esta instância são as ciências.

Ponto Nodal n.º 1: vínculo da filosofia com as ciências. Ponto Nodal n.º 2: vínculo da filosofia com a política. Tudo reside neste duplo vínculo.

Avancemos agora a proposição seguinte: a filosofia seria a política continuada de uma certa maneira, num certo domínio, a propósito de uma certa realidade. A filosofia representaria a política no domínio da teoria, para ser mais exacto: junto das ciências — e vice-versa, a filosofia representaria a cientificidade na política, junto das classes empenhadas na luta de classes. Como esta representação é regulada, por que mecanismos é ela assegurada, por que mecanismos pode ser falsificada ou deturpada — e é regra geral falsificada — isso não nos diz Lenine. É manifestamente sua convicção profunda que, em última análise, nenhuma filosofia pode escapar a esta condição, evadir-se do determinismo desta dupla representação, em suma, que a filosofia existe algures, como uma terceira instância, entre estas duas instâncias maiores que a constituem como instância: a luta de classes e as ciências.

Apenas mais uma palavra: se está bem patente em Engels o Ponto Nodal n.º 1, a instância Ciências não se consegue encontrar nele, apesar da menção à luta das tendências em filosofia, o Ponto Nodal n.º 2, a instância Política. O mesmo é dizer que Lenine não é um simples comentador de Engels, antes acrescenta qualquer coisa de novo e decisivo àquilo que chamamos o domínio da filosofia marxista: O que faltava a Engels.

Apenas mais uma palavra para concluir. O conhecimento desta dupla representação da filosofia é apenas um início balbuciante, mas é o início de uma teoria filosófica. Ninguém contestará ser esta teoria uma teoria em embrião, apenas esboçada no que pensamos ser uma simples polémica. Estas indicações de Lenine, se as quisermos fixar, possuem pelo menos o mérito de transformar a questão num problema e de fazer sair, aquilo que se chama a filosofia marxista da ruminação de uma prática filosófica que é, desde sempre e terminantemente, a da negação da sua prática real.

É neste sentido que Lenine responde, e é ele o primeiro a fazê-lo, profecia da XI Tese, porque ninguém, nem mesmo Engels o fizera antes. Respondeu-o com o “estilo” da sua prática filosófica. Uma prática selvagem, no sentido em que Freud fala de análise selvagem, que não expõe os títulos teóricos das suas operações e que faz saltar a filosofia da “interpretação” do mundo a que podemos chamar filosofia da negação. Será na verdade uma prática selvagem, mas existirá alguma coisa que não tenha começado por ser selvagem?

O facto é que esta prática é uma nova prática filosófica. Nova, porque já não é essa ruminação que é a prática da negação, em que a filosofia, que não deixa de intervir “politicamente” nos debates onde se joga o destino real das ciências, entre o científico que elas instauram e a ideologia que as ameaça, e que não deixa de intervir “cientificamente” nas lutas onde se joga o destino das classes, entre o científico que as serve e o ideológico que as ameaça — nega, tenazmente, no entanto, na “teoria” filosófica, que aí intervenha. Nova, na medida em que é uma prática que renunciou à negação e, sabendo o que faz, age segundo o que é.

Se assim é, pode-se então suspeitar que não se trata de um acaso ter sido este efeito sem precedentes provocado pela descoberta científica de Marx é concebido por um dirigente político proletário. Se a filosofia foi forçada a nascer pela primeira ciência da história humana, na Grécia, numa sociedade de classes, e sabendo até onde a exploração de classe pode estender os seus efeitos, não nos surpreenderá que estes efeitos tenham também tomado a forma (clássica nas sociedades de classe, onde as classes dominantes negam que dominam) de uma negação filosófica do domínio da filosofia pela política. Não nos surpreenderá então que fosse suficiente o conhecimento científico dos mecanismos de domínio de classe e todos os seus efeitos, revelado por Marx e aplicado por Lenine para provocar na filosofia, esta extraordinária transformação que abala os fantasmas da negação em que a filosofia se resolve sobre si mesma, para que os homens acreditem e ela própria se julgue que está acima da política, bem como acima das classes.

Daqui resulta que apenas com Lenine pode enfim tomar corpo o sentido a frase profética da XI Tese sobre Feuerbach. (Até aqui) “os filósofos não fizeram mais que interpretar o mundo: trata-se agora de o transformar”. Promete esta frase uma filosofia nova? Não o creio. A filosofia não será suprimida: a filosofia permanecerá a filosofia. Mas, sabendo o que é a sua prática e sabendo o que ela é, ou come cando a sabê-lo, pode por isso transformar-se pouco a pouco. Então, menos que nunca, poderemos dizer do marxismo ser uma filosofia nova: uma filosofia da praxis. No cerne da Teoria marxista existe uma ciência: uma ciência inteiramente singular, mas uma ciência. O elemento novo que o marxismo introduz na filosofia é uma nova prática da filosofia. O marxismo não é uma (nova) filosofia da praxis, mas uma prática (nova) da filosofia.

Esta nova prática da filosofia pode transformar a filosofia. E, para além disso, ajudar, à sua maneira, a transformar o mundo. Apenas ajudar, porque não são os teóricos, sábios ou filósofos, nem tão-pouco os “homens”, quem faz a história — mas as “massas”, isto é, as classes aliadas numa única luta de classe.

Fevereiro de 1968