O que não pode mais perdurar no Partido Comunista Francês

Louis Althusser

24-27 de abril de 1978


Primeira edição: artigos publicados no Le Monde logo depois das eleições na França e da derrota da União de Esquerda.

Fonte: Coleção Polêmica: Eurocomunismo x Leninismo, Editora Vega, 1978.

Tradução: Ricardo Rabello.

Transcrição: Thiago Paulino.

HTML: Lucas Schweppenstette.


I - A ESTRATÉGIA: A REVIRAVOLTA DISSIMULADA

A derrota da união da esquerda provocou uma grande confusão nas massas populares e profunda perturbação entre grande número de comunistas. Excetuando-se uma facção “obreirista”, na realidade sectária, que abertamente se rejubila diante da ruptura com o PS — pois representa como que uma vitória sobre o perigo social-democrata — a maioria dos militantes está surpresa não apenas com o grave insucesso, mas principalmente com as condições em que se registrou esta estranha derrota. Fato novo, ao mesmo tempo em que esperam explicação da direção, os militantes tratam de procurá-las por si próprios. Assim os militantes começam a analisar o processo que levou a essa derrota: a linha efetiva seguida pelo partido, seus sobressaltos e as características singulares de sua prática. O que eles pedem à direção do partido é a garantia de que sejam respeitadas as condições materiais indispensáveis ao prosseguimento da análise e à discussão de seus resultados: a abertura de tribunas livres para discussão na imprensa do partido, e a preparação verdadeiramente democrática do XXIII Congresso.

Frente a esse movimento, a direção do partido aos poucos estabelece um duplo sistema de defesa: impõe inicialmente suas conclusões e canaliza a discussão para enfraquecer-lhe a carga.

A 20 de março de 1978, o politburo declara: “Naturalmente convém aproveitar todos os ensinamentos dados pela batalha política que se acaba de travar”. Ele fala do futuro, como é devido, numa análise aberta, mas para fornecer antecipadamente as conclusões a respeito.

Primeira conclusão: “O partido comunista não tem qualquer responsabilidade nessa situação”. É uma fórmula que tenta, ademais, abrigar tardiamente, a direção, que tudo decidiu, por trás do partido, que tudo sofreu.

Segunda conclusão: “A linha diretriz (do partido) durante esses seis anos foi constante”. O que permite a Fiterman ressaltar em seu relatório de 29 de março o heroísmo do partido lutando em difíceis condições por uma vitória perdida por culpa dos socialistas. “Nós não pretendemos a derrota… É preciso refletir sobre isso, discutir e tirar daí lições úteis. Mas é claro que os dados fundamentais sendo os que acabo de lembrar, em face desses dados não tínhamos outra orientação séria e responsável a tomar a não ser a que tomamos. Disso o politburo está firmemente convencido”.

Grato pela firme convicção. O politburo deve certamente estar “firmemente convencido” do que diz, para deixar de lado a demonstração e nos oferecer de fato “conclusões sem premissas”, um julgamento sem análise. Eis o que dá verdadeiro sentido ao apelo lançado pela direção: essa análise deve ser feita, mas… baseada em “conclusões sem premissas” do politburo. E quando Marchais convida a analisar a situação (“L’Humanité” de 4 de abril), já que ela requer “discussão e reflexão, ele assinala que para desenvolver essa reflexão (...) as organizações do partido dispõem de materiais importantes”.

Quais? “Trata-se notadamente do comunicado do politburo no dia 20 de março, como do relatório que Ch. Fiterman apresentou em nome do politburo diante dos secretários federais”. O círculo está fechado desenvolver-se livremente, isto é, aprisionada em si própria, em conclusões que se lhe apresenta antecipadamente.

Quanto ao apelo de Marchais: “É preciso discutir, está muito bem”, os comunistas sabem o que isto quer dizer na prática: discutir no ambiente fechado das células, a rigor numa conferência de seção, nada mais. Não haverá, pois, livre troca generalizada de experiência e análises entre militantes de diferentes ramos, entre trabalhadores manuais e intelectuais, que fortalecem e estimulam a análise. Vocês discutirão livremente, mas tomando por base “documentos importantes”, e no quadro exclusivo de suas organizações (células, seções).

É a resposta oficial a uma reivindicação que surge de todos os lados do partido: a abertura de tribunas livres na imprensa do partido para permitir essas trocas e confrontações. Desde logo a direção disse “não”: não se discute, sequer um instante. E. G. Marchais inicialmente invocou para justificar essa recusa até uma cláusula imaginária dos estatutos: o partido não abriria tribunas livres a não ser para preparar um congresso. Ora, essa cláusula é uma dissimulação. Não se trata sequer uma vez de tribuna de discussão nos estatutos. G. Marchais não só invoca “o direito” contra militantes, o que, tendo em vista as circunstâncias, dificilmente é admissível de um dirigente operário, mas ele também o inventa.

É preciso que essa rejeição radical seja conhecida para se compreender porque os comunistas escrevem em “Le Monde” e em outros jornais: e que o diário e os semanários do seu partido lhe fecham as portas por ordem da direção. Mais ainda, a direção teme hoje as trocas de experiências e de análises entre militantes da base. Mais do que nunca ela é favorável ao “fechamento”, técnica número um para sufocar as reações dos militantes, pelo sistema da delegação em três níveis (célula-seção, seção-federação, federação-comitê central).

Quanto ao sentido dessa “ampla discussão” que vai se travar a pedido do próprio G. Marchais, é P. Laurente que o esclarece: “Que o insucesso de 19 de março pede uma reflexão profunda, para determinar a conduta a ser mantida numa nova etapa, que se abre diante de nós, é evidente. O que há de seguro e evidente é que, sobre as bases da conclusão”firmemente convicta” do politburo, a análise vai ser rapidamente “orientada” a deixar de lado o exame do passado para preocupar-se com o futuro, “no caminho do novo progresso” (B. P. de 4 de abril). Velha prática de direção perfeitamente em uso no partido: a chamada para as tarefas futuras vai bem depressa servir para enterrar o passado, suas contradições, seus erros e seus enigmas. Quantos aos que se demorarem sobre os erros do passado, desviar-se-ão, evidentemente “da vida”, portanto “da luta”, e, pois “da linha”, não é mesmo, camaradas?

E ao mesmo tempo, quanto mais o futuro se abre, mais o passado se fecha: já nem se trata mais do PC, mas apenas do PS. “É na estratégia desastrosa e suicida do PS, declara peremptoriamente o politburo de 4 de abril, e em nada mais, que reside a causa direta do fato de a esquerda não ter chegado à vitória”. Enquanto os militantes refletem, a direção desmantela suas conclusões: logicamente a não responsabilidade do PC transforma-se na responsabilidade total do PS. Assim, espremidos entre um julgamento radical sobre o passado e “as tarefas do futuro”, a reflexão e a discussão sobre o partido estão seguras do que as espera. Ser-lhe-ão atribuídas algumas “arestas”, mas para afirmar que a linha tem sido “constante” e “justa”. A mecânica de enquadramento e sufocação da discussão está estabelecida e em andamento.

COMO A BASE REFLETE

Ora, entre a concepção da “reflexão” da direção e o método de reflexão dos militantes, há uma “pequena contradição” que não será dissimulada facilmente.

Os militantes não aceitam discutir tomando por base “documentos importantes” apontados por G. Marchais (comunicados do politburo, relatório Fiterman). Eles não querem começar a refletir pela conclusão, saber a responsabilidade ou a não responsabilidade de um partido, ou ficar adiante da alternativa: se o PC não é responsável por nada, então o PS é responsável por tudo. Estão cansados dessa forma de pensamento maniqueísta que é, ademais, jurídico e moral e não corresponde a sua vivência e observação.

Eles sabem que a união de esquerda é uma necessidade e que é preciso conquistar para a união a corrente representada pelo PS. No entanto, jamais, se iludiram a respeito do PS, sobre a natureza misto de seus militantes (velhos quadros da SFIO, do núcleo do CERES, e de muitos adeptos sem verdadeira formação política), sobre sua função de unificador do eleitorado, à custa de luta de influências arbitradas por um “chefe histórico” autoritário, que orienta o partido segundos suas inspirações pessoais, que não deixavam de manifestar complacência pela Internacional Social-Democrata, sobre as formas modernas de abertura da colaboração de classes, e que tinha, muito tempo antes, anunciado seu propósito: conseguir três milhões de votos do PC.

Mas não se consegue ver em nome de que “lógica” as esmagadoras responsabilidades do PS esgotaram a questão e não colocariam ao contrário — de tal modo a política do PC se prendeu à política do PS — também em questão as responsabilidades do PC. Pois, ao final, é confundir a dialética com a paranoia imaginar a responsabilidade em termos de tudo ou nada. Esse procedimento tem efeito de boomerang, pois como se pode explicar que o PC, esclarecido pelas declarações de Mitterrand em Viena (três milhões de votos para “tomar” do PC) e pelo relatório secreto de G. Marchais de junho de 1972, tenha podido abrir, em proveito do PS, esse gigantesco crédito político que lhe deu força considerável, fez de Mitterrand o candidato único às presidenciais de 1974 e colocou o PS em condições de dominar a esquerda? O politburo de 4 de abril fala de estratégia do PS desvendada pelos últimos acontecimentos: fala daquilo que foi de fato sua estratégia desde o programa comum de 1972. Ora, “depois do programa comum”, desde cinco anos atrás, quem é que tem dado ao PS os meios para realizar sua estratégia, em vez de se decidir a combatê-la, senão a direção do PC?

OS MILITANTES QUEREM COMPREENDER

Na verdade, os militantes refletem de outra forma: como materialistas que querem julgar por partes e dialeticamente; não segundo o tudo ou nada, mas segundo as contradições. Eles começam pelo começo, ao analisar sua própria experiência de homens e mulheres que estavam bem colocados para ficar à escuta dos trabalhadores, de suas reações, de suas reflexões e de efeitos produzidos pelos sobressaltos da linha do partido, pelo estilo de intervenção de G. Marchais, pelos resultados eleitorais, frequentemente inesperados. E, sobre esses “documentos importantes”, eles tentavam refletir como marxistas, isto é, inicialmente como homens e mulheres capazes de “pensar por si próprios” (Marx) e em seguida preocupados em refletir sobre o que vivenciaram e observaram em função das relações de classes e de suas contradições.

Eles têm muito pragmatismo e empirismo, querem entender por que o partido não pôde atingir nenhum dos objetivos que a direção havia lhes fixado cinco anos antes. Querem entender, e sabem que para compreender é preciso ultrapassar os simples “fatos” (caros a Fiterman) para aprender o que Lênin denominava “sua ligação interna”, que coloca sempre em jogo, em nossa sociedade de classes, relações de classe econômicas, políticas e ideológicas de uma extrema complexidade, relações que a direção negligência pura e simplesmente.

Uma análise vir assim espontaneamente da base, eis um fato que pode marcar a história política do partido francês.

No entanto, há grandes possibilidades de que a direção, apoiada no poderio de seu aparelho ultrapasse a “pequena contradição” que opõe uma concepção da “reflexão”, baseada na análise concreta da materialidade das contradições vividas pela base. Como os militantes conhecem sua refinada ciência de sufocação das divergências, sua técnica de “recuperação” a sua arte para “deixar para mais tarde”, o cumprimento da vaga promessa de reformas no XXII Congresso, no entanto urgentes, a direção sabe perfeitamente que serão muitos os que seguirão atentamente, com vivo interesse, os métodos — incluindo-se aí os mais “liberais” aparentemente, que ela utilizará para resolver essa “pequena contradição”, isto é, para esmagar esse grão de areia que pode entravar sua gigantesca máquina.

Uma das sentenças mais antigas da prática política (Maquiavel, o próprio Napoleão!) diz que jamais convém julgar as pessoas como imbecis.

Assim como o nosso povo, a maioria dos militantes comunistas não acreditou realmente nem no interminável debate de cifras sobre as nacionalizações, nem na história solene e efêmera do dúbio sentido da percentagem (“25% ainda bem, mas 21% não significa tanto assim!”), nem nas bravatas sobre “os ministros comunistas no governo”, ou outras representações. A maioria dos militantes, e não são os únicos, sabem muito bem (como dizia Marx no “18 de Brumário”) que a história é um teatro e que para entendê-la é preciso procurar ver por trás das máscaras, dos chefes e de seus discursos, e principalmente ver por trás do cenário: assim também no jogo político das lutas de classe, analisando suas causas e efeitos. Se a direção não quis sentir esse mal-estar, isolada que estava em seu poder, os militantes sentiram por trás das invocações constantes à união da esquerda, e por trás da máscara do acordo de 13 de março, em que o partido renunciou a todas as suas posições, que algo de estranho acontecia, algo de grave, que permaneceu em segredo.

No âmago de todas as questões colocadas, há de fato uma convicção e uma interrogação. A convicção: a estratégia do partido jamais foi “constante”; ela foi por um tempo modificada no XXI Congresso, para retomar seu curso por ocasião do XXII Congresso, até às vésperas do Congresso de PS em Nantes (junho de 77) ocasião em que se precipitou numa linha que levaria à ruptura de setembro com o PS e à derrota. A interrogação: por que, pois, a direção jamais explicou a mudança de sua estratégia? O que teria para esconder, então?

A HIPÓTESE MAIS VEROSSÍMIL

É nesse ponto que se coloca a questão das questões: o que a teria direção a esconder, mantendo o silêncio, a respeito da mudança de estratégia a que submeter o partido?

Aqui é que surgem as “hipóteses”. Elas são abundantes, mas irei deter-me apenas em umas delas, a mais verossímil.

A direção teria querido diminuir a audiência de um PS praticamente saído do nada como partido pela aceitação por parte dele do programa comum, aceitação que poderia ameaçá-lo diante das forças vivas de seu eleitorado, ou levá-lo a tornar-se mesmo, um dia, dentro da tradição “social democrata”, o suporte de uma maioria giscardiana. Reduzindo a audiência do PS, a direção teria querido reforçar o partido para enfrentar os riscos de um futuro ameaçador (a crise, o perigo chiraquiano, etc.). Por que guardar silêncio a respeito dessa mudança estratégica? Para esconder a contradição existente entre a linha do último período (linha de luta contra o PS) e alinha seguida de 1972 a 77 (linha de colaboração estreita com o PS); da candidatura única de Mitterrand às eleições presidenciais (1974) até as cantonais (1976) e as municipais (1977).

O fato é: a derrota encontrava-se no final dessa mudança estratégica. Por uma simples razão: era necessário à esquerda o saldo dos votos “centristas” e pequeno-burgueses que, abandonados pelo partido, somente um PS poderia conquistar. Surge então uma equação impossível de resolver, que consiste em querer vitória da esquerda rejeitando o centro. Ademais, como se fosse necessário acrescentar a farsa ao drama, a direção do partido praticamente reconheceu a necessidade desse “centro” logo após o primeiro turno, ao ceder tudo ao PS. Ela tinha necessidade de seus votos, para alcançar a maioria de deputados, mas tudo se resumiu a isso. Foi a 13 de março, no exato momento em que o “bom acordo” era enfim assinado (“Aí está!” manchete do “L’Humanité” na primeira página) que os militantes do partido até então hesitantes em acreditar entenderam brutalmente que as “divergências” apontadas em setembro não podiam ser mais do que pretextos às verdadeiras razões das direções do PS e PC.

Assim, nessa luta de classes que opunha a direita mais reacionária e desacreditada à vontade dos trabalhadores de todas as categorias, não foi contra a direita que tudo se colocou, mas no seio da esquerda, e foi o fortalecimento do partido contra a ameaça socialista que se apresentou como objetivo nº 1 da direção.

A euforia unitária de 72 foi pela primeira vez abalada no XXI Congresso, após eleições parciais ameaçadoras para o PC, mas ela se reconstituía em seguida, sob influência do XXII Congresso, até o Congresso de Nantes (junho de 77), em que o PS executou uma verdadeira volta à direita em público. A direção do PC respondeu por uma mudança estratégica secreta, não explicada, mas ao contrário, dissimulada sob uma continuidade da antiga linguagem. Continuar a falar a língua da estratégia antiga, praticando uma nova estratégia, era não querer reconhecer a mudança estratégica operada e provocar incríveis efeitos de confusão pela linguagem dúbia empregada. Literalmente, os militantes não compreendiam mais o que se passava e eram completamente incapazes de explicar o que acontecia ao seu redor.

Essa parece ter sido a opção fundamental feita pela direção depois da “volta à direita” em público, no Congresso de Nantes: o fortalecimento do partido a todo o preço, o que queria dizer o enfraquecimento do PS a todo preço e a custa do sacrifício da União de Esquerda. A esquerda perdeu, mas a direção do partido ganhou na medida que o PS perdeu unicamente no tocante a suas pretensões. Todo o resto (inclusive a vitória da esquerda) foi sacrificado a essa “vitória” do PC sobre o PS.

O VELHO REFLEXO

A escolha fundamental foi mantida em segredo. Costumamos nos divertir imaginando uma outra direção, com bastante coragem e lucidez e ainda sensibilidade à altura da inteligência do nosso povo — uma direção que tivesse uma linguagem franca e aberta e explicasse perante seus militantes e trabalhadores as razões profundas de sua “mudança”. Isso era perfeitamente possível, e assim fazendo, a direção teria jogado para ganhar, ante os ataques da direita e as hesitações do PS. E o rumo das coisas sem dúvida teria mudado. Porque então essa escolha fundamental se manteve secreta, dando lugar a uma linguagem dúbia e incompreensível? Certamente porque uma mudança de linha leva forçosamente ao exame crítico da (linha) anterior, e, portanto, ao erros de orientação — pois quando se abre o capítulo do erro, sabe-se bem por onde se começa, mas não se sabe onde parar: a nova linha pode também estar errada, desde que a anterior também estava sem que se soubesse, podendo um erro estar sempre escondido em outro…

Ninguém duvida de que o velho reflexo da direção triunfou: “o partido — a direção — sempre tem razão”, “tudo que se passou justifica nossa linha”, “nossa linha é justa”, “o partido seguiu uma linha constante”. Sinal de fraqueza é não ousar enfrentar a realidade, quando essa realidade se chama mudança de estratégia: prefere-se negá-la (“nós não mudamos de linha”), do que se fazer o esforço de se pensar naquilo que se passou. No final das contas, George Marchais bem que disse na televisão: “Eu vou fazer minha autocrítica… Nós deveríamos ter então publicado o meu relatório secreto de junho de 1972. Foi oportunismo de direita não ter feito isso”.

O primeiro leitor que surgir concluirá que esse oportunismo arrastou para a linha da direção, de 1972 a 1975, data da publicação do relatório secreto por E. Fajon, durante a primeira eclosão da polêmica com os socialistas… E então? Há, portanto, uma primeira estratégia, depois uma reviravolta e finalmente uma segunda estratégia. Essa reviravolta estratégica é que foi ocultada aos militantes sob o disfarce do discurso único. Na verdade, houve dois discursos, o da antiga estratégia e o da nova, misturados, um penetrando no outro, mas sob a ficção de um mesmo e único discurso, tão “constante” quanto a estratégia do partido. Que se tente deslindar os enigmas desse discurso ambíguo quando ele cai em suas mãos lá do alto, e você está em baixo!

COMO TRATAR O ERRO EM POLÍTICA

De qualquer maneira, por aí entramos na questão do erro políticos e dos seus tratamentos.

O erro pode ser tratado, isto é, suprimido autoritariamente, pela sua negação sistemática, em virtude do princípio “partido tem sempre razão, sua linha está sempre certa”. Esse método tem a vantagem de suprimir radicalmente a questão do erro, mas também o inconveniente de deixar um resíduo: os militantes que não renunciaram a falar do erro. Eles evidentemente estão no erro (um outro), mas um erro persistente. Antes eram expulsos do partido. Agora a situação é resolvida dizendo-se: “são sempre os mesmos”. George Marchais diz isso: eles já se opunham ao XXII Congresso, circunstância agravante, mesmo quando isso é completamente falso. O essencial é que eles sejam bem marcados como "reincidentes'' e que se fique de olho neles. Bastará atribuir a eles o adjetivo infamante de intelectuais “de gabinete”, de doutrinários. O aparelho do partido vai, com ajuda do obreirismo, concentrar-se neles. E a partida estará jogada.

Existe, porém, um outro tratamento do erro político, segundo Lenin: “É ainda mais grave não reconhecer um erro, do que cometê-lo”. Esse é o tratamento marxista do erro. O erro é, portanto, nesse caso, um sinal de alarme que vem da prática; indica sempre uma lacuna, uma falha quer na estrutura do pensamento, quer na estrutura da organização. Ele pode ser benigno ou sério. Quando é sério, significa que graves contradições não foram abordadas, continuando sua vida silenciosa, perturbando a prática política. Contrariamente ao que faz nossa direção, o erro não é a rigor o que se concede do alto (“nós não somos perfeitos, pode ter havido algumas falhas"), para se passar então, precipitadamente, à ordem do dia.

A concepção marxista acha que o importante é o que o erro esconde: as contradições estruturais das quais ele é apenas uma manifestação. Como "acontecimento", o erro passa: mas enquanto não forem enfrentadas e reduzidas, as causas do erro permanecem.

É essa permanência (no erro) que Lenin leva em consideração quando diz que é mais grave não analisar um erro do que tê-lo cometido. Pois reconhecer, analisar o erro, no sentido amplo, é, por detrás do fenômeno, ir em busca das causas e atacá-las, para se ter finalmente razão. Essas causas, para todo militante marxista, se referem a um mau entendimento das relações de classes ou dos efeitos das relações de classe, ou até mesmo dos fenômenos que aparecem nas margens das relações de classes (a preocupante questão dos jovens, das mulheres, da ecologia, etc.).

Essa exigência do tratamento marxista do erro é, por excelência, válida para os comunistas: eles sabem que se não dominarem as causas profundas dos erros (do movimento comunista internacional, da linha de seu partido, do modo de funcionamento do mesmo) esses erros permanecerão. O que significa: eles se manifestarão interminavelmente sob uma ou outra forma. Não são "sempre os mesmos" que criticam os erros: mas sempre são as mesmas causas, não criticadas, que produzem e reproduzem os mesmos erros.

É preciso declarar essa exigência marxista, pois a direção já tomou suas decisões. Ela vai falar dos erros, dará até mesmo como exemplo aos militantes sua própria iniciativa, como prova do seu espírito de independência. Mas esses erros serão sempre táticos e localizados, sem jamais afetar a linha considerada sempre certa. Os militantes que são prevenidos, não deixarão de seguir com interesses esse método de concessão verbal, através do qual se trocarão palavras ao vento.

II - A ORGANIZAÇÃO, UMA MÁQUINA A DOMINAR

Uma dupla exigência — ver claro com relação à política e o funcionamento do partido — está em vias de nascer em numerosos militantes não somente nos intelectuais, mas, com não menos forças, nos militantes operários das grandes empresas.

Sem dúvidas, os militantes não estavam a par dos segredos dos deuses. Isto não é recente, pois desde o Acordo de 1972 tudo foi negociado e assinado na "cúpula" e na política de união, longe de ser uma política de união popular, permaneceu, em todas as fases, uma política de unidade entre formações políticas, definida e implementada pelas suas direções. Quando, após, o XXII Congresso começou-se a discutir as questões realmente sérias, os militantes tiveram a impressão, terrivelmente reforçada nos últimos meses, que os XXII Congresso tinha sido abandonado nas gavetas dos birôs, e que tudo que ele prometia de democracia e liberdade havia sido sacrificado em proveito pragmatismo e do autoritarismo da direção. Nada vinha mais da base para a direção: tudo vinha de cima para baixo.

Se ainda existisse certa dose de coerência e clareza nas mensagens do birô político e do Comitê Central e nas exortações de George Marchais na televisão! Mas, não: prometia-se sem cessar a vitória da esquerda, mas as palavras de ordem mudavam continuamente ou se tornavam verdadeiramente incompreensíveis. O que poderia significar, por exemplo, este patético e verdadeiro pedido de socorro — Ajudem-nos! — estampados em letras garrafais na primeira página do L' Humanité de 23 de setembro? E que fazer um pedido de socorro quando se ignora a quem ele realmente se dirige, quem está em perigo e o que realmente lhe aconteceu? A direção pode ter acreditado ser este um apelo "mobilizador": no entanto, na base manteve-se o silêncio.

O TEMPO DAS GRANDES OPERAÇÕES DE PARAQUEDISMO

Quanto às palavras de ordem essenciais, elas foram atiradas de cima uma após as outras. Foi o tempo das grandes operações de paraquedismo. E quando militantes abriam os "pacotes", não conseguiam acreditar em seus olhos e memórias: lhes pediam simplesmente para abandonar os objetivos pelos quais tinham sido levados a lutar anos e anos e dava-se uma volta 180 graus. Enumeramos, foi do alto que caiu a notícia da vertiginosa mudança de posição sobre a força de dissuasão, a inversão da política europeia, a redução de 1 e 5 do leque de salários e a entrada na nossa doutrina da "detestável" noção de autogestão.

De um dia para o outro, sem que fossem nem consultados nem prevenidos, os militantes (na luta há vários anos) "se encontraram obrigados pela sua própria direção a alterarem radicalmente de orientação!" E se a direção acreditou justificar-se revelando que os "especialistas" (e também alguns militares de alta patente) tinham trabalhado por dois anos no estudo da questão da "força de dissuasão", é porque ela nem sequer suspeitava do que os militantes poderiam pensar dos "especialistas", que eles conhecem diretamente através de seus "grandes efeitos" na divisão do trabalho e na exploração. Colocou-se os militantes, sem qualquer disfarce, diante dos fatos consumados das decisões: um ato de príncipe. Naquele tempo estas questões, que preocupavam os militantes, poderiam ter sido debatidas no XXII Congresso. Ao contrário, elas foram tratadas na cúpula, como segredo de Estado, autoritariamente, sem a consulta à base e fora do Congresso. Generosos e confiantes, militantes podem esquecer muitas coisas. Mas quando são tratados como peões de um jogo, para serem levados à derrota numa luta à qual eles entregavam de corpo e alma, aí então eles querem saber o que está havendo.

OS MILITANTES NUMA SITUAÇÃO IMPOSSÍVEL

Foram os militantes, entretanto, que suportaram toda a carga da campanha, suas viradas de 180°, os míseros da linha, seus sobressaltos e surpresas. Foram eles que tiveram de prestar conta, nas empresas, nos quarteirões e cidades, das decisões incompreensíveis ou que contradiziam todas as tomadas anteriormente. Não somente foram colocados numa situação constrangedora, obrigados a defender a força de dissuasão, a Europa, o leque de salários de 1 a 5 etc., mas atirados também em outras armadilhas, como a deflagração, sempre de cima para baixo, de uma campanha "pelos pobres" que esteve sempre inevitavelmente acoplada à palavra de ordem: "Que paguem os ricos". Mas a classe operária, inclusive os três milhões de emirados e os outros trabalhadores que recebem o salário mínimo (SMIC), não se reconhecem espontaneamente como "pobres", noção que vem do século XIX, e traz dentro dela uma enorme carga de filantropismo ou de assistencialismo. Ora, uma das conquistas do movimento operário foi justamente levar os trabalhadores a se pensarem não como "pobres", mas como trabalhadores produtivos explorados.

A direção jamais respondeu à questão: o que é um rico? A partir de qual renda ou patrimônio se pode ser considerado rico? No período anterior, até o XXII Congresso, excetuando-se seiscentos mil indivíduos, o conjunto da população francesa (rica ou pobre) era considerada vítima dos monopólios. Como esperar que os militantes pudessem se reencontrar nesta improvisação, que colocou subitamente os podres no primeiro plano sem definir a riqueza? Com isso se amedrontava por nada os que recebiam salários médios, sem que os assalariados mais desfavorecidos se sentissem realmente tocados por essa iniciativa espetacular. E para aumentar a sua confusão, o que os militantes poderiam fazer do famoso “25% será bom, mas 21% não é bastante”. O que seria isso? Uma palavra de ordem, mas para quem? Uma profecia? Uma chantagem velada? Ou somente um sonhar acordado? Ninguém compreendeu nada.

Foram eles, os militantes, que tiveram relacionamento direto com a gente do povo, e que realmente lhe “tomou o pulso”, não num teatro de comício gigante, onde George Marchais estava seguro antecipadamente dos seus efeitos, mas no trabalho, na vida, considerando seus problemas, seus sofrimentos, suas esperanças e sua angústia. São eles que podem dar testemunho da emocionante e profunda confiança dos trabalhadores, não tanto no programa comum, muito longo, muito técnico e surpreendentemente frio, mas no fato da união da esquerda. Esta confiança lhes vinha de longe: de uma memória histórica onde não havia apenas a fraternidade do Front Populaire, mas a lembrança de todas as revoluções operárias, sempre esmagadas, na história da França, depois de 1848, passando pela Comuna e das grandes lutas históricas que se seguiram à I Guerra Mundial e às imensas esperanças sociais que acompanharam as lutas da Resistência.

A ESPERANÇA ENFIM AO ALCANCE DA MÃO

Desta, após um século e meio de derrotas, de progressões dolorosas, mas sem verdadeira libertação, a esperança estava lá e a vitória assegurada, ao alcance da mão. Falando claramente: a possibilidade, a quase certeza, pela primeira vez na história, de romper com uma tradição secular, e vencer. Esta confiança na unidade, garantia da vitória, manteve-se, tenaz e teimosamente, enraizada na revolta contra exploração e a opressão de todos os dias, continuando durante a ruptura da união. Pode-se compreender o quanto esta confiança contém de inteligência histórica e maturidade política, quando sabe-se que ela teve de superar o estupor em que foram lançados os trabalhadores diante da brutalidade da ruptura, sem que ninguém estivesse aparentemente preocupado com o efeito de desmobilização e de desmoralização que ela não poderia deixar de provocar a longo prazo.

Foram os mesmos militantes que puderam constatar que, por mais fundamentada que fosse, a campanha contra o PS, na forma em que foi feita “não passou”, salvo entre alguns sectários, mas magoou e desencorajou todas as boas vontades. Foram eles também que, passado o primeiro ascenso do partido, puderam testemunhar, após do 22 de setembro, reuniões de células mais e mais desertas e a baixa da atividade do partido, durante a qual toda a política terminou por se concentrar numa gigantesca campanha de adesões e os “espetáculos” de George Marchais na televisão (toda a França o acompanhava, por seu talento, e o Estado Burguês, inacreditavelmente astuto, devia bem tirar partido disso, acolhendo-o em postos públicos ou periféricos).

Quem acreditará que tudo isto são apenas detalhes? Entre, de um lado o monopólio de George Marchais na televisão, o lançamento por paraquedas de palavras de ordem invertendo em 100% as posições de combate do partido, a elaboração de diretivas não pelos militantes ou pelo Congresso, mas por “especialistas” da direção ou seus assessores, o tratamento de cima para baixo, a manipulação dos militantes e, por outro lado, o segredo mantido sobre a mudança de estratégia e suas razões, existem evidentemente profundas relações.

A direção encontrou-se obrigada a revelar dois de seus segredos: o relatório de George Marchais diante do Comitê Central de junho de 72, após a assinatura do Programa Comum (!) e o máximo de concessões possíveis ao PS após o 22 de setembro (relatório de Fiterman). Ela se resignou a revelá-los porque tinha a necessidade de dar uma aparência de continuidade às suas posições, para provar que não havia mudado de estratégia. Mas não divulgou senão o que quiz e manteve o resto em segredo. É necessário frisar que se os militantes não intervirem para mudar essas práticas, a direção continuará a se calar sobre o essencial. Bem entendido, ela fornecerá sobre o escrutínio as famosas explicações tradicionais e, a nós, a politologia, a demografia, o deslocamento de populações, a sociologia eleitoral, o sábio equilíbrio de perdas aqui e ganhos lá. Iria até mais longe, não ficando apenas na análise superficial dos resultados eleitorais, mas ao essencial: quem sabe à análise política de sua mudança de linha e de sua dissimulação. Tal que ela é, é praticamente impensável.

Que a direção se cale sobre o essencial, está de acordo com seus hábitos usuais. Está também organicamente ancorado em toda a tradição stalinista que sobrevive no aparelho do partido. A grande esperança suscitada pelo XXII Congresso, apesar de suas insuficiências e contradições, era de que se poria fim a esta tradição autocrática. Mas as ilusões terminaram logo. A liberdade de discussões na base já havia sido conquistada antes do XXII Congresso, e não mudou em nada as práticas da direção. Isto porque o aparelho já havia feito a descoberta, tão velha como o mundo burguês, de que ele poderia se dar ao luxo de deixar os militantes discutirem livremente em suas células, sem exclusão nem sanção, já que de qualquer forma isto não teria qualquer consequência: “Isto lhes dá tanto prazer e nos custa tão pouco”, mandou dizer Chamfort a uma marquesa generosa de seus charmes. De fato, as verdadeiras discussões e decisões secretas, tiveram sempre lugar acima das federações, no birô político e no secretariado ou ainda num grupo ainda menor, não estatutário, que compreende o secretariado, uma parte do birô político e alguns “experts” ou colaboradores do Comitê Central. É aí que se tomam verdadeiras decisões, que o birô político divulga e o Comitê Central homologa como um só homem porque acredita ser seu confidente ou, pelo menos, estar perto da verdade e do poder.

UM MODO DE FUNCIONAMENTO QUE DEVE SER MUDADO RADICALMENTE

Numerosos militantes dizem “que não é mais possível continuar assim” e que deve-se denunciar e mudar profunda e radicalmente o modo de funcionamento desta “máquina” que é o partido: não somente para eles próprios, para sua liberdade de militantes, quer dizer para o partido (porque o partido são os militantes), mas para a massa de trabalhadores da França, que não podem vencer na luta de classes sem o PC, mas que não podem, por outro lado, vencer com este comunista, tal como é.

Estes mesmos militantes não querem que o partido seja “um partido como os outros”, eles sabem que o que são “os outros”, os partidos burgueses oligárquicos, nos quais se exerce a dominação sem partilha de uma casta de profissionais, de “experts” e intelectuais estreitamente ligados à alta administração do Estado.

Estes mesmos militantes pensam que é necessário um partido revolucionário da luta de classes dos explorados, eles pensam que é necessário uma direção responsável por este partido, eles pensam que o centralismo democrático pode e deve ser conservado, com a condição de mudar profundamente as regras, e mais ainda, as práticas; não somente o direito, mas o que decide a sorte de todo direito: a vida e a prática políticas do partido.

Aqui chegamos ao âmago da questão: o partido deve se resguardar de uma tentação. Para compreender o funcionamento do partido, nós somos obrigados a expor o mecanismo em si e, portanto, fazer abstração do lugar próprio do partido francês na história das lutas de classes do povo da França e do movimento comunista internacional. Com efeito, por trás do mecanismo que nós evocamos aqui em grandes traços, existe uma história específica: a das formas de luta das classes burguesas e operárias próprias à França, que fizeram do partido o que ele é marcaram-se de traços particulares e lhe deram um lugar bem definido na sociedade francesa.

Um partido calcado sobre o aparelho de Estado e sobre o aparelho militar.

Feita a ressalva, o que é o partido?

Eu emprego o termo “máquina” de propósito, porque ele retoma o termo usado por Marx e Lenin na análise do Estado. De fato, a surpreendente constatação pode ser feita por qualquer um: o partido não é evidentemente um Estado no sentido próprio, mas tudo se passa como se, na sua estrutura e no seu funcionamento hierárquico, ele fosse calcado estreitamente tanto no aparelho de Estado Burguês como no aparelho militar.

Eis o aspecto parlamentar do partido. Numa extremidade se encontra “o povo dos militantes”, que discutem livremente em suas células e suas seções. É o “povo soberano” - mas ele se detém abruptamente quando atinge a barreira dos secretários das federações dirigidos pelos permanentes. Aí está o corte, onde o aparelho toma o lugar da base. Aí é que as coisas começam a se tornar sérias (para a direção). Se a vontade popular da base se exprime nas eleições, é através de formas ultrarreacionárias (escrutínio majoritário em três turnos para os Congressos) e sob vigilância estreita das “comissões de candidaturas”, estatutárias para as eleições de “responsáveis”, mas ilegalmente estendidas às eleições dos delegados ao Congresso.

Estas eleições produzem a hierarquia dos responsáveis: membros dos comitês e birôs de seções, federação, Comitê Central, dominado por seu birô político e seu secretariado. O Comitê Central, eleito pelos delegados federais cuidadosamente selecionados, é considerado o órgão soberano do partido, seu legislativo e seu executivo. Na prática, este órgão soberano serve mais para homologar as decisões da direção e aplicá-las do que para propor o que quer que seja de novo. Nunca se ouve dizer que o Comitê Central tomou a menor iniciativa. Na verdade, o Comitê Central é mais o órgão executivo da direção que seu órgão legislativo: com este título ele é uma espécie de assembleia geral de prefeitos que a direção envia e emprega em toda a França para “acompanhar”, isto é, controlar de perto as federações, nomear os secretários federais e regular as questões delicadas.

A direção não se apoia somente sobre os membros do Comitê Central, mas também sobre a formidável força, frequentemente oculta, de seus funcionários de toda natureza, permanentes e colaboradores do Comitê Central, estes desconhecidos não eleitos, recrutados a título de competência ou de clientela, sempre por cooptação - e os especialistas de toda espécie.

Eis o aspecto militar do partido. Tudo o que foi dito seria incompleto se não lhe acrescentar o princípio fundamental de isolamento vertical absoluto, que lembra a forma de isolamento da hierarquia militar. O isolamento tem um duplo efeito. De uma parte ele isola todo militante da base na estreita coluna ascendente que vai de sua célula à seção, e daí à federação e ao Comitê Central. Esta “circulação ascendente” está dominada pelos responsáveis permanentes, que filtram cuidadosamente os informes da base em função das decisões da cúpula. Por outro lado, o militante da base não pode, fora das conferências de seção ou de conferências federais, se ele for delegado, manter qualquer relação com os militantes de qualquer outra célula, que pertence a uma outra coluna ascendente. Toda tentativa de estabelecer um “relacionamento horizontal” é, mesmo atualmente, declarada “fracional”.

Isto seria realmente aceitável, com efeito, numa formação militar, onde a eficácia operacional implica tanto o comando absoluto e o segredo, como o isolamento radical das unidades engajadas no combate. Este isolamento não tem nada de escandaloso. Ele se refere aos períodos em que o partido deve recorrer às formas da organização e segurança militares para se defender e agir: a clandestinidade do partido de Lenin, a clandestinidade do partido sob a Resistência etc. Assim como estas condições atuais se tornam caducas, anacrônicas e esterilizantes não somente para os militantes, mas para as massas e, no limite, para os próprios responsáveis.

O MODO DE FUNCIONAMENTO BURGUÊS DA POLÍTICA

Combinando dessa maneira o modelo militar do isolamento com o modelo da democracia parlamentar, o partido não pode deixar de reproduzir, reforçando-o, o modo de funcionamento burguês da política. Do modelo parlamentar ele retira uma vantagem bem conhecida: assim como a burguesia consegue reproduzir suas formas de dominação política através dos cidadãos “livres”, também a direção do partido consegue reproduzir suas formas de dominação através dos militantes. E do modelo militar ela retira uma vantagem, entre outras, não negligenciável: a de poder disfarçar a cooptação dos responsáveis em forma de eleição. O resultado dessa combinação é a obtenção da reprodução não só da forma de dominação política da direção, mas do próprio corpo dirigente. A estreiteza do leque de reprodução dos dirigentes os torna, com efeito, praticamente irremovíveis, sejam mais forem seus fracassos ou mesmo sua falência política (ver a linha de “legalização” a todo preço no outono de 40). Nestas condições o “jogo” da democracia no partido resulta, como no Estado burguês, no milagre da transubstanciação: assim como a vontade popular se transforma em poder da classe dominante, a vontade do partido se transforma em poder da direção.

Já se refletiu sobre o seguinte fato? A contrapartida do mecanismo que reproduz a direção e lhe permite durar, irremovível, através de todas as mudanças estratégicas e táticas como através de todos os erros, é a fuga de militantes, sua perpétua hemorragia, sua perpétua substituição por “novas gerações” que não conheceram as batalhas e as vicissitudes de há cinco, dez ou vinte anos, e que são, por sua vez, lançados na luta acreditando nas “teorias”, palavras de ordem ou promessas, para se “queimarem” em alguns anos.

Porque há tantos antigos comunistas, mais numerosos que o efetivo, mesmo oficial, do partido? Porque tantos militantes inscritos no partido, renunciaram a militar ativamente? Porque gerações inteiras de militantes provados pelas lutas (Resistência, guerra fria, Vietnã, Argélia, 1968 etc.) estão quase totalmente ausentes do partido, seja de sua atividade, seja de suas responsabilidades? O partido, enquanto pequeno “aparelho de Estado” encontrou a solução do famoso problema ao qual aludiu Brecht após as sangrentas rebeliões de Berlim: “O povo perdeu a confiança nos seus dirigentes? Não há senão que eleger um outro!” Periodicamente, de campanha de recrutamento, a direção do partido “elege” um novo “povo”, quer dizer uma outra base, quer dizer outros militantes. Mas a direção, esta permanece em seu lugar.

UM PACTO ENTRE DIRIGENTES

Para dar seus títulos jurídicos à sua reprodução, a direção exumou recentemente um tema de grande peso moral: o da direção coletiva que lhe permitiu aliás, depois de alguns anos, economizar os expurgos periódicos de antes (os “casos” Marty-Tillon, Lecoeur, Servin-Casa-Nova etc.) A direção coletiva se faz apresentar como a antítese do “culto à personalidade”. O que é na realidade? O tema da direção coletiva cobre de fato um pacto que liga os dirigentes entre eles, que os separa em conjunto dos militantes e contribui para perpetuar seu poder. Os dirigentes são assim ligados pela “solidariedade” do poder. Falando claramente isto significa: nada do que se passa no birô político e no secretariado (ou principalmente no pequeno grupo dirigente) será conhecido por alguém, a menos que o grupo decida o contrário. Claramente: ninguém poderá encontrar nas propostas de um dirigente qualquer nuance que o distinga dos outros - situação impensável já há muito tempo na Itália; se as diferenças ou divergências se regulam pela lei da discrição absoluta, está subentendido que todo “minoritário” fará, sem nenhuma reticência pública, a política dos outros (George Marchais já deu a impressão, em certas ocasiões, de falar contra sua convicção íntima).

Por essa razão elimina-se toda responsabilidade pessoal objetiva e toda contradição conhecida erigindo-se um mutismo coordenado em toda a direção e que é apresentado como a própria perfeição da unidade de direção. A direção coletiva tão elogiada é o aval da detenção exclusiva do Poder e da Verdade por estes poucos “homens da sombra” que se viu, na televisão, na noite do primeiro turno, insinuando-se irônicos e silenciosos, atrás de George Marchais. Irônicos, porque eles sabem o que irá se passar. Silenciosos, porque o silêncio sela o pacto da direção coletiva. Silenciosos: pode-se calar quando se tem o poder e o saber. O silêncio é a barreira que separa os homens: de um lado os que tratam os homens pelo silêncio, porque possuem o poder e o saber, de outro os que se deixam no silêncio, porque eles não têm nem o saber nem o poder. Estes “homens da sombra” estavam tão identificados às suas funções que não tiveram nem mesmo o pressentimento que esta cena alucinante poderia não somente assustar alguns, mas ferir o tato, o senso de liberdade e dignidade dos trabalhadores. Ninguém ousaria crer que esta “cena”, esta “mise-en-scène” fosse um fato isolado: ela é o sintoma espetacular que revela a que ponto havia chegado a inconsciência e o cinismo da direção na manipulação dos militantes e dos trabalhadores.

Esta máquina de dominação, controle e manipulação dos militantes é melhor vista nos seus resultados pelo tipo de militantes que literalmente ela produz, como seu resultado específico e insubstituível: o permanente vive ligado ao partido por uma lei de bronze que exige obediência incondicional em troca do ganha-pão. A este ganha-pão ele não pode renunciar, porque o permanente (que é recrutado principalmente nas juventudes da União de Estudantes Comunistas (UEC)) ou nunca teve profissão ou perdeu a prática. E na maior parte das vezes ele não entra realmente num contato real com as massas, porque ele passa o seu tempo a controlá-las. A bela consolação de inscrever na sua carta eleitoral: “Trabalhador em terraplanagem”, “carteiro”, “operário metalúrgico” etc., quando, depois de vinte ou trinta anos, trocou-se a condição de operário pela de intelectual burocratizado mais ou menos “responsável”. Isto se torna, frequentemente um drama (que não pode ser vivido e suportado) nas condições subalternas, onde não há as compensações do poder superior, se não se fizer com toda força uma razão sublimada da falta de razão do partido – que o permanente está bem colocado para ver de perto – mas com a condição de se calar, ou de se resignar sem esperanças. Ser fiel e submisso, por conformismo ou necessidade, eis o que (a menos que seja um iluminado incondicional) tudo o que resta de liberdade ao permanente: nada.

III - A IDEOLOGIA: UMA CARICATURA

Já que falamos de “máquina” e de Estado, tem-se que falar também de ideologia. Porque a ideologia é necessária para “cimentar” (Gramsci) a unidade do partido.

– De um lado essa ideologia se baseia sobre uma comovente confiança dos militantes em seus dirigentes, que encarnam para eles a unidade e a vontade do partido, herdeiro da tradição revolucionária nacional e internacional. E, por detrás desta confiança, há geralmente uma solidariedade de classe, que se exprime entre os trabalhadores às vezes pela possibilidade de porem fim o seu isolamento, pelo entusiasmo por estarem juntos na luta mais que na exploração, a fraternidade, o orgulho de que o partido existe como conquista das lutas da classe operária, de que seja dirigido por trabalhadores como eles, as garantias que oferece esta direção de classe etc.

Mas há também formas deformadas deste tipo de confiança, que fazem abstração de toda história e se exprimem por uma adesão integral e acrítica, chegando, no limite, ao absurdo de que a direção pense pelos militantes e em seu lugar: esta abdicação produz no partido esta categoria de cegos sectários, que terminam por não ter senão um pensamento: colocar todo seu entusiasmo, toda sua dedicação à serviço da direção e de sua defesa em todos os terrenos (“o partido – quer dizer a direção – tem sempre razão”). Esta espécie de confiança cega é naturalmente boa para todas as tarefas ingratas, mas também para todas as responsabilidades. A direção emprega generosamente, recompensado assim sua submissão, mas encorajando de fato o conservadorismo mais acanhado.

– De outro lado e conjuntamente há a exploração desta confiança por uma ideologia sabiamente formada e modelada pela direção e seus funcionários. Esta ideologia de partido tem a função de identificar a unidade do partido com sua direção, e a linha fixada por esta direção. Contrariamente ao que se poderia imaginar, ela não tem nada de espontânea. Ela é a ideologia que convém à prática do partido e que a justifica.

Na teoria e na tradição marxista nem a unidade do partido nem o próprio partido são um fim em si. O partido é a organização provisória da luta de classe operária. Ele existe apenas para servir a esta luta da classe operária, e sua unidade é necessária apenas para servir à sua ação. É por essa razão que não se pode manter a ideia de que a ideologia serve para “cimentar” sua unidade: esta função não nos esclarece nada sobre a natureza desta ideologia e sobre a função desta unidade.

Se o partido está paralisado e esclerosado, sua unidade poderá ser impecável, mas formal e sem sentido, e o partido estará “cimentado” quer dizer paralisado por uma ideologia esclerosada e imobilista. Se o partido é vivo, sua unidade será contraditória, e o partido será unificado por uma ideologia viva, que deverá ser contraditória, mas que será aberta e fecunda. Ora, o que torna um partido vivo? Sua relação viva com as massas, com suas lutas, suas descobertas, dentro das grandes tendências que atravessam a luta de classes: ou apontando para a superexploração ou para libertação dos explorados.

Logo, vê-se que a questão da ideologia do partido é um problema particularmente complexo. Porque ela questiona não somente a confiança dos militantes, não somente a unidade (mais ou menos formal) do partido, mas acima de tudo a relação partido-massas. E esta última relação toma uma dupla forma: a forma da prática política do partido, seu estilo de direção e de ação na organização e orientação da luta de massas; e a forma da teoria do partido, indispensável para refletir as experiências da prática política e as situar na perspectiva das tendências contraditórias da luta de classes.

A ERA DAS VULGARIDADES OFICIAIS

A ideologia do partido é como uma síntese onde se pode avaliar o estado da unidade do partido, e de sua relação com as massas e com a teoria.

É necessário repetir o que já foi dito acerca do estado lamentável a que chegou a teoria marxista do partido francês? Não somente o partido herdou a antiga tradição operária francesa, que não quer saber falar de teoria, mas após os esforços teóricos meritórios de Maurice Thorez no pré-guerra, ele se amarrou à galera stalinista e entrou, remendando seus produtos, na era das vulgaridades oficiais, que fizeram da teoria marxista, dogma do Estado internacional, um positivismo evolucionista e do materialismo dialético a “ciências das ciências”.

A teoria marxista, que não era nem um pouco viva no partido, não estabeleceu desta servidão voluntária. E como o que se produziu oficial na URSS não teve outro resultado senão o de sufocar a teoria marxista, todos os que se dedicaram há vinte anos, na França, a se repetir as produções intelectuais soviéticas contribuíram para exterminar entre nós o que subsistia de teoria marxista. Basta consultar os programas das escolas do partido: à exceção de alguns poucos pensadores quase originais (o que se deve à sua coragem de pensar por si próprios e de pesquisar), nós atingimos no partido o ponto zero da teoria marxista. Ela desapareceu.

E nada leva a pensar que a direção do partido esteja preocupada. Que o marxismo esteja em crise no mundo inteiro, deixa a direção tão insensível como a realidade mundial da crise econômica durante os anos do programa comum. É igualmente indiferente ao fato da crise do marxismo na França ter tomando a forma do desaparecimento da teoria marxista no seio do partido comunista. O abandono da teoria marxista significa certamente a cegueira teórica, e, portanto, a cegueira política (porque a teoria é altamente política): isso nós o experimentamos já há alguns anos, até o 19 de março. Vocês acreditam que a direção vá fazer a sua reconciliação com a autêntica teoria marxista?

A direção se consola facilmente. Porque o partido tem uma “teoria” e uma “teoria” o possui: retirada do capitalismo monopolista de Estado (CME) versão francesa (adornada das considerações bocarianas sobre a superacumulação/desvalorização do capital) da teoria soviética do capitalismo monopolista de Estado. Ela tem uma tal importância (teórica) que foi publicada sob o título, muito significativo para uma disciplina da qual Marx já fez a “crítica”, de Manual de Economia Política. Que ela seja muito pouco apreciada, e mesmo desdenhada abertamente pelos grandes partidos irmãos, como o italiano, não importa: é a nossa teoria. E a prova é que ela foi fabricada por ordem da nossa direção, por nossa seção econômica “junto ao Comitê Central”, bem entendido, um Comitê Central depurado previamente daqueles que não estavam de acordo.

Uma teoria encomendada! Porque não, afinal de contas? Quantas grandes obras musicais foram feitas por encomenda! Aliás nem tudo é desinteressante no Manual. Mas no conjunto, este gigantesco trabalho foi apologético, quer dizer, tinha que demonstrar uma conclusão que já existia, sob a forma política, antes de sua demonstração “econômica”. Tratava-se de respaldar como sua garantia teórica, a política antimonopolista do Programa Comum ao CME.

Conhece-se as duas conclusões maiores desse trabalho: 1) Entramos numa fase que é a “antecâmara do socialismo” onde a concentração monopolista penetra o Estado, que forma com ela um “mecanismo único”; 2) A França está dominada por um “punhado de monopolistas” e seus empregados.

As conclusões políticas destas duas teses são claras: 1) A antecâmara do socialismo e o “mecanismo único” Estado-monopólios alteram a questão do Estado. O Estado toma tendencialmente uma forma que vai torná-lo utilizável pelo poder popular, portanto não se trata mais de destruí-lo e no horizonte deste raciocínio se desenha já o “abandono” da ditadura do proletariado 2) Se o Estado está quase pronto, as forças também estão quase prontas a ocupá-lo, pois face a este “punhado de monopolistas”, há a França inteira vítima dos monopólios. Fora um pequeno clique (estendida mais tarde a 600.000 “grandes burgueses”) todos os franceses têm objetivamente interesse na supressão dos monopólios.

Esta noção de interesse objetivo é, em si, uma pequena maravilha teórico-política que mesmo Helbach e Helvetius, estudiosos da teoria do interesse, não ousaram pensar. Pois o que distingue o interesse objetivo de sua realização? Nada mais que a consciência. Pensemos, como marxistas retardados, que essa realização poderia se dar através de alguma coisa como a luta de classe. Não, ela se dá senão pela consciência. E então é suficiente despertá-la. Como todos sabem depois de Kautsky, a consciência como tal não se origina dentro, ela vem de fora. Vê-se então despertar e revelar, de fora, a consciência através da propaganda, da imprensa, dos meios de comunicação de massa: “Vocês têm objetivamente interesse em lutar contra o punhado de monopólios que os explora:”Tomais consciência e vocês agirão em consequência!” Não há razão de duvidar do sucesso: ou vocês duvidam tanto da força toda-poderosa do interesse objetivo e das ideias sobre a consciência? Que vulgares materialistas vocês se tornaram!

ANEXO – ITEM: “A ERA DAS VULGARIDADES OFICIAIS”

O destino que é reservado à teoria marxista não deixa de ter consequências. Assim, quem diz abandono da teoria marxista diz ao mesmo tempo abandono da análise concreta. Esta exigência corresponde a uma necessidade política. A análise concreta de todos os elementos tomados na complexidade das relações ou efeitos de classe da situação dada, é, no sentido amplo, descoberta do real (comportando sempre surpresas, o “novo”) e ao mesmo tempo determinação da linha a seguir para atingir os objetivos da luta.

Ora essa prática infinitamente preciosa desapareceu, ela também do partido, Maurice Thorez ainda teve a coragem, antes da guerra, de apresentar as análises concretas sobre as relações de classes na França. Depois da guerra, esta tradição se perdeu pouco a pouco. Nada sobre as relações de classes no XX, XXI, XXII Congressos do partido. Compreende-se porque: a direção tinha “sua” teoria do CME: como esta era para ela uma verdadeira teoria, ela tomava o lugar da análise concreta por adiantado. Se se quisesse “concretizar” era suficiente aplicá-la do alto e não importa quem. Aí também o partido reencontrou uma velha tradição da interpretação dogmática-especulativa stalinista do marxismo: a verdade de todas as verdades, e a análise concreta se torna no limite, supérflua, pois ela não é senão a verdade aplicada. Este esquema da verdade concreta como “aplicação” de uma verdade suprema provocou devastações políticas sob a II Internacional. Estas devastações foram retomadas sob Stalin, e não pouparam o partido francês. Conceber a análise concreta como a aplicação da teoria, e, a menos que seja distraído, se engajar em impasses políticos totais, mais graves ainda que os efeitos da fabricação de uma “teoria” por encomenda.

FIM DE LINHA

Dispomos, na nossa história nacional, de um exemplo edificante. Trata-se do “ponto final”. Há alguns anos, um secretário federal usou esta expressão surpreendente para designar o espezinhamento eleitoral do partido nas eleições parciais. Questão na ordem do dia, quando se sabe que o partido “dá voltas” em torno dos 20-21% dos votos sem poder ir mais além: é o fim de linha. Ele se deu mesmo ao luxo, dessa vez, de ultrapassar em 0,8 pontos (no mínimo) o seu limite histórico. Mas quem tomou a palavra a sério e analisou o fato? Quem se preocupou em colocar a simples questão: quais são os limites reais, quais são as razões econômicas, sociais e ideológicas de classe deste espezinhamento? Resumindo: quem fez a análise concreta da situação política de classe do partido na França de hoje?

A direção possui a resposta, na “teoria” do CME, que é completamente muda sobre este ponto, mas que bastaria “aplicar” como alguns aliás já o tentaram. A direção nunca colocou a questão em termos de análise concreta. Porque fazendo-o ela iria descobrir realidades inconvenientes: primeiro que o limite não reside antes de tudo na pequena burguesia, como se gosta de acreditar, mas na própria classe operária. A classe operária votou em 33% no partido, dando 30% de seus votos ao PS, 20% à direita, o resto se refugiando na abstenção e na contestação selvagem de toda política (tradição anarco-sindicalista na França). Abençoada lição das coisas, quando se pensa na declaração peremptória de G. Marchais há três anos: “A classe operária realizou sua unidade política” (ele queria falar na união de esquerda). Ora, longe de ser um fato realizado, a unidade política da classe operária é um objetivo a alcançar.

Porque é preciso lembrar: não mais que as outras classes, a classe operária não é um todo, num único, nem homogêneo, nem desprovido, por não se sabe que milagre, de contradições internas. Ela tem, é certo em comum a exploração sofrida por todos os trabalhadores produtivos (que a distingue da exploração sofrida pelo campesinato e a pequena burguesia), mas suas condições de trabalho e de vida variam, a resistência ao ataque da hegemonia burguesa varia segundo a concentração da produção e os resultados históricos das lutas, o que explica a variedade das reações políticas, e a desigualdade da consciência de classe.

A direção do partido despreza a análise concreta e a teoria: que isso a leve a um impasse lhe é indiferente, pois de qualquer maneira ela detém o controle do exame da situação. Quando ela passar no seu “pente fino” os resultados eleitorais, pode-se estar certo antecipadamente além da sociologia eleitoral, de suas conclusões: “pouco esforço para fazer compreender nossas ideias”. A linha sendo intangível, e fixada pelo “interesse objetivo” do povo da França, não são senão a consciência e o esforço que podem variar. Portanto, nada de realidade concreta e sua análise concreta.

Mas quem ousará dizer que a imagem que dá, por suas práticas, a direção da realidade interna do partido, e os efeitos visíveis que ela produz não estão também por qualquer coisa dentro do “limite”. A direção tenta dar a impressão de que tomou, com o XXII Congresso, um banho de Juventude que a lavou das más lembranças do passado, mas as pessoas têm boa memória e desta vez a chantagem de anticomunismo já é ineficaz. No momento em que a pequena burguesia (que mantém, quer isso agrade ou não, sua ideologia mítica da propriedade e da liberdade, num mundo que a expropria) assiste virem os comunistas, com suas promessas sobre a liberdade e a propriedade com tinta nova, ela deixa falar, mas não deixa de pensar: a causa é sempre a mesma! Pode-se ser o herdeiro da Revolução de Outubro, é pode-se guardar a lembrança de Stalingrado, quando se afasta a lembrança do massa e deportação de camponeses recalcitrantes batizados de Koulacks, a lembrança do esmagamento das classes médias, o Goulag, e a repressão que permanece, vinte e cinco anos após a morte de Stalin, contra a qual, como garantias, as únicas que se oferece são palavras logo desmentidas no único domínio onde uma verificação seria possível, o das práticas internas do partido…, compreende-se então porque o “fim da linha” detém também o partido.

A DIREÇÃO BATE SEUS PRÓPRIOS RECORDES

Deve-se dizer que a direção, nesta questão, bate seus próprios recordes. Ela imagina que as pessoas são de tal modo estúpidas para acreditarem sob palavra numa direção que fala alto e claro de mudanças de democracia e de liberdade para um país que ela não governa e nunca governou. Nestas condições, onde pode estar a prova? Ah! A terrível palavra de George Marchais: “Os comunistas franceses nunca tocaram nas liberdades…” mas todos os franceses pensaram: “Pudera! Eles nunca tiveram a chance!” Mas, por outro lado, a direção acredita realmente que a memória desse povo seja tão curta que ele já esqueceu o desprezo para com a liberdade e a violência com que essa direção do partido francês quebrou e aniquilou moralmente várias pessoas com a acusação de ser um “policial”, um “escroque” ou um “traidor”, obrigando todos seus velhos camaradas de luta a condená-lo. Isto se deu na França entre 1948 e 1965. Se o que o partido afirma hoje como sua defesa é: O partido comunista não estava no poder, ele não “tocou nas liberdades dos franceses”, ele o faz, sem dúvida, porque não tem uma palavra para relembrar, renegar ou reparar estas ações abomináveis das quais sua direção era a única responsável.

Compreende-se que a direção não goste da análise concreta. Esta é exigente e fecunda: mas não perdoa. E como ela gera a teoria, compreende-se que o partido não goste de teoria: quando ela é viva é exigente e fecunda, mas principalmente não perdoa nunca.

É necessário fazer todas essas considerações para se ter uma ideia da ideologia do partido. Enraizada na confiança dos militantes e sua exploração pela direção, emendada a uma “teoria” arbitrária, mas feita sob medida para servir a uma linha política preestabelecida, desprezando a verdadeira teoria e a análise concreta da situação concreta, a ideologia do partido se reduz efetivamente a esta caricatura: “cimentar” a não importa que preço a unidade do partido em torno de uma direção que detém não somente o poder de comandar os homens, mas o poder de comandar a verdade, em função de uma “linha” que ela mesma fixou.

A ideologia, a “teoria”, a análise reduzida à categoria de instrumentos, de meios de manipulação de militantes para lhes convencer de se engajar “livremente” uma linha e práticas fixadas fora deles. O pragmatismo dessa prática fere e contradiz os resultados mais preciosos da tradição marxista, as exigências fecundadas da teoria e da análise viva e assim fere e contradiz o enriquecimento da ideologia dos militantes até às origens e perspectivas da luta na qual se engajaram. O que está em causa, por trás de todas estas questões: teoria, análise, ideologia, é definitivamente a relação do partido com as massas através de sua prática política.

IV – UMA SOLUÇÃO: SAIR DA FORTALEZA

Um pouco de consciência histórica é suficiente para fazer que existem tantas formas de práticas políticas quantas são as classes no poder ou lutando pelo poder. Cada uma governa ou luta segundo a prática que corresponde melhor às necessidades de sua luta ou seus interesses.

Nós podemos, por exemplo, graças à sua história e aos seus teóricos, afirmar que o característico da prática burguesa da política consiste em fazer garantir sua dominação pelos outros. Isto já é verdade em Maquiavel (não tendo sido visto por Gramsci) e é verdade com relação a toda a sequência de revoluções burguesas, ativas ou “passivas”. A burguesia soube fazer com que fossem realizadas pelos seus próprios explorados, plebeus, camponeses, proletários, e por seus aliados. Ela sempre soube deixá-los desperdiçar suas forças para aguardá-los já no poder e massacrá-los em banhos de sangue ou vencê-los pacificamente confiscando em seu proveito os frutos de sua vitória e impondo-lhes a derrota.

Contra essa prática burguesa da política, a tradição marxista sempre defendeu uma outra tese, o proletariado deve “se libertar a si próprio”; ele não pode contar com nenhuma outra classe ou algum libertador fora dele, ele não pode contar senão com sua própria força de organização. Não há outra opção, não há explorados a manipular. E como ele deve, de toda maneira, concluir alianças duráveis, ele não pode tratar seus aliados como outros, como forças à sua mercê, que ele poderia dominar à sua vontade: mas como verdadeiros iguais, cuja personalidade histórica deve respeitar.

Ele sabe, em troca, que está também seriamente ameaçado de cair na armadilha da prática burguesa da política, seja cedendo à colaboração de classes e se colocar objetivamente a serviço da burguesia (cf. a social-democracia), seja reproduzindo, sob ilusão de sua independência, a prática política burguesa em seu próprio seio. Essa dupla armadilha pode funcionar simultaneamente.

O que é então reproduzir a prática política burguesa em seu seio? É tratar os militantes e as massas como outros, pelos quais a direção executa, no mais puro estilo burguês, sua política. É suficiente deixar “funcionar” todo o mecanismo interno do partido, que produz espontaneamente a separação entre a direção e os militantes, e a separação entre o partido e as massas. A direção utiliza então esta separação em proveito da sua política: sua prática política tende a reproduzir a prática política burguesa, na medida em que ela se exerce separando a direção dos militantes, e o partido das massas.

TUDO É FEITO DE CIMA PRA BAIXO

Este é o sentido das repetidas observações que pudemos fazer a propósito da linha de 1972 e de sua “realização”: tudo foi feito de cima para baixo, sem se preocupar com os militantes, mantidos à parte por essa separação, e principalmente com relação às massas. A manipulação dos militantes e das massas nas grandes manobras da direção se desdobra naturalmente, como na prática burguesa, com o desprezo da teoria, com o pragmatismo o mais grosseiro. Tanto isso é verdade que o desprezo pelos militantes e pelas massas vem acompanhado pelo desprezo da teoria e da análise concreta, portanto acompanhado de seu contrário: o autoritarismo e o “pragmatismo da verdade” (é verdade o que vence). Tudo o que se passou depois de 1972, e sobretudo após setembro de 77, não é senão a verificação dessa tese clássica: quando um partido operário tende a abandonar os princípios de independência de classe de sua prática política, tende então a reproduzir espontânea e necessariamente no seu próprio seio, a prática política burguesa. Conhece-se os resultados: um pequeno “limite” numericamente irrisório; mas nos 1 ou 2% de votos que faltaram à esquerda havia um todo mundo!

Embora no partido, e sobre a base da tradição stalinista, a teoria seja “propriedade” dos dirigentes (e os que não estiveram de acordo “aprenderão” por si próprios o que isto pode lhes custar mesmo hoje em dia), e que esta “propriedade” da teoria e da verdade dissimulada outras “propriedades”, a propriedade sobre os militantes e a próprias massa, isso não pode ser interpretado em termos individuais, mas em termos de sistema. O estilo dos indivíduos muda, o stalinismo de nossos dirigentes se tornou “humanista”, alguns podem até mesmo serem “abertos”. Não é isto que conta. O que conta é que tudo foi apontado como tendência à prática política burguesa no seio do partido; é a existência de um sistema que funciona sozinho, independentemente dos indivíduos que aí encontram seu lugar, mas obriga estes indivíduos a ser o que são: partes dominadas e partes dominantes no sistema. Quando se diz que o partido funciona autoritariamente, a partir cima, não é em tal dirigente que se deve procurar o autoritarismo, como uma paixão pessoal, mas na máquina do aparelho, que guarda em todos os níveis de “responsabilidade” os condutos de autoridade e suas sequelas: um dispositivo automático de segredo, de suspeita, de desconfiança e de maquiavelismo.

E é por detrás dessa máquina do aparelho que se deve finalmente procurar: na distância imposta entre os dirigentes e os militantes, na distância imposta entre o partido e as massas populares.

A QUESTÃO DECISIVA: A RELAÇÃO COM AS MASSAS

É por isso que não devemos nos restringir ao partido, nem mesmo às características de sua prática política: deve-se falar da relação política do partido com as grandes massas, portanto de linha política e da questão decisiva na linha política: da questão das alianças.

Por mais que falhe um partido e uma linha, estes são indispensáveis para ajudar a classe operária a se organizar em classe, o que é a mesma coisa que organizar sua luta de classe. Ora, assim como não se deve cultivar o partido pelo partido, não se deve organizar a classe operária pela classe operária: isto seria cair no isolamento. A classe operária existe no seio das largas massas de trabalhadores explorados ou oprimidos, como a parte das massas mais capaz de se organizar e mostrar o caminho a todos os explorados.

A tradição marxista considera que é a ação das grandes massas que é determinante, e que deve-se conceber a ação da classe operária em função dessa determinação. É das grandes massas que vêm as iniciativas históricas de importância revolucionária: invenção da Comuna, as ocupações de usinas em 1936, a conquista popular dos Comitês de Libertação 44-45, a prodigiosa surpresa de maio de 68 em França etc. E um partido se julga prioritariamente por sua capacidade de atenção às necessidades e às iniciativas das massas populares.

Sobre esta questão absolutamente decisiva da relação estreita com as massas, o partido soube então tomar posição. E uma tendência de sua história. Mas há também uma tendência contrária que não cessa de se repetir e de se acentuar: o reflexo de rejeição diante de tudo que não é controlado pelo aparelho, diante das novas formas que podem inquietar as certezas da ordem estabelecida.

Assim, em maio de 68: o partido se afastou deliberadamente das massas estudantis e pequeno-burguesas, por que ele não as controlava! Em geral o medo instintivo do que ele não controla de cima, a partir de sua “teoria” ou de seu aparelho, faz que o partido, quando ele consente pôr-se em movimento, parta sempre com muito atraso. Ele não se detém em seus preparativos e diz a verdade sobre o que vai se passar antecipadamente, quando deveria inicialmente pôr-se a ouvir as massas. Marx dizia: “A consciência está sempre atrasada”. À direção do partido aplica imperturbavelmente este princípio ao pé da letra, sem suspeitar da ironia: ela está segura de estar consciente porque está atrasada.

É clara que segundo as relações que o partido mantém com as massas (relações vivas, atentas, abertas ou ao contrário relações de desconfiança, de surdez ou de atraso), a linha do partido será concebida diferentemente: ampla e flexível sendo justa, ou ao contrário autoritária e estreita, mesmo se ela é justa abstratamente. Podemos agora abordar a questão central de toda linha revolucionária: a questão das alianças.

Toda a tradição marxista, depois do manifesto comunista de 1848, defendeu a necessidade de alianças. A classe operária necessita de alianças, não pode vencer só, sua luta seria um “solo fúnebre” (MARX).

Mas há alianças e alianças. Sobre esse ponto duas concepções-limite se opõem. Ou bem se concebe as alianças em termos de contrato formado entre organizações políticas consideradas como “proprietárias” de seu eleitorado, ou bem se concebe em termos de luta travada pela parte organizada da classe operária para ampliar sua influência.

No primeiro caso, trata-se de aplicar uma concepção jurídica e eleitoralista: isto é o que foi a União de Esquerda, concluída por um contrato de cúpula. No segundo caso, trata-se de uma concepção que, respeitando o pluralismo e podendo comportar um contrato jurídico “por cima”, engaja diretamente o partido na luta de massas para ampliar sua audiência e conquistar as mais amplas posições antes de tudo na classe operária e na pequena burguesia. A questão, em suma, é a do primado: ou primado do contrato ou primado do combate.

Sem dúvida a direção declarou que a “união é um combate”, mas pode-se perguntar qual foi realmente o conteúdo desta palavra de ordem formalmente justa, desde que a direção se opôs, contrariamente à posição adotada na perspectiva do Front Populaire em 1934-36, à constituição de comitês populares. De fato, a direção substituiu o combate nas massas, para dar à união suas bases reais, pelo combate entre organizações, sob a cobertura da fidelidade ao Programa Comum. Ela conseguiu assim substituir o eleitoralismo unitário (“oportunismo de direita”) por um eleitoralismo sectário, que pretendia fazer passar a dominação de um partido sobre um outro por uma hegemonia real, uma “influência dirigente” da classe operária no movimento popular. Mas isso era mais do que nunca eleitoralismo, portanto oportunismo de direita. A direção chegou, desde o apelo às massas, depois da dramatização de setembro (“Tudo depende de vocês” — George Marchais na Festa do Humanité), até a fórmula surpreendente: “Faça do primeiro turno das eleições uma gigantesca petição nacional — pela atualização de um bom programa comum e o apoio aos comunistas!”

O QUE SONHAR

O que sonhar quando se sabe que, de 1972 a 1977, nada foi feito para suscitar ou desenvolver as iniciativas da base e as formas de unidade dos trabalhadores manuais e intelectuais. Ou melhor: toda sugestão em favor dos comitês populares foi rejeitada em nome de riscos de “manipulação”. E eis que tendo, durante anos, suprimido a iniciativa, apela-se finalmente às massas. Para não se deixar “manipular”, terminou-se simplesmente por manipular as massas. E pretendeu-se que, ao apelo in extremi da direção do partido, as massas subitamente se mobilizassem e transformassem seu voto de cidadãos em “petição” para sustentar à “batalha” travada pelo partido no seio da União de Esquerda!

Eis o que acontece quando se faz a escolha de uma concepção de união por contrato entre direções e quando se tenta desesperadamente recuperar os efeitos, querendo inscrever, no último minuto, a luta no contrato: não se sai do eleitoralismo, este é agravado, aumenta-se a confusão com um apelo à mobilização das massas, que foram mantidas no início, cuidadosamente à parte da luta.

Teria sido, entretanto, perfeitamente possível conceber esta política de união como política de massa e de luta: como uma política de união popular, associando o contrato assinado “na cúpula” a uma luta unitária na base, na qual o partido teria podido ampliar sua audiência mais além de seu “limite”. Neste caso, teria-se sem dificuldade, inscrito o contrato dentro do combate e agido para dar prioridade à luta unitária de massas. Teria-se obtido confiança das massas para fazer frente às manobras e manipulações, e teria-se deixado de manipulá-las, quer dizer, tratá-las, de fato, como o objeto de uma prática burguesa, para criar as condições de uma política operária e popular de unidade popular.

A desconfiança profunda, tenaz, inveterada, da direção em relação às massas impediu ao partido essa opção libertadora. Ele se curvou a uma política de contrato onde a união era gerida “na cúpula”. A palavra de ordem “unidade popular” que brotava espontaneamente dos imensos cortejos de trabalhadores dos anos 1973-75, o partido, literalmente, não quis entender. Medo do risco, disfarçado em medo da aventura, ou, no limite, pura e simples rotina (que não se procure saber quais são as razões que o aparelho confessa!). A direção se retirou aos seus velhos hábitos como a uma proteção: se retirou para a sua fortaleza, levando consigo o partido. A esquerda perdeu: a fortaleza permanece sempre, imutável, qualquer que seja o céu.

UM PARTIDO PRISIONEIRO DE SEUS MUROS

Tudo o que foi dito do partido deve, para ser completo e conciso, permitir também ver o partido do exterior: não somente em seu aparelho, suas práticas, suas concepções, sua linha, mas também fora da situação francesa. É forçoso constatar que ele ocupa uma posição bastante particular,

É forçoso constatar que, por sua desconfiança diante das massas e por seu fechamento em si mesmo, o partido é na sociedade francesa como uma guarnição numa fortaleza, em lugar de ser “como um peixe dentro d'água”.

Que a fortaleza protege e é permanente, compreende-se: ela foi feita para isso. Que ao partido é necessária a continuidade, compreende-se; mas se trata-se da continuidade de uma fortaleza, tanto faz ler Vauban ou Marx.

Maquiavel dizia que aquele que constrói uma fortaleza e nela se refugia se faz prisioneiro de seus muros: está perdido não somente para a guerra, mas para a política.

Se a fortaleza pudesse ter suas razões (é preciso pesquisar) de existir nos primeiros anos da III Internacional, o partido deve hoje em dia tratá-la não como um refúgio, mas como um simples ponto de apoio: foi o que fez em 34-36, quando sua política se abria amplamente para as massas em movimento (“Nós não temos ministros, mas temos o ministério das massas!", Maurice Thorez) e durante a Resistência. Para o revolucionário, uma fortaleza não tem sentido senão se saímos dela, para desenvolvermos as forças do seu interior nas massas. Deve-se olhar as coisas diretamente: a derrota de março de 78 é a derrota de uma linha e de uma prática políticas que se integram ao funcionamento do partido, retirado na sua fortaleza e recusando sair para”se perder”, quer dizer, se reencontrar nas massas.

O fato do partido tomar, na sociedade francesa, a forma de uma fortaleza, ressoa estranhamente. Pois de fato trata-se de se manter com um terço somente da classe operária, manter um distanciamento preventivo diante das massas e dos acontecimentos, chegando ao reboquismo sistemático. E a direção acha os meios de fazer da necessidade, virtude, e de apresentar esse comportamento acanhado, que pratica sem justificativa, como indício de força, de prudência e mesmo de clarividência política! Clarividência que é na verdade se manter cego diante do sentido objetivo deste comportamento, que não pode levar senão ao isolamento do partido na sociedade francesa, sem que o aumento do número de aderentes seja suficiente por si só para destruí-lo. Quando se aponta o isolamento do partido (questão que deveria interessar profundamente o partido) a direção incrimina logo a burguesia e seu anticomunismo visceral: e como não há pequenos lucros, ela não vê neste isolamento senão uma confirmação: o partido não é “como os outros”.

Muito justamente, a questão do partido e de sua transformação está no centro das preocupações de todos os comunistas. Se ele deve se transformar, não deve se tornar “um partido como os outros?” E se ele não se tornar “um partido como os outros” como poderia então se transformar? A questão que é aqui colocada é a questão do fim do isolamento do partido, ou, para retomar nossa metáfora, a questão de sair da fortaleza.

Um grave perigo oportunista ameaça o partido. Porque há duas maneiras de “sair da fortaleza”. Pode-se sair, ficando-se no mesmo lugar, liquidando a tradição revolucionária, e “transformando-se” o partido, tal como é, no seu acanhamento atual, em um “partido como os outros”, quer dizer formalmente liberal. Mas pode-se sair de outra maneira: rejeitando-se o acanhamento e abandonando-se a fortaleza, para se engajar resolutamente no movimento de massas, estendendo, pela luta, a zona de influência do partido, e encontrando nessa luta, aberta para as massas, as verdadeiras razões para transformar o partido, dando-lhe a vida que lhe vem das massas.

Nesta segunda via, a questão não será se o partido é “um partido como os outros”, tomando suas regras internas emprestadas dos partidos burgueses. Suas regras internas, o partido deve, retendo o melhor da experiência histórica revolucionária, inventá-las mesmo a partir da sua prática de massa, e a partir da experiência e das análises de seus militantes. Eu não trato de palavras, eu falo de fatos. Por pouco que eles possam enfim se expressar, será surpreendente a riqueza de proposições concretas que os militantes já têm, maduramente refletidas na cabeça. E existem suficientemente forças, vontade e lucidez nas bases operárias e populares do partido para mudar “o que não pode mais perdurar”, e criar formas novas, inéditas, que salvaguardam a independência de classe do partido, sua autonomia, e sua exigência de liberdade real na reflexão, na discussão e na ação.

UMA LINHA DE UNIÃO POPULAR

E para dizer uma palavra sobre o tema que mobiliza atualmente toda a propaganda burguesa contra o partido, o centralismo democrático, está claro que os militantes não cairão na armadilha. Eles defenderão o princípio, não por fetichismo dos estatutos ou fidelidade ao passado pelo passado, mas porque eles sabem que um partido tem necessidade, para não ser “como os outros”, de outras regras que a dos outros, de uma liberdade sem vinculações com o direito burguês e mais rico do que ele. E eles sabem que, se o partido é vivo, ele inventará com as massas as novas formas desta liberdade, sem se aconselhar com os “experts” em democracia burguesa, sejam ou não comunistas.

Para nós, podemos tirar desta análise algumas conclusões de trabalho e de luta para o futuro: apresento-as numa ordem numerada, mas essa enumeração não implica nenhuma prioridade, tampouco nenhuma subordinação. Estas medidas se vinculam muito estreitamente, e devemos nos pôr a trabalhar em todos os campos de uma só vez. Falta-nos, com efeito, a todo preço:

1) Uma teoria marxista a serviço da vida. Não uma teoria congelada e desnaturada por fórmulas consagradas, mas lúcida, crítica e rigorosa. Uma teoria marxista salva, do seio da sua crise atual no movimento comunista, pela prática da análise concreta e pela prática das lutas populares. Uma teoria que não evite as iniciativas das massas e as transformações sociais, mas ao contrário, as enfrente, penetre e delas se nutra;

2) Uma crítica e uma reforma aprofundadas da organização interna do partido e de seu modo de funcionamento. o grande debate empreendido pela base deve engajar o partido numa análise concreta das regras atuais do centralismo democrático e de suas consequências políticas. Não se trata de renunciar ao centralismo democrático, mas de renová-lo e de transformá-lo, para colocá-lo ao serviço de um partido revolucionário de massas, para preservar a especificidade e a independência deste partido em relação à burguesia;

3) Uma análise concreta da situação de classe na França, que permita compreender para enfrentá-la, a luta da classe burguesa nos seus objetivos, nas suas mudanças e suas manobras; de encontrar as causas concretas da divisão e das contradições no interior da classe operária e na pequena burguesia urbana e rural; enfim de conhecer no sentido amplo a natureza e o lugar dos partidos nessas relações de classe, em particular do PC e do PS;

4) A definição de uma política de aliança de todas as forças operárias e populares, combinando contratos na cúpula com o desenvolvimento da luta do partido na base: uma linha de união popular, sem reformismo nem sectarismo, pela mobilização ativa das massas e o livre desenvolvimento de suas iniciativas.

Nestas condições, das quais dou aqui os princípios, o partido poderá mudar, sair de todos os equívocos e entraves que herdou de seu passado, resgatar seus erros e derrotas, e ajudar à reunião das massas populares para o que será enfim sua vitória.


Inclusão: 15/08/2023