3 de Outubro e o Movimento Nacionalista

Mário Alves

Setembro/Dezembro de 1958


Fonte: Revista Estudos Sociais, nº 3-4, set-dez/1958, pág: 259-265.

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


O pleito de 3 de Outubro realizou-se numa época em que fatores da conjuntura vieram agravar a contradição entre a nação em desenvolvimento e a situação de dependência ao imperialismo norte-americano.

Sob o impacto da “recessão” nos Estados Unidos e do declínio dos preços dos produtos primários no mercado mundial, diminuíram as exportações, avolumaram-se os estoques invendáveis de café, e a perda de substância de nossa economia se traduziu em vultoso deficit no balanço de pagamentos. Com a irrupção da crise no comércio exterior, surgem maiores entraves ao desenvolvimento do país nos marcos da dependência ao imperialismo, dentro dos quais ele se vem processando. O agravamento desta contradição impõe a necessidade de soluções não apenas no terreno econômico, mas sobretudo na arena política.

No curso dos meses que precederam as eleições, não houve praticamente nenhum aspecto da política econômica e financeira, ou da política exterior, que não se convertesse em objeto de renhida polêmica entre as forças interessadas no desenvolvimento independente do país e os círculos que defendem, direta ou indiretamente, o “status” de dependência econômica e política no qual vicejam seus interesses investidos.

A luta se fere também dentro do aparelho do Estado e no governo. Em vista de seu caráter heterogêneo, que expressa um compromisso instável entre a burguesia nacionalista e setores latifundiários e capitalistas ligados a interesses imperialistas, o governo do sr. Kubitschek realiza uma política vacilante e contraditória, que reflete o conflito entre as necessidades do desenvolvimento do país e as concessões ao capital monopolista estrangeiro.

A orientação governamental oscila em torno de soluções de compromisso, que intentam enquadrar os interesses do desenvolvimento capitalista do país nos limites asfixiante da dependência ao imperialismo.

Todavia, à medida que os problemas nacionais se complicam, exigem soluções efetivas e tornam insustentável a política de compromissos. Já antes das eleições era evidente para importantes setores da população a necessidade de mudar de rumos. Recrudescia a luta das correntes nacionalistas por uma política externa independente, por soluções patrióticas para os problemas econômicos e financeiros.

As consequências da dependência do país ao imperialismo se fazem sentir não só nas dificuldades que afetam a nação como um todo mas, particularmente, no agravamento das condições de vida dos trabalhadores e das massas populares, Com a desvalorização cambial do cruzeiro, acentuou-se a pressão inflacionária. E o governo pretendeu fazer face aos problemas financeiros acionando o mecanismo tradicional que converte os trabalhadores nas maiores vítimas das vicissitudes econômicas: déficits orçamentários vultosos seguidos de crescentes emissões, ascensão brusca do custo da vida e deterioração acelerada do poder aquisitivo dos salários e vencimentos.

Nas vésperas das eleições, já se tornara flagrante o desnível entre a remuneração dos trabalhadores e das camadas médias e o índice de preços. Enquanto o salário-mínimo e os vencimentos do funcionalismo eram mantidos no nível die 1956, o índice dos preços ao consumidor no Distrito Federal se elevava de 64 por cento no período de janeiro daquele ano a setembro de 1958, segundo os dados oficiais. Em vista dessa situação, crescia o descontentamento de largos setores da população.

O pleito eleitoral ocorreu, portanto, numa fase de acentuação dos obstáculos que se opõem ao desenvolvimento do país e de agravamento dos problemas que atingem diretamente o povo.

Muito antes da batalha das urnas, já os setores nacionalistas e democráticos mais conscientes, entre eles os comunistas, afirmavam que as eleições constituiriam um relevante episódio da luta que travam as forças interessadas no desenvolvimento independente do país e os agrupamentos ligados aos interesses monopolistas estrangeiros. Cabe perguntar em que medida o pleito de 3 de outubro representou realmente um choque entre estas correntes, em que medida foi o nacionalismo um divisor de águas na campanha eleitoral.

Embora a contraposição das forças nacionalistas e dos grupos entreguistas nem sempre se tenha revelado nitidamente, desempenhou um papel determinante no conjunto do pleito. Em muitos casos, os motivos regionais ou locais da competição, os interesses personalistas em jogo, as alianças de caráter puramente utilitário e a falta de conteúdo programático dos agrupamentos políticos toldaram a visão das tendências fundamentais em choque. Em essência, porém, elas estavam presentes e se opunham sob a forma das mais variadas combinações políticas. Competições que se travaram aparentemente em torno de homens ou de interesses de grupos, sem qualquer conteúdo doutrinário ou sem relação visível com os problemas nacionais, expressavam no fundo o conflito daquelas tendências fundamentais, porque não há praticamente líderes nem grupos políticos que não reflitam direta ou indiretamente, consciente ou inconscientemente, as aspirações das grandes correntes opostas. Incorreria no esquematismo ingênuo, que ignora a complexidade do fenômeno político, quem pretendesse assinalar a contradição nacionalismo versus entreguismo apenas ali onde ela se apresentou em suas formas mais puras.

É inegável que o movimento nacionalista influiu sensivelmente para a polarização das forças políticas, registrando-se, de modo mais acentuado que nos pleitos anteriores, a tendência para a formação de coligações eleitorais baseadas em clara definição de princípios nacionalistas e democráticos. Nem sempre, porém, se cristalizou suficientemente a unidade eleitoral das correntes nacionalistas. Não se deve pois identificar as coligações nacionalistas constituídas no plano eleitoral com todo o conjunto de forças que podem e devem participar da frente nacionalista e democrática. As injunções partidárias, os interesses pessoais e contradições secundárias tornaram muitas vezes inviável a unificação de todas as correntes nacionalistas em torno de candidaturas comuns. Quando as forças nacionalistas se dividiram no apoio a candidatos opostos, é evidente que a contradição entre o nacionalismo e o entreguismo não apareceu claramente diante do eleitorado, e grande parte deste não se decidiu em função desta contradição.

A fim de compreender as tendências reveladas no pleito, faz-se necessária uma análise dos resultados obtidos pelas diversas forças partidárias. Ao empreendê-la, porém, deve-se ter em conta as características dos partidos no Brasil e não tomar cada sigla de partido como expressão global e unitária de determinada posição política. Se bem que cada um dos partidos brasileiros tenha sua fisionomia específica, são agrupamentos mais ou menos heterogêneos, sem um conteúdo programático definido, incluindo forças com interesses sociais e políticos contraditórios, minados pelo regionalismo e pelo personalismo. Além do mais, as eleições tiveram em grande parte caráter regional: a disputa em torno de governos de Estado e as alianças políticas em âmbito estadual contribuíram por vezes para dar predominância aos aspectos locais da competição, em detrimento de suas implicações no plano nacional.

Como decorrência desses fatores, as alianças de partidos, concluídas principalmente em torno de postos disputados pelo voto majoritário, influíram para tornar extremamente complexo o panorama. Quem pretenda sacar conclusões dos resultados do pleito levando em consideração apenas a posição de cada partido, tomado isoladamente e como um todo homogêneo, ver-se-á em situação embaraçosa para escolher um critério acertado de julgamento. Aparentemente, os resultados se contradizem. O PSD, que perdeu os governos de quatro Estado importantes, continua a ter sólida maioria na Câmara Federal e a ser a maior força eleitoral do país. Já a UDN, que elegeu por meio de aliança os governadores de dois grandes Estados e venceu as eleições para senador do Distrito Federal, terá talvez diminuída sua bancada na Câmara dos Deputados, perdendo substância sua legenda.

As correntes políticas mais ligadas às massas trabalhadoras e populares não só conservaram como, em muitos casos, ampliaram suas posições. O pleito acusou a tendência ao fortalecimento do PTB, partido ligado ao movimento operário, que adotou uma plataforma nacionalista e democrática definida e participou, na maioria dos Estados, de aliança com os comunistas. Foi o PTB o único partido que ampliou sensivelmente suas posições nos governos estaduais (elegendo cinco governadores quando antes dispunha apenas de um) e simultaneamente aumentou sua bancada na Câmara Federal. E necessário assinalar, contudo, que o PTB sofreu reveses em centros importantes como São Paulo e Distrito Federal. Para isto concorreram as divergências internas, os conflitos de interesses pessoais e a politicagem sem princípios realizada por vários dirigentes trabalhistas. Se as eleições demonstraram que o PTB é um partido sensível às aspirações dos trabalhadores e do povo, constituindo uma força ponderável da frente única nacionalista, revelaram ao mesmo tempo suas contradições e deficiências, sua ligação ainda débil com camadas substanciais das massas.

Os êxitos relativos da UDN foram tendenciosamente exagerados pelas forças reacionárias e saudados pela imprensa norte-americana como “vitórias conservadoras”. Examinados mais de perto, porém, tais êxitos em nada significam uma inclinação da opinião pública para a orientação antinacionalista e antidemocrática da cúpula dirigente udenista. Em Pernambuco, a vitória não pode ser creditada à UDN, mas a uma ampla coligação de forças na qual os comunistas e trabalhistas tiveram participação destacada, devendo-se observar os compromissos de caráter nacionalista e popular assumidos pelo candidato udenista com as massas. No Distrito Federal e na Bahia, os candidatos da UDN se beneficiaram evidentemente da dispersão das correntes populares e patrióticas por várias candidaturas. É necessário reconhecer, por outro lado, que a UDN conseguiu em parte capitalizar o descontentamento de certos setores da população diante da ausência de soluções efetivas para as dificuldades econômicas agravadas. De há muito o comando udenista executava uma nova estratégia eleitoral, arquivando — ao menos temporariamente — a bandeira golpista, que saíra esfarrapada e desmoralizada das jornadas de 54 e 55, e camuflando suas posições mais reacionárias com a política “realista”, baseada na adesão verbal ao nacionalismo, nas afirmações de solidariedade ao movimento operário e na busca de alianças proveitosas com forças populares.

Na derrota de oligarquias estaduais ligadas ao PSD não se pode deixar de ver mais um sinal de progresso da consciência política das massas, de declínio da força das máquinas eleitorais. Merece atenção o fato de que, entre os grupos pessedistas derrotados, a maioria é constituída pelas camarilhas mais reacionárias e ligadas ao entreguismo: as de Etelvino Lins e Peracchi Barcelos, mais udeno-golpista do que pessedistas, e a de Amaral Peixoto, embaixador antibrasileiro em Washington.

Uma apreciação objetiva dos resultados do pleito desmente, portanto, as análises capciosas com que a imprensa subvencionada pelos monopólios procurou negar os êxitos nacionalistas. Na realidade, o nacionalismo revelou sua força de penetração em grandes camadas e conquistou posições importantes, tendo as coligações nacionalistas eleito seis dos onze governadores de Estado e ampliado consideravelmente suas bancadas na Câmara Federal e nas assembleias estaduais. O poder de atração da causa nacionalista se manifesta em sua transformação na bandeira eleitoral de numerosos candidatos, inclusive de alguns com notórias vinculações ao entreguismo, que se mascaram de adeptos do nacionalismo porque já não ousam combatê-lo frontalmente.

As eleições não importaram em uma alteração decisiva da correlação de forças políticas no país. Concorreram, porém, para agrupar no plano político as correntes nacionalistas e populares, fortalecendo as bases para a sua unidade de ação. Um dos êxitos mais significativos do movimento nacionalista consiste na formação das alianças eleitorais que abrangeram trabalhistas, populistas, comunistas, setores da UDN e do PSD e outras forças políticas. As eleições comprovaram a heterogeneidade dos partidos políticos e a necessidade de unir para a ação conjunta os setores nacionalistas e populares de diversos partidos.

A política de unidade das forças nacionalistas e democráticas, preconizada pelos comunistas e por outros setores anti-imperialistas, obteve sucessos que, embora ainda parciais, confirmam o seu acerto. Privados de legenda partidária e impossibilitados de apresentar seus próprios candidatos, os comunistas tiveram atuação efetiva na campanha eleitoral, contribuindo decisivamente para a formação de coligações nacionalistas e para a unidade das correntes políticas mais ligadas aos trabalhadores. Não obstante a intensa campanha anticomunista, que tinha como objetivo dividir e enfraquecer as forças anti-imperialistas, os comunistas participaram de alianças com outras forças políticas e concorreram para a eleição de numerosos candidatos nacionalistas.

Como qualquer eleição, o pleito de 3 de outubro teve o sentido de um balanço de forças, submetendo a prova a capacidade de arregimentação política do movimento nacionalista. Se este obteve êxitos, sofreu igualmente reveses que exprimem as debilidades existentes em suas fileiras.

Apesar de sua superioridade potencial, as forças nacionalistas e populares foram por vezes derrotadas no terreno eleitoral devido à sua dispersão política, à sua fragmentação por vários partidos e candidaturas. Foi esta divisão que tornou possível a vitória de candidatos como Carvalho Pinto, Juraci Magalhães e Afonso Arinos. Pela falta de uma delimitação mais clara das posições nacionalistas, homens notoriamente comprometidos com grupos entreguistas ainda puderam iludir setores consideráveis do povo e levar uma parcela das correntes nacionalistas a apoiá-los, como ocorreu em São Paulo com o candidato do sr. Jânio Quadros. No caso paulista influiu também o fato de que a candidatura Ademar de Barros, em torno da qual foi possível unificar grandes forças populares, encontrava séria oposição em setores da classe média e intelectualidade.

Embora cresça e se afirme a consciência anti-imperialista do povo, ela ainda não se traduziu num grande movimento capaz de unificar no plano político as diversas correntes que a exprimem. Esta unificação não pode resultar, porém, da tentativa mecânica de reunir as várias forças numa organização única — tenha ela o caráter de partido ou de frente. Em face da diversidade das correntes e tendências nacionalistas, que se identificam por certos objetivos comuns, mas se distinguem por posições ideológicas e políticas diferentes, quaisquer tentativas, de adotar formas rígidas de organização e direção poderiam estreitar o alcance do movimento. Amadurece, no entanto, a necessidade de coordenação das diversas correntes nacionalistas em função de objetivos comuns, respeitadas as características e a autonomia de cada corrente. A realidade parece indicar que, no momento atual, o primeiro passo seria definir um conteúdo programático para o movimento nacionalista, capaz de constituir um fator de unidade e aglutinação das diferentes tendências. O próprio aprofundamento da contradição entre a Nação que se desenvolve e a dependência ao imperialismo suscita a necessidade de soluções capazes de unificar a ação política das correntes patrióticas.

A indefinição de uma política nacionalista ou a sua formulação apenas em termos de "slogans’' gerais pode conduzir a equívocos como o de identificar-se a luta pelo desenvolvimento independente do país com a atual política de compromissos e vacilações do governo do sr. Kubitschek.

Em certa medida, tal equívoco verificou-se durante a campanha eleitoral, não tendo ficado clara para muitos setores do eleitorado a oposição das forças nacionalistas aos aspectos negativos da atuação do governo. Uma política nacionalista acertada exige, no entanto, além do apoio decidido ao setor patriótico do governo e aos aspectos de sua ação favoráveis aos interesses nacionais, o combate enérgico à orientação de certos círculos governamentais que pretendem subordinar o desenvolvimento do país à dependência ao capital estrangeiro e solucionar as dificuldades econômicas e financeiras pela imposição pura e simples de maiores sacrifícios aos trabalhadores e ao povo. Somente tal linha de ação pode conduzir as correntes nacionalistas a imporem modificações indispensáveis na política e na própria composição do governo a fim de que o país se oriente para uma política independente e progressista.

A campanha eleitoral revelou ainda que o nacionalismo não sensibilizou grande parte do eleitorado, sobretudo das massas trabalhadoras, pela falta de vinculação entre as soluções gerais que apresenta para os problemas nacionais e os interesses imediatos e vitais do povo. No momento em que as massas sentem na própria carne as consequências do subdesenvolvimento do país e da dependência ao imperialismo, em geral não encontraram na propaganda dos candidatos nacionalistas a resposta satisfatória a suas inquietações. O movimento nacionalista não pode, entretanto, fazer caso omisso das condições de vida das massas, não só porque o bem-estar do povo é um dos requisitos essenciais para o desenvolvimento econômico independente e progressista, como também porque a participação dos trabalhadores é imprescindível para a vitória da luta pela emancipação nacional.

A principal responsabilidade nesta questão cabe, sem dúvida, às correntes anti-imperialistas ligadas aos trabalhadores. As massas se integrarão conscientemente no movimento nacionalista, transformando-o num movimento de massas, à medida que compreenderem a relação entre seus interesses vitais e os interesses gerais da nação.


Inclusão 05/10/2019