Homens e Coisas do Partido Comunista

Jorge Amado


2. A ilegalidade


capa

No fim da cidade, quando já rareavam as lâmpadas elétricas, quando já distantes eram as casas umas das outras, recantos só atingidos através de difíceis caminhos, eles estavam reunidos em torno de uma pequena e arcaica impressora. As caixas de tipos, poucas e mal servidas, estavam agora quase vazias porque os artigos haviam sido compostos. As rudes mãos fazem trabalhar, quebrando o silêncio da noite suburbana, a reumática impressora. E do lado de lá cai um numero de jornal: “A CLASSE OPERÁRIA”. Mal impresso, pequeno e violento, o jornal iluminou de súbito o interior onde a luz baça das velas e dos fifós mal cortava a escuridão. É que nas faces encovadas de homens houve um brilho de alegria. Luz que partia dos olhos, dos corações batendo mais rápidos, das mãos trementes, dos lábios sorrindo. A máquina seguia com seu ruído quase doloroso, sobre ferrugens e dificuldades. E o jornalzinho ia caindo um a um, exemplar sobre exemplar para a pequena edição que seria lida por dezenas e dezenas de milhares. Os homens não sabiam direito mesmo o que sentiam, aquela íntima alegria, era como alegria de concepção. Aquilo, aquela pequena folha suja de tinta de impressão, custara-lhes suor e sangue, saíra da sua carne, eles eram como partes integrantes daquela ferrugenta máquina, com os rolos dela ligavam-se seus dedos, seus corações batiam com cada pancada da máquina. Custara-lhe amargos dias aquele número. Cada um dos números de “A Classe Operária” custava dolorosos dias aos militantes ilegais. Mas o jornal saía, era ele quem dirigia a vida de milhares pelo país afora. A máquina rodava, cada vez mais difícil, ameaçava parar a cada momento, era de angústia e alegria aquela hora, era como um parto. Vibrava a máquina, o jornal nascia e nele estavam as palavras de ordem do Partido Comunista do Brasil.

— Empacou...

E os homens se debruçavam sobre a máquina, já conhecem todas as suas manhas, todos os seus segredos, todas as suas surpresas.

Apenas dez números foram impressos e pelo menos mil têm que sair nesta noite para a noite do Brasil cheio da quinta-coluna. Alguém tenta romper a angústia:

— Essa maquininha é reacionária de fazer medo...

Mas nem ele ri, curvado sobre a máquina, perscrutando seu misterioso coração de ferro. Bolem em parafusos, bolem em correias e em rolos. Esses homens não são tipógrafos, nem mecânicos, não são jornalistas também. Mas na ilegalidade eles aprenderam um pouco de tudo, são um pouco enciclopédicos, de tudo sabem um pouco, o suficiente para resolver uma situação difícil.

Sei de homens que coseram sua própria roupa sem que antes houvessem manejado uma agulha de alfaiate. Sei de outros que viraram sapateiros. Também esses operários nunca foram jornalistas nem tipógrafos. Mas aí estão eles diante da máquina enguiçada. Já escreveram os artigos, os mais sérios artigos que se escreviam no Brasil naquela época, artigos que falavam da industrialização, que estudavam com profundidade e conhecimento a situação econômica e política do país, que revelavam fatos desconhecidos da política internacional e rasgavam perspectivas para a massa jogada contra a parede do fascismo. Nesse tempo doloroso o assassino Francisco Franco atirava os mouros contra a República Espanhola no início da aventura militar do fascismo contra a humanidade. Era o terror no Brasil, as armas antifascistas de 35 haviam sido vencidas na madrugada de 27 de novembro. Um vento de ódio sacudia o país, “comunista” era sinônimo de miserável, de bandoleiro, de vil ladrão noturno. Pela boca de uma propaganda paga com o dinheiro nazifascista espalhava-se sobre o país as calúnias mais sórdidas a respeito dos comunistas e do Partido. Era uma noite de desgraça e nessa noite asfixiante “A Classe Operária”, era um raio de luz rasgando as trevas. Era preciso que o pequeno jornal circulasse porque ele levava em suas colunas mal impressas um sangue de esperança, um ânimo que acendia corações em casas pobres na leitura noturna e proibida. Pequena edição de mil exemplares nascidos de sacrifícios incontáveis. Mas nenhum jornal tão lido, de tão enorme circulação, avidamente lido, linha por linha, e logo passado adiante nos encontros fortuitos, com um cuidado como se em vez de troço sujo de papel fosse uma esmeralda preciosa, uma joia de fabuloso preço. Era, sim, uma joia de valor insuperado. Era a palavra do Partido, era a literatura do Partido, era a esperança, a certeza de que nem tudo estava perdido, de que homens desconhecidos, anônimos e de fibra inquebrantável, estavam a postos, nos esconderijos, em meio à multidão, rotos e magros, passando fome e frio, muitas vezes tremendo de febre, mas levando para diante o facho do Partido, a confiança nos destinos do Brasil.

Agora estão curvados sobre a máquina. Certas horas dá vontade de chorar de raiva, um nó sobe até a garganta. Quando todas as dificuldades já foram superadas, quando tudo está pronto para o último esforço, o rodar da velha máquina, então tudo de repente parece perdido. É difícil vida a de militante comunista na ilegalidade. Não tendes direito a nada, tendes todos os deveres. O dever agora é fazer essa máquina enferrujada e gasta trabalhar, rodar mil exemplares de um jornal que é pão e sangue das massas trabalhadoras do país, do povo do Brasil sob o terror. Os homens viram mecânicos, eles já conhecem os segredos dessa máquina que é também como uma companheira, que já foi cem vezes transportada de um esconderijo para outro, fugindo à polícia, à perseguição, ao ódio dos donos da vida.

E chiam as velhas articulações da velha máquina. E lentamente ela volta a andar. Um sorriso nas bocas felizes dos homens cansados. E mais um número de jornal cai sujo de tinta. E a máquina toma alento e vai mais rápida enquanto a luz trêmula dos fifós projeta sobre as paredes de barro a sombra dos homens.

Depois eles saem na madrugada com pacotes estranhos. Vestem capas velhas que antes pertenceram a outros donos e que lhes dão um aspecto estranho de náufragos chegados do mar. Sob as capas vão os pacotes de jornais. Esses homens amanhecerão nas portas das grandes fábricas onde existem as células clandestinas do Partido. Uns quantos números do jornal aqui, outros ali, outros mais adiante, de fábrica em fábrica, de célula em célula. Os militantes esperam, os simpatizantes esperam, esperam os operários, todo o povo que busca no jornal a palavra que dirige e guia, que orienta e esclarece.

Depois são os ferroviários no tumulto das estações. Chega o homem como um fugitivo da justiça, pelos cantos menos visíveis. O ferroviário espera, é um maquinista ou um foguista, ou chefe de trem ou um guarda de vagão. O embrulho muda de mãos, não há quase palavras que a polícia pode estar em qualquer parte. O homem que veio de longe some em meio ao povo reunido junto ao trem que parte. O ferroviário leva seu embrulho e, de estação em estação, de oficina em oficina, de cidade em cidade, de povoado em povoado, vai ficando a palavra do Partido na voz do seu jornal ilegal. Rompendo as trevas da noite do fascismo. Cada número é um milagre. Milagre de homens que parecem iguais a quaisquer outros mas que têm um coração de aço. De homens forjados na ilegalidade do Partido. Rotos e magros, muitos deles comidos pela tísica, mas dispostos a continuar porque há muito esses homens aprenderam que pouco vale a vida se ela não é vivida integralmente na plenitude da sua dignidade e da sua beleza.


Inclusão 08/04/2014