Ajudas públicas e protecção dos agricultores: Falsos problemas e verdadeiros desafios

Samir Amin e Bernard Founou-Tchuigoua(1)

12 de julho de 2003


Primeira Edição: Documento preparatório apresentado aquando da Conferência da Organização Mundial Comércio, em Cancum, Setembro de 2003

Fonte: http://resistir.info

Tradução: ASB - O original encontra-se em http://www.penserpouragir.org/article.php3?id_article=62

HTML: Fernando Araújo.


     O presente documento constitui uma nota de síntese à atenção dos responsáveis da sociedade civil que acompanham os debates da OMC, especialmente os relativos à agricultura, bem como dos funcionários dos países do Sul responsáveis pela condução dessas negociações. Nele mostraremos: 

Como contraponto, indicaremos os princípios de uma estratégia alternativa, à altura dos verdadeiros desafios, que os países do Sul deveriam adoptar tanto nas suas "negociações" na OMC como noutras instâncias, contribuindo assim para a construção de "outra mundialização" que responda às expectativas dos povos. 

O VERDADEIRO DESAFIO: O FUTURO DAS SOCIEDADES RURAIS DO SUL 

Para começar, recorde-se o que designamos pela "nova questão agrária" com que o mundo contemporâneo se confronta. 

A agricultura capitalista, dirigida pelo princípio da rentabilidade do capital e localizada quase exclusivamente na América do Norte, na Europa, no cone sul da América Latina e na Austrália, emprega apenas algumas dezenas de milhões de agricultores, que já não são verdadeiramente "camponeses". Porém, devido à mecanização, de que têm a quase exclusividade à escala mundial, e à superfície de que cada um dispõe, a sua produtividade situa-se entre 10 000 e 20 000 quintais de equivalente-cereais por trabalhador e por ano. 

Em contrapartida, as agriculturas camponesas reúnem cerca de metade da humanidade (três mil milhões de seres humanos). Pelo seu lado, estas agriculturas dividem-se entre as que, embora muito pouco mecanizadas, beneficiaram da revolução verde — adubos, pesticidas e sementes seleccionadas — e cuja produção se situa entre 100 e 500 quintais por trabalhador, e as que são anteriores a essa revolução e cuja produção se situa apenas em cerca de 10 quintais por pessoa activa. 

Em comparação com o que era há meio século, o desvio entre a produtividade da agricultura melhor equipada e a da agricultura camponesa pobre tornou-se extraordinariamente grande. Por outras palavras, os ritmos de evolução da produtividade na agricultura ultrapassaram amplamente os das outras actividades, provocando uma redução dos preços relativos de 5 para 1. 

Nestas condições de gigantesca desigualdade entre as empresas capitalistas agrícolas e a produção camponesa, quais serão as consequências inevitáveis se se "integrar a agricultura" no conjunto das regras gerais da "concorrência", equiparando os produtos agrícolas e alimentares a "mercadorias como as outras", como passou a ser exigido pela Organização Mundial do Comércio desde a conferência de Doha de Novembro de 2001? 

Se lhes fosse permitido o acesso às superfícies significativas de terras de que necessitariam (retirando-o às economias camponesas e escolhendo evidentemente os melhores solos) e se tivessem acesso aos mercados de capitais de forma a poderem equipar-se, cerca de duas dezenas de milhões de explorações agrícolas modernas suplementares poderiam produzir o essencial do que os consumidores urbanos solventes ainda compram à produção camponesa. Mas o que aconteceria aos milhares de milhões desses produtores camponeses não competitivos? Seriam inexoravelmente eliminados no curto prazo histórico de algumas dezenas de anos. Que acontecerá a esses milhares de milhões de seres humanos, na sua maior parte já pobres entre os pobres, mas que, bem ou mal, ainda se alimentam a si mesmos (mal para um terço deles, pois três quartos das pessoas subalimentadas do mundo são camponeses)? Numa perspectiva de cinquenta anos, mesmo na hipótese fantasista de um crescimento contínuo de 7 % por ano para três quartos da humanidade, nenhum desenvolvimento industrial mais ou menos competitivo poderia absorver sequer um terço dessa reserva. 

Então que fazer? 

É necessário aceitar a manutenção de uma agricultura camponesa para todo o futuro previsível do século XXI. Não por razões de nostalgia romântica do passado, mas muito simplesmente porque a solução do problema passa pela superação das lógicas do liberalismo. Por conseguinte, é necessário imaginar políticas de regulamentação das relações entre o "mercado" e a agricultura camponesa. Ao nível nacional e regional, tais regulamentações, específicas e adaptadas às condições locais, devem proteger a produção nacional, garantindo assim a indispensável segurança alimentar das nações e neutralizando a arma alimentar (por outras palavras, é preciso desligar os preços internos dos preços do chamado mercado mundial), devendo também permitir, através de uma progressão sem dúvida lenta mas contínua da produtividade da agricultura camponesa, o controlo da transferência de populações dos campos para as cidades. Ao nível do que se chama o mercado mundial, a regulamentação desejável passa provavelmente por acordos inter-regionais, por exemplo entre a Europa e a África, o Mundo Árabe, a China e a Índia, atendendo às exigências de um desenvolvimento que integre em vez de excluir. 

Estas questões fundamentais encontram-se excluídas do debate da OMC, deslocado integralmente apenas para as questões das ajudas à agricultura e dos seus efeitos sobre as condições de uma pretensa "concorrência leal" ("fair competition") nos mercados mundiais de produtos agrícolas. 

O objectivo declarado da OMC é a abertura dos mercados do Sul às exportações agrícolas do Norte. Ora, as vantagens absolutas de que beneficiam as agriculturas do Norte (que se traduzem em termos de gigantescas diferenças de produtividade) já são tais que, independentemente de quaisquer ajudas suplementares às exportações, essa abertura não poderá deixar de agravar de forma drástica os problemas das populações camponesas em questão, em vez de lhes trazer no mínimo um princípio de solução. Como contrapartida, a OMC promete a abertura dos mercados do Norte às exportações agrícolas do Sul: mesmo que isto se verificasse, o que é de duvidar, as vantagens que daí poderiam advir não têm comparação com as devastações causadas em sentido oposto. 

  A OMC pretende que a opção que faz de se ocupar apenas das regras do comércio internacional, centrando as negociações nos subsídios que, segundo ela, teriam um impacto sobre essas regras, corresponde à sua vocação explícita, que é tratar do comércio excluindo outros problemas, como o problema do desenvolvimento. Tal pretensão não é sustentável. A abertura descontrolada do comércio externo altera os sistemas produtivos, especialmente os dos parceiros fracos, e destrói o seu direito ao desenvolvimento e a sua protecção necessária. Além disso, neste caso, a OMC pratica uma lógica de "dois pesos e duas medidas", pois ao mesmo tempo que aceita a legitimidade das políticas dos países desenvolvidos, introduzindo, como se verá, distinções artificiais entre os diferentes segmentos dessas políticas, recusa esse direito aos outros países. 

AS AJUDAS À AGRICULTURA NO MUNDO CONTEMPORÂNEO REAL 

As medidas de ajuda à produção agrícola e aos rendimentos dos agricultores constituem um conjunto aparentemente de uma extrema complexidade, regido por uma autêntica selva de textos em que o leigo pode estar certo de se perder. Mas não deixa de ser um facto que tais conjuntos de medidas — "nacionais", no caso dos Estados Unidos, do Canadá, do Japão ou de outros, ou "comunitários", no caso da União Europeia — constituem políticas relativamente coerentes, ou seja, meios eficazes para atingir os objectivos que se propõem, não sem que aqui ou ali o acaso da história e os conflitos de interesses específicos tenham podido traduzir-se em incoerências parciais. Pode-se certamente julgar essas políticas, os seus objectivos, de pontos de vista diferentes, defendê-las ou criticá-las, mas elas existem. Também se pode discutir a eficácia dos meios postos em acção para servir esses objectivos. Mas isso só pode ser feito de forma séria se nos colocarmos no terreno da economia real, e não no da economia "liberal" abstracta. 

De acordo com a OMC, em 1995 o volume global das despesas públicas "agrícolas" contabilizadas ascendia a 286 mil milhões de dólares. Sabe-se também que pelo menos 90 % dessas despesas são efectuados só pelos países do centro do sistema mundial, os países da "tríade", Estados Unidos e Canadá, União Europeia, Japão. 

Para os países ricos (por exemplo, para os países membros da OCDE), esse montante pode parecer considerável. É-o sem dúvida, de certa maneira, ou seja, se relacionado com o número de agricultores que dele beneficiam (volume da ajuda média por exploração agrícola) ou com outros critérios de medida (ajuda média por hectare cultivado, por tonelada de cereais ou de carne produzida, etc.). É-o igualmente se relacionado com o valor das produções específicas visadas ou mesmo com o valor da produção agrícola no seu conjunto, ou se relacionado com os rendimentos dos agricultores beneficiários ou mesmo com os rendimentos dos agricultores tomados no seu conjunto. 

A OMC "classifica" as despesas públicas agrícolas em quatro tipos, a que chama categorias vermelha, cor de laranja, azul e verde. O critério desta classificação seria o grau de influência dessas despesas sobre as produções e sobretudo sobre os "preços" dos produtos agrícolas (preços de produção, preços de venda pelos agricultores, preços no consumidor). A OMC coloca nas categorias vermelha e cor de laranja as despesas que considera terem impacto nos preços em questão e coloca nas categorias azul e verde as que o não teriam, de acordo com os seus critérios. Ao todo, as categorias vermelha e cor de laranja abrangeriam 124 mil milhões de dólares e as categorias azul e verde 162 mil milhões de dólares. 

Essa classificação é de suma importância, uma vez que as chamadas medidas de "liberalização" da agricultura, destinadas a tratar as produções agrícolas como produções mercantis correntes, apenas se referem às despesas das duas primeiras categorias, que se considera que devem ser progressivamente reduzidas segundo um calendário a fixar pelas negociações da OMC. Por conseguinte, os Estados continuarão a ser livres de manter, ou mesmo de aumentar, o volume das suas despesas classificadas nas categorias azul ou verde, o que de resto já é um facto consumado de há uma década a esta parte. 

Ora, a divisão das despesas em questão entre os dois pares de categorias opõe indiscutivelmente os Estados Unidos à União Europeia, Canadá e Japão. Nas categorias vermelha e cor de laranja situam-se apenas 12% das despesas públicas dos Estados Unidos que afectam a agricultura, contra 55, 48 e 54 % para a União Europeia, Canadá e Japão, respectivamente. Por outras palavras, na perspectiva da liberalização preconizada pela OMC, o esforço essencial deveria ser feito pela Europa, Japão e Canadá, e não pelos Estados Unidos. 

As próprias definições escolhidas para servirem de base à classificação foram o resultado de longas "negociações" conduzidas no âmbito quase secreto da Câmara Internacional de Comércio (o clube das transnacionais) e de trocas de opiniões entre a União Europeia e os Estados Unidos que são muito pouco conhecidas fora do círculo restrito dos funcionários que nelas participaram. Mas independentemente da densa opacidade que portanto rodeia essa "classificação", continua a colocar-se uma questão importante: por que motivo alinharam os Europeus num "método" que à partida os colocava em posição de inferioridade em relação ao seu principal parceiro-concorrente, os Estados Unidos? Pela parte que me toca, a única explicação que encontro para esse mistério é aquela que atribuiria a máxima importância à dimensão política das exigências do "imperialismo colectivo da tríade". 

Em todo o caso, o conflito entre os Estados Unidos e a União Europeia, que ocupa o lugar essencial das discussões da OMC, não deveria interessar verdadeiramente o Sul: que a abertura dos seus mercados se faça em benefício principal quer de um quer de outro dos dois parceiros em questão não altera o efeito devastador para as economias camponesas do Sul. 

O critério em que se fundamenta a classificação da OMC é insustentável. De facto, tal como escreve Jacques Berthelot em L'agriculture, talon d'Achille de la mondialisation (A agricultura, calcanhar de Aquiles da mundialização), as quatro categorias constituem uma só categoria, chamada a justo título de categoria "negra", pois só o exame do conjunto de todas as despesas, colocadas artificialmente numa ou noutra das quatro categorias da OMC, permite compreender a lógica da política agrícola prosseguida, os seus objectivos, os interesses que serve, os seus meios. A sua repartição por "espécies" pretensamente diferentes é o fruto das pseudo-análises bizantinas próprias precisamente da economia pura abstracta, que não têm mais valor que as relativas ao “sexo dos anjos” ou à “cor do logaritmo”. 

Com efeito, todas as despesas têm um impacto evidente sobre a produção, sobre o seu volume e a sua eficácia, e portanto sobre os preços. De resto, o seu objectivo é tê-lo, e têm-no. 

Alguns exemplos de despesas classificadas na categoria verde ilustram perfeitamente esse facto. 

A ajuda alimentar às pessoas carenciadas, que é extremamente importante nos Estados Unidos, representando mais de 20 mil milhões de dólares, e sem a qual 10 % da população deste país estaria condenada à fome, cria um mercado suplementar à produção agrícola, pois sem ela a procura das pessoas carenciadas tornar-se-ia insolvente. Essa produção suplementar e os preços a que o Estado a compra aos agricultores têm obviamente um impacto directo na agricultura em questão. Pode-se defender a concessão dessa ajuda — ou, por exemplo, a distribuição gratuita de leite às crianças das escolas — com os argumentos da solidariedade social, e mesmo da melhor eficácia económica a prazo de trabalhadores em bom estado de saúde, mas não se pode pretender que essa forma de despesa pública não tenha efeitos sobre a produção e sobre os preços. 

Certos subsídios, igualmente classificados na categoria verde ou na categoria azul, têm por objectivo declarado limitar a produção, isto é, reduzir a sobreprodução, como é o caso das compensações pela não exploração de superfícies aráveis próprias. Outros visam absorver essa sobreprodução, pela constituição de existências privadas ou públicas compradas a preços fixos. Tanto uns como outros têm impacto nas produções e nos preços. 

As ajudas aparentemente menos "associadas" às produções e preços sê-lo-ão realmente? Estamos a pensar nos subsídios aos agricultores que se destinam a aumentar o nível dos seus rendimentos, por exemplo para o alinhar pelo dos trabalhadores urbanos assalariados e das classes médias, e que são concedidos indirectamente, através de deduções nos impostos sobre os rendimentos, ou mesmo directamente. As equações do equilíbrio geral a que os nossos economistas convencionais se referem constantemente mostram a determinação conjunta do sistema de distribuição dos rendimentos e do sistema dos preços relativos, uma vez que de facto uma redistribuição do rendimento altera a estrutura da procura. Por conseguinte, a lógica da economia convencional conduz à conclusão de que as intervenções têm efectivamente um impacto sobre os preços! 

Por conseguinte, os conceitos de "associação" e "dissociação", que definiriam as diferentes formas de despesas públicas em questão, por um lado, e as produções e os preços, por outro, não assentam em nenhuma base sólida, sendo mais uma criação alquímica da "economia pura" e servindo na realidade de argumento de circunstância manipulável num sentido ou noutro, consoante se procura ou não legitimar este ou aquele objectivo de política económica. 

NATUREZA E ALCANCE DAS POLÍTICAS AGRÍCOLAS DOS PAÍSES DO NORTE 

A natureza e o alcance das políticas agrícolas dos países do Norte, e em especial dos Estados Unidos e da União Europeia, são abordados pela OMC no estrito quadro definido pelo impacto que as ajudas às despesas públicas afectadas à agricultura teriam sobre o comércio mundial dos produtos agrícolas. 

De facto, essas políticas têm uma amplitude completamente diversa, constituindo o meio pelo qual o Norte construiu na agricultura, à semelhança do que fez nas outras actividades económicas, as suas vantagens absolutas sobre os seus eventuais concorrentes do Sul. 

Portanto, neste domínio como nos outros, as vantagens do Norte são estruturais. Além disso, o próprio sucesso das políticas agrícolas levadas a cabo na Europa, nomeadamente a PAC, e nos Estados Unidos está na origem das capacidades produtivas dos países em questão, que ultrapassam amplamente o que os seus mercados internos podem absorver. Em consequência, a União Europeia e os Estados Unidos tornaram-se actualmente exportadores agressivos das suas sobreproduções. A vontade de "abrir" os mercados do Sul às suas exportações agrícolas e alimentares, de que a OMC é o instrumento, deriva desse objectivo. 

É pois neste contexto que devem ser analisados os meios de um autêntico "dumping" suplementar, que se vêm somar às vantagens estruturais da agricultura do Norte. 

Tais meios são diversos, umas vezes mais visíveis e outras vezes menos. Contam-se, nomeadamente, entre os primeiros os subsídios directos às exportações e, entre os segundos, a liquidação nos mercados internacionais das existências privadas e públicas constituídas para absorver os excedentes de produção, a preços marginais discutíveis, mas que se pretende definir como "preços verdadeiros", os preços do chamado "mercado mundial". 

Pode também tratar-se de meios não declarados, contudo bem reais, como é o caso da "ajuda alimentar", frequentemente disfarçada em operações ditas "humanitárias", a qual contribui para enfraquecer as capacidades da agricultura local para fazer face aos défices. 

Pode-se discutir a “sabedoria” duvidosa da referida opção dos Estados Unidos e da União Europeia, que os dispensa de programar as revisões necessárias das suas políticas agrícolas de modo a deixarem de "sobreproduzir" de forma permanente. De resto, essa crítica é feita por muitos, mesmo no Norte. 

Seja como for, no presente caso, os países do Sul têm o direito, que dificilmente lhes será negado, de reagir através de medidas de protecção, mesmo brutais (aumento maciço dos direitos de entrada, ou inclusivamente contingentação), a agressões que não são menos brutais. Neste contexto, o caso do algodão é sem dúvida exemplar. 

Poderão esses países, em determinados casos, como o do défice alimentar estrutural, congratular-se com o dumping do Norte, que lhes permite cobrir esse défice a baixo custo? Aqui o perigo reside em que a "facilidade" de que se tira partido ameaça atrasar irremediavelmente os esforços de correcção necessários que se impõem no domínio das políticas agrícolas nacionais. 

As políticas agrícolas em conflito — as do Norte tais como se apresentam e as que o Sul poderia desenvolver (o que a grande maioria dos países em questão não faz ou faz muito pouco) — comportam inúmeras vertentes além das que se incluem nas rubricas "preços (ditos) do mercado mundial", "pautas aduaneiras" e "subsídios directos à exportação". 

Quanto à rubrica dos "preços mundiais", tem sido recordado com tanta frequência que esses "preços" nada têm de "preços verdadeiros" que nem valeria a pena voltar a repeti-lo aqui. Muito pelo contrário, trata-se de preços marginais por excelência, entre outros motivos porque o comércio mundial dos produtos agrícolas e alimentares apenas incide sobre uma pequena fracção das produções (aproximadamente 10 %) e porque, em consequência, o impacto do conjunto das políticas agrícolas imprime a esses "preços" o carácter de preços à margem, não representativos dos custos reais. São produto de situações circunstanciais variáveis, o que é comprovado pela sua extrema volatilidade. Mais uma vez, a qualificação de "preços verdadeiros", com que os liberais e a OMC ornamentam esses preços, não se baseia realmente em nenhuma análise científica, permitindo todas as manipulações políticas que se queiram fazer. 

Mas devem ser tidas em conta outras vertentes das políticas agressivas do Norte. O supermonopólio que as empresas capitalistas agrícolas se propõem reforçar em seu proveito a pretexto da "protecção da propriedade intelectual e industrial", impondo sementes seleccionadas fabricadas pelas firmas deste sector, deve ser rejeitado activamente em bloco sobretudo pelos países do Sul. De resto, essa questão constitui apenas uma das muitas facetas do grande problema da ecologia e do ambiente. As práticas defendidas pelos liberais neste domínio vão da pilhagem pura e simples dos conhecimentos seculares acumulados pelos camponeses do Sul, à destruição da biodiversidade e ao apoio a opções cujos perigos a prazo podem ser gigantescos (os OGM, por exemplo). 

Sejamos claros: os Americanos, os Europeus e os outros têm perfeitamente o direito de elaborar as políticas nacionais ou comunitárias que desejarem, têm o direito de proteger as suas indústrias e a sua agricultura, têm o direito de instaurar os sistemas de redistribuição dos rendimentos que considerarem ajustados às suas exigências de solidariedade social. É certo que, nesse espírito, o debate e as lutas políticas das suas sociedades visam ou poderão visar construções políticas eventualmente diferentes. Isso está implícito no elementar conceito de democracia. 

Reclamar o desmantelamento dessas políticas em nome de um liberalismo mítico que nunca existiu nem existirá não tem rigorosamente qualquer sentido. Vai-se exigir que os países avançados se ajustem por baixo, sobre níveis de educação, de formação e de capacidade de investigação e de inovação menos avançados? Sob pretexto de que a sua vantagem nesses domínios lhes dá vantagens no comércio mundial? 

Apesar de ser a que nos é "recomendada" pelo Banco Mundial e por outros, provavelmente precisamente por ser ineficaz, a estratégia dominante, infelizmente escolhida pelos governos do Sul, de exigir que o Norte "jogue o jogo do liberalismo", não tem sentido, pois o "verdadeiro liberalismo" nunca existiu, a não ser como abstracção. 

COMPETITIVIDADE DAS EMPRESAS OU COMPETITIVIDADE DAS NAÇÕES? 

REABILITAR O DIREITO À PROTECÇÃO E ÀS POLÍTICAS NACIONAIS OU REGIONAIS. 

O discurso liberal entende por competitividade exclusivamente a das empresas, quer se trate de explorações agrícolas, de firmas industriais e comerciais ou de empresas de serviços, ou quando muito a competitividade dos diferentes ramos da economia (agricultura cerealífera, indústria automóvel, etc.), mas ignora o único conceito de competitividade autêntico, o das Nações (dos seus sistemas produtivos), a qual determina amplamente (embora não integralmente) a dos ramos e das empresas. Por conseguinte, a montante das diferenças de competitividade das empresas deste ou daquele ramo de actividade, temos as que diferenciam as Nações. Por ser estática nos seus fundamentos, a chamada teoria das vantagens comparativas em matéria de comércio internacional ignora a dinâmica das transformações que afectam a competitividade das Nações e portanto a sua posição na hierarquia do sistema mundial. 

Ora, a competitividade desigual das Nações é precisamente o produto dessas "despesas públicas" de todos os tipos que dão forma ao quadro em que operam os produtores (infra-estruturas, qualidade da formação, capacidades de inovação técnica, etc.) assim como o quadro que associa os sistemas de produção e os sistemas de distribuição dos rendimentos e a sua redistribuição, sabendo-se que essas duas dimensões do mundo realmente existente são inseparáveis da mesma forma que o são a economia e a política (sendo esta entendida como o conjunto das relações de força entre os diferentes parceiros sociais e as lutas conduzidas para as transformar). 

Examinou-se acima a importância das despesas públicas relativas à agricultura dos países do Norte. É contudo útil recordar também que o volume global dessas despesas públicas parece muito menos considerável se comparado com as efectuadas noutros domínios. Por exemplo, só por si as despesas militares directas representam mais do dobro das ajudas à agricultura, tendo ultrapassado os 600 mil milhões de dólares (dos quais quase metade cabem aos Estados Unidos), a que é preciso acrescentar as gigantescas ajudas de que beneficiam as indústrias de armamento em causa e indirectamente certas produções civis (em especial aeronáutica, espacial e informática). São ainda mais impressionantes os volumes das despesas públicas afectadas ao conjunto das infra-estruturas com impacto nas condições e na eficácia da produção em todos os seus segmentos. O mesmo se passa para os afectados às chamadas despesas sociais (educação e formação, investigação, saúde, segurança social), que condicionam em muito grande escala a "competitividade das Nações". 

Em suma, é bem conhecido que o conjunto das despesas públicas representa hoje em dia uma proporção muito forte do PIB dos países capitalistas desenvolvidos — não menos de 40 %. Este facto reduz a zero a credibilidade do discurso liberal baseado numa imaginária economia "sem Estado" ou quase! 

É nesse sentido que não há "preços verdadeiros" e outros que o não seriam: todos os "preços" são reais, traduzem uma realidade na qual a reprodução económica e a reprodução social são inseparáveis. 

Por sua vez, a competitividade desigual dos sistemas nacionais (ou no máximo dos sistemas regionais, quando estes atingem um importante nível de realidade) determina as relações internacionais e a estrutura da mundialização. Porque todas as Nações nela participam, não havendo nenhum país que, na época actual, e já há bastante tempo, esteja "fora da mundialização", se bem que nem todos beneficiem das vantagens de posições iguais dentro do sistema. Nesse sentido, uns são "agressivamente abertos" enquanto outros sofrem "passivamente a abertura" e, nesse sentido também, no conjunto das estruturas e das políticas nacionais, torna-se efectivamente impossível separar as que apenas afectariam as competitividades dos sistemas produtivos (e portanto dos ramos e das empresas), sem efeito sobre as relações internacionais, das que afectariam precisamente essas relações. 

Já na primeira metade século XIX, List tinha compreendido perfeitamente a natureza do desafio, fazendo a crítica das "vantagens comparativas" e percebendo que elas são construídas historicamente e não "determinadas" de uma vez por todas. A sua proposta ia muito além da "protecção das indústrias nascentes" e constituía uma primeira expressão do que desenvolvi, qualificando-o de "estratégia de desconexão", no sentido não de uma "saída autarcista da mundialização", mas da construção prioritária de uma política nacional (ou regional) capaz de melhorar a competitividade do conjunto do sistema produtivo e de segmentos escolhidos do mesmo e simultaneamente de definir as estruturas de "protecções" (na acepção ampla do termo e não exclusivamente pautais) em relação aos parceiros fortes (e por isso agressivos) do sistema mundial. Por outras palavras, o combate pela desconexão, entendida nesse sentido, é o combate por "outra mundialização" (diferente da preconizada e imposta pelo liberalismo, o qual apenas pode consolidar e aprofundar as "vantagens" dos mais poderosos). Por outras palavras, o que devemos reivindicar, para fazer face ao verdadeiro desafio, é o direito de fazermos o mesmo que os outros (os poderosos) sempre fizeram e continuam a fazer, apesar do discurso liberal que ignora essa realidade, ou seja, o direito à edificação de políticas nacionais e regionais eficazes e o direito de proteger essa edificação. 

O DISCURSO PSEUDOCIENTÍFICO DA OMC 

Por conseguinte, para além da mitologia liberal, os Estados capitalistas sempre intervieram e continuam a intervir na regulação da reprodução capitalista, nomeadamente pela importância das suas "despesas públicas". Essas intervenções são a tal ponto decisivas que imaginar um sistema económico capitalista (dito "de mercado") pretensamente "puro", que existiria por si mesmo, "sem Estado", se prende com uma mitologia que substitui a análise do capitalismo realmente existente pela de um sistema imaginário. 

O pensamento único dos nossos dias, dito "liberal", assenta na ideia absurda e mirabolante de que o sistema da "economia pura de mercado" teria o poder de nos revelar o que são os "preços verdadeiros" — das produções, por definição todas elas mercantis, dos "factores da produção" (salários, juros do capital, taxas de lucro), do câmbio externo —, ou seja, aqueles "preços" que garantiriam o "equilíbrio geral" numa economia de mercados desregulamentados generalizados, sem distorções provocadas pelas intervenções públicas, o que é na realidade completamente impossível. 

Por trás desse discurso pseudocientífico perfila-se um objectivo, que é legitimado pela sua embalagem ideológica: desregulamentar, ou seja, dar ao capital (que, por definição, está no posto de comando da vida económica das sociedades capitalistas) o poder exclusivo de decisão. Assim este, longe de expulsar o Estado da cena e de proibir as suas intervenções, escolhe as que lhe convêm, as que reforçam os seus meios de dominação da sociedade e maximizam os lucros que recolhe, e proíbe os outros, ou seja aqueles que reduzem os seus poderes e dão aos outros actores da vida social a possibilidade de defender, pelo menos parcialmente, os seus próprios interesses. 

Designadamente, a mitologia dos "preços verdadeiros" constitui o fundamento das "demonstrações" pseudocientíficas segundo as quais qualquer "protecção" em matéria de comércio internacional seria desfavorável à "maximização da satisfação dos consumidores". O simples termo de "protecção" torna-se tabu, sinónimo de irracionalidade, ou mesmo de estupidez. A "demonstração" procede de um método que reduz as sociedades, nacionais e mundiais, a um universo de "indivíduos" iguais. Interesses sociais colectivos de grupos, de classes e nações deixam de existir. Tal como todos os indivíduos que compõem uma nação são iguais (não há nem oligopólios, nem trabalhadores, mas apenas "produtores vendedores"), são-no também todas as nações. Raramente se terá desprezado a realidade com tanta indiferença, nomeadamente a desigualdade de "desenvolvimento" das nações e o facto de todas as sociedades ricas o serem apenas porque se protegeram e continuam a proteger-se com eficácia. 

RESPOSTAS ALTERNATIVAS NECESSÁRIAS 

Para além da análise, uma a uma, das questões na ordem do dia da OMC e da conferência de Cancum, e do seu tratamento específico, é inevitável uma visão alternativa de conjunto das políticas agrícolas do Norte e do Sul, e portanto das trocas comerciais mundiais. 

Nas suas condições, e mesmo que isso fizesse sentido, o que é de duvidar, os países do Sul não têm seguramente meios para fazer face aos desafios através da imitação das políticas agrícolas aplicadas no Norte: não têm os meios que lhes permitam "subsidiar" as suas produções agrícolas e é limitada a sua própria capacidade de redistribuição dos rendimentos, devido à modéstia dos níveis desses mesmos rendimentos e das finanças públicas. 

Isso não significa de modo nenhum que não precisem de ter a sua própria política de desenvolvimento agrícola, tendo simultaneamente em conta a exigência de acelerar o progresso da sua produtividade e de dominar as mudanças sociais, evitando a desintegração dos campos e o crescimento acelerado das populações a viver em bairros degradados. Tais políticas deverão igualmente integrar objectivos nacionais, a começar pela autonomia alimentar ao nível das nações e de regiões apropriadas. 

Evidentemente, as próprias políticas nacionais e/ou regionais propostas, e os próprios meios da sua protecção, deverão ser objecto de debates críticos tão transparentes quanto possível (isto é, que não mascarem, mas mostrem os interesses que servem), sendo objecto de debate político no sentido nobre da palavra. 

Nessa perspectiva, as diferentes formas de protecção poderão ser positivas ou prejudiciais. Uma protecção será prejudicial quando visa proteger actividades ineficazes (de fraca competitividade), mantendo-as na sua ineficácia, e será positiva quando protege processos de transformação que permitam a melhoria da eficácia (ou a redução da ineficácia) das actividades em questão. 

A escolha de uma estratégia, inscrita na lógica do discurso liberal, que visasse "desmantelar" os sistemas nacionais dos países dominantes, por forma a reforçar a nossa competitividade aparente nas trocas comerciais mundiais, estaria à partida condenada a um evidente e absoluto fracasso, ao mesmo tempo que certamente careceria de legitimidade. 

Em contrapartida, enfrentar o verdadeiro desafio que se coloca às nações do Sul passa, antes de mais, pela nossa própria vontade de construir políticas nacionais eficazes e de impor a sua protecção. É a única estratégia compensadora possível. 

Se o fizerem, os países do Sul têm não só o direito, como também o dever, de proteger essas políticas recorrendo ao conjunto mais conveniente de meios eficazes adaptados, através não apenas da escolha das pautas aduaneiras necessárias, mas ainda da eventual adopção de medidas quantitativas (contingentes e outros). Independentemente desses meios directos, a protecção do desenvolvimento da economia nacional implica indubitavelmente políticas nacionais coerentes em toda uma série de domínios, e antes de mais a gestão da moeda nacional e do câmbio. 

Estas ideias com vista a um projecto alternativo (a "altermundialização") começaram a ganhar aceitação e viram-se reflectidas nas trocas de opiniões registadas por ocasião da última Conferência dos Não Alinhados de Kuala Lumpur, em Fevereiro de 2003. 

Portanto, no domínio da gestão económica do sistema mundial, começam a tomar forma as linhas directrizes de uma alternativa que o Sul poderia defender colectivamente, dado que, neste aspecto, são convergentes os interesses de todos os países que o constituem. Temos nomeadamente: 

Começa-se a voltar à ideia de que as transferências internacionais de capitais devem ser controladas. 

Com efeito, a abertura das contas de capitais, impostas pelo FMI como um dogma novo do "liberalismo", visa um objectivo apenas: facilitar a transferência maciça de capitais para os Estados Unidos a fim de cobrir o défice americano crescente, ele próprio fruto simultâneo das deficiências da economia dos Estados Unidos e do desenvolvimento da sua estratégia de controlo militar do planeta. 

Os países do Sul não têm nenhum interesse em facilitar dessa maneira a hemorragia dos seus capitais e eventualmente as devastações causadas pelos ataques especulativos. 

Logo, deve ser posta em causa a submissão a todos os riscos do "câmbio flexível", consequência lógica das exigências da abertura das contas de capitais. Em seu lugar, a instituição de sistemas de organizações regionais que assegurem uma estabilidade relativa dos câmbios mereceria ser objecto de investigações e de debates sistemáticos no seio dos Não Alinhados e dos 77. 

De resto, na crise financeira asiática de 1997, a Malásia tomou a iniciativa de restabelecer o controlo dos câmbios e ganhou a batalha. O próprio FMI foi forçado a reconhecê-lo. 

Está de volta a ideia da regulamentação dos investimentos estrangeiros. 

Indubitavelmente, os países do terceiro mundo não tencionam, como aconteceu no passado com alguns deles, fechar as portas a quaisquer investimentos estrangeiros. Pelo contrário, os investimentos directos são solicitados. Mas as modalidades de acolhimento são de novo objecto de reflexões críticas a que alguns meios governamentais do terceiro mundo não são insensíveis. 

Em relação estreita com essa regulamentação, começa a ser contestada a ideia dos direitos de propriedade intelectual e industrial que a OMC deseja impor. Percebeu-se que essa ideia, longe de favorecer a concorrência "transparente" em mercados abertos, visava pelo contrário reforçar o monopólio das transnacionais. 

A dívida já não é somente sentida como economicamente insuportável, mas mesmo a sua legitimidade começa a ser posta em causa. 

Surge uma reivindicação que assume como objectivo o repúdio unilateral das dívidas odiosas e ilegítimas, assim como a criação de um direito internacional da dívida, digno desse nome, que ainda continua a não existir. 

Com efeito, uma auditoria generalizada das dívidas permitiria revelar uma quantidade significativa de dívidas ilegítimas, odiosas e mesmo por vezes devassas. Ora, só os juros pagos a título da dívida atingiram volumes tais que a exigência — juridicamente fundamentada — do seu reembolso anularia de facto a dívida em curso e mostraria claramente que toda esta operação é uma forma verdadeiramente primitiva de pilhagem. 

Para se chegar a esse ponto, a ideia de que as dívidas externas deveriam ser regulamentadas por uma legislação normal e civilizada, tal como se passa com as dívidas internas, terá de ser objecto de uma campanha integrada na perspectiva de fazer progredir o direito internacional e de reforçar a sua legitimidade. Como se sabe, é precisamente porque o direito é omisso neste domínio que a questão só é regulamentada por relações de força selvagens. Essas relações permitem então fazer passar por legítimas dívidas internacionais que, se fossem internas (ou seja, em que o credor e o devedor pertencem à mesma nação e estão sujeitos à sua justiça), levariam o devedor e o credor perante os tribunais por "associação de malfeitores". 

Por último, muitos dos países do Sul começam de novo a compreender que não podem passar sem uma política nacional de desenvolvimento agrícola, que tenha em conta simultaneamente a necessidade de proteger as sociedade camponesas das consequências devastadoras da sua desintegração, acelerada sob o efeito da "nova concorrência" que a OMC quer promover neste domínio, e a necessidade de preservar a segurança alimentar nacional. 

Em conclusão, há que sublinhar a importância da reconstrução de um quadro institucional que permita recriar a solidariedade do Sul. Isso reforçaria consideravelmente a sua capacidade de conduzir os combates necessários tanto no seio da OMC (uma vez que os Estados do Sul escolheram participar nesta instância), como das outras instituições de gestão da mundialização (o FMI em especial). Sem excessivas ilusões sobre essas instituições, que foram moldadas pelas potências dominantes expressamente para reforçar os seus meios de dominação e de maneira nenhuma para dar mais possibilidades ao desenvolvimento, o qual nunca foi um conceito reconhecido pela ideologia liberal. 


Notas de rodapé:

(1) Bernard Founou-Tchuigoua é Director de Investigações do Fórum do Terceiro Mundo, no Senegal. (retornar ao texto)

Inclusão: 15/06/2021