Silvério Fontes, pioneiro do marxismo no Brasil

Astrojildo Pereira

abril de 1962


Fontes para a tradução: revista Estudos Sociais, v. III, n. 12, abril de 1962, p. 404-419.

Transcrição: Vinícius Azevedo.

HTML: João Victor Bastos Batalha.

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Repetidas tentativas foram feitas, entre nós, desde os primórdios da República, visando à organização da classe operária em partido político independente. A história dessas tentativas ainda está por fazer. O que há, até agora, ao que saibamos, são indicações e dados dispersos, atinentes sobretudo ao Estado de São Paulo(1). E afinal a história pouco terá de contar, pois foram tentativas malogradas, e certamente malogradas por imaturidade das próprias condições em que surgiu e se formou a classe operária brasileira. Segundo estatísticas conhecidas, até 1905 era extremamente baixo o número de estabelecimentos industriais, pequenas fábricas quase sempre existentes no País. O censo de 1920 mostra-nos que mais da metade do capital empregado na indústria brasileira, até então, datava dos anos que se seguiram a 1905. Para ponto de comparação, basta observar que em 1920 o número de operários fabris em todo o País mal alcançava a cifra de 300.000, e não iria além de um milhão e meio o total de trabalhadores assalariados, inclusive transporte, comércio, etc. (excetuando-se apenas os assalariados agrícolas), isto numa população de 30 milhões de habitantes.

O primeiro Congresso Socialista Brasileiro foi instalado no Rio de Janeiro, a 1º de agosto de 1892, sob a presidência de Luís da França e Silva, líder operário de considerável influência no tempo. Desse primeiro congresso, entretanto, nada restou de positivo. Mas depois, e mesmo antes, surgiram aqui e ali, principalmente no Rio, em São Paulo e no Rio Grande do Sul, vários círculos operários de tendência socialista ou anarquista, e ainda uma série de pequenos jornais, publicações efêmeras dedicadas à defesa dos trabalhadores, muitas delas redigidas em italiano, espanhol ou alemão – o que se explica pela predominância da imigração estrangeira. O mais antigo dos círculos declaradamente socialistas foi, ao que parece, o de Santos, constituído em 1889 por Silvério Fontes, Sóter de Araújo e Carlos de Escobar. Este grupo elaborou um Manifesto Socialista ao Povo Brasileiro, datado de 12 de dezembro de 1893, o qual no entanto só seria publicado na imprensa cerca de treze anos depois(2).

No Rio de Janeiro havia em 1890 o Centro das Classes Operárias, que teve duração relativamente longa, embora com intervalos de inatividade. Era uma organização de caráter local, mas exercendo certas atividades de ordem geral, como foi, por exemplo, o movimento contra dois artigos do novo Código Penal, elaborado já na vigência da República, artigos esses que configuravam a greve como crime, condenando penas contra os grevistas(3).

O Dia do Trabalho foi comemorado pela primeira vez no Brasil em 1º de maio de 1895, por iniciativa dos socialistas de Santos. Segundo Linhares, em cujo livro lemos essa informação, levantou-se nessa oportunidade a ideia da organização de um partido socialista nos moldes do Partido Socialista Francês: “A ideia germinou e, nesse mesmo ano, cerca de 400 delegados operários e intelectuais fundaram, no Rio, o Partido Socialista Operário, cuja vida foi efêmera”(4). Linhares não nos diz onde colheu a notícia, nem acrescenta qualquer outra informação sobre o assunto, mas não é demais supor que há grande exagero nessa quantidade de 400 delegados; de qualquer forma, ainda uma vez a tentativa falhou.

Alguns anos depois, nova tentativa, que já representou certo avanço em relação a 1892 e 1895: o Segundo Congresso Socialista Brasileiro, reunido em São Paulo durante os dias de 28 de maio a 1º de junho de 1902. Mais de cinquenta delegados participaram de suas sessões e debates, e entre eles notamos o nome do já então veterano Silvério Fontes. A tarefa principal realizada pelo Segundo Congresso consistiu na aprovação do estatuto e do programa do novo Partido Socialista Brasileiro. Mas também este não conseguiu firmar-se, faltando-lhe condições de sobrevivência no plano nacional, e mal chegou a completar uns dois anos de alguma e decrescente atividade, assim mesmo confinada aos limites estaduais.

Dos círculos operários e centros socialistas que se criaram durante a primeira década republicana, em várias cidades do País, principalmente na região Centro-Sul, o que mais se destacou, por sua organização e orientação, foi, sem dúvida, o Centro Socialista de Santos, fundado em 1895 por Silvério Fontes e seus companheiros do círculo de 1889.

Além de conferências semanais, em que se fazia a “exposição do socialismo científico”, o Centro Socialista de Santos editou um quinzenário – A Questão Social, cujo primeiro número apareceu em 15 de setembro de 1895, publicando-se com alguma regularidade durante cerca de um ano. Eram seus diretores os mesmos fundadores do Centro: Silvério Fontes, Sóter de Araújo e Carlos de Escobar, e em suas páginas encontramos material de grande interesse para a história das ideias socialistas no Brasil – artigos originais e traduzidos, notas e notícias de caráter local, nacional e internacional.

No artigo de apresentação do novo órgão, dizia-se o seguinte:

Apresenta-se hoje na arena jornalística A Questão Social defendendo uma causa justa – a reivindicação dos direitos do proletariado. Na Europa, onde o socialismo chegou a seu período de maturação histórica, a propaganda vai fazendo grande proselitismo. Ali, como na América do Norte, não se confunde a doutrina, que já entrou em sua fase positiva, nem com a república, como a ensinou Platão, nem com a utopia, como a idealizou Tomás Morus. Resultado de estudos acurados duma plêiade de pensadores, representando o primus inter pares [o primeiro entre iguais] Karl Marx, o socialismo encontrou, principalmente na Alemanha, sua base científica. Não queremos dizer com isso que o problema social seja uma reforma exclusivamente econômica; que o socialismo seja unicamente uma questão de ventre. É incontestável que deve ocupar o primeiro lugar a transformação econômica, pois dela nascerá a principal reivindicação proletária. Entretanto, forçoso é confessar que as aspirações humanas devem ser integralizadas e a questão social passa a ser complexa. Isto é, tanto literária como filosófica, tanto afetiva como estética, tanto moral como política. E seremos nós indiferentes ao estudo desses problemas, quando talentos de primeira ordem tanto se têm preocupado com a sua difícil solução? Entre nós, as condições atuais, não nos permitem encarar o socialismo como medida que se imponha por uma agitação revolucionária. Desfraldando a bandeira do coletivismo reformista, propõe-se A Questão Social, sem paixões, que considera antagônicas à ideia de progresso, a lutar tenazmente para que sejam mais rápidos os efeitos do movimento evolucionista científico, que deve dar em resultado a nova organização da Sociedade. Por maiores que sejam as preocupações dos excessivamente tímidos e as apreensões dos privilegiados, a repercussão no Brasil, das ideias que se agitam no velho mundo há de ser fatal, a bem dos interesses gerais da coletividade. Oxalá, o esforço que ora fazemos, pugnando pela implantação de doutrina regeneradora, encontre eco em todos os que compreendem o alcance das ideias altruísticas, em todos os que combatem pelo nivelamento das classes, entrando com o contingente de sua colaboração para que se levante, em breve, o majestoso edifício da solidariedade e da justiça sociais(5).

Silvério Fontes foi o provável redator da apresentação do periódico. Sua linguagem é a linguagem comum à maior parte dos publicistas socialistas do tempo. Engels havia falecido precisamente nesse ano de 1895, e socialista de direita Benoit-Malon era considerado um mestre, inclusive no Brasil. Nem devemos perder de vista as condições brasileiras existentes nos primeiros anos da República, o País mal saído de um regime econômico baseado no trabalho do braço escravo. Mas o fato de nomear Karl Marx como o primus inter pares entre os pensadores socialistas era um bom indício a favor do articulista e da orientação que ele buscava imprimir ao periódico e à atividade do Centro Socialista. Em outro artigo, assinado com o seu próprio nome e publicado num dos últimos números de A Questão Social, Silvério Fontes esclarece melhor sua posição relativamente ao Marxismo, como se pode ver no seguinte passo:

Se cada socialista deve levar uma pedra para o novo edifício social, o Centro de Santos sente-se satisfeito de ter iniciado, entre nós, a propaganda da doutrina reformadora, estribando-se na trilogia marxista: interpretação materialista da história, determinismo econômico e luta de classes.

A rigor, podemos ainda criticar a formulação: mas quem escrevia melhor do que isso no Brasil daquele tempo? De resto, o que mais importa aqui assinalar é o importante papel desempenhado por Silvério Fontes na divulgação das ideias socialistas de tendência marxista em nosso País. Ele foi, certamente, nesse sentido, o mais esclarecido, o mais avançado, o mais abnegado dos propugnadores do socialismo que as condições brasileiras podiam ter suscitado entre nós. Foi, sem dúvida, um estudioso e entusiasta de Marx. Foi o primeiro socialista brasileiro de tendência marxista.

Silvério Fontes nasceu em 1º de fevereiro de 1858 na cidade de Aracaju, capital da então província de Sergipe. Fez os estudos primários e parte dos secundários na terra natal, vindo completá-los no Rio de Janeiro, matriculando-se na Faculdade de Medicina da capital do Império. Estudante pobre, lecionava geometria e latim para poder manter-se e pagar o curso médico. Formou-se em 1880, elaborando para o doutorado a tese A Microbiologia, baseada na obra de Pasteur, primeiro trabalho aparecido no Brasil sobre a matéria. Seguiu em 1881 para Santos, onde iniciou sua fecunda carreira de médico e de combatente das causas populares, e de onde não mais se retiraria(6) . Era aquele um momento de crescente agitação política e social em todo o Brasil. A campanha abolicionista e a propaganda republicana se desenvolviam de maneira irresistível. E a cidade de Santos era notoriamente um dos centros abolicionistas e republicanos mais combativos do País. O Dr. Silvério Fontes, médico ligado por sua própria profissão aos sofrimentos do povo e, além disso, por sua formação científica, naturalmente inclinado à adoção das ideias democráticas mais avançadas, tornou-se desde logo ardoroso propagandista da Abolição e da República. Fundou um jornal de combate – Evolução, norteado pelos princípios positivistas de Comte, de que era adepto.

Casou na família Francisco Martins dos Santos, chefe abolicionista de grande prestígio. Fez-se amigo de Silva Jardim e de Martim Francisco, este último parente de sua esposa. Decretada a Abolição e proclamada a República, já o Dr. Silvério Fontes, aos trinta anos de idade, era uma personalidade de relevo, gozando de grande popularidade como médico e como político.

Sua formação materialista facilitou a abordagem das questões sociais, a cujo estudo se consagrou com agudo espírito científico e ao mesmo tempo com os sentimentos de solidariedade humana, apurados pelo exercício da medicina entre as camadas mais pobres da população. Sua passagem do positivismo ao socialismo científico teria sido relativamente fácil, um passo à frente em suas concepções acerca das leis que regem o desenvolvimento da sociedade. O círculo socialista de 1889, fundado quando Silvério Fontes e seus companheiros não se haviam ainda desprendido totalmente do comtismo, foi uma primeira etapa no caminho que levaria à fundação do Centro Socialista, em 1895, já com pronunciada tendência marxista, e cuja influência, por isso mesmo, viria a ser das mais profícuas na formação e divulgação da ideologia socialista em nosso País.

Como se pode facilmente calcular, o Centro Socialista teve que lutar duramente contra as condições adversas do meio em que desenvolvia sua atividade, e acabou cedendo, como organização regular, à pressão de tais condições. A Questão Social suspendeu a publicação e o Centro cerrou as portas. Mas Silvério Fontes e seus companheiros não ensarilharam as armas; continuaram a batalha sob formas diferentes, à espera de melhores dias. Mantiveram-se em contato com os grupos e centros socialistas de São Paulo e do Rio de Janeiro, entre os quais ganhava corpo igualmente a ideia da criação do Partido Socialista em âmbito nacional.

Em 1900, por iniciativa de socialistas italianos e brasileiros residentes em São Paulo, fundou-se o jornal Avanti!, redigido em italiano e português; o nome de Silvério Fontes figura entre os seus colaboradores. Veio depois, em 1902, o Segundo Congresso Socialista Brasileiro, organizado pelo grupo do Avanti!, com a seguinte ordem-do-dia: 1) declaração de princípios (programa máximo); 2) organização econômica: industrial e agrícola; 3) organização política; 4) órgão oficial do partido; 5) programa mínimo; 6) fixação do futuro Congresso.

Entre os mais destacados participantes do Segundo Congresso encontramos Silvério Fontes, autor da parte doutrinária(7) do Manifesto que o Conselho-Geral do Partido Socialista Brasileiro publicaria pouco depois, em página inteira de O Estado de São Paulo (28 de agosto de 1902). Trata-se de importante documento, que reproduzimos a seguir, em apêndice.

Tais, em resumo, os dados biográficos que pudemos colher, até 1902, sobre essa admirável figura que foi o Dr. Silvério Fontes, pioneiro do marxismo no Brasil.

Sua vida prolongou-se todavia por muitos anos ainda, vindo ele a falecer já depois dos setenta anos de idade, em 27 de junho de 1928. Manteve-se firme em suas convicções até o fim, e a todos que o procuravam dizia: “A revolução social está em marcha no mundo inteiro e a sua vitória será para breve”.

Sabemos ainda que depois de 1922, fundado o Partido Comunista, deu-lhe o Dr. Silvério Fontes a sua adesão. Reconhecia assim, no PCB, o legítimo herdeiro e continuador dos velhos combatentes que desde os primórdios da República haviam desfraldado em terras do Brasil a bandeira do Socialismo.

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PARTIDO SOCIALISTA BRASILEIRO

O Conselho Geral do Partido aos habitantes do Brasil, especialmente aos proletários

MANIFESTO

A história das sociedades humanas, desde que se constituíram e começaram a evolver, é a história mesma da luta de classes; e esse pautar incessante resultou, com o decorrer dos tempos, a eliminação de algumas dessas classes, podendo-se atualmente considerar que somente duas permanecem, extremadas em campos adversos, inconciliáveis em seus interesses: tais são a classe da burguesia e a classe dos assalariados.

Na primeira alistam-se os indivíduos que, dispondo dos meios de produção (terras, minas, máquinas, fábricas, transportes, capital-moeda), se apropriam duma parte do trabalho dos outros, infelizmente a grande maioria, que não possuem tais elementos.

Na segunda classe aglomeram-se os operários ou trabalhadores, que, se dispondo de sua força muscular ou de suas aptidões intelectuais, se veem compelidos, pela necessidade primordial de viver, a ceder sua força de trabalho por uma vantagem ou compensação inferior à que eles próprios produzem.

É bem de ver que certos grupos existentes no organismo social e que durante algum tempo foram, e ainda hoje são, erroneamente, tidos como classes distintas (como o clero, a magistratura, a milícia, o funcionalismo público civil, os legisladores e outros, que exercem certas profissões liberais), estudados em sua estrutura e vida íntima, não passam de instituições criadas e mantidas pela burguesia, para a defesa de seus interesses, e os indivíduos que as constituem são arrebanhados em ambas as classes, mormente na dos expropriados.

É intuitivo que – se uma classe – a burguesia – vive à custa de outra, a do operariado, – porque o capital, sob qualquer de suas formas, nada produz sem o trabalho, – hão de achar-se em contraposição de interesse; e daí a animosidade, as prevenções, os conflitos repetidos, a luta, enfim, permanente.

Enquanto o desenvolvimento agrícola, comercial e industrial não ultrapassou certa órbita, convertendo-se, afinal, em monopólio do capitalismo, e em armas mortíferas contra as classes trabalhadoras, essas indisposições, essas prevenções mantiveram-se latentes, sob a aparência de harmonia entre operários e patrões, coexistindo num regime quase patriarcal. Desde, porém, que a esses três ramos de aplicação da atividade humana, exercidos em pequena escala, vieram dar maior expansão os progressos científicos, as portentosas invenções mecânicas – surgiram as grandes oficinas, a divisão do trabalho, a maior facilidade das comunicações e a enorme extensão das trocas comerciais. Desapareceu então aquele modus vivendi entre pequenos burgueses e assalariados; e prorrompeu franco, intenso, cada vez maior, o antagonismo entre as duas classes, cada uma procurando haurir da outra a maior soma de interesse, de bem-estar próprio.

Se, por um lado, o assalariado, na inferioridade de sua posição a respeito do patrão e na escassez de meios para subsistir, esforça-se por que seu labor vá sempre diminuindo mas seja sempre melhormente retribuído, por outro lado o patrão, o dono do capital, somente cuida de obter do assalariado a maior soma de trabalho por um prazo cada vez mais restrito. Se ao primeiro pouco importa que o patrão sofra com a concorrência de seus colegas, os antes seus rivais na produção, também ao patrão pouco importa que o salário pago (quando pago!...) ao seu operário lhe chegue para as mais urgentes necessidades da vida; – que de conforto, e menos de gozo, não se cogita. A indiferença com que o operariado, em geral, assiste às contrariedades e catástrofes sobrevindas aos patrões – salvo o desarranjo econômico que sofre com a inesperada suspensão do trabalho – corresponde bem à impassibilidade com que os patrões olham para as privações, os sofrimentos físicos e as torturas morais do assalariado, oriundas do próprio serviço, em que se lhe arruína a saúde ou se lhe extingue a vida, pelo excessivo labutar ou pelas deletérias condições higiênicas em que este é exigido – salvo sempre o pesar de perder uma boa máquina animada.

Uma e outra classe bem sabem que na solução das questões suscitadas entre elas, não prevalece – não entra mesmo em pequena escala – o sentimentalismo, nem o próprio espírito de humanidade, nem a justiça, nem a razão, mas somente a força ocasional, a violência ou a necessidade, para cada uma impor à outra o que mais convém à sua comodidade.

Contra a exploração dos patrões, a exigência dos assalariados: tal é a fórmula da luta hodierna, cada vez mais renhida quando irrompe, cada vez mais fácil de repetir-se quando apaziguada.

É assim que as greves, as manifestações mais significativas desse antagonismo social, estão a generalizar-se, sempre mais frequentes, mais imponentes pelo número, mais ameaçadoras pela resistência do operariado, respondendo à opressão, sempre maior, do capitalismo.

Países onde essas manifestações eram, até há pouco tempo, desconhecidas, inclusive o vocábulo que as designa, têm-nas visto explodir e alastrar-se de modo assustador, e por vezes múltiplos. Nem as têm podido evitar o obscurantismo dos governos, que, impulsionados pela necessidade de sua própria conservação, as procuram atenuar por meio de concessões paternalmente aconselhadas ou aparentemente impostas à burguesia, que os sustenta como delegação sua própria.

Dão em si mesmos um golpe, cautelosamente, ou ressecam prudentemente um de seus membros menos essenciais à vida, contanto que continuem a viver. Ceder de todo lhes parece o suicídio; e o poder não se suicida... senão quando sente que inevitavelmente vai morrer.

A compreensão, que o operariado adquire, da iniquidade de suas condições econômicas, desperta-lhe, por um estudo mais atento, a consciência da correlativa iniquidade das suas condições políticas, na sociedade em que vive – se não é antes um vegetar num tal viver.

Sempre, e é o caso geral, que essa classe deixa-se adormecer no indiferentismo para o movimento político, os governos, feitura da classe burguesa, não lhe curam dos sofrimentos, nem até lhe prestam atenção. Todas as concessões, todas as vantagens, todos os melhoramentos, com o rótulo de públicos, são a benefício, próximo ou remoto, da classe possuidora do capital, com detrimento dos explorados: e se estes tentam alguma resistência sob as intoleráveis angústias econômicas em que se estorcem, a intervenção do Estado, vera efígie da burguesia, é sempre no sentido de amparar os interesses dos espoliadores, privilegiados, seja embora preciso abafar sob as armas, contra os ditames da justiça e da moral, as queixas inaudíveis dos espoliados. Se alguma vez cedem, é por uma contramarcha, diante da maior força dos que clamam e ameaçam.

Tanto os mais profícuos movimentos políticos, em qualquer país, têm sua origem no mal-estar econômico do povo!

Dessa origem brotou a magna revolução do século antepassado, na França e com ela o alargamento das liberdades políticas no mundo civilizado, embora essa transformação fosse, desgraçadamente, desviada de sua diretriz pela burguesia, que, atraiçoando os direitos da plebe confiante, arrogantemente a converteu em instrumento de seu próprio interesse, pondo-a sob sua dependência, apropriando-se dos bens confiscados ao clero e à nobreza, ficando assim em desequilíbrio e contraditórios o regime político e o regime econômico criados pelo movimento revolucionário.

Passado esse momento histórico, reconhecendo sua ingenuidade e o abuso de que fora vítima, verificando a dupla causa de seu mal-estar, de sua degradação moral, intelectual e física, isto é, o antagonismo econômico e o consequente antagonismo político em que se acha com a classe burguesa, a classe operária veio a compreender, afinal, que para se libertar da opressão em que tem jazido, através do tempo e do espaço, servilizada à outra classe, que a desfruta, só um meio existe, lógico, fatal, inelutável: organizar-se em partido de classe, independente de quaisquer partidos de origem burguesa, e conquistar o poder político, como meio de realizar a emancipação econômica, estabelecendo, sob todos os aspectos, o regime da liberdade para todos, da igualdade entre todos, sem distinção de sexos, sem distinção de categorias, sem distinção de nacionalidades e raças, sem o preconceito de pátria, acidente puramente geográfico.

Inspirando-se nestes conceitos e intuitos, os socialistas do Brasil constituíram, por intermédio de seus representantes no segundo congresso socialista brasileiro, efetuado nesta capital, durante os dias 29 de maio a 1º de junho último, a comissão abaixo firmada, como centro de ação das diferentes agremiações em que se haviam já organizado, em várias circunscrições do país, os que professam a doutrina socialista mais adiantada; delegaram-lhe a incumbência de organizar, sob os pontos-de-vista econômico e político, o Partido Socialista Brasileiro, em harmonia com o socialismo científico, cujos princípios básicos foram naquele congresso adotados: e conferiu à mesma comissão, sob o título de Conselho Geral do Partido, a atribuição de fazer executar os programas máximo e mínimo, naquela reunião discutidos e votados, e que mais adiante vão inseridos.

Dando-lhes publicidade, apresentando-os ao critério das pessoas que no Brasil sejam capazes de um ligeiro esforço mental e de um impulso de generosidade – porque o tema socialista, em sua concepção genérica, é desses que se originam simultaneamente na razão e nos sentimentos afetivos, faltando por igual ao espírito e ao coração – o Conselho-Geral do Partido faz um apelo às duas diferentes classes, a dos possidentes e a dos despossuídos, em que a população deste país se acha dividida, como em toda parte, para que se compenetrem da urgente e indeclinável necessidade de atender ao que se passa nos outros países civilizados, com referência à questão social, que a muitos deles convulsiona e a todos está interessando profundamente.

Nem mais se suponha que no Brasil o socialismo não têm razão de ser, como apregoam, por insciência ou de má-fé, os que auferem ou pretendem auferir lucros da miseranda situação econômica e política em que o país se debate. É fácil de verificar-se, com o mais leve estudo comparativo, que as condições do povo brasileiro são as mesmas das nações atualmente mais trabalhadas pela crise econômica e política, que torna iminente, iniludível, uma transformação radical na existência de tais nações.

Aos dirigentes, aos que compõem a classe possidente e opressora, neste país, cumpre não cerrar os olhos à miséria, que transparece por toda parte, nem obturar os ouvidos ao clamor, que de toda parte se levanta; e a miséria é o mais persuasivo dos conselheiros, para um povo que não encontra justiça para as suas queixas!

Aos proletários, aos despossuídos e oprimidos, cumpre adotar a melhor vereda para realizar o ideal da sua libertação econômica, sem os abalos subversivos que se fazem sentir em outras regiões políticas, onde o espírito de tolerância não se tem podido infundir entre a classe espoliadora e a espoliada, pela inconsciência dos governos, e pela enormidade do sofrimento da massa popular, explorada, até em sua ignorância, em proveito da minoria detentora de capital.

Sem ater-se a qualquer dos partidos burgueses que se batem pela conquista do poder – monarquistas, republicanos radicais ou conciliadores, dissidentes ou governistas –, o Partido Socialista Brasileiro não procura o auxílio desta ou daquela facção, não se inclina para nenhuma delas, porque na amplitude do seu programa cabem todas as aspirações tendentes ao melhoramento moral e material da coletividade brasileira, sobre a base de uma organização econômica mais justa, substituindo o individualismo premente e impiedoso que se sobrepõe à grande maioria popular.

O genial poeta das misérias humanas, Victor Hugo, que, aliás, não olvidara de todo suas raízes burguesas, já dissera, no Congresso da Paz e da Liberdade, em Lausanne, em 1869:

«O socialismo dirige-se a todo o problema humano; abrange a concepção social, toda inteira.

Ao mesmo tempo que estabelece a grande questão do trabalho e de salário, proclama a inviolabilidade da vida humana; a abolição do assassínio sob todas as formas, a reabsorção da penalidade pela educação; proclama o ensino gratuito e obrigatório; proclama os direitos da mulher, essa igual ao homem; proclama o direito da criança, essa responsabilidade do homem; proclama, enfim, a soberania do indivíduo, que é idêntica à liberdade».

Do partido socialista devem, pois, fazer parte todas as pessoas que, por sentimentos humanitários, ou pela razão, estejam convencidas de que a felicidade do indivíduo está na proporção direta do bem-estar econômico de todos os membros da sociedade. E a lógica aplicação do princípio filosófico do determinismo, de que o verdadeiro e mais fino modo de ser-se egoísta, é tornar-se completa e francamente altruísta.

Para alcançar-se esse bem-estar coletivo não há que esperar das velhas fórmulas – monarquia ou república burguesa – simples modalidades do regime capitalista, aplicado à política.

Tampouco satisfazem as filosofias dogmáticas, inadequadas à necessidade prática de extirpar a miséria, corrosiva da trama íntima das sociedades, continuando o povo, a grande mole das nacionalidades, a viver sem instrução, sem pão e sem trabalho, na abjeção física e moral, para maior facilidade do predomínio do capitalismo.

O célebre desenvolvimento das ciências positivas, especialmente da mecânica, trazendo em suas engrenagens a socialização do trabalho, no mesmo tempo que a concentração do capital, aumentando, cada dia mais, o número e a miséria dos proletários, ao passo que diminui o número mas aumenta o poder dos detentores do capital – impõe, como necessidade inadiável, o estabelecimento duma sociedade mais igualitária, mais sábia, mais fraternal, mais humana, firmada no Trabalho e na Justiça, únicos fatores capazes de proporcionar a felicidade comum ou social.

No partido socialista brasileiro, nesta nova cruzada promovida contra os preconceitos que formam da comunhão brasileira um agregado heterogêneo de castas, raças, hierarquias, segundo os acidentes do nascimento, cor da epiderme e posição monetária: nesta nova legião reformadora devem alistar-se nacionais e estrangeiros, homens e mulheres, pretos e brancos, ricos e pobres, sábios e analfabetos, porque o socialismo é a emancipação humana, sem distinção de proveniências e de condições criadas pela injusta organização social vigente.

Ao brasileiro, porém, mais que a nenhum outro, seja republicano ou monarquista, compete colocar-se à frente do movimento, já que tão atrasado se tem deixado ficar; ao brasileiro, cujo coração é reconhecidamente tão afetivo, tão altruísta, e cujo espírito é tão grande e tão rico de ideias liberais, como é grande e rica de elementos de vida a região em que nasceu, acariciadora e generosa a natureza que o cerca.

Aos monarquistas, que desde a proclamação da atual República, não mais têm podido interferir nos públicos negócios, a não ser por adesões desonestas, cabe, razoavelmente, abandonar o atavismo do sistema em que formaram seu espírito em completa contradição com o supremo ideal da liberdade, para virem colaborar franca e lealmente na obra da redenção humana, que é a libertação econômica da sociedade.

Seja-lhes exemplo e estímulo nobres o que vão fazendo os mais adiantados governos monárquicos da Europa, como na Inglaterra, na Alemanha, na Bélgica, na Itália e na Espanha, os quais se resolveram, por fim, a escutar os reclamos da classe assalariada, obrigando os patrões a adotar certas reformas no sistema do trabalho, e medidas mais humanitárias em relação à segurança de vida e saúde do operariado, assim predisposto os elementos para a almejada reforma social, em rápida evolução.

É de recentíssima data o procedimento do atual gabinete italiano, declarando, da tribuna parlamentar, por um de seus membros mais prestigiosos, que «a ideia republicana estava morta em face do socialismo, que simboliza a justiça; e por isso o governo reconhecendo e acatando a necessidade de reformas sociais, decidira-se a realizar as que exigia o programa mínimo do partido socialista (igual ao nosso programa), programa, disse ele, mais justo e mais radical que o republicano, porque beneficia a todos os membros da sociedade».

Aos republicanos sinceros do Brasil, os que não reconhecem nesta república a instituição que sonhavam e que propugnavam, só cabe afastar-se da farsa em que têm vivido, de restabelecimento de um regime que já não pode mais orientar-se para a direção em que esteja o salvamento geral.

Suas boas intenções, não as puderam realizar quando passaram pelo poder. Que esperam agora, do caos, da miscelânea política em que se esforçaram os destinos deste país?

Que esperam ainda dos incolores governos que se vão seguir, e das oligarquias que se formam, se sucedem e se refundem, para a alternante substituição de seus membros no poder?

Não será com panaceias tais, sob o título de monarquia, que é essencialmente burguesa, ou de república, como a temos funcionando, burguesmente organizada, que se hão de empreender e levar a termo as reformas de que o povo carece, especialmente na ordem econômica, para o seu bem-estar.

Essas reformas só poderão provir, com o mínimo possível de comoções violentas, do Socialismo que se faz representar pelo partido ora em adiantada organização, e para a qual devem concorrer todas as pessoas de sentimento e de razão bem equilibrados, capazes de compreender e querer realizado o ideal da perfectibilidade nas agremiações humanas, em que todos sejam por um e um seja por todos.

A própria classe burguesa, possuidora do capital, se mais profundamente reparasse para a injustiça de suas relações econômicas com a grande massa explorada em seu trabalho, adviria a autossugestão de, no seu próprio interesse, colaborar no movimento reformativo, deixando o individualismo exclusivista em que se há colocado, para preservar-se de um cataclismo inevitável, só dependente do tempo, qual é a reação reivindicante que a miséria sofrido; e a miséria no Brasil já se vai mostrando, em sua figura trágica e ameaçadora, às portas da grande classe dos assalariados tanto manuais como intelectuais!...

Desde que os defensores do capital compreendam que neste não é que consiste a felicidade e a segurança de sua classe, porque o milionário de hoje pode amanhã despertar aturado na miséria, não lhes será difícil a convicção de que, filiando-se à doutrina eminentemente filosófica e humanitária do socialismo, deverão contribuir, como parcela da coletividade humana, para a felicidade de todos. Quando não os propulsione o coração, basta que os inspire a razão.

Melhor ser-lhes-á não contrapor-se à onda, que é irreprimível no seu estuar crescente, mas antes acompanhá-la, incorporar-se-lhe, e trabalhar de boa mente para a implantação do verdadeiro princípio da igualdade, numa sociedade em que impere a consciência da solidariedade humana.

Especialmente aos pequenos burgueses, aos medianos capitalistas, convém atentar para estas verdades.

A multiplicidade e alargamento dos mercados no mundo, a centralização dos grandes capitais em um número cada vez menor de afortunados monopolizadores, a imensa produção concentrada, subordinam paulatinamente, e afinal arruinarão, os medianos e pequenos produtores.

«A grande indústria é a lei da produção moderna», disse Jaurès.

Onde mesmo os pequenos lavradores, os pequenos comerciantes, os pequenos industriais não diminuem de número, perdem de importância no conjunto da produção, e tornam-se dependentes do grande capital; verdadeiros prepostos dos grandes industriais, dos grandes negociantes, dos grandes proprietários, dos grandes capitalistas, em suma.

Até os pequenos proprietários rurais, que supõem talvez escapar à ruína conservando por mais tempo sua autonomia, estão sujeitos às forças esmagadoras do mercado universal, manejado, sem eles e contra eles, pelo capitalismo, e ficam à mercê das grandes indústrias ou dos grandes intermediários, que dominam e tributam o trabalho agrário.

«É, disse ainda Jaurès, a oligarquia do capital, que possui, dirige, administra, explora, enfim».

Nesta marcha, continua, regular, impossível de deter, onde irão parar esses pequenos e médios industriais, comerciantes e agricultores, senão no pauperismo, que se lhes avizinha?

O próprio capitalismo reconhece a desordem do atual regime da produção e o procura regulamentar a seu jeito, em seu benefício, instituindo os sindicatos, as grandes companhias, e ainda fundindo essas instituições nos monstruosos trustes, verdadeiros molochs da produção, elevando cada vez mais o domínio e o monopólio do capital.

São – para exemplificar – os trustes do aço; são os do petróleo; os das ferrovias, e agora, nestes últimos dias, o da navegação, aterrorizando as nações mais poderosas.

Está bem patente o perigo, que ameaça absorver os pequenos e os médios produtores de hoje, cada dia mais ameaçados, mais perto do proletariado, e da miséria, diante do capital absorvente.

A esses impõe-se o estudo da questão socialista e sua adesão ao partido que tende a nivelar no mesmo pé de igualdade todos os produtores, socializando os meios de produção, já que socializado vai sendo em larga escala o trabalho, e coletivas se vão tornando as forças produtoras.

A nenhuma classe, porém, impõe-se mais urgentemente o estudo e a adesão aos princípios socialistas do que à classe dos proletários, a dos assalariados em geral, quer sejam os que mourejam com sua atividade física, com seu esforço muscular, quer os que empregam suas faculdades mentais – quer os operários manuais, os artífices, quer os intelectuais; que todos, mais ou menos inconscientemente, aí vivem a sacrificar suas forças vitais ao bem-estar da minoria capitalista.

A esses, mais que aos outros, incumbe a tarefa de cogitar incessantemente de sua mísera sorte atual, e do modo de remediá-la, progressivamente, até atingir os últimos graus da transformação social, por meio de reformas, que devem, ao princípio, solicitar de seus patrões, e depois impor-lhes por meio eficaz, quando não encontrem a devida aquiescência – sem perder de vista o lema axiomático de Karl Marx, de que «as reformas em benefício dos assalariados só por estes devem ser feitas». Porque só estes as podem fazer equitativamente; porque só estes sentem e melhor compreendem o conflito existente entre as forças produtivas e a forma de produção, conflito cujo reflexo, dos fatos ao pensamento, é o Socialismo, na elevada frase de Frederico Engels.

Condenados à eterna dependência do patronato, que lhes faz o preço ao trabalho, ainda, por demasia, os proletários industriais vivem sujeitos às crises contínuas de suspensão de serviço, e, portanto, à fome e à miséria, resultantes da desregrada concorrência das grandes fábricas capitalistas, da frequente renovação dos maquinismos, das repentinas transformações e deslocamentos da indústria, da desmedida ambição dos grandes manipuladores do capital, em formidável competência entre si, cada qual no afã de produzir mais, para render mais, para ganhar mais, até esbarrarem-se na superprodução.

Esta superprodução gera a estase ou estagnação do produto, a parada de serviço, a dispensa do inculpado pessoal, que aí vai aumentar a numerosa reserva dos que, não tendo quem lhes compre a força produtiva, não têm mais pão, não podem mais subsistir, e, ou se deixam morrer estiolados de fome, ou entregam-se ao vício, notadamente à vagabundagem e ao alcoolismo, para disfarçar as agruras da vida, ou atiram-se ao crime, enlouquecidos pela miséria, que lhes anula a consciência moral, e lá vão povoar os ergástulos, quando não são mais decisivas e edificantes as penas que os felizes possidentes de capital infligem, muito tranquilamente e muito conscienciosamente, aos criminosos que o mesmo regime capitalista preparou, cercando-lhes o direito ao trabalho, tão sagrado como o direito de viver!

Nesta situação desesperadora, em que o desmedido desenvolvimento da produção e da riqueza, favorecendo somente a classe parasitária, à custa de trabalho da outra classe, não traz para os operários o equivalente de bem-estar e de segurança, só há um meio de estabelecer-se o equilíbrio social, garantindo-se o progresso e a ordem na produção, a liberdade de todos os membros da sociedade: é transferir para a coletividade ou comunhão social a propriedade dos meios capitalistas de produção.

É este o escopo que deve orientar o operariado no Brasil, como em todo o mundo, como o meio único de sua salvação, passando de instrumento, que tem sido, a participante na produção.

Para isso, o operariado deve opor-se, como classe expropriada, oprimida e explorada, a todas as forças de opressão e exploração, nada esperando só da boa-vontade dos dirigentes, nem da generosidade do capitalismo, mas da pressão inteligente, metódica, ininterrupta e tenaz, que ela exerça sobre os privilegiados do capital e os poderes públicos, usando de preferência os meios, que o atual regime, mais ou menos democrático, lhe permite ainda, a liberdade de pensamento, o direito de reunião, de locomoção, de associação, de reclamação, etc.

Já em alguns países, como na França, onde o proletariado se acha organizado como partido de classe, ele conquistou o sufrágio universal, que é o comunismo na política, o direito pleno de coalizão ou de greve, várias regulamentações de trabalho e garantias para os trabalhadores. A ação continua, graças à harmonia que reina entre os membros do grande partido, ao menos quanto às questões de princípios e de meios gerais a empregar; e só terá fim quando a propriedade capitalista houver sido reassumida pela comunidade, cessando então o antagonismo de classes, que desaparecerão reconciliadas, unificadas, na produção e na propriedade comum ou social.

Eis aí um belo exemplo a imitar, e, ao mesmo tempo, a prova prática da eficácia e da razoabilidade da organização dos proletários em partido de classe.

Por que não há de seguir esse exemplo o proletariado brasileiro?

Que mais oportuna ocasião se lhe depara, do que a presente situação do país, proclamada e sentida em seus efeitos mortificantes, por todos os grupos, militantes ou não na política, por todas as hierarquias sociais, menos, talvez, a pequena porção dos que a exploram vorazes, como num banquete de que não devem deixar restos?!

Que mais querem, que mais podem suportar, que mais esperam, para se resolverem à organização, que tão necessária se lhes impõe?

Sofrem?... Podem libertar-se do sofrimento.

Estão escravizados, como máquinas, ao capital usurpador do seu trabalho?... Podem ter sua emancipação.

É pior a sua existência que a dos antigos escravos, que ao menos tinham certo o alimento e o vestuário, trabalhassem muito, ou trabalhassem pouco, ou mesmo não trabalhassem?

Mas, podem melhorar em muito a sua condição servil.

Como?...

Apremiando-se desde logo, unindo-se, constituindo um partido, que necessariamente será forte – e o número já é uma força – e será infalivelmente vencedor, se à sua organização presidir a firme vontade para o bem comum, o desprendimento de quaisquer preconceitos pessoais, políticos ou religiosos; a abnegação das comodidades individuais pelo benefício geral; o abandono de hábitos e prazeres nocivos à saúde pela observância das regras elementares de higiene, especialmente alimentar; o melhor aproveitamento do seu tempo de lazer, ou das folgas do trabalho, para a cultura da inteligência, adquirindo a instrução, que fortalece o espírito, que induz à percepção dos próprios direitos na comunhão social; que dá mais resistência para os sofrimentos e a consciência de seu próprio valor como indivíduo e como parte integrante da sociedade, constituindo assim a mais poderosa das armas para a mais pronta conquista do bem-estar social.

Que se unam e se organizem, pois, os proletários do Brasil.

A união faz a força, é o velho aforismo, sempre vivido em seu conceito. E essa força será irresistível, se for pertinaz e inteligentemente dirigida, sem os desfalecimentos que a ignorância e a inconsciência dos próprios direitos pode produzir.

Que se organizem, agindo de modo sinérgico, mantendo-se sempre prontos para fazer sentir à classe privilegiada, no dizer do notável reformador contemporâneo, «o vazio que pode produzir de repente na vida econômica da sociedade, a parada repentina do trabalho, cansado duma exploração interminável».

Por esse modo poderão arrancar ao surdo egoísmo dos privilegiados grandes reformas de interesse geral para o operariado, e apressar a transformação completa duma sociedade injusta – como em outros países começa de realizar-se.

Com a educação do pensamento e da vontade, com o aprender, mais fácil nas reuniões e confabulações com seus companheiros, os proletários terão o caminho aplainado para sua intervenção consciente nos negócios políticos e, por este meio, mais facilmente conseguirão as reformas de que necessitam na ordem econômica, e mais profícuas serão as coalizões as greves de que lancem mão como arma de combate, a mais potente e mais rápida em seus efeitos, contra a ganância dos patrões insaciáveis e desconscienciosos.

Mostrando-se habituados à reflexão, tanto quanto perseverantes em seus meios de ação, os proletários poderão ainda, como disse um pensador, destruir os sofismas da reação capitalista, e convencer aos pequenos industriais, aos pequenos comerciantes e aos pequenos proprietários rurais de que não é do socialismo que devem recear a expropriação, mas sim do grande capital monopolizante.

Bem organizado, o partido socialista poderá apressar a libertação econômica da sociedade, a começar pelos pequenos proprietários rurais, arruinados pela má venda de seus produtos, crivados de dívidas e sob o golpe da expropriação judiciária, os quais afinal compreenderão as vantagens da associação generalizada e sistematizada, e desejarão, como benefício, a socialização de seus pequenos pedaços de terra.

O acordo sincero e diligente de todos os que no Brasil vivem do seu trabalho, torna-se, pois, necessário e urgente, como alicerce da ação concentrada do Socialismo no país, quer nos negócios políticos, quer nos assuntos econômicos, para a consecução de seu ideal: a socialização dos meios de produção e de troca, isto é, a transformação da sociedade capitalista ou burguesa numa instituição verdadeiramente social.

Para eles, portanto, o Conselho-Geral do Partido Socialista vem fazer um apelo especial; a eles se dirige, exortando-os e parafraseando o brado simbólico de Karl Marx:

Proletários de todo o Brasil — uni-vos!

Viva o Socialismo!

(Manifesto publicado originalmente em O Estado de S. Paulo, 28 de agosto de 1902)