República Democrática Alemã - Sociedade Socialista Avançada

Alexandre Babo


A Caminho de Berlim


capa do livro

Quando saio da gare de Austerlitz a caminho da gare du Nord, onde devo tomar o comboio da noite que me leva a Berlim, a imagem angustiante da emigração portuguesa é agora mais obcecante que noutros tempos ainda próximos. Hoje a pátria não é apenas um lugar, um espaço geográfico onde as pessoas tentam sobreviver, suportar ou resistir, sem um verdadeiro sentido da nação. Antes aquela multidão de homens, mulheres, velhos e crianças, os sacos e as malas atados com cordas, os farnéis, o suor, os olhos mal dormidos não se desligavam da terra que deixavam, a terra conjunto de gente isolada uma da outra, inconsciente muita da sua verdadeira realidade, irmanada na impotência individual contra o destino. O mal do exílio era atenuado pela visão de um exílio de nascimento.

Neste momento há um reencontro. Cada um é o filho pródigo de si mesmo que regressa. Descoberta de que são país. Para lá de cada um, há um todo. Pouco a pouco a consciência de que a terra, a fábrica, a oficina, a loja, o emprego não pertence a outros.

A casa, o comboio, o eléctrico, a charrua, a junta de freguesia, a casa do povo, o baldio, o palácio-conto-de-fadas, a moeda, a câmara concelhia ou o Governo não é dos outros. Outros, imagem indefinida de um poder ausente de todos, fatalidade inelutável como o granizo ou a trovoada, a cheia do rio ou o estremecimento que vem das entranhas da terra, ou a morte. Vida e morte juntas no fardo de destino.

Quando ainda, de facto, não é — a certeza de que «deve ser», que «tem que ser» — portanto é. Já há vizinhos, amigos, camaradas. Português tem um significado, para lá do local de nascimento, da amenidade do clima, do cansaço de esgadanhar o dia seguinte.

Eles saíram porque não podiam estar. A saudade da micro-paisagem de cada um, esbatendo a realidade dolorosa, junta-se o trabalho, também violento em terra estranha, a língua estranha, a marginalidade que continua. Mas também havia uma compensação salarial, garantias assistenciais, um mínimo de dignidade humana conquistada e o sonho de amealhar um regresso. Solução individual sem solução — mas esperança. E melhor que a impossibilidade deixada.

Agora eles estão longe do reencontro — ao cabo de séculos, após o túnel de cinquenta anos. E quem se lembra do que foi outrora? Um livro velho que conta/inventa histórias não se sabe de quê nem de quem.

O sobressalto já os toma, enrosca-se neles a esperança de que o lugar da aldeia, da vila, do bairro, da cidade também lhes pertence. Os «outros» vão sendo escorraçados. E eles longe — a ausência, o exílio já é dor real — por mais aliciante que seja.

Terão que esperar ainda. Até lá... Dia para dia se tornará mais duro, mais difícil.

É isto que me torna indiferente aos boulevards, às árvores às pontes sobre o Sena — beleza emoliente que, francamente, nada me diz. O Fígaro e os outros — a maioria — alinham como por todo esse Ocidente europeu na deturpação da Revolução portuguesa. Bom, sabemos porquê. A saudável democracia ocidental preocupou-se bem pouco, durante meio século de fascismo português, com a sorte desta terra de bom clima e salários ínfimos onde poderiam por baixo preço gozar as delícias da beira-mar, da prostituta simpática, da lagosta suada, etc.

Neste momento, sim, sofrem pelo destino deste povo, à beira do caos, da ruína e da perda das «liberdades fundamentais» — porque um ministro comunista está no Governo (o único na Europa de democracia pluralista) e, nas ruas, é vulgar, juntamente com tantas outras, ver uma bandeira com uma foice e um martelo.

Como eles sofrem por nós e pela liberdade que perdemos em Caxias, Peniche, nos bancos, nos grandes monopólios, nos latifúndios e na censura, instituição de cultura nacional.

O chaufeur do táxi, quase a esbarrar o carro,quando a uma pergunta sua lhe respondo que em Portugal tudo vai bem, cada vez melhor:

«Ah! Mais le vieux général, il a son mot à dire...»

Clássico do pequeno burguês daqueles sítios. Sempre aguardaram a bruxa — disfarçada sob quaisquer dragonas. A propaganda, de resto, é essa. O general Spínola fez a revolução e estão a traí-lo. Quem? É evidente — a esquerda (tudo misturado na mesma panela, mas sabe-se que a mistura é aparente e se referem somente a um).

Quando no dia seguinte, de manhã, atravesso várias carruagens para ir tonfar o pequeno almoço, encontro alguns portugueses, emigrantes na República Federal. Na sua grande maioria dirigem-se a uma zona industrial, a seguir a Hannover.

Conversamos quase toda a manhã, até eles chegarem à estação de destino. Perturbados e hesitantes, não sabem se votam nem em quem votar. A maioria é do Minho — Vila do Conde, Póvoa, para cima de Viana. Alguma coisa os unia a todos — o desejo firme de voltar. Em condições piores (salários, claro), mas as possíveis para vida de gente.

— A gente não ganha mal. Até se ganha bem, mas não há como a nossa terra. Quando lá chegamos... Olhe, é como se fosse o céu...

Dum deles, mãos grossas, de calos antigos, força telúrica, vem inesperada uma frase — será poesia que os poetas não aceitam, talvez... — O sol, o sol. Trago ali na mala um bocado do nosso sol. Antes de vir, abri a mala ao sol lá da terra e fechei-a depois, para o ter comigo.

— Para onde vai? Alemanha Oriental?

Explico-lhe que não é Alemanha Oriental, mas República Democrática Alemã. Tento mostrar-lhes... Bom, não são eles apenas. Nos jornais de cá, mesmo anti-fascistas, o erro grosseiro é vulgar. Alemanha Oriental, República de Pankow, etc.

— Aquilo é muito mau — afirma um. — Ditadura dos russos, fome.

Vou rebatendo as calúnias, mas sei que não basta. Todos os dias lêem nos «livres» jornais da democracia ocidental as calúnias sobre a RDA A partir daí perpassa nos seus olhos a desconfiança camponesa. Só num ou dois há sintomas de um novo entendimento.

É a segunda vez que visito a República Democrática Alemã. Penso escreva um livro. Por amor — razão subjectiva — por admiração, necessidade interior. Mas também porque é preciso, neste momento, o mais urgentemente possível, desmascarar a propaganda fascista. Sobretudo em relação à RDA, feita através dos anos, de um modo mais ardiloso — mais inteligentemente premeditada.

Campanha de deturpação e de silêncio. Não um país, mas uma zona de ocupação. Alemanha Oriental em oposição à Alemanha Ocidental, a verdadeira, mas «pertença desse todo». Separada por inspiração soviética. Ocupação estrangeira contra o «patriotismo» nacional da Alemanha, a grande, a única.

Debaixo da pata soviética. E o resto — do lado de cá, o esplendor da grande vida; do lado de lá, além da ausência de «liberdade», a pobreza, o trabalho forçado, sobretudo o trabalho forçado em benefício do ocupante.

É claro que isto não foi um acto isolado do fascismo português. Está integrado num todo «ocidental». .

Entre os muitos espinhos que o capitalismo imperialista, disfarçado de formas exteriores vagamente liberalizantes, sente cravados no costado, provocando uma dor, que não há aspirinas que adocem, dois deles provocam o pesadelo: Cuba e a RDA Esta, sobretudo, guarda-avançada europeia do mundo que se lhe opõe.

Tanto mais aflitivo e perigoso quanto mais se desenvolve, progride, se torna exemplo aliciante e concludente. Durante duas décadas, puderam escondê-la, negando o seu reconhecimento internacional.

Agora, tudo rebenta pelas costuras. A verdade vem ao de cima. A RDA mostra-se ao mundo. Em todos os sectores — num crescimento fulgurante.

A tese do militarismo de origem rácica vai-se por água abaixo. Ali — boca e dentes do prussianismo — surge o Estado pacífico, anti-militarista, que destruiu o passado nas suas fontes e constrói o socialismo, numa fase desenvolvida.

E o militarismo e belicismo germânico continua a denunciar-se. Mas aonde? Os homens de boa fé compreenderão que é nas estruturas políticas, sociais e económicas do capitalismo imperialista que ele reside. Não na raça (?) de um povo.

Por isso, ao desembarcar em Friedrichstrasse, ao aguardar com os outros no controlo da fronteira o meu passaporte, estava decidido a descrever o que vi e o que ia ver. Relatar aos meus companheiros-concidadãos a história recente e extraordinária deste novo país, desta nova nação.

Não só para serem informados, mas sobretudo para tirarem das experiências ali realizadas, dos métodos seguidos, elementos essenciais à reconstrução da nossa terra, da nossa democracia. Que não será, decerto, igual a nenhuma outra, mas a resultante do caminho doloroso do homem para se libertar, se erguer, ser dono de si próprio e cortar para sempre do seu vocabulário quotidiano a palavra destino.

Julgo que não basta, para inteira compreensão da República Democrática Alemã dos nossos dias, o relato do que é nos variadíssimos sectores da vida política, social, económica, cultural.

Há que fazer um pouco de história.

Por isso me desloquei a Potsdam. Vi Seelow e a última batalha para a posse de Berlim, fui à Porta de Brandenburgo informar-me sobre o célebre «muro» — que os «salvadores» do Ocidente chamam «da vergonha» — prato forte da sua propaganda e até, um pouco romanticamente, ao cemitério de Friedrichsfelde onde estão os ossos das vítimas dos grandes lutadores da classe operária alemã — Karl Liebknecht, Rosa Luxemburgo, Ernst Thálmann, Wilhelm Pieck, Otto Grotewohl e tantos, tantos outros.


Inclusão 16/02/2015