Carta a Petr Lavrov

Mikhail Bakunin

15 de Julho de 1870


Primeira edição:
Fonte: Coletivo de Estudos Anarquistas Domingos Passos
Transcrição e HTML: Fernando A. S. Araújo.

Muito estimado Petr Lavrovitch,

Após um longo silêncio, é-me finalmente possível responder concretamente às vossas questões concretas. A carta que me escrevestes encontrou nosso pequeno grupo numa crise passageira. Antes que eu pudesse vos responder, tínhamos necessidade de definir e esclarecer muitas coisas e ao mesmo tempo, nos livrarmos de outras.

Eu posso hoje vos dar certeza de que rompemos definitivamente todas nossas relações com Sr. Netchaev; de agora em diante, ele não terá mais nada a ver, nem direta, nem indiretamente, com tudo aquilo que nós pudermos empreender. Nosso amigo em comum, Sazin, portador desta carta, vos explicará as razões dessa ruptura.

Ele vos dirá, dando todos os detalhes necessários, sobre que bases e com quais esperanças, sob que formas e com qual programa, Ogarev e eu pensamos publicar uma revista mensal, a qual terá, em cada número, quatro folhas, e que não lançaremos antes de termos juntado uma quantia para pagar pelo menos os seis primeiros números.

Nosso programa será revolucionário-socialista e, tanto quanto seja possível, vivo, mas ponderado e moderado na forma, ainda que enérgico e rigorosamente lógico em seu conteúdo. As grandes palavras, as frases ruidosas e, em geral, o tom declamatório serão banidos da revista. Eis os principais pontos de nosso programa:

  1. O ateísmo. A negação de toda religião e de todas as crenças, as quais serão substituídas pelo saber positivo e pela ciência viva, fundada na razão e isenta de todo caráter doutrinário.
  2. A negação do estatismo sob todas suas formas e em todas suas manifestações, assim como a negação do direito codificado de propriedade e do direito familiar e sua substituição, de baixo para cima, por uma regularização social e internacional por intermédio de uma livre federação das artérias econômicas, das comunas, dos cantões, dos distritos, das regiões e dos países, fundada no trabalho e na propriedade coletivos; substituição do direito jurídico pelo direito humano de todos e de cada um à vida e ao pleno desenvolvimento humano.
  3. De acordo com estes princípios, guerra implacável ao individualismo burguês, quer dizer, aos privilégios, mas ao mesmo tempo ao comunismo autoritário, ditatorial e estatal de Marx e de toda a escola alemã; guerra ao coletivismo organizado de cima para baixo por qualquer comitê revolucionário ou poder central oficial. Ao contrário, aceitação do desenvolvimento autônomo e da organização das massas operárias por elas próprias, sob o efeito da ciência, tornada cada vez mais acesslvel ao povo, e da propaganda viva, teórica e prática, pelos crrculos revolucionários clandestinos, unidos uns aos outros por uma única e mesma idéia, por um único e mesmo objetivo, e disseminados tanto quanto possível em todos os países.
  4. A nacionalidade, com todas as suas diferenças etnográficas, econômicas, históricas e culturais, suas características e seus traços particulares constitui, para nós, não um direito ou um principio, mas um fato histórico natural que não se pode abstrair e que é preciso levar em conta se se quiser agir de modo prático e não abstrato. Reconhecendo que as tarefas da revolução social são em todos os lugares as mesmas, a saber: a humanização da sociedade, da nação, dos indivíduos, estamos ao mesmo tempo convencidos que a solução deste problema nos diferentes grupos nacionais revestirá as formas mais diversas, sendo estes grupos o produto não de um ideal inventado inteiramente, ou importado do estrangeiro por indivíduos ou círculos, mas da situação particular, da mentalidade e da evolução histórica de cada grupo.
  5. Por exemplo, acreditamos que na Rússia e em alguns outros países, eslavos ou não (Hungria, Itália meridional, Espanha), não (*(1)) entregues à influência da civilização utana e manufatureira do Ocidente, o socialismo dos campos levará a melhor sobre o socialismo das cidades.
  6. Reconhecemos, com a escola de Comte, que não se pode ir contra os fatos e as situações nacionais engendradas pela história, que esses f atos e essas situações estão submetidos à sua própria e inflexível lógica, mais forte do que os indivíduos e os grupos. Mas reconhecemos ao mesmo tempo o direito à propaganda revolucionária e a utilidade desta propaganda, assim como o direito à ação revolucionária secretamente organizada dos indivíduos e dos círculos, tomando por base que estes últimos não caíram do céu, mas fazem parte da mesma realidade, eles são modelados por ela e, à sua maneira, ainda que sob uma forma reduzida, exprimem esta realidade, sob a condição, evidentemente, de que círculos e indivíduos estudem atentamente, escrupulosamente e sem se causar a mínima ilusão, a realidade sobre a qual eles querem agir.
  7. Encaramos o Estado, em sua atual fase de evolução, como um produto esclerosado e inorgânico do processo vital dos povos e como uma engrenagem à parte do organismo vivo deles. A força do Estado, sendo hoje uma força pura e exclusivamente mecânica, diretamente antipopular, cujos únicos pilares são a polícia e o exército, faremos concentrar todos os esforços dos indivíduos e dos círculos revolucionários na abolição do Estado pela organização da força espontânea do povo.
  8. Assim, também, coloquemos a abolição do Império da Rússia como condição primeira de todo progresso real deste país.

Eis, em seus traços essenciais, o nosso programa. Na prática, estamos certamente em desacordo. Vós não me escrevestes dizendo que acreditáveis ainda nas reformas governamentais positivas? Quanto a nós, pensamos que o governo, e de uma maneira geral o Estado, só poderia fazer uma única coisa útil: por fim à sua existência, e estamos bem decididos a orientar nossa propaganda neste sentido. Mas se estamos em desacordo na prática, não há nenhuma dúvida que, no plano teórico, nossas divergências são mínimas ou nulas; e partindo desta convicção, eu faço, em nome de meus amigos, um apelo, muito estimado Petr Lavrovitch, à vossa colaboração. Vosso nome, venerado na Rússia, daria um enorme peso à nossa revista. Mas é pouco provável que vós nos autorizais a utilizá-lo. E, por sinal, nós sequer ousaríamos pedi-lo; mas ficaríamos profundamente agradecidos se de vez em quando vós aceitásseis nos enviar artigos teóricos, por exemplo, sobre a religião, a metafísica, o bom Deus, ou contra o idealismo e pelo materialismo racional, assim como sobre a condição e o desenvolvimento econômicos dos povos, russos ou não, do Império da Rússia. Se tal é o vosso desejo, vosso nome e vossa colaboração em nossa revista serão mantidos secretos, conhecidos somente por um pequeno número de pessoas sérias que constituem nosso círculo. Tal é o lado teórico de nosso empreendimento. Não preciso dizer que podeis ter confiança, no plano prático, em meus amigos e em mim mesmo. Eu não ignoro que certas coisas que vos tenha podido contar o Sr. Lopatin podem ter suscitado em vós mais desconfiança do que confiança. Deixo a Sazin o cuidado de dissipar os erros de julgamento que possam ter ancorado em vosso íntimo.

Eu termino, pois, esta carta, assegurando-vos sinceramente que tudo o que sei de vós fez nascer em mim uma viva simpatia e um profundo respeito por vossa pessoa, que vossa colaboração em nossa revista seria para nós preciosa e que eu ficaria feliz se o destino quisesse que eu vos encontrasse.

Genebra, 15 de julho de 1870


Notas de rodapé:

(1) Ilegivel (retornar ao texto)

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Inclusão 30/11/2015