Reflexão sociológica sobre a participação política de nossa geração

Vania Bambirra

1960


Fonte: Arquivo Vania Bambirra - https://www.ufrgs.br/vaniabambirra/. Datilog. 1960 (com a referência: 2o Ano [do Curso] de Sociologia/UMG – Faculdade de Ciências Econômicas)

HTML: Fernando Araújo.


A crise social

Vivemos uma época em que o homem assiste transformações profundas nas estruturas da sociedade humana. Perspectivas de novas relações de produção, de nova filosofia, de nova ordem, de nova ética, de nova política, de um novo homem, e suas possibilidades concretas, vêm demonstrar efetivamente a decomposição de um sistema e sua superação através do surgimento de um novo, acarretando consequências várias e de certo modo imprevisíveis.

A etapa atual do processo histórico caracteriza-se por dois aspectos fundamentais: pelo desenvolvimento técnico em grande escala(1) e pela acentuação constante das crises econômicas fundadas na totalidade dos fatores sociais. Essa etapa crítica acarreta, pois, duas consequências: por um lado vemos a burguesia num esforço de contenção do “status quo” e por outro a ameaça crescente de eclosão de novas revoluções socialistas decorrentes da tomada de consciência do papel de vanguarda do proletariado, do campesinato, e de setores da pequena burguesia.

É dentro dessa realidade complexa que surge a nossa geração e é por isso que o jovem tem de fazer um esforço crítico-prático de compreensão da mesma.

Vejamos como isso decorre.

Bases para uma tipologia do jovem moderno

A situação existencial do jovem moderno lhe coloca três tipos de opções e de acordo com a quel ele assuma deverá pautar todos os seus valores, ideais, conduta, normas de vida e de ação. De um modo geral se caracterizam dos seguintes modos:

  1. no alheamento ao processo social;
  2. numa revolta desorientada contra as sobrevivências de uma estrutura decadente;
  3. num engajamento em uma luta revolucionária.

Tentaremos uma análise rápida de cada um deles.

O primeiro caso – o alheamento do jovem – reflete nada mais que uma acomodação alienada à realidade. Essa acomodação pode se processar devido a fatores diversos. Entre eles sobressaem principalmente três tipos facilmente observáveis que convergem para uma atitude semelhante em face do mundo. São eles: Tipo a) aqueles que, devido as peculiaridades de sua existência, podem ser considerados como os ingênuos. São os que não possuem nem as mínimas condições de compreensão e interpretação da sociedade. Geralmente encaram os fatos através dos extremos: ou de forma otimista segundo a qual tudo está certo, ou então assumem uma atitude de descrença frente ao mundo, atribuindo a existência dos fatos a um mero ocasionalismo. Esses tipos de reacionarismo, devido a sua ingenuidade, podem ser superados, bastando para isso que as consciências sejam despertas para a realidade.

Tipo b) os que, devido o meio no qual foram criados refletem exatamente seus caracteres mais marcantes, mas o fazem de uma maneira lúcida e consciente, sabem o que devem manter, para onde se voltar, são consequentes em suas atitudes pois têm seus objetivos bem definidos. São indivíduos que assumem taxativamente a condição de burguês. A missão deles é a de vigiar e desfrutar a ordem vigente. Muitas vezes sustentam-se num pessimismo que aliás é bem típico da condição deles – de direita – mas esse pessimismo não é autêntico como no caso a) e sim fruto de racionalização.

Tipo c) os que discernem todas as determinantes do processo, que o explicam e chegam até a contar soluções, mas neles isso se dá apenas em um plano abstrato, tratando-se do indivíduo maduro. Esse tipo é bastante encarnado pela média intelectualidade. Uma atitude marcante neles não é nem a do pessimismo, mas a do desânimo. Agem como se estivessem amordaçados, impedidos de locomover, e só conseguem por isso opinar sobre os acontecimentos. Acham as transformações necessárias e inevitáveis mas não participam na provocação delas. Sucumbem ante a cômoda condição de burguês e os compromissos que ela engendra.

O segundo é marcado pelo tipo de revolta daqueles que são denominados “juventude transviada”;(2) falta a ele o tipo de orientação que de acordo com sua conduta rebelde o arrancaria da alienação e o introduziria naquele caminho de ação transformadora objetiva. Assim sua revolta não seria inconsequente, não teria apenas um caráter de destruir. Mas resultado: o “jovem transviado” não consegue definir a sua revolta, não se engaja, e então é reprimido e subjugado pelo pré-estabelecido e recai no primeiro tipo mencionado, ou seja, no já comentado alheamento, ou acaba por adotar uma atitude existencialista, uma concepção niilista da vida que é a resultante da “conjugação do desespero e da irresponsabilidade”.(3) Daí, o caráter provisório do estado de transviado.

O terceiro tipo de opção é fruto de uma atitude reflexiva ante a existência. Essa atitude desperta consciência de responsabilidade ante a necessidade de transformação do sistema social vigente para uma ordem social superior.(4) Então, o jovem tem de superar imediatamente o principal obstáculo ao engajamento em uma luta revolucionária consequente que é o ideal individualista fundado sobre a ambição de “vencer na vida”. A vitória que o autêntico revolucionário busca é aquela da qual participam comunitariamente todos os outros, é a vitória da superação do velho homem pelo novo homem. Portanto ele não se isola da realidade que o circunda mas participa dela em todos os seus níveis, analisa seus problemas concretos e específicos, compreende suas determinações próprias, a fim de calcular as possibilidades revolucionárias, transformá-las em decisões, e na ação constante tentar implantá-las na prática, o que geralmente tem se dado através de um movimento ideológico organizado de luta revolucionária.(5)

Possibilidades da última opção no caso da juventude brasileira

Como participar efetivamente? É esse o problema mais agudo a ser enfrentado pelo jovem que já tenha a preliminar básica: o para quê. E é esse o problema mais sério que assistimos viver a juventude brasileira. Que soluções concretas devem apontadas a ele? Aqui se coloca o problema da fundamentação teórica e prática da esquerda brasileira e suas perspectivas. Isso implica um estudo do surgimento e do desenvolvimento das “esquerdas” já existentes no Brasil, o motivo de seus fracassos, quais as experiências deixadas,(6) estudo esse que ainda não foi feito sistematicamente e o qual no momento não temos condições de fazer.


Notas de rodapé:

(1) “Mas essas descobertas e invenções que se sucedem, umas às outras, com rapidez cada vez maior, esse rendimento do trabalho humano que cresce dia a dia em proporções inauditas, terminam por criar um conflito em que, à economia capitalista atual, só resta perecer. De um lado, as riquezas incomensuráveis e um excedente de produtos que os compradores não podem absorver. De outro, a grande massa da sociedade proletarizada, transformada em assalariados e incapacitada, por esse próprio fato, de se apropriar desse excedente de produtos. A divisão da sociedade em uma pequena classe, imensamente rica, e em uma grande classe de assalariados que nada possui, faz com que essa sociedade fique sufocada por seus próprios excedentes, enquanto a grande maioria de seus membros quase não está, ou não está de todo, protegida contra a extrema miséria. Tal estado de coisas torna-se cada dia mais absurdo e mais desnecessário. Ele tem de ser eliminado, ele pode ser eliminado. É possível uma nova ordem social em que desaparecerão as atuais diferenças entre as classes e em que – após um período de transição, um tanto duro, mas, em todo caso moralmente muito útil – graças a uma utilização e desenvolvimento ulterior planificado das enormes forças produtivas de todos os membros da sociedade, e pelo trabalho obrigatório para todos, os meios de vida, de usufruir da vida de desenvolver-se e de por em ação todas as faculdades do corpo e do espírito estarão igualmente à disposição de todos e em abundância cada vez maior”. F. Engels. Introdução a Trabalho assalariado e capital. Marx, Obras Escolhidas, Vitória [Adendo do Memorial-Arquivo Vania Bambirra: no original datilografado, falta um trecho da citação na nota, que corresponde à passagem em itálico que interpolamos, tomada da edição de “Trabalho assalariado e capital” publicada pela Editora Expressão Popular. Após o término do trecho em itálico, a citação prossegue na redação da edição utilizada pela autora]. (retornar ao texto)

(2) Nota do Memorial-Arquivo: o sentido do vocábulo “transviado” foi empregado pela autora na acepção corrente nos anos 1950 e começo dos 60, remetendo à crítica da “rebeldia pela rebeldia”, retratada no cinema no filme “Juventude transviada” (de 1955), estrelado por James Dean. Seu sentido difere, portanto, do uso que ganharia na discussão sobre genêro com o movimento QUEER+ após os anos 1990. (retornar ao texto)

(3) Ver Silvio Frondizi, Interpretação Materialista Dialética de Nossa Época. Buenos Aires, 1960. (retornar ao texto)

(4) “… (é) possível determinar tanto as forças negativas e retrógradas que frustram e degradam o homem do povo, como as necessidades profundas, os pontos de descontentamento e resistência, as forças sãs e renova-[ trecho incompleto no original datilografado. A sequência da citação continua após os colchetes] respondem, dentro do atual sistema, a uma ordem social superior”. Marcos Kaplan, Política y Vida Cotidiana. Buenos Aires, 1959. (retornar ao texto)

(5) “Dadas as limitações inerentes à ação e ao pensamento, e à rapidez e à complexidade dos processos contemporâneos, mesmo as consciências mais lúcidas podem estar em atraso com respeito à objetividade. As condições da existência atual tendem a isolar os indivíduos e conferem a suas experiências e relações um caráter limitado e fragmentário. Assim, a adoção de uma postura militante implica fatalmente para aquele que a assume um primeiro momento de alheamento provisório, de diferenciação nítida com o meio, a fim de afirmar-se melhor contra as pressões alienantes da sociedade burguesa. Este momento, se se prolonga ou se exagera demasiado, se não é completado dialeticamente [trecho ilegível no original] qual se atua, no infantilismo e no aventureirismo”. M. Kaplan, idem. (retornar ao texto)

(6) Sabemos que no Brasil já existiram e ainda existem movimento e partidos revolucionários sustentados em ideologias de esquerda. Contudo, sempre se caracterizaram constitutivamente como minorias pequeno-burguesas, sem nenhuma integração no meio operário ou entre os camponeses. Esses partidos e movimentos – como não podiam deixar de ser – não passaram de tentativas idealistas e frustradas da formação e condução de uma luta revolucionária. (retornar ao texto)

Inclusão: 14/11/2021