Comentário sobre "O Príncipe", de Maquiavel

Vania Bambirra

1961


Fonte: Arquivo Vania Bambirra - https://www.ufrgs.br/vaniabambirra/ - Datilog., 1961 (com a referência: 3o Ano [do Curso] de Sociologia, UMG-Faculdade de Ciências Econômicas)

HTML: Fernando Araújo.


O livro pode ser dividido em três partes: a primeira que vai do capítulo I ao capítulo XI, na qual Maquiavel procura caracterizar os tipos de principados e servindo-se de exemplos históricos, apresentar algumas táticas de governo; a segundo, do capítulo XII ao capítulo XIV, se refere aos tipos de milícias, as inconveniências de algumas e as vantagens de outras, as formas de tratamento mais adequadas que devem ser dispensadas pelo príncipe a elas; a terceira parte vai do capítulo XIV ao XXIV, no qual Maquiavel servindo-se de uma análise psicológica das reações humanas apresenta uma série de táticas necessárias às boas relações entre o príncipe e os seus ministros, o príncipe e os grandes, o príncipe e o povo. O capítulo XXV é uma preparação para o capítulo XXVI, no qual o autor termina o livro fazendo uma “exortação para tomar a Itália e livrá-la das mãos dos bárbaros”, que é o objetivo fundamental de todo “O Príncipe”.

É necessário situar, antes de mais nada, em linhas gerais, a ambiência histórica da obra de Maquiavel. Data do século XVI, época em que os Estados Europeus atravessavam uma fase de grande centralização monárquica. As monarquias absolutistas expressavam a decadência definitiva do sistema feudal, cuja desestruturação já havia se iniciado há mais de um século. O absolutismo era portanto uma forma intermediária de regime social, era a última barreira que a burguesia nascente tinha de romper para liquidar de uma vez por todas com o tempo dos “sangue azul”. É explicável assim que todos os Estados da Europa dominados por seus monarcas todopoderosos tivessem seus grandes exércitos, bem armados e treinados, e que a rivalidade entre eles, movida pela vontade de maior poder, os levasse constantemente a guerras. Ora é a Inglaterra que declara guerra à França, ora é a França que invada a Itália, ora é Espanha que domina Portugal. O império do mais forte era um dado numa sociedade que via ruir dia a dia os alicerces de todos os seus valores, normas, ideais e costumes tradicionais. Na Itália reinavam o caos e a miséria. Várias vezes fora invadida e saqueada. Ora seus exércitos desertavam ora eram derrotados, quando acabava uma invasão começava outra. As vitórias de outrora pairavam sobre o trono italiano como algo distante e irrecuperável. O povo italiano, como todo povo que assiste a decadência de uma antiga sociedade sem que tenha tido oportunidade ainda de compreender que uma nova sociedade surge de suas ruínas, corrompia-se num ceticismo amargo e sem perspectiva alguma, que Maquiavel vai deixar transparecer em frases como esta: “acreditando que melhoram, os homens mudam voluntariamente de senhor; e esta crença os faz tomar as armas contra quem governa; no que se enganam vendo depois por experiência que pioraram” (pag. 37).

No primeiro capítulo, Maquiavel faz o que podemos considerar uma verdadeira metodologia da conquista. Disserta sobre critérios mais convenientes e eficazes – a eficácia para el tem um caráter essencialmente empírico, desta forma, dá grande destaque às experiências históricas – que os príncipes devam adotar para a conquista de novos reinos. Mas as conquistas se situam para ele em um plano secundário, pois o maior relevo é dado à tática de como manter o poder. É esse o tema básico de seu livro; os outros aspectos são complementos que julga necessários. Este livro bem poderia ter o título “De como manter o poder”. Para Maquiavel o mantenimento do poder é a meta suprema dos príncipes, que devem estar acima de toda e qualquer norma ética. Suas afirmações a tal respeito são sobretudo claras, o autor insiste bastante nisso, muitas vezes dando a impressão de um cinismo requintado ou de uma maldade “monstruosa”. No entanto, essa sua convicção deve ser explicada não pela “perversidade de sua alma”, como o querem muitos de seus estudiosos, mas em função das condições sociais objetivas que o moldaram. Existiram por certo, em sua época, muitos e muitos maquiavéis, entre os quais o considerado se distingue apenas por ter tirado sistematicamente todas as consequências teóricas de sua existência para que fossem aplicadas em outras. Não estamos tentando com isso eximir Maquiavel da sua responsabilidade histórica como indivíduo, porque o homem é um produto e um produtor. Mas é produtor a partir de tudo aquilo que o produziu, “não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência” (Marx, La Ideología Alemanda). O próprio fato do homem ser condicionante lhe é determinado pela maneira como é condicionado. Havia condições propícias na sociedade europeia para o aparecimento de Maquiavel, assim como houve mais tarde condições para que se aplicassem as táticas maquiavélicas, como na noite de São Bartolomeu. E a sua consciência-produtora não superou sua consciência-produto, assim Maquiavel não pode ser considerado imoral porque para se julgar alguma pessoa têm-se de considerá-la de acordo com os valores dominantes da época e da sociedade a que pertenceu. A moral é histórica, portanto relativa, por isso, se se julgar Maquiavel pelos padrões morais de sua época pode chegar a conclusão que seu pensamento era válido socialmente, e isso se prova pelo próprio fato de que foi aplicado várias vezes. É um aspecto muito importante e convém ser ressaltado na obra essa compreensão profunda dos fenômenos históricos em função das circunstâncias específicas que os geraram. Aliás, Maquiavel insiste que a eficácia de cada tipo de tática (de guerra ou de como resguardar um reino de perigos futuros) está em que ela seja escolhida e aplicada de acordo com as condições existentes. Daí conclui que a glória de um príncipe depende de dois fatores: do seu valor e das oportunidades que tenha de manifestá-lo. “Analisando as ações e a vida deles (Moisés, Ciro, Rômulo e Teseu) não se vê que tivessem recebido da fortuna mais do que a ocasião que lhes deu a matéria onde introduziram a forma que lhes parecia melhor; sem essa ocasião, o seu valor de ânimo ter-se-ia acabado, tanto como, sem esse valor, a oportunidade se lhes teria proporcionado em vão” (pag. 52). Ainda diz:algumas “ocasiões, portanto, fizeram ditosos tais homens, e o valor excelente fez-lhes conhecer essas ocasiões, pelo que foram as suas pátrias enobrecidas e tornadas felicíssimas.”.

Já dissemos atrás que as táticas maquiavélicas têm também um caráter bastante psicológico. Na verdade, se tal conteúdo psicológico fosse excluído delas, praticamente muito pouco restaria. Quando ele escreve: “as injúrias devem ser feitas todas de uma vez a fim de que, saboreando-se menos, ofendam menos; os benefícios devem ser feitos pouco a pouco, a fim de que sejam melhor saboreados” atesta essa nossa observação. E ainda quando ele afirma “apenas direi que aos homens que no começo de um principado tenham sido inimigos, se são de molde a que para se manter tenham de procurar um apoio, sempre o príncipe, com grandíssima facilidade os poderá ganhar para si: e com tanto maior motivo são eles forçados a servi-lo com fé, quanto mais conheçam ser-lhes necessário cancelar com as obras o sinistro conceito que deles se fazia. E assim o príncipe sempre tira deles mais utilidade do que daqueles que, servindo-o com demasiada segurança, descuram as suas coisas” (pag. 115). De modo geral suas teses são envolvidas sob forma de demonstrações históricas e conclusões psicológicas.

Na segunda parte que se estende do capítulo XII ao XIV, Maquiavel faz uma dissertação sobre táticas de guerra e uma apologia das boas milícias: “os principais fundamentos que têm todos os Estados, tanto novos como velhos, ou mistos, são as boas leis e as boas tropas”, mas percebe-se que as boas tropas, para ele, são mais importantes que as boas leis, principalmente as tropas nacionais pois nas estrangeiras nunca se deve confiar. “Sem tropas próprias, nenhum príncipe está seguro, ficando assim totalmente dependente da fortuna, e sem o valor que na adversidade o defenda” (pag. 86).

Na terceira parte deve ser ressaltado o caráter prático da obra: “sendo meu intuito dizer coisas úteis para quem as entenda, pareceu-me mais conveniente ir direito a verdades concretas do que à imaginação delas”, e ainda o destaque às vantagens do oportunismo, isso porque a obra, como veremos mais adiante, tem um objetivo e esse objetivo é sobretudo prático. “É necessário a um príncipe, se se quiser manter (o grifo é nosso)(1) estar preparado para poder não ser bom, e para usar ou não a bondade conforme a necessidade” (pag. 90). Para saber ser bom oportunista é necessário sobretudo ter astúcia e fortaleza: o príncipe “necessita, pois, de ser raposo para conhecer as armadilhas, e leão para amedrontar os lobos (…) e se todos os homens fossem bons, esse preceito não seria bom; mas porque são maus e não respeitarão para com o príncipe a palavra dada, não tem o príncipe de a respeitar com eles” (pag. 99). Notamos mais uma vez, aqui, o caráter cético de Maquiavel e também um certo utilitarismo cínico quando ele diz que se deve ser somente aquilo que faz bem para o prestígio: “… é de maior sapiência ter-se o renome de miserável, que engendra uma infâmia sem ódio, do que, por desejar o renome de liberal, ser obrigado a incorrer no renome de rapace, que engendra uma infâmia com ódio”. E ainda: “porque os homens sempre se mostraram maus, se a necessidade os não tornar bons”. Em todos os pequenos detalhes da obra podemos descobrir neles o seu objetivo básico que apontamos atrás: sistematizar as táticas de como manter o poder. Este trecho de Maquiavel por si só expressaria o que acabamos de dizer: “Nasce daqui uma questão (tratando da maldade e da piedade) se é melhor ser amado do que temido ou antes temido do que amado. Responde-se que se quereria ser uma coisa e outra, mas porque é difícil ser ambas em conjunto, é mais seguro (o grifo é nosso)(2) ser temido do que amado, quando se tenha de perder uma das duas. (…) É preciso que tenha um ânimo disposto a volver-se conforme os ventos e variações que a fortuna ordene, e que (…) não saia do bem, podendo, mas saiba entrar no mal, se necessário”. Por aí vemos que os “supremos valores da humanidade”, a dignidade, a justiça, a honestidade, na época de Maquiavel eram meros acessórios que deveriam ser usados apenas quando necessários. No “O Príncipe” há uma passagem que se torna extremamente dolorosa quando percebemos que há nela uma contradição do autor que se choca com todos os outros trechos do livro, mas que revela ligeiramente uma faceta oculta de Maquiavel que talvez ele próprio a procurasse ocultar. É essa: “… porque as amizades que se adquirem com dinheiro e não com grandeza e nobreza de ânimo” (o grifo é nosso)(3)… Ele admite aí que existem amizades que se adquirem com “grandeza e nobreza de ânimo” para logo abaixo se contradizer dizendo “porque o amor consiste num vínculo de obrigação que, dada a maldade dos homens é roto no primeiro momento em que se levanta o interesse…”. Talvez o destaque ao “interesse” seja explicado em grande parte em função dos novos valores que surgem na sociedade: os valores burgueses. Isso pode explicar porque Maquiavel recomenda o respeito à propriedade privada de uma maneira tão insistente…” porque os homens mais depressa olvidam a perda de um pai do que a perda do patrimônio”.

Ainda gostaríamos de tentar compreender de que maneira encara Maquiavel a categoria povo. Diz ele: “o povo não deseja ser comandado ou oprimido pelos grandes”, “aquele que chega ao principado com a ajuda dos grandes mantém-se com mais dificuldade do que aquele que o atinge com a ajuda do povo”; … “do ordinário, onde um conspirador tem de temer antes de ter praticado o mal, deve neste caso, temer ainda depois, uma vez consumado o golpe, desde que tem o povo por inimigo, e não pode, por isso, esperar qualquer refúgio”. Inegavelmente considera o povo como uma força, a maior força social e isso denota que as concepções de Maquiavel são produtos do Renascimento. Convém ainda lembrar que o povo a quel ele se refere e ao qual dá tanta importância é naturalmente a burguesia que surge já com uma grande força em potencial. E Maquiavel lembra: “os Estados bem ordenados e os príncipes sábios cuidam com toda diligência de não desesperar os grandes, e de satisfazer o povo e mantê-lo contente, porque é essa uma das mais importantes atribuições que cabe a um príncipe. (…) A melhor fortaleza que existe está em não ser odiado pelo povo” ou pelos burgueses, podemos completar…

Muitos outros aspectos da sua obra denotam um sincretismo de valores e uma tendência maior para os novos: “um príncipe novo é muito mais observado nas suas ações que um hereditário; e quando lhe encontrai mérito deixam-se os homens subjugar muito mais por ele do que por uma família antiga” (…). “Deve um príncipe animar os seus cidadãos a dedicarem-se paulatinamente às suas atividades, ao comércio, à agricultura, e a todos os outros labores humanos, e que um não tema embelezar suas propriedades com medo de que elas lhes sejam tiradas, e que outro não tema abrir um comércio por medo dos impostos; (…) porque toda a cidade está está dividida em corporações ou em classes, deve ter em conta essas comunidades, reunir-se com elas alguma vez, dar de si exemplos de humanidade e munificência, conservando sempre firme, não obstante, a majestade de sua dignidade, porque isto não dweve faltar em coisa alguma”. Nesses trechos, Maquiavel recomenda aos príncipes prestigiar os burgueses mantendo contudo “a majestade de sua dignidade”.

O capítulo XXV que, como dizemos atrás, é uma preparação para a conclusão final da obra de Maquiavel, preconiza que o príncipe através do seu valor pode e deve instaurar a sua vontade e que “a fortuna demonstra o seu poder onde o valor não está disposto a resistir-lhe, e emprega os seus ímpetos onde sabe que não estão levantados os diques e os muros para a deter” e diz que “a Itália (…) é um país sem diques e sem muros de qualquer espécie; que se ela fosse defendida pelo valor conveniente, como a Alemanha, a Espanha e a França, ou não teria criado as grandes vicissitudes de que sofre, ou não teria chegado ao ponto em que se encontra. E julgo haver dito bastante no que se refere à resistência que se pode opor à fortuna”. Com isso o pensamento maquiavélico volta-se decisivamente para o voluntarismo que aliás já o vinha caracterizando implicitamente, o que é um sintoma de que o problema da determinação divina que imperou em toda a Idade Média já estava sendo superado e que “a fortuna (só) é árbitra (apenas) da metade de nossas ações”. Na verdade, Maquiavel tinha necessariamente de apelar ao voluntarismo para poder fazer a sua “exortação para tomar a Itália e livrá-la das mãos dos bárbaros”. Aqui chegamos ao seu último capítulo no qual está centrada toda a finalidade do livro: depois de haver discorrido sobre as táticas de como manter o poder ele faz um apelo sincero, esperançoso e desesperado para que um verdadeiro príncipe italiano, que seja “prudente e valoroso”, venha “honrar e beneficiar a totalidade dos italianos”, porque o Maquiavel maldoso, cínico, corrupto, é sobretudo um patriota.

É clara, através dessa obra de Maquiavel, a necessidade que tinha o povo italiano de um príncipe que viesse redimi-lo, porque só em épocas de agudas crises sociais, de transformações estruturais profundas, é que no povo começa a surgir a necessidade de um semideus que venha resolver todo só os problemas da sociedade. “…Querendo-se conhecer o valor de um espírito italiano, era necessário que a Itália chegasse aos extremos em que agora se encontra (…) sem chefes, sem leis, dilaceradas, pisada, e que tivesse suportado toda sorte de misérias”. Essa necessidade de um só homem tem-se repetido na história e continuará a se repetr até que o povo compreenda que a solução de seus males não pode ser dada por um super-homem mas por todos os homens conjuntamente.


Notas de rodapé:

(1) Nota do Memorial-Arquivo Vania Bambirra: parênteses da autora. (retornar ao texto)

(2) Nota do Memorial-Arquivo Vania Bambirra: parênteses da autora. (retornar ao texto)

(3) Nota do Memorial-Arquivo Vania Bambirra: parênteses da autora. (retornar ao texto)

Inclusão: 14/11/2021