Discurso de formatura

Vania Bambirra

1962


Fonte: Arquivo Vania Bambirra - https://www.ufrgs.br/vaniabambirra/ - Datilog. 1962 (Discurso de Formatura Curso de Sociologia e Política da Faculdade de Ciências Econômicas. Belo Horizonte, UFMG, 1962)

HTML: Fernando Araújo.


Excelentíssimo Sr. Diretor da Faculdade de Ciências Econômicas, Professor Rodolpho de Abreu Bhering.
Excelentíssimo Sr. Professor Admardo Terra Caldeira, nosso paraninfo.
Demais componentes da mesa.
Senhoras e Senhores.
Queridos pais.
Meus caros colegas.

Nesta oportunidade queremos prestar uma homenagem ao Sr. Eliezer dos Santos Teixeira. Como símbolo da nossa amizade e do nosso respeito a todas os funcionários da F.C.E.

Nesse discurso, procurarei exprimir o sentido da luta dos jovens brasileiros pela Reforma da Universidade.

Iniciamos, como estudantes, a luta por esta reforma, porque compreendíamos que num país em processo de desenvolvimento não se justifica a existência de uma Universidade com uma estrutura arcaica como a nossa. Não se justifica mais o ensino universitário acadêmico e desligado da realidade. Contudo, sabemos que essa luta foi apenas iniciada, que dela não participam conscientemente ainda nem 50% dos universitários. E essa omissão se agrava, quando temos em mente, como bem define o professor Alvaro Vieira Pinto, o qual acabamos de citar, que de fato “a reforma da universidade é apenas uma faceta particular do problema da reforma geral da sociedade brasileira”.

Estas reforma não teria sentido, se buscasse resolver apenas os problemas do ensino superior, desvinculada da problemática geral da sociedade em que vivemos.

Esta reforma só terá sentido se a sua luta for levada a cabo ao lado das lutas pelas outras reformas sociais.

Porque, como se poderá democratizar o ensino universitário em um país com 45 milhões de analfabetos?

Vemos, então, que o problema da democratização é um problema do ensino brasileiro.

Mas, como poderemos democratizar o ensino brasileiro em um país onde milhões de crianças, filhos de camponeses e de operários, têm de começar a trabalhar aos 10, 8, 7 anos? Num país em que o número de escolas não dá nem para atender às necessidades das populações urbanas; num país em que, apesar da situação trágica do ensino, aprova 33% de suas verbas com a segurança nacional e só 8% com a educação?

As autoridades se esquecem que um povo para ser livre é preciso ser culto.

Os armamentos não matam nem salvam. São os homens que se matam ou se defendem. São os homens! Os únicos e finais agentes de todas as coisas. As armas, os navios, os batalhões, os tanques, as bombas, tanto podem ser um instrumento de libertação dos povos, como uma força de dominação. A história tem nos dado exemplos de povos que têm muito bem garantidas suas fronteiras mas que vivem internamente oprimidos e subjugados sem poder nem ao menos ter consciência de sua opressão.

Há, portanto, democratizações e democratizações, colegas. Quem democratiza é o homem e quem é democratizado é o homem. Nada se fará se não se atinge a essência mesmaque é o homem dado, concreto, ou oprimido, ou livre, só há uma opção.

Então, de que valerá também tentar voltar a Universidade para a realidade apenas para confirmar esta realidade, estas realidade brasileira onde 35 milhões de camponeses, vítimias do sistema latifundiário, não possuem terra para cultivar e, quando cultivam, é sob formas extorsivas de exploração como o sistema de cambão, da meia, da terça, ou como assalariados ganhando CR$60,00 a CR$240,00 por dia útil, sem nenhuma assistência técnica e financeira, que acarreta baixa produtividade e o controle da produção por um grupo restrito de açambarcadores que aumentam até 300% o preço dos produtos agrícolas, enquanto nas cidades as crises de gêneros alimentícios são constantes; se a realidade brasileira continuar a ser esta, em que um operário recebe em média um salário mínimo de CR$12.000,00 por mês, que não dá nem para o seu sustento individual, quanto mais para o de sua família; se a realidade brasileira continuar a ser esta em que as favelas brotam a cada dia em torno dos grandes centros urbanos, enquanto a especulação imobiliária faz com que a cada dia surja um novo edifício de apartamentos em cidades como Belo Horizonte, em que existem mais de 8 mil moradias desabitadas, a fim de manter a alta dos aluguéis…

Por outro lado, assistimos a um processo inflacionário, cada vez mais acentuado, forjado para sustentar um desenvolvimento não planificado, de cujos benefícios as grandes ausentes são as camadas populares; assistimos o escoamento de nossas divisas através da remessa de lucros; assistimos o gasto de fortunas exorbitantes nas eleições, para que as oligarquias brasileiras possam ser bem representadas nas assembleias chamadas democráticas; assistimos o agravamento progressivo da situação econômica de diversos Estados como Minas, Goiás, Rio Grande do Sul, mas principalmente os do Nordeste que nem os múltiplos planos de desenvolvimento, nem as “alianças para o progresso” conseguem conter.

Diante de tal quadro, parece-nos claro que de nada adiantará voltar a Universidade para esta realidade que aí está, a não ser para mudá-la.

É por isso que, no momento em que deixamos de ser estudantes para ser sociólogos, economistas, administradores e contabilistas, nosso compromisso exclusivo tem de ser definitivamente com a ciência, pois a ciência é o progresso e o progresso como resultado da prática conjunta de todos os homens se faz pelos avanços, pelas reformas, pelas revoluções.

Enganam-se os que acreditam ainda que a ciência é apenas uma técnica que pode ser usada para todos os fins ou que é algo puro que não se imiscui com problemas políticos.

Hoje em dia, com a divisão do mundo em dois blocos, estas falsas concepções estão mais do que desmascaradas. Ninguém poderá negar que existam, por exemplo, dois tipos de economia, dois tipos de sociologia, dois tipos de administração, porque cada sistema político gera o seu instrumental científico próprio.

No Brasil, país que tem procurado se afirmar como potência capitalista com relativos êxitos, a nossa Universidade nos procura moldar dentro daqueles princípios segundo os quais ela concebe a ciência! Assim, por exemplo, a medicina é uma medicina especializada num país em que existe 1 médico para cada 2.500 pessoas; a arquitetura é uma arquitetura para construções suntuosas, enquanto a maioria de nosso povo vive em barracos e choupanas miseráveis; a administração, uma administração burocrática e de relações públicas, que visa a encobrir a ausência de um serviço efetivo ao povo e as injustiças dentro das empresas; a economia, uma economia de empresa, enquanto o desenvolvimento fica entravado pela falta de planificação; à sociologia, tenta-se dar um caráter de controle social, através de métodos importados, enquanto a sua grande função seria a de analisar problemas de mudança social visando equacioná-los através de soluções objetivas. E assim, poderíamos continuar analisando todos os demais ramos da ciência no Brasil e encontraríamos em todos eles as influências nítidas do atual sistema político-institucional.

Mas quem pode conter a juventude de hoje!? Por mais bitolado e acadêmico que seja o ensino de nossos dias, nós, os jovens, temos tentado romper uma série de preconceitos tradicionais e temos conseguido abrir os nossos horizontes para perspectivas novas, temos tentado buscar a explicação das mais graves tensões sociais, temos acompanhado atentamente o desenrolar das crises econômicas, políticas e sociais da nossa época, em escala internacional e nacional, e temos tentado analisar não apenas os seus efeitos, mas as suas origens. E é por isso que grande parte da juventude brasileira já tem se definido pelas reformas sociais, não pelas reformas paliativas que buscam encobrir os efeitos sem extirpar as verdadeiras causas dos problemas, mas pelas reformas profundas, que atinjam diretamente o cerne, a raiz desses problemas!

Contudo, grande maioria do estudantado brasileiro, embora como tendência aceite essa posição, não se colocou ainda de maneira militante ao lado dela. Isso porque, como frisamos anteriormente, a luta apenas se inicia! E para nós, que estamos formando, se coloca a responsabilidade de continuarmos a mesma luta em um nível superior, buscando, através do nosso trabalho científico, ajudar as novas gerações a se definirem, rompendo com os esquemas rígidos, com os esquemas acadêmicos de pensamento e de ação.

E não haverá força que possa nos conter porque somos jovens, não apenas em idade, mas em ideal e, sobretudo, convicções!

Professor Admardo Terra Caldeira: a escolha do vosso nome para nosso paraninfo representa a última das homenagens, como estudantes, e a primeira como cientistas a esses ideais jovens e às jovens tendências. Professores como o sr. são um atestado de que está em marcha o processo da Reforma da Universidade e são uma promessa de que essa reforma triunfará.

Ao terminarmos, queríamos ainda nos confraternizar com a direção da Faculdade de Ciências Econômicas e com todos aqueles professores que, numa demonstração de maturidade, souberam compreender que o poder de decisão sobre os destinos de uma instituição não deve ser privilégio de cúpulas, mas sim o resultado dos esforços conjugados de todos aqueles que participam, de uma forma ou de outra, da vida dessa comunidade.

Queremos nos confraternizar com vossas excelências pela conquista da participação de 1/3 dos alunos na direção da nossa Faculdade. Que esta conquista sirva de exemplo àqueles que julgam que podem deter o progresso.

Quanto a nós, reafirmamos mais uma vez, a nossa disposição de prosseguirmos na luta pela emancipação do povo brasileiro, desse povo que à custa de sua ignorância, da sua forma, da sua indigência, da sua miséria, enfim, tem sustentado os alicerces dessa estrutura arcaica e de elites sob a qual se acentua a Universidade brasileira! Só assim, como privilegiados que somos, poderemos ter a consciência tranquila de estarmos usando desses privilégios para eliminá-los de uma vez por todas!

Afinal, quem poderá conter a juventude de hoje!?


Inclusão: 14/11/2021