Problemas e perspectivas do socialismo no Brasil

Vania Bambirra

21 de setembro de 1984


Fonte: Arquivo Vania Bambirra - https://www.ufrgs.br/vaniabambirra/ - Conferência. Florianópolis-UFSC. 21 de setembro de 1984. Publicada em Cadernos de Economia, Centro Acadêmico Livre de Economia/CALE, n. 1., Florianópolis, fev. 1985

HTML: Fernando Araújo.


Nós diríamos que no Brasil existe uma preocupação bastante sofisticada do Sistema em desenvolver uma consciência, uma atitude de preconceitos, uma atitude irracionalista de anti-socialismo.

Qual a formação que os jovens de primeiro e segundo graus recebem em relação ao que é o socialismo? Eu trouxe aqui um dos livros – poderia trazer muitos, eu tenho uma coleção de livros de OSPB aprovados pelo MEC – que são leituras obrigatórias das crianças de 1° e 2° graus, e que faz referencias sobre o socialismo. Este apenas ilustra, e eu queria começar a minha exposição de hoje ilustrando com um exemplo de como são formados nossos jovens de hoje em relação ao socialismo.

Este trabalho do professor Cleuzo Damasceno Duarte, um educador, que é o protótipo do educador brasileiro, aprovado pelo MEC, diz, por exemplo, o seguinte: na parte de Ciência Política, começa com uma série de erros crassos fundamentais do ponto de vista da Ciência Política e diz, por exemplo: “modernamente, o termo ditadura indica concentração de poderes nas mãos de uma única pessoa, que tendo chegado ao poder por via legal ou por usurpação, governa como bem entende”.

Quer dizer: já de partida não existem as classes sociais, a ditadura é de umas pessoas. Em seguida, vem toda uma concepção bastante racista e preconceituosa, que é a concepção inculcada na mente das nossas crianças e dos nossos jovens, e que diz o seguinte: “…sem falar dos países socialistas, onde vigora a ditadura do proletariado, que adiante explicaremos, há no mundo contemporâneo numerosas ditaduras, sobretudo em Estados menos desenvolvidos do continente africano”. Este livro é vigente desde metade da década de 1970, época em que no continente latino-americano existiam pelo menos 70% de países que eram ditaduras, mas aqui só mencionam o continente africano, porque “é a África”, “são os negros”, “aquilo” são países menos desenvolvidos; e começar a falar do que é propriamente o socialismo… Tem até uma foto do Marx, com uma cara sinistra, “esse regime é o mais radical totalitarismo já conhecido pela humanidade…”

Em seguida (o livro) fundamenta a análise que é transmitida às nossas crianças, aos nossos jovens, num depoimento de um dissidente soviético, chamado Amaurick, e que diz o seguinte: “ao meu ver, as opiniões populares podem ser simplesmente descritas pelas palavras, descontentamento passivo” – referindo-se à situação existente nos países socialistas, particularmente a URSS, e segue: “todo mundo se irrita com a grande desigualdade na distribuição das riquezas, com os salários baixos, com as indignas condições de alojamento, com a falta de mercadorias essenciais, com o registro policial compulsório dos seus locais e residências de trabalho, e com a escolha de residências de trabalho pelas autoridades, etc…”.

Lendo assim essa descrição, parece até que o senhor Amaurick não está se referindo a um país socialista, mas está se referindo ao Brasil, particularmente ao Brasil da época da repressão: diz que todo o mundo se irrita com a desigualdade de riquezas; nós vivemos num país onde existe a maior concentração de riquezas do mundo. Isto são dados do Banco Mundial, que revelam isso, onde existe a maior concentração de renda, quer dizer, desigualdade de distribuição de riquezas. Num país socialista existe desigualdade – nós vamos em seguida discutir isso – mas a desigualdade está dada por uma escala salarial que varia de um a dez pontos, o salário mais alto nunca é mais do que dez vezes superior ao salário mais baixo.

Quanto às indignas condições de alojamento, quer dizer, dos países socialistas, particularmente a União Soviética, de onde provem o Sr. Amaurick, houve mais de cem cidades destruídas durante a Segunda Guerra Mundial. Gerou-se, portanto, um problema gravíssimo de alojamento, que hoje já foi superado, mas durante décadas existiu realmente. Então, famílias, ou seja, várias famílias tinham que às vezes ocupar a mesma casa, porque ninguém dormia na rua. Porém, problemas de alojamento graves temos nós no Brasil, em que em cidades como o Rio de Janeiro, por exemplo, um terço da população é favelada.

Existem mais de quatrocentas favelas e a população favelada ascende hoje por volta de dois milhões de pessoas na cidade do Rio de janeiro. Eu estou mencionando esses dados porque são os que tenho mais frescos na minha cabeça. Mas este levantamento é semelhante em grandes cidades do Brasil, e nas favelas as pessoas vivem realmente em condições indignas de existir.

Agora, não existe um só país socialista, por mais pobre que seja, em que as pessoas vivam em condições indignas de existir; quer dizer, não é por aí que nós poderemos localizar os problemas que o socialismo tem, e que por certo tem. Falta de mercadorias essenciais existe em países socialistas que ainda têm problemas de fila e de racionamento de produtos básicos, como é, por exemplo, o caso de Cuba. Agora, naturalmente, um país onde a população não se alimenta, onde mais da metade da população é subnutrida, como no caso do Brasil… O dia em que um governo resolver alimentar toda a população, vocês já pensaram como é que vai ser a distribuição? Já pensaram o problema que vai ser para o socialismo no Brasil alimentar cento e trinta milhões de pessoas? É óbvio que terá que ter o racionamento, se nós queremos garantir o alimento essencial para toda a população no seu conjunto e não deixar com que mais de cinquenta por cento da população viva em condições de miséria absoluta como existe no nosso país.

O registro policial compulsório dos seus locais de residência… isso era um fenômeno muito comum no Brasil durante o período de repressão e ainda continua existindo. Esse é um fenômeno que caracteriza a atuação da polícia militar nas grandes capitais do nosso Estado e que realmente entra na favela, vasculha as casas dos trabalhadores, sem nenhuma limitação, sem nenhum impedimento. Mas, segue por aí, o governo totalitário… a definição de governo totalitário como característica do socialismo… o partido único como característica do socialismo… com um grande desprezo pela história, porque não existe nenhuma questão de princípios em relação à questão no socialismo. Existem experiências históricas em que só existe um partido, como existem outras em que existem vários partidos. Isto não é nenhuma questão de princípio. Agora, a existência de um partido único foi o resultado do desenvolvimento de condições concretas, específicas da própria dinâmica da luta de classes que fez com que o resultado tenha sido da existência de um partido único. Por exemplo, na União Soviética, quando os bolcheviques tomam o poder, eles não tinham no seu programa a tese do partido único e nem proibiram imediatamente a existência dos outros partidos que não o deles. Continuaram atuando o partido menchevique, partidos esseristas, partidos democráticos constitucionalistas, que era o partido burguês. Na medida em que esses partidos passaram à contra-revolução e deflagraram a guerra civil, naturalmente houve uma polarização que permeou a sociedade em todos os seus níveis, e a gente diria mesmo, em uma colocação que eu gosto de insistir, que o ritmo da radicalização é marcado pela contra-revolução, e os retrocessos democráticos muitas vezes são respostas concretas à atuação da contra-revolução.

A Nicarágua fez um esforço tremendo para ser uma revolução generosa na vitória. Na Nicarágua não existiram os paredões, como existiram em Cuba, e que por certo motivou toda uma campanha publicitária a nível mundial contra a revolução cubana, esquecendo-se por exemplo que nos países capitalistas, em muitos países capitalistas desenvolvidos, como é o caso dos Estados Unidos, existe a pena de morte em muitos estados. O paredão era uma pena de morte, mas no caso cubano isto foi superdimensionado como um argumento que toda a contra-revolução e a opinião pública, formada pela grande imprensa, utilizou para questionar e para criticar a revolução cubana.

Na Nicarágua não existe esse problema, se esforça para manter o pluripartidarismo, numa situação inclusive onde a contra-revolução conspira abertamente em território nacional e no exterior.

Mas por aí vai a análise do nosso educador do MEC. Diz, por exemplo, em relação à socialização dos meios de produção: “o Estado é dono de tudo. Terras, fábricas, máquinas e patrão de todos”. Isto é mentira. Está profundamente equivocado; existem várias formas de propriedade, que vão desde a propriedade estatal, passando pelas cooperativas, outras formas de propriedade social, até a propriedade privada, a pequena e média propriedade dos meios de produção. Eu tenho a impressão de que nós não encontraremos nenhuma experiência histórica do socialismo existente hoje no mundo onde não sobreviva ainda a pequena propriedade e a média propriedade. Se nós tomarmos, por exemplo, o caso de Cuba nós iremos ver que trinta por cento das terras cubanas – e por certo as mais férteis – ainda estão em mãos de pequenos camponeses.

E vai por aí. Toda a “análise” do que é o socialismo e o que se incute na cabeça da juventude e das crianças, quer dizer, naturalmente quem estuda isso, quem acredita nisso, quem respeita o professor e não pode imaginar que ele esteja informando mal, vai sendo, vai se desenvolvendo como anti-socialista.

Quer dizer, nós estamos aqui abordando a crítica pedagógica ao socialismo, que vem nos grandes grandes livros didáticos, mas também esta é a crítica da grande imprensa, que se dedica a desinformar e a buscar a sua informação em análises por exemplo do tipo Soljenítsin, que ganhou o prêmio Nobel que por certo não foi por suas qualidades literárias. Como literato, é absolutamente medíocre, mas ganhou o prêmio por análises desse tipo: ele se refere, por exemplo, à peste comunista. Diz o seguinte: “qualquer compromisso com um país socialista, qualquer que ele seja, constitui um perigo mortal”. São citações de Soljenítsin, que eu tirei de um artigo que foi publicado no “Estado de São Paulo” no dia 29/05/83. “O comunismo se apresenta como uma força ainda desconhecida na História mundial. É um fenômeno anti-humano de ordem metafísica. Até mesmo seus vícios, seus absurdos, seus fracassos servem para reforça-lo”. Se refere aos comunistas como conspiradores sem fé nem lei, diz: “o comunismo é uma fossa energética, é terrivelmente difícil sair dele, a menos que haja uma feliz convergência de todos os esforços”.

Quer dizer, o comunismo é a fossa, é o mal, é a visão maniqueísta do bem e do mal, que justifica-se portanto. Tudo para liquidar o mal justifica-se, e qualquer tipo de política racionaliza-se, como a política de genocídio de Reagan na América Central.

Quer dizer é isso: junto às manchetes “fome na Polônia”, as fotos do Jaruzelski com óculos escuros e o Lech Waleska – também prêmio Nobel da paz, como grande redentor do povo polonês – não se divulga amplamente os depoimentos de Lech Walessa de que apoia Reagan e o modelo dele, e a sua inspiração é o Reagan, e a nossa juventude sai toda tendo Lech Waleska seu líder, porque a imagem vendida pela grande imprensa do Lech Walessa é a de um líder libertador, é a de um homem que resiste à burocracia, que luta pela soberania nacional e contra o imperialismo soviético. Essa é a cabeça formada pela grande imprensa.

Existe no Brasil, bem ajeitada e funcionando em ampla escala, uma máquina de anti-socialismo, e tem que ser assim…

Bloqueia-se Cuba por quê? Porque Cuba é uma vitrine, é uma vitrine bonita, quem vê essa vitrine tem vontade de possuir o que ela mostra, e então o bloqueio, um bloqueio ideológico, tão consciente, tão consequente que inclusive prejudica os interesses da grande burguesia brasileira, que tem toda a motivação por explorar o mercado cubano. O objetivo desta máquina anti-socialismo é desenvolver o preconceito, o ceticismo e desenvolver por fim o reacionarismo. Se o socialismo é tão sinistro quanto o capitalismo, para que vamos lutar pelo socialismo? Resta ao jovem o anarquismo, tendência a se proliferar pela nossa juventude, inclusive a universitária. É o niilismo ou a toxicomania.

Existem ainda, outros tipos de críticas, essas são piores, porque são as críticas da esquerda. É o indivíduo que fala “eu sou socialista”, mas é um crítico do socialismo, critica tudo o que está por aí porque na sua concepção o socialismo real não tem nada a ver com o socialismo. “Não existe socialismo no mundo, eu sou socialista, estou lutando pelo socialismo, mas não existe o socialismo no mundo”. O que condicionou esta visão deste crítico da esquerda? Em geral é a pessoa desinformada, ou melhor, formada pelo educador do MEC ou pela Rede Globo, pelo Estado de São Paulo, pelo Jornal do Brasil, enfim, pela grande imprensa do sistema. Ou então, é o individuo que foi formado na época do stalinismo, um seguidista que tinha visão maniqueísta do mundo: a URSS é o bem, o resto é o mal, Stálin é Deus, Marx e Lênin os profetas, de repente aparece o 20º Congresso quando descobre-se que as coisas não eram bem assim. Então deu-se uma volta de 180 graus, e como o indivíduo era maniqueísta, o que era antes adorado passa a ser odiado, Stálin de Deus se transformou no Satanás e juntos os profetas. Marx, Engels e Lênin não servem para mais nada, vamos jogá-los na lata do lixo…

Desta forma, questiona-se no seu conjunto o socialismo existente, e diz-se que não existe mais o socialismo no mundo e que se tem de criar um socialismo completamente diferente. Quer dizer, um seguidismo absoluto que ao invés de conduzir a uma visão crítica e autocrítica profunda e séria, conduz a uma negação irracional do socialismo. Esta é a atitude que explica, por exemplo, o anti-sovietismo irracional de um Santiago Carrillo ou de um Fernando Claudín. Eram homens absolutamente esquerdistas, stalinistas, e de repente se transformaram em anti-stalinistas e anti-seguidistas, não conseguindo superar a visão maniqueísta do mundo.

Faço aqui uma colocação, que sei ser provocativa: o socialismo real é o socialismo possível. O socialismo existente é o que foi possível desenvolver-se no mundo até hoje, num contexto de condições históricas particulares de desenvolvimento da humanidade e desenvolvimento da experiência concreta de cada povo. Quando pensamos em desenvolver o socialismo no Brasil, devemos ser modestos, pois, não teremos a capacidade muito superior a de outros povos de evitar erros e construir experiências mais perfeitas. O que devemos ter é a “cabeça aberta”, livre de preconceitos. Ter também atitude de buscar objetividade na compreensão dos avanços e das limitações da experiência histórica socialista concreta. Buscar entender o que há de positivo e de avanço, e quais as limitações e porque elas existem num processo de desenvolvimento do socialismo no plano mundial.

Para entendermos o socialismo realmente existente, evemos levantar algumas questões fundamentais da teoria do socialismo. Naturalmente antes do desenvolvimento do socialismo científico, com Marx, Engels e posteriormente Lênin, foram desenvolvidas uma série de teorias que foram consideradas utópicas. Utópicas porque idealistas, reformistas da sociedade, pois, não tinham nenhuma possibilidade concreta de se realizar. Por exemplo, se nós analisarmos o pensamento de Babeuf: o que é que ele propõe? Propõe um igualitarismo distributivista agrário. Distribuir a terra, ele achava que com isso iria chegar ao socialismo. É uma utopia, socialismo não se desenvolve na parte mais atrasada da estrutura econômica e social, que é a estrutura agrária.

Se nós analisarmos, por exemplo, quando ele prega que é importante convencer os ricos para que ajudem também o desenvolvimento das comunidades agrárias, era toda uma visão agrarista do socialismo utópico. Então ele dizia: vamos convencer os ricos a serem  bonzinhos. O problema não é de pessoas, o problema é de uma estrutura econômico-social. Então ele tinha uma visão completamente utópica, que não conduzia a nada.

Podemos analisar Owen, que propunha as cooperativas de fábricas, dirigidas pelos operários, inclusive fazendo experiências concretas na Inglaterra, que resultavam obviamente num fracasso.

E, finalmente, há teóricos como Proudhon, com toda a sua concepção anti-autoritarista – anarquista portanto – que preconizava o fim do partido, o fim do Estado, e que na prática com a experiência concreta da Comuna de Paris todos os proudhonistas se convenceram de que aquilo não funcionava. A Comuna de Paris mostra isso porque ela se faz com armas, com baionetas, com canhões e com fuzis, que uma classe não entrega um poder para outra sem isso, e que, ademais, não existe nada mais autoritário que o funcionamento de uma fábrica, que exige disciplina, comando, autoridade, para não cair na utopia.

Nem Marx, nem Engels nunca buscaram descrever nos seus detalhes, como fizeram os socialistas utópicos, como seria a nova sociedade. Mas eles manejaram formas algébricas, trataram de dizer o que não seria a sociedade socialista, mas nunca tiveram o atrevimento ou irresponsabilidade de dizer no que iria consistir a sociedade socialista.

Engels mesmo, analisando a questão da habitação, dizia: “é claro que na sociedade socialista não se tratará de dar uma casinha para cada trabalhador em propriedade privada; trata-se de coisa muito mais substancial que iso, trata-se de desenvolver toda uma concepção revolucionária, urbanística e arquitetônica”.

Da mesma maneira, quando Lênin analisava a questão da libertação da mulher, metade da população, dizia que essa libertação só seria possível efetivamente quando fosse possível a industrialização da economia doméstica, e o que está por trás disso é uma revolução profunda de toda estrutura econômico-social. Enquanto isso, trata-se de reformar, de revolucionar os códigos civis, de igualar completamente a mulher ao homem. Mas isto não vai resolver o problema da subjugação da mulher, por que em definitivo é a economia doméstica que a escraviza.

O fato é que Marx e Engels tiveram como objeto de estudo não o socialismo, mas a sociedade capitalista. Se a gente juntar tudo o que Marx e Engels escreveram sobre o socialismo não dá mais de oitenta e poucas páginas. E o texto mais amplo, o maior de Marx sobre o socialismo, sem nenhuma dúvida, é a Crítica ao Programa de Gotha, que é um texto pequeno, varia de cinco a sete páginas, dependendo da edição. Os dois – Marx e Engels concentraram todo o esforço na análise do modo de produção capitalista. Eles só conseguiram efetivamente analisar as leis de movimento do modo de produção capitalista, porque do ponto de vista teórico-metodológico, eles enfocavam a análise do capitalismo desde a perspectiva da sociedade futura, da sociedade que supera o capitalismo e é por isso que Marx dizia que com razão que é a anatomia do homem que explica a anatomia do macaco e é por isso que tinha razão Preobrazhenski quando dizia que O Capital só pôde ser escrito desde a perspectiva de um comunista, somente se colocando dentro da perspectiva superior se pode entender plenamente uma sociedade atual, e é por isso que, se bem Marx e Engels não se dedicaram a analisar o socialismo – eles nunca iriam fazer uma nova utopia – eles sentaram as bases fundamentais para o desenvolvimento dessa teoria do socialismo, que em definitivo só vai ser desenvolvida por Lênin, porque ele vai ter experiência prática concreta da construção do primeiro Estado socialista. E a prática é a história que concede os elementos conceituais fundamentais para se elaborar uma teoria como o marxismo, que é uma teoria histórica, onde os conceitos são históricos, e são redefinidos pela prática. Por exemplo, concepção de Estado socialista de Marx e Engels: a primeira intuição sobre o que é que seria o Estado socialista está no Manifesto Comunista de 1848, quando ele diz que a classe operária se apossará da máquina do Estado para funcionar em seu proveito e em proveito da sociedade. Essa é a primeira intuição do conceito de Estado socialista, mas é errada. É uma intuição que vai ser redefinida, precisada por Marx e Engels depois da experiência da Comuna de Paris. Quer dizer: é a prática concreta, histórica, que vai integrar em definitivo os elementos para que o conceito de Estado socialista, ou seja, o conceito de ditadura do proletariado seja redefinido com todo o rigor científico. Então, com a Comuna de Paris, eles podem superar aquela primeira versão intuitiva do que seria o Estado socialista que eles tinham tido em 1848.

Com as revoluções da França e da Alemanha, eles vão chegar à seguinte conclusão: o proletariado não pode ser apossar da máquina do Estado burguês existente e governar com esta máquina, ele tem que destruir o Estado existente e construir um Estado novo, quer dizer, o Estado socialista é um Estado qualitativamente diferente. Posteriormente, virá Lênin enriquecendo todo esse conceito e destruindo o Estado burguês, mas vai resgatar todo o desenvolvimento científico, todo o avanço técnico que esse Estado tinha produzido. E aí nós entramos um pouco na dimensão desse conceito de ditadura do proletariado, que é muito controvertido, mas esta controvérsia não vem de hoje, é antiga, desde o fim do século XIX, com o desenvolvimento dos grandes partidos social-democratas europeus, desde a elaboração do pensamento de Bernstein, que exatamente questiona este conceito, e que exatamente coloca como alternativa a evolução gradual e paulatina do sistema capitalista através de reformas, e a transmutação do capitalismo ao socialismo, exatamente como colocam hoje os eurocomunistas.

Do ponto de vista teórico o eurocomunismo não inova nada, ele resgata o verme stalinista.

O fundamental do aporte dos clássicos e sobretudo de Lênin, em relação à questão do Estado socialista, do Estado proletário ou da ditadura do proletariado, como preferirem chamar, vem exatamente demonstrar que o conceito de ditadura e o conceito de democracia são um conceito único. O conceito de ditadura envolve o de democracia, e o de democracia envolve o de ditadura. O que nós queremos dizer com isso é o seguinte: toda a democracia é ditatorial, assim como toda a ditadura é democrática, enquanto existir Estado. Mas quando já não existir Estado não vai existir democracia nem ditadura. Esta é uma questão fundamental do ponto de vista teórico, e o próprio Marx dizia que a grande contribuição dele não era haver analisado a luta de classes, nem a dinâmica dela, porque a descoberta da luta de classes já havia sido feita pelos teóricos burgueses, que o grande aporte dele era exatamente haver equacionado a questão da ditadura do proletariado. Isto Marx disse explicitamente numa carta a Weidemeyer, ou seja, ele mesmo considerava que o fundamental do seu aporte era a sua teoria do Estado, teoria esta que é mais desenvolvida por Lênin. Quer dizer: Marx e Engels colocam as bases da teoria do Estado, mas quem realmente vai desenvolver é Lênin, ainda que lamentavelmente todo o desenvolvimento da teoria marxista feita por Lênin depois de 1917, que incide exatamente sobre a teoria do socialismo, não foi sistematizada por ele. Ele fazia discursos, escrevia informes, fazia comunicados, era um estadista, e toda a sua contribuição está perdida no mei ode um conjunto de informe, discursos, artigos cujos títulos nem sempre revelam o conteúdo, e que não foram articulados de maneira sistemática, de tal forma que a gente pudesse perceber a grandiosidade do aporte científico e teórico de Lênin sobre a teoria do socialismo. Bukharin tinha razão quando dizia que Lênin tem, na sua obra, “O Capital” do socialismo, só que ainda falta sistematizar esse “Capital”, articular por Lênin o que ele não teve tempo de fazer. A sua teoria do socialismo são vinte e cinco mil páginas de obras, que são absolutamente desconhecidas. Em geral, se conhecem as obras de divulgação, mas não as referenciais de conteúdo profundo, em que ele equaciona questões que são fundamentais na nossa época, inclusive a questão da burocracia, que é tão polêmica, tão controvertida e tão mal enfocada nos dias de hoje.

Agora, quando nós tratamos de destacar este aspecto unívoco do conceito de ditadura-democracia, é muito importante chamar a atenção para o fato de que não se pode confundir Estado com governo. O que define o caráter de um Estado é a hegemonia do poder de uma classe. Todo Estado burguês é uma ditadura burguesa, ainda que nós possamos encontrar Estados burgueses que tenham governos republicanos, democráticos ou aristocráticos. Mas a essência é sempre a mesma. Lênin chamava a atenção para o fato de que o socialismo, o Estado socialista, sendo uma ditadura, como o Estado burguês também o é, é essencialmente diferente do Estado capitalista – e a diferença reside exatamente no fato de que essa classe é que detém a hegemonia do Estado. Porque? No socialismo, é uma ditadura da maioria sobre uma minoria, portanto é uma democracia para a maioria e uma ditadura para a minoria. Enquanto que no capialismo é o inverso, é uma ditadura da minoria sobre uma maioria enorme da população. Mas Lênin também chamava a atenção de que o aspecto do Estado socialista tem outras características: a ditadura da classe operária tem características que são essenciais, e ele assinalava que, em primeiro lugar, o fato de existir a hegemonia de poder da classe operária em aliança com outras classes é uma das características essenciais do Estado socialista e da ditadura do proletariado. Por outro lado, existe também todo um desenvolvimento de uma nova disciplina proletária que trata de se generalizar e de se impor sobre as demais classes sociais, sobretudo sobre as classes médias da pequena burguesia, que sobrevive a esse sistema. Ditadura, nova disciplina e aliança de classes compõem as três características do Estado socialista ou ditadura do proletariado. Na medida em que avança essa experiência, o desenvolvimento do Estado socialista, o conteúdo democrático deste Estado tende paulatinamente a predominar sobre o conteúdo coercitivo, quando vai cessando a reação das classes derrotadas. Isso se expressa, por exemplo, através do sistema político, no qual se preconiza a revogabilidade dos representantes do povo, que só existem em países socialistas. Não conhecemos, não existe, nenhum país capitalista onde exista a revogabilidade dos eleitos por parte dos eleitores. Esse direito foi colocado pela primeira vez na história pela Comuna de Paris, e sem nenhuma dúvida caracteriza a democracia mais avançada possível que possa existir, ou seja, o direito do eleitor retirar o seu representante se ele não corresponder ao compromisso assumido previamente. Outra característica da democracia socialista que tende a se desenvolver é a vinculação entre as tarefas executivas e legislativas, ou seja, os que legislam, o poder popular, são os mesmos que executam estas tarefas. Não existe no socialismo esta divisão de poder, entre o executivo e o legislativo. É o povo organizado quem governa e quem administra a sua vida econômico-social. E, por último, a participação popular, que ademais é o suposto, o pressuposto do processo de planificação. Nós vamos nos referir mais adiante a isso. Não é possível conceber nenhuma planificação socialista como um engendro de tecnocratas ou de burocratas. Se uma economia socialista planificada está crescendo, está funcionando, se desenvolvendo, vocês podem estar seguros que a participação popular é intensa neste processo, com engendro tecnocrático não existiria economia planificada. Planificação é sinônimo necessariamente de participação popular e democrática das massas. E a prática dos países socialitas é com os planos discutidos a nível de classe, e são redefinidos a nível de classe, porque se não fosse assim não teria eficácia.

Finalmente, para deixar esta parte teórica, é importante ver que, para Marx e Engels, o socialismo era um mero progresso, desde a perspectiva do capitalismo. Quer dizer, o socialismo não iria tocar fundamentalmente a estrutura do capitalismo de repente, é um mero progresso sobretudo visto da perspectiva da sociedade que nos supera, da sociedade plenamente comunista, sem Estado, sem classes sociais. Isso é muito importante do ponto de vista teórico, pois é dessa ótica que se vai compreender as limitações e os avanços objetivos do socialismo real. Marx e Engels caracterizaram o socialismo como um período de transição. Está muito claro na Crítica ao Programa de Gotha: um período de transição entre o capitalismo e o comunismo e a sociedade superior. Um período onde coexistam heranças muito fortes do modo de produção capitalistas, e onde começam a surgir, a se desenvolver os brotos do novo modo de produção que superará o socialismo. Portanto, o socialismo é a coexistência de elementos antigos e elementos novos que vão surgindo, é um período de transição. Não chega a ser propriamente, do ponto de vista teórico, um modo de produção novo. É uma formação econômico-social em que existem elementos do antigo e do novo e, portanto, a característica fundamental deste período de transição é a escassez. A sociedade ainda é regida pelo princípio da escassez. Não há abundância, que deverá existir na etapa superior, porque o homem ainda não tem um domínio amplo e desenvolvido sobre a natureza, nem sobre sua própria natureza. O socialismo trata de adminitrar, da maneira mais equitativamente possível os bens escassos. Não se franqueou ainda os umbrais do pleno desenvolvimento das forças produtivas e nem se processou a revolução científico-técnica. Existe ainda um agravante: Marx e Engels sonhavam que o socialismo se desenvolveria em países capitalistas desenvolvidos, e isso nunca aconteceu, o socialismo triunfou em países atrasados, feudais ou oligárquicos, e que ademais foram arrasados antes, durante ou depois do triunfo da revolução por guerras civis violentas e por intervenções imperialistas. Não teve nenhuma revolução socialista que trinfou sem intervenção aberta do imperialismo. Além da pobreza, do atraso, das heranças do feudalismo e de estruturas econômico-sociais oligárquicas pré-capitalistas, sofreu-se mesmo assim a destruição desta estrutura. Então, na realidade, o socialismo real passou a ser construído em cima de muito atraso, de muita destruição, de muita carência. Era o que levava Lênin a exclamar de maneira desesperada na época da NEP (Nova Política Econômica). Não temos sequer um bom capitalismo que nos sirva. Temos sim um feudalismo, uma cultura feudal atrasada.

Ainda permanece no socialismo a divisão entre o trabalho manual e intelectual, a contradição entre campo e cidade, permanece também o direito da igualdade que, como Marx coloca na Crítica ao Programa de Gotha, é um direito absolutamente burguês porque os indivíduos não são iguais. Não sendo os indivíduos iguais, não podem ser regidos pelo direito da igualdade, porque este é desigual. Mas no socialismo o direito vigente ainda é burguês. Porquê? Porque se remunera o indivíduo, a sociedade tem que devolver aquilo que o indivíduo é capaz de dar à sociedade. O indivíduo com melhor capacidade, com maior aptidão dá mais à sociedade, portanto esta o remunera melhor do que aquele que possui menos aptidão, menor capacidade. Para a definição de uma escala salarial que varia de um a dez salários, são adotados os seguintes critérios: o critério da complexidade do trabalho, responsabilidade, desempenho, qualificação (científica, tecnológica, artística, etc.) e desgaste da saúde. Sendo assim, o indivíduo, no caso um engenheiro, ganha mais que um operário da construção civil, ainda que ganhe igual a um mineiro, porque entra o fator desgaste da saúde. O mineiro tem a vida mais curta porque trabalha em condições inóspitas.

Como já colocamos acima, a desigualdade existe e, portanto, a crítica do socialismo que nos põe a nu esta questão é uma crítica torpe e não podia ser de outra maneira. O princípio geral do socialismo é: “a cada um conforme sua capacidade”. Trabalhos mais úteis socialmente, mais complexos e mais qualificados serão melhor remunerados do que os demais. São critérios que a sociedade institui e portanto predomina o direito da igualdade que é exatamente o direito da desigualdade. Porém, a desigualdade no socialismo é limitada, variando dentro de uma escala de 1 a 10 salários. Aí nós teremos estabelecido o direito da desigualdade, que é um direito superior. Mas isto supõe um tremendo desenvolvimento das forças produtivas. E Marx teve a intuição da revolução científico-tecnológica, quando percebeu que o desenvolvimento da ciência e da tecnologia era típico do socialismo desenvolvido. E em nossos dias, existe toda uma elaboração em torno disso: a elaboração pioneira foi feita na Tchecoslováquia pelo grupo de pesquisa liderado por Radovan Richta, e existe no Brasil uma edição parcial do trabalho, que é a obra mais espetacular que eu li depois de O Capital – se chama A Humanidade na encruzilhada de sua história. Esta equipe é composta de filósofos, economistas, engenheiros, físicos, químicos, psicólogos, etc., e que tratou de analisar as características da revolução científico-técnica no mundo contemporâneo, e eles tratam de desenvolver a tese de que a revolução científico-técnica é típica do socialismo desenvolvido, e tende a fundar um modo de produção superior, que é o comunista.

E a revolução científico-técnica não pode ser levada a cabo no capitalismo. Apesar de ter começado a se processar nos países desenvolvidos a partir de 1945, a partir do pós-guerra, o capitalismo não a pode levar adiante. Porque o que é revolução científico-técnica? É a ciência como principal força produtiva, é o desenvolvimento maciço dos processos de automação, é a liberação do trabalho humano direto do processo produtivo, é a computadorização de toda a sociedade, e é, portanto, a superação do trabalho humano manual e intelectual da produção.

O capitalismo não pode levar até o fim a revolução científico-técnica, ela é típica do socialismo. Quer dizer – nós chegamos num nível do desenvolvimento da sociedade em que o desenvolvimento do socialismo, a evolução para o socialismo, se impõe como necessidade histórica de sobrevivência da humanidade, e o capitalismo passa a ser, cada dia mais, o modo de produção reacionário, que se coloca cada vez mais contra o progresso da ciência e da tecnologia. Nós sabemos que o processamento parcial desta revolução científico-tecnológica nos países capitalistas desenvolvidos gera progressivamente um desemprego estrutural, um desemprego que permeia todos os níveis de qualificação profissional da sociedade, como por exemplo a sociedade norte-americana. Existe hoje um desemprego estrutural de quadro científicos-tecnológicos de alto nível em todos os países capitalistas do mundo e não há nenhuma possibilidade de superação deste problema, não há nenhuma possibilidade de esses quadros científico-tecnológicos serem aproveitados pelo sistema capitalista. Ademais, todo o setor de serviços, toda a burocracia tende a ser substituída pelas máquinas. O que é que o capitalismo pode fazer com esta liberação de mão de obra? Gerar um exército de desempregados, de marginalizados e de famintos gigantesco, enorme.

A decadência do capitalismo que nós vivemos hoje, mais do que nunca, anuncia o seu fim, um fim mais trágico, mais dantesco que o do Império Romano.

Hoje em dia, só quem não pensa, quem não para pra pensar, ou quem tem interesse particular, pode ser um defensor da sobrevivência do capitalismo. Porque é um regime histórico, um regime que tende a travar um progresso da Humanidade, que tende a impedir o desenvolvimento da ciência e da tecnologia.

O processamento da revolução científico-técnica cria uma contradição absoluta no capitalismo: como este poderia funcionar sem a mais-valia, sem o trabalho humano que ele explora? Quer dizer, não tem possibilidade de resolução desta contradição absoluta do sistema.

Voltando, para terminar esta parte: o socialismo é isto, é um período de transição, regido pelo princípio da escassez, em que se trata de administrar de maneira mais equitativa possível estes bens escassos. E durante todo esse período (se bem que Marx e Engels visualizavam a abolição do Estado) o Estado não é abolido. É extinguido, progressiva e paulatinamente. Mas a tendência normal imediatamente depois do triunfo de qualquer revolução socialista é o fortalecimento do Estado, o fortalecimento das classes sociais, o fortalecimento dos partidos. O Estado se fortalece por que tem que intervir na economia e promover a planificação centralizada da economia. As classes se fortalecem porque, se bem alguns tendam a desaparecer – como a burguesia – a classe operária tende a se fortalecer, se expandir e adquirir funções novas, sobretudo os que representam os interesses dessas novas classes que ascendem ao poder.

O partido não é mais um instrumento de oposição, um instrumento de organização da luta para tomar o poder, é um instrumento de gestão da sociedade, é um veículo de organização da cultura, então ele tende a se expandir e as suas funções se multiplicam. Assim, antes de se extinguir o Estado ele se fortalece, antes de começarem a se extinguir as classes, elas se fortalecem, e antes de desaparecerem os partidos – mal necessário – eles também tendem a se fortalecer. Digo “os partidos” e não “o partido” porque pode ser um ou mais partidos, são vicissitudes, contingências concretas da luta de classes. Não existe nenhuma questão de princípio se dão vários partidos ou se é um só. Porém, todas essas limiações que nós estávamos destacando sobre o socialismo afirma já a sua superioridade como organização econômica, ou seja, se planifica a vida econômico-social, não existe mais desperdício, irracionaliades. O Homem se propõe metas de desenvolvimento e trata de alcançar estas metas.

Se desenvolve a ciência e a tecnologia; o processo de urbanização é promovido de maneira mais racional, a saúde pública avança, a educação avança, é meta prioritária, a cultura avança e os esportes avançam. Claro que todos esses avanços se fazem em meio de restrições e de mediocridades, que são ainda típicos de atraso, e que sempre estão de uma certa forma temperados com um certo condimento de subdesenvolvimento. É óbvio que a sociedade, a cultura humana, não muda, qualitativamente, em uma década ou duas ou cinco décadas. É todo um resultado de um processo histórico. Mas o fato é que a democracia, se nós temos um conceito de democracia mais amplo, que é política, mas que é social, que é econômica – que garante ao indivíduo casa, alimentação, escola, trabalho, lazer e esporte – esta democracia naturalmente é muito mais aperfeiçoada numa sociedade socialista que numa sociedade capitalista, por mais democrática que ela seja no capitalismo. E é por isso que eu discordo do Gunder Frank, quando no Congresso de Política Econômica, no Rio de Janeiro, analisando a crise econômica internacional, ele tendia a colocar tudo num mesmo saco, capitalismo e socialismo. Isso é errado, não se pode fazer, porque se bem a crise é internacional, afeta os países socialistas; não existe nenhum indivíduo em países socialistas sem escola, sem assistência gratuita à saúde, que mora embaixo da ponte, que não tem casa. Isso são conquistas fundamentais, pelo menos da ótica do indivíduo saciado. O que eu quero dizer é que a ótica do saciado, do culto e do integrado é muito diferente do faminto, do analfabeto e do marginalizado. Por que se pode dizer: “mas isso não é nada, dar comida, casa, educação, emprego, isso não é muita coisa, eu quero grandes avanços”; mas isso é tudo, por que isso são os requisitos básicos da dignidade humana, e para quem nunca teve isso, que é o caso da maioria da nossa população, isso é fundamental. Sem isso, não existe desenvolvimento cultural, da dignidade, não existe nada. Agora, quando tudo isto estiver conquistado, a própria concepção da liberdade do Homem passa a ser colocada num patamar superior.

Você vai lutar por ter liberdade, tendo resolvido os seus problemas fundamentais de uma existência digna, é muito diferente de você lutar por liberdade sem que você tenha satisfeito essas necessidades mínimas que uma existência exige. Por isso, não me venham dizer que a problemática do operário polonês é a mesma do operário de São Paulo, porque não é. É radicalmente distinta. O operário polonês já é outro cidadão, ele não está preso às necessidades mínimas, ele não é uma vítima deste contexto, que diminiu e que liquida a possibilidade de dignidade, como está preso o nosso operário superexplorado, o nosso desempregado, o nosso camponês, o nosso marginalizado e a maioria da nossa população. Se pode dizer que ambos têm um denominador comum, que estão lutando pela liberdade, ou pelo aperfeiçoamento da liberdade, mas isto o Homem vai lutar sempre. Não podemos nunca conceber que o Homem vá chegar numa etapa que é o fim da luta, é o fim das conquistas, e nós vamos chegar ao limite máximo da liberdade humana… Não. O Homem sempre vai querer mais. E quando ele tiver conquistado tudo na Terra e feito tudo aqui, ele vai conquistar o Cosmos, ele vai se lançar a outras aventuras.

Mas existem patamares diferentes e o patamar do homem socialista é muito superior ao nosso. É isso o que eu queria dizer, e é por isso que eu continuo dizendo: prefiro o pior socialismo ao melhor capitalismo, sem sombra de dúvidas.

Porque eu tento me colocar na ótica do oprimido, essas coisas que parecem vulgares para a mente do pequeno-burguês: comida, casa, emprego, educação, mas é exatamente isso, que é essencial. Isso é democracia, porque sem isso o que é adianta falar em democracia? Adianta o elemento votar, escolher entre três opções sinistras, ou duas, ou cinco, se ele não pode participar da organização da sociedade dele, se ele não pode exigir da sociedade dele o mínimo a que ele tem direito, que é que dêem a ele o que ele entrega à sociedade, em termos de esforço e de trabalho pessoal?

E aí chegamos à pergunta final: que socialismo vai ser o socialismo brasileiro? Temos que buscar o mínimo de rigor científico, de rigor conceitual, para se falar em socialismo. O socialismo tem certas características essenciais que tendem a existir em todo o socialismo, ou então não é socialismo.

Vamos conceituar o socialismo de tal maneira que não exista um verde, outro amarelo, outro cor-de-rosa. E não podemos confundir com experiências avançadas de capitalismo, com forte conteúdo social, como é o caso da Suíça, Noruega, Bélgica. Isto nada tem a ver com socialismo.

Então, o socialismo no Brasil o que vai ser? Ele vai ter aqueles elementos de universalidades, que existem em qualquer experiência do socialismo no mundo. E vai ter também as suas particularidades, porque não existe um “modelo” de socialismo. Cada experiência socialista é única. Mas todas elas têm pontos essenciais que as caracterizam, que as definem como tal. Então quais são essas características? Em primeiro lugar, a hegemonia da classe operária sobre o poder. Existem experiências históricas, por certo, do socialismo, do processo de transição, que triunfaram em países onde a classe operária é inexistente, ou o é muito pouo significativa. Nesse caso, o poder é exercido por outras classes, ou setores de classes, classes médias, pequenas burguesias, em nome da classe operária, e isso é possível num contexto em que o socialismo já se desenvolveu no mundo – com uma série de problemas, por certo. Porque é uma classe exercendo o poder em nome de outra, gera-se uma série de dificuldades, mas não existe outra solução. O socialismo em Angola, em Moçambique, em Guiné-Bissau, não expressa nenhuma hegemonia da classe operária, porque simplesmente não existia classe operária nesses países, e não há outra maneira. Mas a característica essencial do socialismo é a hegemonia da classe operária sobre o poder, e a sua aliança com outras classes exploradas, como o campesinato nos países onde existe um campesinato. O socialismo nos Estados Unidos não vai poder existir com essa aliança. Ali não existe campesinato.

A aliança com outros setores de trabalhadores, com outras classe como a pequena burguesia e as classes médias, esta é uma características essencial. Outra características fundamental: a abolição da propriedade privada sobre os principais meios de produção. Não sobre todos, mas os principais, e a nacionalização (ou estatização) das principais indústrias, do sistema bancário-financeiro, da comercialização e do comércio exterior, e naturalmente o desenvolvimento de formas de propriedade que coexistam durante um longo período; estatal, mista, cooperativa, auto-gestionária, associativas em geral, e privada. A propriedade privada sobrevive durante um longo período no socialismo, e isto é preciso deixar claro. A pequena e média propriedade sobrevive por razões humanitárias, políticas, econômicas, como é o caso dos trinta por cento (30%) das terras em Cuba, que estão em mãos de pequenos proprietários independentes. Do ponto de vista político ou militar, liquidar com aquilo é muito fácil. Mas seria uma barbaridade fazer isso, o camponês lutou pela revolução, e tem apego histórico, psicológico e emocional, à terra e isso não tem nenhum sentido por razões políticas e humanitárias violentar.

Então isto sobrevive durante um certo período. A propriedade privada da terra em Cuba é uma questão da geração, porque os filhos desses camponeses são formados em escolas novas, com uma nova mentalidade. Eles podem herdar as terras dos pais, legalmente eles podem, mas as crianças criadas sob uma nova visão do mundo, uma nova perspectiva do mundo, não têm nenhum projeto de virar o administrador da terra herdada pelo pai. Então isso é questão de uma, duas, três gerações.

Mas existem razões econômicas também. Che Guevara em Cuba tentou estatizar tudo, salão de barbeiro, padarias, tudo, e o resultado um desastre, tiveram de dar marcha a ré. Não é possível que um Estado administre centralmente serviços, ou pequenos negócios, que são muito úteis socialmente e que são melhor geridos pela administração privada durante um longo período. Supor que o socialismo vá liquidar com a propriedade privada dos meios de produção no seu conjunto é uma barbaridade. Isso não aconteceu em nenhuma parte do mundo e nem poderia acontece, porque seria absolutamente irracional e anti-econômico; ademais de ser errado do ponto de vista político e possuir um conteúdo anti-humanístico – porque desvincular o indivíduo de sua pequena propriedade é uma violentação.

Outra característica do socialismo é a socialização dos instrumentos de produção através da participação popular. Este processo de socialização adquire formas específicas que têm que ver com a idiossincrasia de cada povo. Este processo pode ser feito através da sovietização, como foi o caso soviético, auto-gestionário, como foi o caso iugoslavo, ou do desenvolvimento do poder popular, como o caso cubano. Isso aí depende da experiência histórica, da particularidade, da idiossincrasia de cada povo, – a forma como esse processo vai funcionar na prática.

Outra característica do socialismo, sem a qual não existe socialismo, é o sistema de planificação. É típico do socialismo – e aí não podemos confundir “planificação” com “planejamento” – que é sempre indicativo, setorizado e restrito. Quando se trata de socialismo, a planificação é global e centralizada democraticamente. Quando disserem para vocês que o processo de planificação dos países socialistas é feito tecnocraticamente e burocraticamente, vocês não acreditem. Porque não existe processo de planificação que possa funcionar sem participação popular. E nos países socialistas existe uma grande participação popular, mais intensa em alguns casos, menos intensa em outros. O fato é que se não existe essa participação, a planificação não funciona.

Finalmente, vem uma série de direitos democráticos que são típicos do socialismo, que são os direitos democráticos políticos, que garantem a participação popular nos processos políticos. Por exemplo: a discussão e elaboração de uma discussão socialista e, no caso cubano, a constituição que foi aprovada em 1976: o Projeto de Constituição socialista foi submetido a uma discussão popular da qual participaram seis milhões, duzentos e dezesseis mil cidadãos. Cuba tem uma população total de nove milhões e quinhentos mil habitantes. Seiscentos mil sugeriram modificações. Sessenta dos cento e quarenta e um artigos foram alterados em função das sugestões apresentadas. A Constituição foi discutida em todas as fábricas, escolas, cooperativas, CDRs (Comitês de Defesa da Revolução), quarteirão por quarteirão do país, ou seja, estes direitos democráticos políticos dizem respeito a isso: eleições diretas e secretas, sufrágio universal, revogabilidade – que só existe no socialismo… Por exemplo, em Cuba vinte por cento dos eleitores que escolheram um representante têm o direito de revogá-lo a hora que quiserem, eles usam e abusam do direito de revogabilidade. Na primeira legislatura, revogaram setenta e quatro deputados, pelas razões mais diversas: porque o deputado era mulherengo, porque era alcóolatra, ou porque estava recebendo um pouquinho mais do café do armazém da esquina, etc. Por qualquer razão assim, eles revogam.

Em segundo lugar, vem o direito à educação, ao aperfeiçoamento profissional e ao trabalho, ou seja, a educação é considerada como uma obrigação social, e é naturalmente obrigatória e gratuita, é prioridade básica de qualquer país socialista. Na União Soviética, por exemplo, não existe ninguém que não tenha o segundo grau completo. Cuba entra agora na batalha pelo segundo grau completo.

Finalmente, vem os direitos democráticos de habitação, alimentação e saúde. A saúde é absolutamente gratuita em qualquer país socialista; a habitação, o pagamento de aluguel, é absolutamente simbólico, nunca ascende a dez por cento do salário; na alimentação, existem os preços subsidiados e que passam dez anos sem que sejam alterados. Depois veio o direito de ser livre, poder optar e exercer uma profissão, sem ser uma característica do socialismo, que naturalmente tem que ver com os limites das possibilidades reais, com os direitos alheios e os valores éticos vigentes, ou seja, eu posso ir na lua, mas não tem jeito, é impossível; eu posso querer andar nua na rua, mas existem valores éticos, as pessoas ficam chocadas, não posso fazer isso, ou seja, a liberdade é o conhecimento do determinismo, a verdade é sempre concreta, liberdade é o conhecimento e o domínio, a consciência das possibilidades reais; está sempre condicionada pelas possibilidades concretas e pelos limites humanos e sociais existentes. Naturalmente, todo esse direito de ser livr supõe uma série de direitos maiores que são resultado de conquistas sociais, como por exemplo é um direito a informação, a crítica, e o direito ao controle da adminitração política, econômica e social da sociedade.

Finalmente, o direito à soberania nacional, sem a qual não se pode pensar nem conceber nenhum socialismo.

Então, diante de tudo isso, para finalizar, nós poderemos nos perguntar que socialismo desejamos e queremos para o Brasil?

São todos esses direitos, quer dizer: o socialismo, mas de acordo com as nossas necessidades. O que nós vamos desenvolver no Brasil? Um socialismo feito o soviético, ou auto-gestionário, como o iugoslavo, ou do poder popular como em Cuba? Não, o povo brasileiro vai descobrir, como aqueles povos descobriram, as suas próprias formas específicas de socialismo, adaptado à realidade nacional, ou seja, um socialismo verde e amarelo, que reflita os nossos problemas, as nossas experiências, as nossas idiossincrasias e as nossas limitações. Nós também não temos porque pensar que vamos fazer um socialismo muito mais perfeito, muito mais desenvolvido que outros povos. Porém, uma coisa é tranquila: para isso nós vamos ter que remover privilégios, e grandes privilégios, porque nós vivemos num País que se caracteriza pela existência da maior concentração de renda, nós vamos ter que remover a corrupção, que realmente é a característica do nosso regime político. Naturalmente, nós vamos ter que respeitar aqui a pequena e média propriedade, porque do ponto de vista econômico, político e humanitário é importante que sobrevivem durante um longo período. Terá que se desenvolver no socialismo do Brasil o respeito às opções filosóficas, religiosas, culturais, ideológicas e político-partidárias. Este socialismo terá que superar preconceitos, chovinismos, provincianismos, que são nada mais nada menos do que sintomas de uma fase de inculturas, da incultura do nosso povo.

Agora, para que a gente chegue ao socialismo no Brasil, nós vamos ter que dar passos intermediários – ninguém aterrisa direto no socialismo. Vocês poderão me perguntar: que passos intermediários são esses? Pois eu diria: são as reformas de base, essas mesmas reformas que foram colocadas pelo povo brasileiro no começo dos anos sessenta – e, exatamente para impedir essas reformas, se deu, em 1964, o Golpe Militar. Que reformas são essas que são os pré-requisitos para o avanço do socialismo? É a nacionalização das grandes empresas norte-americanas que atuam aqui; é a nacionalização do sistema bancário-financeiro; é a nacionalização do comércio exterior. Todas essas medidas, isoladas, elas não são típicas do socialismo. A nacionalização de propriedade da terra – Marx demonstrou no terceiro volume de “O Capital” – é uma exigência di pleno desenvolvimento do capitalismo, porque a propriedade privada da terra desvia da área produtiva capitais importantes para a compra de terras. A nacionalização do sistema bancário-financeiro hoje em dia já tem sido feita por grandes países capitalistas. E por países como o México, por exemplo, que acaba de nacionalizar o sistema bancário-financeiro. Isso não caracteriza de maneira especial nenhum socialismo. A reforma agrária, altamente indispensável para o desenvolvimento do capitalismo, desenvolvimento e criação do mercado interno. Reforma educacional, absolutamente indispensável, também para o desenvolvimento do socialismo. E a nacionalização das grandes empresas estrangeiras, em tese, não é incompatível com o funcionamento do sistema capitalista. Porém, a nossa classe dominante está estruturalmente vinculada ao grande capital de monopólio internacional, aliado social menor desse grande capital monopólico internacional.

Se vocês fizerem um levantamento de quem são os ministros de Estado depois de 1964 para cá, vocês vão ver que é a grande burguesia nacional, associada à grande burguesia monopolista internacional, que jamais delegou poder para nenhum burocrata, tecnocrata ou militar. Os militares que estão exercendo o poder são também empresários, são empresários uniformizados. É a grande burguesia monopolista que exerce o poder nesse país, associada ao imperialismo. E, portanto, não tem nenhuma autonomia própria de decidir os destinos do país do ponto de vista político e econômico. E é por isso que os candidatos todos à Presidência da República vão pedir que sejam referendados pelos grandes representantes do imperialismo. O Kissinger esteve com Tancredo e vai estar com Maluf. Ninguém chega à presidência do Brasil – a não ser que faça algo que transtorne esta sociedade brasileira – sem ter o aval estrangeiro, não sejamos ingênuos. O imperialismo, o capital estrangeiro, não é um “elemento externo” de dominação. A teoria da dependência já tratou de mostrar por “a” mais “b” que não é assim. O capital estrangeiro faz parte do sistema de dominação interno dos nossos países. O capital estrangeiro compõe a maior gama de poder dos nossos países, e os nossos ministros, os nossos empresários, são diretores, presidentes das grandes companhias multinacionais aqui. Eles não decidem nada sozinhos. Quer dizer: então medidas que seriam, do ponto de vista do capitalismo, modernizadoras do sistema no Brasil transtocam o sistema, é uma expressão do espanhol que eu não consigo uma tradução tão boa, para essa palavra, quer dizer remexe com o sistema e, portanto, qualquer governo que queira resgatar as nossas riquezas, fazer reformas, reforma agrária, nacionalização do sistema bancário e do comércio exterior, naturalmente encontrará uma resistência incrível dos setores dominantes e só poderá se manter através do apoio do povo organizado. Portanto, propor a execução dessas reformas de base no Brasil épropor já um processo de transição ao socialismo. É necessário que essas reformas de base se façam? Mas é óbvio que sim, é a única maneira, para que nós possamos superar essa profunda crise estrutural que nós vivemos, agravada pela crise de conjuntura do capitalismo internacional. Ou seja: se nós quisermos superar o problema de mais de 50% da população que vive ao nível da miséria absoluta, nós teremos que fazer estas reformas de base, e se nós realizarmos estas reformas, nós podemos nos preparar para a reação que vem em cima, e teremos que estar certos de que estaremos franquando o caminho para o processo de transição ao socialismo.

Agora: que via vai ser, se uma via parlamentar, democrática, ou violenta, isso aí nós não temos bola de cristal, é especulação. Não existem questões de princípios nesse campo. O máximo que nós podemos dizer com toda a claridade é que no momento o que se coloca no Brasil é a importância e a necessidade de se aprofundar a luta pela democracia. O direito do povo de se organizar, de votar, de eleger seus representantes, de revogar essas leis absurdas do sistema eleitoral e do código dos partidos políticos que inviabilizam os partidos populares.

Trata-se, nesse momento, de se aprofundar a democracia brasileira e fazer com que avance. Quanto mais avançada a democracia burguesa, melhor para o povo, que pode se conscientizar, se organizar, pode se propor metas, pode lutar por essas reformas que, em definitivo, não serão concedidas “de cima” para baixo.

Em suma: para terminar essa exposição, eu diria que nenhum povo ganha o direito de ser digno. Esse direito se conquista. E o direito do povo brasileiro de ser digno significa lutar pelo socialismo e construir o socialismo.


Inclusão: 16/11/2021