Parecer ao PDL nº 575, de 1997
Subscrição do Brasil ao Tratado de não proliferação de armas nucleares - TNP

Vania Bambirra

Julho de 1997


Fonte: Arquivo Vania Bambirra - https://www.ufrgs.br/vaniabambirra/ - Datilog. Julho de 1997 (original com cabeçalho da Assessoria Técnica do PDT na Câmara dos Deputados e a informação: ORDEM DO DIA. ITEM 07. PDL: Nº 575, DE 1997. AUTOR: Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional. EMENTA: Aprova o texto do Tratado sobre a Não Proliferação de Armas Nucleares, concluído em 1º de julho de 1968, com vista à adesão pelo Governo brasileiro. DEPUTADO RESPONSÁVEL:(1)  ASSESSOR RESPONSÁVEL: Vania Bambirra POSIÇÃO DA ASSESSORIA: Pela rejeição

HTML: Fernando Araújo.


O Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares foi assinado em 1968, com o objetivo de obrigar os países que não possuíam armamentos nucleares a renunciar à pretensão de tê-los e aos que os possuíam, o compromisso de não fornecerem àqueles os meios necessários para a sua produção. No mesmo ano, a Resolução nº 255 do Conselho de Segurança da ONU passou a prever a garantia de assistência aos países não portadores de armas nucleares em caso de agressão nuclear. Foi criada a Agência Internacional de Energia Atômica – AIEA, com a finalidade, entre outras, de propiciar assistência na liberação de recursos e capacitação tecnológica para a utilização do átomo com fins de desenvolvimento pacífico.

Contudo, se bem o Tratado coibia a nuclearização dos países que não dominavam até então a tecnologia atômica, vale dizer, a chama “proliferação horizontal”, o mesmo não incidia sobre a “proliferação vertical” nos países nucleares, sobretudo nas superpotências que se confrontavam na época através da carreira armamentista, os Estados Unidos e a União Soviética. A corrida armamentista entre ambos só começou a ser detida, no seu aspecto quantitativo, por meio da subscrição, primeiro, do Strategic Arms Limitation Talks – SALT, e em seguida do Strategic Arms Reduction Talks – START I e II, e de tratados multilaterais que proibiam a utilização da atmosfera, da superfície lunar e dos fundos marinhos para os experimentos ou armazenagem de arsenais atômicos.

Além dos Estados Unidos (1945) e da URSS (1949), fizeram provas de artefatos nucleares a Grã-Bretanha (1951), a França (1960), a China (1964) e a Índia (1974). A Alemanha, a Suécia, o Japão e a Suíça possuem capacidade nuclear ainda não desenvolvida através da explosão de experimento. Na mesma situação se encontrava a África do Sul até o advento do Governo Mandela, quando o seu potencial atômico foi desativado.

Sobre o Brasil, muita pressão foi exercida para a subscrição do TNP por parte dos Estados Unidos. Estes ofereciam ao país uma pretensa ajuda para a implementação de um programa de desenvolvimento nuclear pacífico que contemplaria o “treinamento maciço de engenheiros em tecnologia nuclear, participação opcional no programa ‘átomos para a paz’ (que depois fracassou pela impossibilidade de eliminar efeitos radioativos nas explosões pacíficas) (sic!) e financiamento concessional para termoelétricas nucleares”. (Roberto Campos, “Crítica da razão Curta…”, Folha de São Paulo, 29/06/97).

Nenhuma das referidas promessas foi cumprida, o que levou a subscrição do acordo nuclear com a Alemanha, em 1975, durante o Governo do General Ernesto Geisel, que contemplava a construção de dez usinas nucleares até 1990. Criou-se a Nuclebrás, com a finalidade, não apenas de implementar o desenvolvimento da tecnologia atômica para fins econômicos pacíficos, mas alcançar o “domínio completo do ciclo nuclear”, vale dizer, obter a capacidade de produzir artefatos bélicos. Para consumar tal pretensão, chegou-se inclusive a preparar o local, um buraco profundo na Serra do Cachimbo, no Estado do Pará, onde seria realizada a experiência de explosão da bomba atômica brasileira. Mas, durante o Governo Collor de Mello, com o começo da implementação da política neoliberal e o alinhamento submisso aos desígnios dos ditames de segurança nacional hemisférica dos Estados Unidos, as preparações para a realização da primeira experiência com artefato nuclear foi desativada através do fechamento do local de prova.

Que fatores levaram os militares brasileiros, com um significativo apoio da comunidade científica, a não adesão ao TNP e à busca do “domínio completo do ciclo atômico”? Sem dúvida tal atitude coadunava-se com a estratégia de transformar o País em grande potência hemisférica, apta a disputar um posto hegemônico no continente e de ser capaz, inclusive, de possuir um papel relevante na correlação de forças a nível mundial, onde se confrontavam os interesses das duas superpotências e, tendiam a se unificar àqueles do chamado Terceiro Mundo. Para isso, era imprescindível implementar um audacioso crescimento econômico, cujas bases estariam lançadas por meio do malfadado “milagre econômico”, mas, ao mesmo tempo, lograr a condição de potência militar, através do desenvolvimento de setores tecnológicos sensíveis cujo acesso às mesmas vinha sendo bloqueado pelos EUA. Essa tecnologia permitiria a construção de artefatos cujo objetivo não era a destruição massiva mas para fins pacíficos – como o Veículo Lançador de Satélites (VLS) e o submarino atômico – que o monitoramento internacional do TNP impediria, sob o argumento de que quem produz um lançador de satélites tem condições de produzir um míssil balístico, como comentou o Brigadeiro Hugo Piva, um dos pioneiros do programa nuclear brasileiro.

Assim, a rejeição ao Tratado tornou-se uma questão de princípio da política exterior brasileira, na medida em que o País recusava-se a abrir mão da posse do desenvolvimento tecnológico de ponta. Recusava-se o TNP por ser discriminatório, pois trancava as portas do seleto clube atômico que facultava a poucos países privilegiados o direito de dispor da situação dos guardiões, de árbitros da humanidade, tanto na paz como na guerra, consolidando-se, assim, o oligopólio do átomo. Os países que ficavam de fora tornavam-se, de fato, países de segunda classe, sem nenhuma capacidade estratégica de influenciar a tomada de decisões cruciais sobre questões mundiais.

Essas foram as principais razões pelas quais o Brasil passou quase três décadas resistindo à submissão do TNP, ao lado da Índica, Paquistão, Israel e Cuba. Cada um desses países possui suas razões marcadas por conflitos locais e, Cuba, devido à constante ameaça do poderoso vizinho. No caso brasileiro, já não existem mais suspicácias fronteiriças com a Argentina, pois, em 1991, foi concluído com este país o Acordo para Usos Exclusivamente Pacíficos da Energia Nuclear, precedido de visitas dos presidentes José Sarney e Raul Alfonsin às instalações secretas de ambos os países. Foi criada a Agência Brasileiro-Argentina de Contabilidade e Controle de Materiais Nucleares – ABACC, que prevê inspeções periódicas mútuas por parte dos dois países. O Acordo Quadripartite, vigente desde março de 1994, entre o Brasil, a Argentina, a Agência Internacional de Energia Atômica – AIEA e a ABACC, faculta às últimas a aplicação de salvaguardas sobre todo o material nuclear existente em ambos os países.

O intercâmbio bilateral entre estes vem se incrementando significativamente no campo da parceria nuclear. Já estão sendo comercializados, entre eles, radioisótopos e radiofármacos, assim como a difusão da técnica de irradiação de alimentos, projetos de complementação industrial e, até, a construção conjunta de um reator batizado de Mercosul, visando a exportação de energia para os demais países do continente (Gazeta Mercantil, 10/07/97).(2)

No que diz respeito à América Latina e ao Caribe, o Brasil ratificou, em 1994, o Tratado de Tlatelolco, que proíbe o uso de artefatos nucleares para fins bélicos no Continente. Deve-se ressaltar que, a subscrição a tal Acordo foi desnecessária pois o mesmo tem status de lei ordinária, portanto, hierarquicamente inferior à Carta Magna, a Constituição Federal que, em seu Art. 21, inciso XXIII, alínea a), propugna como princípio a condição que “toda atividade nuclear em território nacional somente será admitida para fins pacíficos e mediante aprovação do Congresso Nacional”.

Durante esses anos, o Brasil vem desenvolvendo uma significativa capacidade tecnológica. Recorreu a um acordo com a China para colocar em órbita satélites brasileiros por meio de foguetes chineses “Longa Marcha”, despertando suspeitas, por parte dos Estados Unidos, de transferência de tecnologia balística. Está concluindo o desenvolvimento do VLS e a instalação da base de lançamento de Alcântara, no Maranhão. Consta que recorreu, clandestinamente, à aquisição de mecanismos de guiagem do VLS na Rússia.

O que levou o Governo de Fernando Henrique Cardoso a subscrever, finalmente, o TNP?

Em discurso por ocasião da cerimônia de assinatura da Mensagem que envia o Tratado ao exame do Congresso Nacional, o Presidente diz que

“Muito mudou desde o fim da Guerra Fria. O mundo hoje é fundamentalmente diferente do que era há trinta anos. Há uma convergência cada vez maior sobre os objetivos do desarmamento e da não-proliferação nucleares”.

A Nota Informativa à Imprensa, divulgada pelo governo, destaca os “três pilares do TNP: não-proliferação, cooperação para fins pacíficos e desarmamento”. Contudo, nenhum desses elementos impediram a proliferação, pois vários países desenvolveram, posteriormente, artefatos nucleares e outros a sua capacidade nuclear; a cooperação para fins pacíficos não se efetivou, como é patente no caso brasileiro; o desarmamento das potências nucleares não se efetuou, exceto no aspecto quantitativo. Recentemente, a França consumou, sob protesto da opinião pública mundial, experiências atômicas no Atol de Mururoa. A última reunião de cúpula da Organização do Tratado do Atlântico Norte – OTAN, no mês de julho, atesta dois fatos: primeiro, que a mesma está empenhada em crescer, sobrepondo-se à idéia de desarmamento, englobando a Polônia, República Tcheca e Hungria (contra a opinião da Rússia); segundo, os Estados Unidos continuam ditando as regras do jogo, o que ficou patente no seu voto ao ingresso da Eslovênia e da Romênia (contra a posição da França) reafirmando sua condição de senhores do mundo.

A Mensagem Interministerial explicita que “uma série de fatores adicionais recomendou a adesão como um ato de estratégia político-diplomática (…) O fato é que, hoje a manutenção de nossa posição tradicional de oposição ao TNP constitui mais um ônus político que um benefício, sob qualquer aspecto que se considere”.

Obviamente, o documento ao reconhecer que a adesão ao TNP é “essencialmente política” (como diz o documento Informação sobre o TNP, divulgado pelo Ministério das Relações Exteriores), não desvenda que estratégia é essa. Para satisfazer a ambição brasileira de ter acesso permanente ao Conselho de Segurança das Nações Unidas, onde apenas cinco países – e apenas os membros do clube atômico – têm assento permanente e direito a veto? Se é por isso, tal pretensão não passa de mera quimera. Ou não será pura e simplesmente devido à pressão dos Estados Unidos, a potência hegemônica do capitalismo mundial no atual mundo unipolar? Não foi sem razão que o Presidente Bill Clinton saudou, de maneira exultante, o enquadramento brasileiro, em telefonema a Fernando Henrique Cardoso, após a subscrição do Tratado.

Como diz o Professor Bautista Vidal, ex-Secretário de Tecnologia Industrial,

“A idéia de que ‘quando o Brasil aderir ao tratado passaria a influenciar essas questões por dentro’, não resiste a análise séria ante as novas condições que o Executivo brasileiro está criando com esta adesão ao TNP que nos põe em posição subalterna e faz-nos perder excelentes elementos de barganha que resultam de invejável postura moral da nossa Lei Magna ao definir claramente a posição brasileira contrária à produção e ao uso de armas nucleares, ao contrário daqueles que controlam o TNP (…)”.

“Não é verdade, como afirma a Mensagem, que ausentando-se desse Tratado o Brasil nada ganha. Pelo menos não perde o direito de defender-se e de ter esperanças de sobreviver. Também não é verdade que, entrando, nada perde. Perde a (oportunidade) de situar-se como nação de 1a Classe, altiva, soberana e digna, que necessita de garantias para sobreviver, não estando disposta a imolar-se por antecipação”.

A posição brasileira deve ser a de não subscrever o cerceamento da nossa capacidade de desenvolvimento científico-tecnológico o que, de fato, está implícito em tal Tratado. O Brasil deve, sim, no cenário mundial, levantar sua voz contra a militarização em geral e a atômica em particular, exigindo que as potências nucleares, encabeçadas pelos EUA, deixem de chantagear a humanidade com o pesadelo da hecatombe e liquidem de vez seus arsenais destrutivos quantitativos, e cessem as pesquisas de aperfeiçoamento qualitativo.

Assim, a existência de tratados discriminatórios será supérflua.

Por essas razões, o parecer é pela rejeição do Tratado.


Notas de rodapé:

(1) Nota do Memorial Arquivo Vania Bambirra: informação em branco no original. (retornar ao texto)

(2) A capacidade brasileira de irradiação de alimentos é insignificante, o que é um dos fatores que vem comprometendo a nossa balança comercial. O País produz 32 milhões de toneladas de frutas por ano – e poderia produzir muito mais – e vende apenas US$ 150 milhões quando poderia exportar muito mais pois o Chile, que possui um potencial muito menor, exporta anualmente US$ 1,5 bilhões; os Estados Unidos US$ 4,2 bilhões e a Espanha, US$ 4,6 bilhões. Além disso, a técnica da irradiação, aprovada pela Organização Mundial da Saúde – OMS porque já foi comprovado cientificamente que é inócua aos consumidores, possibilita a conquista de novos mercados ao derrubar barreiras sanitárias e fitossanitárias na medida em que a radiação ionizante (raios gamas, raios X e os elétrons acelerados) neutraliza a ação de bactérias, insetos e roedores (Veja-se “Irradiação pode Elevar Exportação de Frutas”. Gazeta Mercantil, 16/07/97). (retornar ao texto)

Inclusão: 16/11/2021