O problema da técnica nos países subdesenvolvidos

Vania Bambirra


Fonte: Arquivo Vania Bambirra - https://www.ufrgs.br/vaniabambirra/ - Datilog. S/d.

HTML: Fernando Araújo.


A primeira necessidade que os seres têm é a de subsistir. Contudo, o homem subsiste de uma maneira diferente de todos os outros seres porque ele próprio cria os meios necessários a sua subsistência, isto é, ele os produz. Ao produzi-los produz com eles a sua própria existência. Toda produção é feita de uma determinada maneira e a cada maneira de produzir corresponde uma maneira de viver. Assim, cada época histórica tem de ser definida primeiro pelo grau de desenvolvimento de suas forças produtivas ao qual irá corresponder determinados tipos de relações de produção e consequentemente determinadas estruturas sociais com seus valores, ideais, modelos e outras características específicas.(1)

Ora, o grau de desenvolvimento das forças produtivas se mede através do grau de desenvolvimento técnico. Entendemos por técnica, num sentido mais amplo, a maneira de produzir, os métodos e os instrumentos aplicados. Contudo, o fenômeno técnico não pode ser considerado isoladamente. Existe sempre uma série de fatores sociais que atuam dialeticamente e que vão determinar as circunstâncias propícias ao desenvolvimento tecnológico. Foi a revolução comercial e o consequente fortalecimento da burguesia que possibilitaram, entre outras causas, a revolução industrial. No dizer de H. Lefebvre “a técnica é somente um aspecto, um elemento de uma totalidade complexa: as relações sociais. Não se deve dar primazia às condições técnicas no estudo do desenvolvimento social”. Isso porque Lefebvre considera que o desenvolvimento técnico se processa em função das necessidades sociais. “A invenção e difusão de uma técnica se torna incompreensível num plano estritamente tecnológico. As técnicas buscam as resoluções dos problemas”.(2) Isso explica o caráter problemático e ao mesmo tempo indispensável do desenvolvimento técnico nos países subdesenvolvidos. Problemática devido ao próprio fato do subdesenvolvimento, que se caracteriza sobretudo por estruturas sociais retardadas cujos setores agrário e comercial são hipertrofiados, apresentam situação de subordinação econômica, insuficiências da renda nacional, baixo nível de vida, destacadamente o agrícola, fraqueza de integração nacional, subemprego, baixo nível de instrução, etc.(3) Indispensável pelo fato de que só através do desenvolvimento técnico se pode atingir o aproveitamento máximo dos fatores de produção e o consequente impulso da economia no sentido de se autopropulsar e de gerar uma série de excedentes que lhe permitirão, através de uma redistribuição adequada, a resolução dos problemas básicos apontados acima. Ora, tal objetivo só é conseguido através de uma racionalização no emprego dos recursos existentes. A forma mais adequada de racionalização para o desenvolvimento é um planejamento global, que atinja não só o setor econômico mas a todos os demais setores sociais, coordenando-os e criando entre os mais importantes um equilíbrio. Aliás, a eficácia do planejamento se deve ao seu caráter totalizante. Só através dele será possível a mobilização em massa dos recursos ociosos a fim de integrá-los na engrenagem dinâmica da estrutura. Só através dele se poderá lograr uma seleção consciente e uma hierarquização das maiores necessidades sociais. O planejamento hoje em dia é um imperativo de toda sociedade que se pretenda ser realmente uma comunidade. Por isso mesmo ele é essencialmente um instrumento ideológico. A burguesia entra em pânico diante de tal verdade, da qual não pode fugir. A planificação industrial, por exemplo, entra em conflito explícito com as suas necessidades, quer como classe, quer como força social, porque a ideia de planificação implica a de socialização.(4)

Desta forma, aqueles países que quiserem transpor o estágio do subdesenvolvimento através de um planejamento sistemático estarão se conduzindo para esse novo sistema social. Se isso não for feito, sua evolução estará fadada a se processar lenta e desordenadamente sem que se possa prever a época em que conseguirão se safar da órbita colonial.

É dentro desse contexto global que podemos entender o problema da assistência técnica. Afirma Lebret que a assistência técnica é necessária para os países subdesenvolvidos enquanto eles não dispõem de consciência de suas necessidades. Ao contrário, dentro desta perspectiva global que apontamos, é a consciência dos países subdesenvolvidos de suas necessidades que possibilitará a assistência técnica. Não mais uma assistência que redundará imperialista e alienada, mas na submissão de tal assistência a uma autoconsciência ativa e criadora. No primeiro caso temos a assistência técnica fornecida pelo Ponto IV ao Brasil, que nada mais faz que preservar uma estrutura de dominação e de subdesenvolvimento. No segundo caso, temos o exemplo do auxílio técnico dos países socialistas a Cuba, que está submetido ao planejamento global da sociedade cubana.


Notas de rodapé:

(1) Este é o ponto de partida da visão marxista do mundo. Karl Marx [e Friederich Engels], “La Ideología Alemana”. (retornar ao texto)

(2) H. Lefebvre. “Les conditions sociales de l’industrialisation”. In: “Industrialisation et technocratie”. 1949. (retornar ao texto)

(3) Y. Lacoste. “Les payes sous-developés”. (retornar ao texto)

(4) Existiu na Alemanha um tipo de planejamento que serviu aos interesses da burguesia: o planejamento fascista. Entretanto, não o abordamos neste trabalho porque não acreditamos que algum dos países subdesenvolvidos de hoje possa chegar a ter uma economia de guerra nos moldes da alemã às vésperas da II Guerra Mundial. Mas esse nosso ponto de vista não passa de uma impressão superficial, uma vez que ainda não tivemos oportunidade de nos aprofundarmos em tal assunto de tão grande importância. (retornar ao texto)

Inclusão: 14/11/2021