Carta aberta ao Presidente John F. Kennedy

Vania Bambirra

1961


Fonte: Arquivo Vania Bambirra - https://www.ufrgs.br/vaniabambirra/ - Datilog. e manuscrito. 1961

HTML: Fernando Araújo.


Sr. Presidente dos Estados Unidos

Chegou em nossas mãos um discurso pronunciado por vossa excelência em 20 de abril de 1961 na Sociedade Americana dos Diretores de Jornais. Tal documento foi publicado pelo Serviço de Divulgação e Relatos Culturais dos Estados Unidos da América (USIS) e está sendo por ele divulgado, através da embaixada americana no Brasil, aos jornais e revistas que por acaso ali vão. O intuito desta carta é analisar, a partir dos próprios argumentos de vossa excelência, a posição dos Estados Unidos em relação a “Ameaça Comunista ao Mundo Ocidental”.

Vossa excelência inicia o seu discurso dizendo que “o presidente de uma grande democracia como a nossa e os diretores de grandes jornais como os vossos têm um dever para com o povo: a obrigação de apresentar os fatos, de apresentá-los com honestidade…” para logo em seguida dizer uma mentira: “naquela ilha infeliz (…) (referindo-se à “malograda” Cuba ),(1) já declarei antes que se trata da luta de patriotas cubanos contra um ditador cubano. Conquanto não se possa esperar que escondamos nossas simpatias, deixamos repetidamente bem claro que as forças armadas deste país não interviriam de forma alguma”.

Ora, todo o mundo sabe que a malograda invasão a Cuba foi planejada, preparada e executada com a colaboração direta do FBI,(2) que foram peritos de guerra americanos que treinaram os mercenários, que foram americanos os aviões que eles usaram e que, inclusive, cidadãos americanos participaram do ataque. E o mundo sabe disso através da própria imprensa americana, que no caso não estava tratando de cumprir “a obrigação de apresentar os fatos, de apresentá-los com honestidade”, mas estava naturalmente interessada em conseguir furos sensacionais, o que aliás foi o motivo do encontro de vossa excelência com os homens de imprensa, no qual foi pronunciado esse discurso.

Polêmicas internas sucederam inúmeras outras; ora era o Sr. Stevenson que era acusado de ser culpado do malogro da contra-revolução por ter aconselhado maior discrição e portanto menor quantidade e qualidade de aparatos bélicos; ora era o FBI (3) que era acusado de ter fracassado em suas estimativas de que o povo cubano iria aderir aos invasores, ora é um ou outro senador oposicionista que critica a falta de sensibilidade política do governo, ora são vários intelectuais que analisam diversos fatores do fracasso da “intervenção americana”.

É dispensavel, sr. presidente, que republiquemos aqui todas aquelas múltiplas notícias que publicou a imprensa brasileira, em geral retiradas de jornais americanos, como por exemplo do New York Times. Afinal, faz apenas quatro meses, muito pouco para que os fatos se apaguem na memória, e quando o sr. diz esta outra mentira de que “qualquer intervenção unilateral norte-americana, na ausência de um ataque externo contra nós ou contra um aliado nosso, seria contrária às nossas tradições e às nossas obrigações internacionais”, queremos dizer-lhe que, mesmo que já se tenha passado mais tempo, ainda nos recordamos e nos recordaremos das tropas americanas que desceram na intervenção indireta (para citar aqui esse exemplo) na Guatemala, com o objetivo de depor Jacobo Arbenz, em 1954.

Mas o sr. não fica apenas nisso, vai mais adiante, expressando um misto de ousadia e de desespero, dizendo: “a nossa contenção não é inesgotável (…) se as nações deste Hemisfério deixarem de cumprir seus compromissos contra a penetração comunista do exterior, então (…) este governo não hesitará em cumprir com suas obrigações primordiais de nossa nação”.

Disso podemos inferir:

1o – que os EUA têm se contido em não intervir, mas que poderão vir a fazê-lo. Aqui, o sr. reafirma a farsa anterior e a completa com uma ameça.

2o – que se todas as nações latino-americanas reprovarem essa atitude, mesmo assim os EUA permanecerão firmes em suas obrigações fundamentais que consistem basicamente em liquidar os anseios de autodeterminação dos povos.

3o – que a política de não-intervenção reafirmada por alguns países latino-americanos torna-os cúmplices do bloco comunista…

4o – que um aspecto básico do Direito Internacional não é respeitado por vossa ilustre nação.

Sim senhor, Mr. Kennedy, isso dá muito o que pensar…

Mais adiante, vossa excelência diz que “se esse momento chegar não permitiremos que nos acusem de intervencionismo aqueles cujo caráter ficou permanentemente marcado nas ruas de Budapeste”. Essa não, Mr. Kennedy. Vossa excelência critica uma intervenção para por meio dela justificar outra intervenção???

Vossa excelência ainda diz, como sequência lógica de vosso raciocínio que foram “tanques comunistas que rolaram por cima de bravos homens e mulheres empenhados em redimir a independência da pátria (…) na eterna luta contra a tirania”. Mais outra mentira, Mr. Kennedy. Não havia nenhum tanque ou avião comunista em Cuba, mas apenas aqueles aviões e aqueles tanques que outrora foram fornecidos pelo governo americano para que o tirano Batista pudesse sufocar o grito de independência do povo que vinha da Sierra Maestra. O vosso critério valorativo é a verdade invertida. Tirania para vossa excelência existe quando a terra é dada a quem nela trabalha, quando o analfabetismo é extinto, quando o problema do desemprego é superado, quando a casa é de quem a habita, enfim, quando todos participam de uma verdadeira comunidade isso, sim, para vossa excelência é tirania.

Mr. Kennedy, por fim sabemos uma verdade nas palavras de vossa excelência. Ei-la: “Deste sério episódio (da revolução cubana) se tiram lições úteis para todos”. Realmente, uma delas foi a mudança de tática de vosso governo em relação à política de ajuda econômica aos países latino-americanos que resultou na chamada Aliança para o Progresso…

Mas o nível de vosso discurso decai ainda mais quando vossa excelência fala “do terror em massa e das prisões, para impedir a difusão do livre discutir…” que na verdade não existe em Cuba e nem poderia existir num país em que o próprio povo possui as armas… E ainda quando vossa excelência fala da “ameaça de intervenção comunista externa e da dominação em Cuba” é um gritante contrasenso de vossa parte, porque, se Cuba já é um país comunista, que lógica haveria em uma intervenção comunista externa? Mas o vosso receio tem outro fundamento que é o de que Cuba [seja](4) uma “base para subverter a sobrevivência das nações livres, em todas as Américas”. E ajunta “bondosamente”: “não é primordialmente o nosso interesse e a nossa segurança, mas os delas, que se acham em perigo cada vez maior. É por elas que devemos mostrar a nossa vontade”. Será que vossa excelência considera o Paraguai, por exemplo, uma nação livre? E Stroessner representa um governo democrático? Por que o Estados Unidos não intervêm lá para mostrar a vossa vontade? E as Guianas, que são ocupação extra-americana direta?? Em tais casos vosso glorioso governo apoia a autodeterminação!

Mais ainda, vossa excelência incorre em outra contradição quando diz primeiro: “Cuba é menos uma ameaça à nossa sobrevivência do que uma base de subversão da América Latina” para dizer logo após: “nós (…) teremos de enfrentar a realidade de que não podemos mais adiar a questão da nossa própria sobrevivência”. Está aí o verdadeiro fundamento de vosso desespero: o exemplo de Cuba pode se propagar e atingir até mesmo a grande potência norte-americana. Mas por que isso aconteceria Mr. Kennedy?? Vossa excelência parece acreditar bastante nessa possibilidade e vossa excelência deve ter mais motivos que ninguém para assim suspeitar.

Mr. Kennedy, gostaríamos agora de fazer-lhe uma pergunta: quando vossa excelência diz que “a subversão (…) pode progregir firmemente, avassalando regiões vulneráveis em situações que não permitem nossa própria intervenção armada”, o que vossa excelência entende por “regiões vulneráveis”? Serão aquelas que por suas condições sociais, econômicas e políticas de subdesenvolvimento geram situações insustentáveis de existência para as grandes massas? Serão aquelas regiões onde impera o analfabetismo? Onde grassam as doenças endêmicas? A Miséria? A fome? O subemprego quando não o desemprego? Etc., Etc. Se é isso, estamos de acordo com vossa excelência. Estas regiões são vulneráveis àquilo que vossa excelência chama de subversão e que nós chamamos tomada de consciência das massas trabalhadoras para a resolução de seus problemas. Essa tomada de consciência se expande para todos os povos oprimidos e isso talvez seja o que vossa excelência entende como “subversão (…) avassalando regiões vulneráveis”. E quando vossa excelência fala, completando, “em situações que não permitem nossa própria intervenção armada”, vossa excelência reconhece que a parte do leão está reservada para vossa ilustre nação, ao que parece em todas as presentes e futuras contendas internacionais? E mais ainda, que existem processos de resistir aos mais fortes e mesmo de vencê-los sem ser pelo poder dos armamentos bélicos, mas pela força e convicção das consciências unidas, não é? Vossa excelência diz muitas coisas que todo mundo sabe, mas que ditas por vossa excelência comprometem um pouco vosso governo. Refere-se por exemplo 1o) ao “descontentamento legítimo de populações esperançosas” e 2o) aos “artifícios das autodeterminação”. Ora, o descontentamento só é legítimo quando os motivos que o causam podem ser logo suprimidos. Assim é que um operário que recebe menor salário do que necessita e do que objetivamente poderia receber pelo seu trabalho deve ter um descontentamento legítimo, como também uma nação que é “amiga” de outra sem que tal “amizade” possa ajudar ao seu desenvolvimento, mas ao contrário o impede, esta nação tem condições legítimas de expressar o seu descontentamento como o faz Cuba.

Em segundo lugar, vossa excelência acha que a autodeterminação comporta artifícios? Se assim é, por que vossa excelência não recomenda que os representantes do governo americano na ONU sugiram uma modificação dessa regra do Direito Internacional, explicitando bem que a autodeterminação só pode existir para países capitalistas e fascistas?

Mais adiante, em vosso discurso, vossa excelência diz que “esta mesma luta (entre ideologias) está ocorrendo todos os dias sem armas nem fanfarras, em milhares de aldeias, mercados e salas de aula em todo o globo”. Isso sempre aconteceu porque a história da humanidade sempre foi a história das lutas das classes e das nações com suas respectivas ideologias. Isso é tão normal como o fato de que umas têm de vencer as outras, porque geralmente se dá que as razões de umas se chocham com as razões de outras…

Sr. Presidente dos Estados Unidos, vosso discurso apesar de ser tão pequeno comportaria uma análise muito mais profunda, porque nele estão implícitos todos os grandes dilemas do sistema capitalista internacional. Antes de terminar, gostaríamos ainda de ressaltar mais um ponto, que julgamos refletir o desespero (parece até um paradoxo) mais consequente de vosso governo e portanto mais perigoso para a humanidade. Diz vossa excelência: “somente os fortes, somente os operosos, somente os dotados de visão podem sobreviver”. Para três linhas abaixo dizer: “já perdemos tempo demasiado fixando nossos olhos em necessidades militares tradicionais, em exércitos preparados para atravessar fronteiras ou em foguetes prontos para o disparo. Agora deve estar claro que isso não é mais o suficiente – que nossa segurança pode ser perdida sem o disparo de um único foguete ou o cruzamento de uma só fronteira”. Vossa excelência afirma a supremacia da força para negá-la imediatamente. Ao mesmo tempo vossa excelência reconhece que o capitalismo pode ser vencido pacificamente. Ora, (e já dissemos anteriormente que ninguém [é] mais indicado que vossa excelência para afirmar tais coisas…). Isso esclarece a todo o mundo que uma terceira guerra mundial só interessa, ilustríssimo presidente, a esse sistema do qual vossa excelência é o governante.

“Pretendemos tirar proveito dessa lição (…), reorientar nossas forças de toda espécie, nossas táticas e nossas instituições aqui, nessa comunidade”. Que vossa excelência saiba tirar realmente proveito, que envie mais dólares para a América Latina para que não tenha de cessar de fazê-lo de repente… Mas, por favor: vossa excelência já mentiu, já entrou em contradições chocantes, já racionalizou demais, mas não repita mais esse ridículo de chamar vossa ilustre nação de comunidade. Comunidade onde há 6 milhões de desempregados? Comunidade onde os homens de cor são banidos do convívio com os outros homens? Comunidade onde aqueles que pretendem ser o representante do povo têm de gastar bilhões?? Ah: Mr. Kennedy, eu bem que dizia que vossa excelência tem um critério valorativo invertido.

Vossa excelência termina dizendo que os Estados Unidos possuem neles e “no mundo livre todos os recursos necessários, toda a habilidade e toda a força que nasceu da crença na liberdade dos homens…”. E isso nos recorda um poeta que dizia: “Ah, liberdade, quantos crimes se cometem em seu nome…”.

De nossa parte terminamos esta carta reafirmando, com as próprias palavras de vossa excelência, que também não duvidamos “que esse mesmo povo (o povo cubano) continue a manifestar-se em favor de uma Cuba livre e independente”, juntamente, num futuro bem próximo, com todos os povos e todas as nações do mundo, apesar de vossas ameaças como a que encerra o discurso de vossa excelência: “quero deixar bem claro que, como presidente dos Estados Unidos, estou decidido a manter a sobrevivência e o sucesso do nosso sistema, não importa o custo, não importa o perigo”.

A estudante,
Vania Bambirra


Notas de rodapé:

(1) Nota do Memorial-Arquivo Vania Bambirra: Parênteses e comentário da autora no original. (retornar ao texto)

(2) Nota do Memorial-Arquivo Vania Bambirra: embora a autora tenha feito menção ao FBI, a agência de inteligência envolvida no episódio foi a CIA. (retornar ao texto)

(3) Nota do Memorial-Arquivo Vania Bambirra: idem nota anterior. (retornar ao texto)

(4) Nota do Memorial-Arquivo Vania Bambirra: adendo entre colchetes do Memorial-Arquivo. (retornar ao texto)

Inclusão: 14/11/2021