O Marxismo e o Discurso do Dissenso

Daniel Bensaïd

Dezembro de 1999


Primeira Edição: Publicado no Em Tempo nº 311-312, novembro-dezembro de 1999. Trata-se de uma passagem do livro-entrevista com Daniel Bensaïd, organizado por Phillippe Petit, Elogio da resistência ao ar dos tempos (Paris: Textuel, 1999), em que Bensaïd comenta sua posição frente às teorias do dissenso, defendidas por filósofos da esquerda radical como Badiou, Rancière e Negri.
Fonte: Coletânea: "Marxismo, Modernidade e Utopia", Editora Xamã, São Paulo, 2000).
Transcrição: Autorizada por José Corrêa Leite, organizador da coletânea.
HTML: Fernando A. S. Araújo


Phillippe Petit: Existe uma forte oposição entre os partidários da filosofia política (Myriam Revault d’Allones, Blandine Barret-Kriegel) e os do antiparlamentarismo que defende uma filosofia do acontecimento (Alain Badiou), da igualdade (Jacques Rancière) ou da inventividade (Toni Negri). Como você se situa neste contexto filosófico?

Daniel Bensaïd: Em um primeiro momento, fui seduzido por eles. Exprimiam a radicalidade no pensamento político dos anos 80: uma recusa de se render às razões dominantes; de se dobrar à lógica do consenso, do apaziguamento e da reconciliação geral; de se sacrificar ao adeus às armas do pós-68.

A manutenção intransigente do desentendimento e da discordia.

Estes autores não podem ser colocados no mesmo saco. Entretanto, eles tem em comum a busca de um alicerce teórico para a recusa desta lógica de pacificação pelo mercado. Em Badiou, a fórmula que resume esta resistência é “a fidelidade ao acontecimento no qual o povo se pronuncia”. Mas esta fidelidade tem um preço: o acontecimento fundador de uma seqüência (a Bastilha, a Comuna, Outubro...) aparece desenraizado da duração, arrancado de sua historicidade. Há irrupções acontecimentais, irrupções de verdade política, mas não se vê bem como isso se articula com condições sociais determinadas. Junto com Sylvain Lazarus, Badiou teorizou esta idéia de “seqüências” abertas por um nome próprio (o do acontecimento inaugural). Elas acabam sem que se saiba bem como e porque. Pelo simples desgaste do tempo? Por um efeito mecânico da inércia? Não se encontra nenhuma explicação, entre eles, da contra-revolução estalinista ou do maoismo burocratizado. Há uma incapacidade de dar conta dos processos sociais de burocratização.

A partir de Aristóteles e de Foucault, Rancière desenvolve uma oposição estruturante entre a política e isso que ele chama “a polícia”. Quanto a Negri, ele destaca a potência criadora do “poder constituinte”, relacionada com o acontecimento revolucionário, em ruptura sistemática com o instituído e o estatal. Vê-se bem os pontos de unidade entre estes pensamentos. Para além de suas diferenças, estes pensamentos tem em comum o seguinte ponto de vista: a política, reduzida ao acontecimento ou à manifestação do poder constituinte, é da ordem da raridade e da intermitência. Há momentos raros, quase milagrosos, de política, entre mantos de polícia e de petrificação estatal. Rancière fala assim do sujeito político como de um “sujeito com eclipses” e da política como de uma “manifestação pontual” ou de um “acidente provisório” nas formas de dominação.

A conseqüência extrema seria que o fato de aceitar a controvérsia, de entrar no debate, de se comprometer com a opinião, equivaleria praticamente à colaborar, deixar-se agarrar pelo consenso pegajoso. A atitude política exemplar teria por modelo, então, o “silêncio do mar”.

Meu primeiro reflexo de atração por estes discursos de resistência e de dissenso não foi, portanto, até a adesão. Vejo neles uma forma sofisticada de evitar a política, que corre permanentemente o risco de derrapar para uma postura estética ou filosófica que foge da contradição. Retomemos: a política não se reduz ao Estado, mas nem por isso ela escapa da institucionalização ou da historicidade. Negar esta relação permite, talvez, se manter fora do alcance das impurezas da política ordinária. Mas nem por isso deixa de constituir uma política de fato, que oscila entre um elitismo esquerdista e uma retirada contemplativa.

Para melhor compreender a importância dessas posições, deve-se começar por dizer a quê elas se opõem. O vento dominante dos anos 80 foi o do “retorno do político” (no masculino) e da filosofia política em detrimento da crítica social. Ao pretender tomar altitude, esta filosofia propõe uma arquitetura institucional invariante do político e da democracia através das idades, de que as políticas concretas seriam apenas uma espécie de mobiliário efêmero.

É inútil dizer que os filósofos políticos encontraram nisso seu canto: podiam se erigir em juizes da política sem ter que meter muito a mão na massa. Em troca deste conforto celeste no país do politicamente puro, sua filosofia política trazia à política prosaica a nobreza do conceito. Em nome de uma leitura empobrecida de Hannah Arendt, de quem sobrevoam vagamente as idéias de pluralismo e de multiplicidade, celebravam com zelo o despotismo da opinião, a lei do nome e as virtudes do servilismo pensante.

Alain Badiou, ao contrario, proclama como uma das exigências fundamentais do pensamento contemporâneo a necessidade de acabar com esta filosofia política, que se arroga o poder de pensar fora do prumo da empiricidade das políticas reais e o privilégio de determinar os princípio da boa política sem ter que militar em um conflito real. Rancière, por sua vez, avalia que esta celebração da política pura oblitera o litígio constitutivo da política para reduzi-la ao estatal. O que vale não é o político, mas políticas irredutíveis umas às outras, inconciliáveis e irreconciliáveis. Até aí, eu acompanho.

Mas Badiou vai mais longe. Ele absolutiza a oposição entre verdade e opinião, filósofo e sofista. Os dois são, para ele, incompatíveis. Bourdieu também opõe, de forma igualmente radical, a ciência do sociólogo à ideologia do “doxosofo”. Tudo isso relembra as polêmicas inflamadas dos anos 60 sobre o “corte epistemológico” entre ciências e ideologias. Reencontramos a oposição entre um discurso magistral de verdade e um comércio de opiniões constitutivas do espaço público.

A crítica das pesquisas de opinião, das mídias, dos fabricantes de opiniões é certamente mais necessária do que nunca. Mas Protagoras foi também um pensador da democracia. Deve-se, portanto, segurar bem as duas pontas da cadeia, instalar-se na contradição que toma aqui a forma de uma tensão irredutível entre verdade e opinião. O filósofo e o sofista não existem um sem o outro. A verdade de um sofre uma tentação autoritária (a do filósofo e de sua república disciplinar); a opinião do outro sofre uma tentação demagógica e relativista (sacrificando-se ao imperativo de obter o número necessário, como se a maioria tivesse o valor de verdade).

Dito isso, eu não coloco a radicalidade do dissenso lado a lado com as ideologias liberais ou estatistas que são infinitamente mais pesadas, que representam interesses poderosos, contra os quais o combate deve ser travado... Mas é importante não embaralhar as linhas.


Inclusão 30/11/2010
Última alteração 19/01/2013