Crise dos Trabalhadores ou Crise do Sindicalismo(1)

João Bernardo(2)

1997

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Primeira Edição: .....
Fonte: Crítica Marxista, vol 1, nº 4 - São Paulo, 1997.
HTML: Fernando Araújo, fevereiro 2008.


No Brasil, bastou uma dúzia de anos para que um movimento nascido de uma acção espontânea e maciça da classe trabalhadora mudasse completamente de características.

No final da década de 1970, precisamente quando a esquerda brasileira parecia ter chegado a um grau extremo de desorganização, incapacitada pelos seus erros e pela violência repressiva, o operariado das cidades mais industriais lançou-se num surto de greves e alterou completamente os dados do problema. A iniciativa e as novas formas de organização reveladas no ABC levaram o regime militar a ceder e a preparar a transição para os governos civis, e deixaram sem audiência os velhos profissionais da política vindos do populismo varguista. Tudo isto sem sedes luxuosas nem verbas avultadas. Como é possível que agora, com infra-estruturas materiais e financeiras que deveriam facilitar a acção, os sindicalistas se encontrem tão desnorteados e desmobilizados?

É curioso que alguns dirigentes sindicais atribuam as culpas da situação à classe trabalhadora, acusando-a de se ter acomodado e não ser já contrária ao capitalismo. Ouvi até a presidente de um sindicato declarar que a classe trabalhadora já não existe - embora sem tirar as consequências lógicas da afirmação, pois essa senhora continua em funções.

Mas será que, na realidade, é a classe trabalhadora que está em crise?

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Qualquer que seja a sua forma, organizando-se em instituições de entreajuda, ou em sindicatos, ou em comissões no local de trabalho, ou em comissões de bairro, ou ocupando terras, um movimento activo deve-se sempre a uma participação conjunta. Nessas ocasiões o dinamismo e a solidariedade são inseparáveis na prática. As duas palavras apresentam-se como sinónimos, e o igualitarismo e o comunitarismo são gerados por essas relações de luta, em completa oposição às formas de relacionamento características da sociedade capitalista.

Porém, a estrutura sindical - pelo menos tal como é comum considerá-la - tem um carácter acentuadamente corporativo, que cria obstáculos ao desenvolvimento de qualquer luta e à sua generalização a outras camadas de trabalhadores. Os fundos de um sindicato são empregues exclusivamente no âmbito de uma dada categoria profissional e de uma dada região, mesmo que esses trabalhadores, nessa zona, não estejam a prosseguir nenhuma forma de luta colectiva. E assim, como não são dedicados de imediato à solidariedade com as acções de outros trabalhadores, em diferentes regiões do país ou em qualquer outra parte do mundo, esses fundos têm de ser rentabilizados. O primeiro passo é um investimento fundiário, a aquisição da sede, de preferência numa rua onde os terrenos se valorizem. Outros passos se seguirão. A alternativa é simples. Ou a totalidade dos fundos sindicais é gasta em manifestações de solidariedade, ou é aplicada de maneira a não perder o seu valor. Uma estrutura de tipo corporativo leva obrigatoriamente à segunda alternativa, transformando esses fundos em investimentos capitalistas. E basta isto para que os dirigentes sindicais não se limitem a gerir a força de trabalho, a negociar com os patrões e a colaborar na administração do mercado de trabalho. Eles tornam-se gestores capitalistas propriamente ditos, administradores de investimentos capitalistas.

Num livro publicado há alguns anos procurei mostrar as enormes dimensões assumidas pelo capitalismo dos sindicatos. Desde então, e em todo o mundo, só se tem ampliado a actuação dos sindicatos enquanto investidores e gestores de capital. Nos Estados Unidos difundiram-se os ESOP (Employee Stock Ownership Plan, plano para a aquisição de acções pelos empregados), um sistema mediante o qual os sindicatos se encarregam de convencer os trabalhadores a aceitar limitações salariais, ou a perda de quaisquer regalias, e em troca disso os trabalhadores recebem a propriedade nominal de acções, depositadas num fundo administrado, parcial ou totalmente, por representantes sindicais. Ou seja, em termos simples mas inteiramente exactos, aquilo que os trabalhadores deixam de ganhar gera um capital manuseado pelos sindicatos. Em Junho de 1994 ocorreu o caso de maiores dimensões nos Estados Unidos. Os sindicatos representativos do pessoal da United Airlines, a segunda maior companhia de transportes aéreos do país, ofereceram concessões em salários e normas de trabalho avaliadas em perto de 5 biliões de dólares e, em troca, receberam 55% das acções da companhia e três lugares no conselho de administração. A este sistema corresponde, em numerosíssimas empresas da Rússia e de outros países da Europa de Leste, a aquisição pelos trabalhadores de enormes lotes de acções, que ficam parcialmente sob o controle das secções sindicais. Na Rússia as privatizações levaram globalmente a dois resultados: a passagem de uma quantidade muito considerável de empresas industriais, financeiras e comerciais para as mãos do crime organizado, que detém além disso participações minoritárias em muitas outras; e o controle das restantes grandes e médias empresas por uma aliança dos seus administradores com os dirigentes sindicais, referendada na base pelos trabalhadores, que esperam assim reduzir o número de demissões. É também sugestivo o que se tem passado na África do Sul desde o fim do apartheid. Não só alguns dos mais importantes dirigentes sindicais se converteram em empresários, como a própria central sindical criou um organismo destinado a proceder a investimentos, em associação com capitalistas privados. Muitíssimo mais considerável ainda, à escala mundial, é a capacidade financeira dos fundos de pensões e outras instituições do mesmo género, que em numerosos casos estão na dependência directa ou indirecta dos sindicatos.

Estas situações extremas, frequentes hoje em tantos países, resultam de processos que têm sempre na origem a necessidade de rentabilizar fundos que não se aplicaram de imediato em manifestações de solidariedade. Pode parecer muita a distância que vai da compra de um edifício até à aquisição de uma colossal companhia de aviação ou à participação sistemática no controle das principais empresas de um país, mas são actos que obedecem a uma mesma lógica e se inscrevem numa sequência única. O capitalismo dos sindicatos é um efeito inevitável do corporativismo, e uma vez iniciado o processo ele não poderá ser interrompido a meio.

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Quando os sindicatos se comportam como uma instituição capitalista é natural que os trabalhadores os considerem como meros organismos prestadores de serviços e os comparem com os serviços fornecidos pelas empresas. Engana-se quem acusar de reaccionarismo esses trabalhadores. Pelo contrário, eles estão a reagir salutarmente, tomando à letra a postura dos sindicatos e pressionando-os a desvendar melhor as suas funções actuais. Em vez de lutarem contra as administrações das empresas, as direcções sindicais concorrem frequentemente com elas num mesmo mercado de prestação de serviços. Aliás, a noção que têm desta identidade é tão acentuada que no Brasil, por exemplo, os funcionários dos sindicatos da CUT partilham o mesmo sindicato com os funcionários dos organismos patronais. É interessante que a CUT e as Federações de Indústrias dos vários estados se situem a par neste organograma.

Mas como podem os sindicatos competir com as empresas mais avançadas? Não espanta que tantos trabalhadores prefiram os serviços patronais aos sindicais. Esses trabalhadores reflectem aquela lógica de mercado em que o sindicalismo corporativo os convida a colocarem-se.

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Na verdade, a situação dos sindicatos na concorrência com as empresas é pior ainda, porque se mantêm apegados a um funcionamento interno fortemente hierarquizado, quando o patronato mais moderno está a organizar o pessoal consoante o toyotismo e outras formas eficazes de democracia manipulatória.

Os sindicatos são uma estrutura burocrática desde o seu aparecimento no século XIX. Aliás, é isto que os distingue de outros tipos de organização operária, difundidos posteriormente, como os conselhos e organizações por local de trabalho. Na sua forma clássica, o sindicalismo surgiu numa época em que a esmagadora maioria dos operários industriais tinha abandonado muito recentemente o meio rural e ignorava tudo dos sistemas de administração capitalistas e da própria vida urbana, sendo portanto incapaz de gerir os seus próprios processos reivindicativos. Nestas circunstâncias os trabalhadores tinham de delegar cegamente nos mais experientes, ou nos mais enérgicos e ousados, o encaminhamento táctico e estratégico das lutas. E assim se produzia, no interior do movimento operário, uma camada de dirigentes que inevitavelmente se burocratizavam, pois eram raros os que tivessem aptidão para os substituir e a base não era capaz de lhes controlar a actividade.

Mas burocracia não significa forçosamente conciliação com o capitalismo. Nos países menos evoluídos e, em geral, em todas as situações históricas em que o crescimento económico se encontra bloqueado, as greves são consideradas como uma questão de polícia, e não um problema social. Nestes casos, em vez de pretenderem a recuperação dos conflitos e a assimilação dos dirigentes operários, que constitui o mecanismo básico da mais-valia relativa, os patrões recorrem à repressão pura e simples, no quadro da qual o capitalismo nunca poderá ultrapassar a situação de mais-valia absoluta, reproduzindo-se o ciclo vicioso das acções repressivas. E aqueles trabalhadores mais experientes e mais audazes, que encabeçam as reivindicações, apesar de se definirem sociologicamente como uma burocracia, politicamente não são mais do que vítimas das prisões, dos espancamentos e dos assassinatos. As memórias de Juan García Oliver, El Eco de los Pasos, dão um testemunho magnífico desta ambiguidade, que se esclareceria, com resultados tão catastrófico, através da actuação dos dirigentes da CNT-FAI durante a guerra civil espanhola.

Quem só souber ver estas coisas com os olhos da compaixão ou da glória não conseguirá entender que uma burocracia pode dedicar-se ao sacrifício, e não aos oportunismos da cooptação, sem deixar por isso de ser uma burocracia.

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O desenvolvimento da maquinaria permitiu explorar sem quaisquer limites o esforço muscular. A partir de então, além de continuar a aproveitar-se a força física, começou a ser cada vez mais explorada a componente intelectual da actividade dos trabalhadores. O capitalismo contemporâneo apropriou-se em profundidade de todas as facetas da vida e tornou-se um sistema absolutamente envolvente e totalitário.

Durante muito tempo o movimento operário lutou contra a tendência dos capitalistas a reduzir os trabalhadores a instrumentos mecânicos ou a anexos das máquinas. Uma longa história de criação de associações culturais e recreativas documenta o esforço permanente dos trabalhadores para ultrapassarem a condição unidimensional. Hoje a situação parece diferente, pois faz parte do discurso dominante a afirmação de que os indivíduos já não têm apenas uma dimensão imediatamente produtiva, mas também uma multiplicidade de outras facetas. Não espanta que os jornalistas, e os académicos que se reduzem ao nível de jornalistas, insistam agora nesta sua descoberta tardia, pois na enorme expansão que conseguiu nos últimos vinte anos, desde que superou a crise de 1974, o capitalismo necessita de estimular - e ao mesmo tempo condicionar - a actividade intelectual dos trabalhadores, para melhor poder aproveitá-la através da electrónica e da informática. O trabalhador unidimensional já não é mais rentável para o capitalismo evoluído, que tem de explorar a pluridimensionalidade de que a pessoa humana é capaz. Sob o ponto de vista económico, a mais-valia relativa progrediu assim enormemente, inaugurando-se um novo ciclo ampliado de valorização do capital. E, sob o ponto de vista social, a classe trabalhadora deu um salto considerável, entrando num novo estágio orgânico.

Os antagonismos internos do capitalismo desenvolveram-se do mesmo modo. Quando os trabalhadores têm os mecanismos económicos como objecto do seu esforço intelectual, conseguem apreendê-los e sentem-se aptos a geri-los. O controle da gestão é o desafio hoje colocado pelo processo de exploração nas formas mais progressivas de capitalismo. Ao começarem a revelar-se capazes de administrar sistemas produtivos, os trabalhadores mostraram-se, portanto, competentes também para orientar e conduzir as suas próprias lutas. E manifestaram-no repetidas vezes, naquela vaga crescente de iniciativas autonómicas que se ampliou a todo o mundo desde o começo da década de 1960 até ao final da década seguinte. Então, e pela primeira vez na história do movimento operário, os trabalhadores, em vez de limitarem as suas reivindicações ao âmbito das relações de propriedade, passaram a afirmar na prática o controle das suas lutas e a exigir o controle da actividade produtiva, procurando assim alterar as próprias relações de produção. É curioso que aquele movimento tivesse na altura sido apelidado de «greves selvagens». Decididas exteriormente aos mecanismos participativos dos sindicatos e conduzidas pelas próprias bases, fora dos aparelhos sindicais, tais lutas só podiam ser consideradas selvagens pela civilização sindical e patronal. A crise dos sindicatos, que tantos julgam hoje ter sido motivada pela difusão do neoliberalismo, começou na realidade bastante antes e deveu-se ao movimento autonómico. A classe trabalhadora mostrou ter atingido um estágio de formação que dispensava uma direcção estritamente burocratizada.

O capitalismo aprendeu a lição e começou a explorar, além da actividade muscular e cerebral dos trabalhadores, a sua capacidade de gestão e até de solidariedade. As formas de administração de empresa que é hoje corrente englobar sob a denominação genérica de toyotismo não são mais do que a recuperação capitalista da actividade intelectual e da capacidade de decisão colectiva que os trabalhadores demonstraram na prática durante a vaga de lutas autonómicas. Se estas lutas criaram o quadro social em que se pôde precipitar a crise económica de 1974, a assimilação em termos capitalistas dos grandes temas autonómicos permitiu a abertura de uma nova fase no processo de exploração.

É este ritmo do capitalismo avançado que os sindicatos não têm conseguido acompanhar. Eles mantêm-se presos à estrutura de origem, quando o proletariado estava num estágio orgânico em que só era explorado o seu esforço muscular e em que a restante actividade do raciocínio se manifestava apenas fora do quadro do capital e das suas lutas. Numa situação em que os trabalhadores são já explorados da sua capacidade intelectual e organizativa, a estrutura interna dos sindicatos aparece ultra-hierarquizada e autoritária. Ou seja, irremediavelmente arcaica.

Deve colocar-se neste quadro o problema da crise do sindicalismo em países, como o Brasil, onde os sindicatos mantêm ainda uma dimensão reivindicativa.

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Trata-se de uma crise de objectivos:

- ou os sindicatos se transformam plenamente numa mera administração de investimentos capitalistas, fundos de pensões e outros serviços;

- ou os sindicatos pretendem continuar a desempenhar um papel nas lutas dos trabalhadores.

No Brasil a contradição entre estes dois aspectos é hoje demasiado profunda para que ambos possam permanecer conjugados num duplo discurso demagógico. A crise actual é a crise desse duplo discurso. E é tanto mais grave quanto - contrariamente ao que muitos pensam - não corresponde a nenhum declínio da classe trabalhadora, nem do papel central ocupado pela exploração.

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A classe trabalhadora está em expansão. Nas últimas décadas têm sido maciçamente proletarizadas categorias profissionais que antes:

- ou pertenciam à camada inferior dos gestores, como sucede em especial com os empregados de escritório;

- ou eram profissões liberais, sobretudo médicos e professores;

- ou se integravam em formas económicas de tipo familiar, nomeadamente empregados do pequeno comércio varejista.

É conveniente deixar bem claro que o processo de proletarização não transformou em proletários a totalidade dessas pessoas. O que antes de mais ocorreu foi uma alteração dos métodos e da disciplina de trabalho, que passaram a ser do mesmo tipo dos que se encontram nas fábricas. As hierarquias sociais reorganizaram-se no interior daqueles ramos de actividade, consoante um modelo puramente capitalista. A grande maioria desses profissionais converteu-se em proletários, em trabalhadores produtivos; os restantes asseguram a sua supremacia enquanto capitalistas, geralmente gestores, administradores, em casos mais raros proprietários privados.

É certo que vários autores, pretendendo utilizar de maneira ortodoxa alguns conceitos do marxismo, não consideram produtivos os trabalhadores das profissões recentemente proletarizadas. Mas o carácter produtivo ou improdutivo de uma dada actividade em nada diz respeito ao seu produto concreto - nem à eventual materialidade desse produto, nem ao lugar que ele possa ocupar na circulação da totalidade dos objectos económicos. A categoria trabalho produtivo não se refere aos produtos, mas ao próprio trabalho enquanto processo. É o tipo de relacionamento social em que uma pessoa se insere, sob o ponto de vista da perda ou da detenção do controle sobre o tempo de actividade e sobre as decisões económicas, que define o seu trabalho como produtivo ou improdutivo. Como os ramos profissionais recentemente proletarizados obedecem a formas de organização em tudo idênticas às que imperam nas fábricas, a grande maioria dos seus membros são trabalhadores produtivos, incluindo-se os demais entre os capitalistas, enquanto participantes dos níveis hierárquicos superiores.

Até há não muito tempo o capitalismo era o modo de produção dominante no interior de formações económicas e sociais integradas subsidiariamente por outros sistemas de exploração. Mas hoje o capitalismo é, na quase totalidade dos países, o modo de produção exclusivo. A classe trabalhadora atingiu, assim, uma expansão sem precedentes.

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O que significa que a exploração constitui um mecanismo cada vez mais central em toda a vida económica.

É certo que o contrário é defendido por numerosíssimos autores, tantos que não vale a pena citá-los. Representam as ideias correntes, desde as dissertações universitárias até aos suplementos de domingo da imprensa diária. Curiosamente, eles são quase todos oriundos daquilo que foi a esquerda. Aquela esquerda que, enquanto existiram os regimes de tipo soviético, ignorou que o Estado e a economia de Estado eram elementos integrantes dos mecanismos do valor e, portanto, do capital, hoje, no muro das lamentações dos arrependidos, desconhece também os aspectos inerentes à mais-valia relativa, à crescente valorização do capital. Afirmam estes mestres de ocasião que o trabalho tende a acabar, em virtude do prolongamento dos ócios.

Na realidade, o horário formal de trabalho tem-se reduzido à medida que o capitalismo se desenvolve, o que fica mais exacto dito da maneira inversa. A classe trabalhadora, com as suas lutas, tem obrigado os patrões a diminuir o número de horas de trabalho e estes respondem aumentando a produtividade. Trata-se precisamente de uma das engrenagens fundamentais da mais-valia relativa, que só reforça este modo de produção, sem de modo algum o pôr em causa.

A diminuição do horário de trabalho foi acompanhada por um acréscimo da produtividade, porque ao mesmo tempo aumentaram:

- a intensidade do trabalho no interior dos limites da jornada,

- a complexidade das operações de trabalho,

- a versatilidade de cada trabalhador.

Posso representar este processo mediante as variações de um triângulo isóscele, em que a extensão do lado diferente representa a jornada de trabalho e a extensão da bissectriz do ângulo oposto, a taxa de exploração. Quanto mais se aproximarem os pontos extremos do lado representativo das horas de trabalho, mais aumentam os outros dois lados do triângulo, prolongando-se a linha da bissectriz.

Ora, uma força de trabalho capaz de uma actividade mais intensa, em operações mais complexas e com uma versatilidade crescente requer qualificações cada vez maiores, que só pode obter fora das horas de laboração. Exige também um maior tempo de repouso, que lhe permita reconstituir as capacidades de trabalho. Ambas estas necessidades fazem com que os ócios, ao mesmo tempo que aumentam, se integrem completamente no quadro do capitalismo.

Na época em que a exploração incidia sobretudo na componente muscular da actividade do trabalhador, quando ele estava fora da fábrica situava-se também, na grande parte dos casos, exteriormente ao capitalismo. Por um lado, não empregava os momentos de lazer para adquirir novas aptidões profissionais e, por outro, as despesas mais representativas do ócio eram feitas em tabernas que obedeciam a uma economia de tipo doméstico. Qualquer destas situações está hoje ultrapassada, alterando-se por completo a concepção de ócio.

Escusado será insistir no facto de que, no capitalismo desenvolvido, as despesas efectuadas fora das horas de trabalho revertem directamente em benefício dos capitalistas. Os ócios tornaram-se um colossal mercado. Mas, sob o ponto de vista económico, é ainda mais importante o outro aspecto. Nos nossos dias os objectos recreativos alugados ou postos à venda constituem eles próprios, não só uma oportunidade de lazer, mas igualmente um meio de formação profissional. O capitalismo contemporâneo obteve um sucesso sem precedentes ao introduzir generalizadamente uma tecnologia nova - os computadores e as suas aplicações - num prazo muitíssimo rápido e sem suscitar inicialmente a hostilidade dos trabalhadores. Conseguiu-o porque difundiu maciçamente computadores, de maneira gratuita em muitas escolas, e divulgou jogos electrónicos, com baixos preços de aluguer, nas casas de diversões. Não se trata já de lazer, mas de produção planejada de força de trabalho. Aquilo a que se chama ócio é nestas circunstâncias um elemento tão integrante do capitalismo como o é a jornada formal de trabalho.

Em suma, não tem ocorrido apenas um aumento da intensidade e da complexidade do trabalho, mas também devem considerar-se integradas no processo de trabalho - no processo de produção da força de trabalho - actividades que antes se excluíam do controle directo do capital. A aparente diminuição do horário formal de trabalho resultou, afinal, no seu contrário, a diluição das fronteiras que anteriormente separavam o lazer e a jornada de trabalho.

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Do seu saco de argumentos, os autores que proclamam o declínio do trabalho na sociedade actual tiram também a tão celebrada substituição do homem pela máquina.

Claro que todo o aumento da produtividade, que é a condição do desenvolvimento capitalista, exige a expansão e a renovação da maquinaria. Mas duas coisas têm sucedido desde o início deste modo de produção, e continuam a acontecer hoje.

Em primeiro lugar, as novas máquinas não se limitam a dispensar força de trabalho, porque a mão-de-obra tornada desnecessária nos antigos ramos de actividade é lançada para abrir ramos novos. Nos nossos dias isto sucede sobretudo no sector dos serviços, onde a automatização é ainda incipiente.

Em segundo lugar, uma tecnologia inovadora, ao mesmo tempo que reduz o número de profissionais nesse ramo, exige novas qualificações àqueles trabalhadores que permanecem. As máquinas não substituem as pessoas, pois não podem funcionar devidamente sem que haja quem tenha aprendido a lidar com elas. Em vez de se tornar desnecessária, pelo contrário torna-se indispensável uma força de trabalho mais qualificada.

Por não o ter entendido a General Motors gastou em vão dezasseis biliões de dólares, dos oitenta biliões que despendeu ao longo da década de 1980 para modernizar a sua tecnologia. Limitou-se a substituir por máquinas uma parte dos trabalhadores, sem aumentar as qualificações daqueles que continuaram ocupados, e por isso os resultados foram catastróficos, linhas de montagem paradas, avarias que ninguém era capaz de resolver, robots a destruirem-se reciprocamente, como num roteiro em que Kafka tivesse colaborado com os Irmãos Marx. Foi necessário fundar uma unidade produtiva em conjunto com a Toyota, mas ficando a administração inteiramente a cargo dos japoneses, para que a General Motors se apercebesse de que a automatização só podia ser eficiente se os trabalhadores tivessem sido previamente preparados. Mesmo quando se trata de introduzir robots, o aspecto decisivo reside na qualificação do pessoal. É esta a regra de ouro da gestão de empresa. «A lição custou caro, mas a General Motors acabou por aprender que o seu bem mais importante e mais valioso não eram os robots, mas a sua própria força de trabalho.» Traduzo estas palavras de The Economist de 10 de Agosto de 1991, uma revista de pedigree insuspeito e impecáveis credenciais capitalistas.

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O raciocínio daqueles autores que consideram que o trabalho está a perder a importância torna-se especialmente sinistro quando invocam o argumento do desemprego. Há mesmo quem apresente essa situação como uma emancipação do homem relativamente ao trabalho. Que isto possa ser repetidamente escrito, com aparente sucesso, e afirmado perante o regozijo de plateias académicas só mostra até que ponto chegou a impudência desses meios. É pena que não profiram tais palestras num auditório repleto de desempregados. A continuar assim, em breve afirmarão que aquelas pessoas sem casa, que dormem ao relento em tantas cidades de todo o mundo, descobriram as delícias naturistas do campismo. É uma supina tolice julgar que um desempregado superou a lógica do produtivismo, quando é a vítima mais imediata dessa lógica.

Não é só a arrogância do meio académico que assim se revela, mas a sua futilidade actual, a incapacidade de encarar de maneira séria as questões do nosso tempo. Não tenho conhecimento de que na década de 1930, quando o desemprego atingiu dimensões muito graves, algum economista ou sociólogo tivesse chegado à conclusão de que se alcançara enfim o paraíso do mundo sem trabalho. Pelo contrário, os universitários esforçavam-se então por encontrar para o problema soluções que estivessem de acordo com as suas variadas persuasões políticas.

Contrariamente, porém, ao que sucedeu durante a crise da década de 1930, julgo que nas circunstâncias presentes a grande maioria daqueles que são incluídos entre os desempregados mantém uma actividade profissional, mas em regime de terceirização ou na economia informal. O crescimento das modalidades económicas extra-oficiais é um dos traços mais significativos da sociedade contemporânea, e é para essa esfera que são relegados os que não encontram um lugar duradouro na economia oficial. O problema não é, em suma, de desemprego, mas de precarização do trabalho. Em termos simples, trata-se de um aspecto do processo mediante o qual o capitalismo, quando progride para estágios superiores da mais-valia relativa, destaca camadas de trabalhadores e forma com eles sectores anexos de mais-valia absoluta. São os subcontratados e os que laboram na economia paralela as vítimas preferenciais da deterioração das condições de trabalho e da sua precaridade, do emprego a tempo parcial e, finalmente, do desemprego verdadeiro. E esta situação tem pressionado a classe trabalhadora a aceitar a grande reestruturação em curso. A ameaça de ficar excluído da estabilidade profissional, sem aposentadoria e tantas vezes sem acesso à segurança social, constitui uma das chantagens mais eficazes. A precarização do trabalho, apresentada como desemprego, é um factor que ajuda o capitalismo a ampliar até uma dimensão sem precedentes o âmbito da classe explorada e a apropriar-se das vinte e quatro horas da vida de cada trabalhador.

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Há ainda aquela multidão de sociólogos que, embora admitindo talvez o funcionamento de mecanismos de exploração, afirma que já não existe uma classe trabalhadora.

Teriam razão se dissessem que a velha «classe operária» foi remodelada internamente em virtude das novas qualificações exigidas pela tecnologia electrónica e foi diluída exteriormente graças à proletarização de várias categorias profissionais. Mas a cultura operária que assim se extinguiu não foi a única que a classe trabalhadora conheceu ao longo da sua história. Essa cultura forjara-se, à escala universal, nas grandes lutas que ocorreram desde os dois anos finais da primeira guerra mundial até ao início da segunda guerra. Data de então aquela imagem de proletário que as pessoas da minha geração se habituaram a considerar como padrão. Não devemos, porém, esquecer que essa cultura e esse comportamento não se impuseram sem deparar com profundas resistências do meio fabril tradicional. Basta recordar a recusa daqueles que eram então os trabalhadores qualificados norte-americanos, organizados na American Federation of Labor, em aceitar a sindicalização das camadas mais recentemente proletarizadas, que encontraram primeiro nos Industrial Workers of the World uma expressão radical e depois, no Congress of Industrial Organizations, um enquadramento reformista.

A cultura operária que se generalizou mundialmente entre as duas grandes guerras veio substituir outra, que se difundira na época da Segunda Internacional nos países capitalistas mais evoluídos. E esta havia tomado, por sua vez, o lugar daquele tipo de proletário que afirmara a sua fisionomia na grande vaga de conflitos e guerras civis que entre 1846 e 1849 agitou toda a Europa, desde a Polónia até Portugal, desde a Inglaterra e a Irlanda até à Itália meridional.

Não há que dizer hoje adeus à classe trabalhadora, mas apenas a uma certa cultura, historicamente determinada, para saudar o aparecimento de outra cultura, que está em gestação numa classe ainda mais vasta e vítima de uma exploração ainda mais intensiva.

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Perante uma classe trabalhadora em expansão e uma exploração que constitui o mecanismo central de toda a vida social, a crise dos sindicatos torna-se flagrante. As direcções sindicais não têm conseguido responder aos problemas prementes com que os trabalhadores se debatem, nem acompanhar os novos quadros de luta em que os trabalhadores têm actuado.

É no confronto com as grandes companhias multinacionais que o sindicalismo demonstra o seu mais grave fracasso. Os sectores dinâmicos da economia encontram-se hoje inteiramente transnacionalizados, enquanto os sindicatos continuam a funcionar em perspectivas estritamente corporativas e se congregam em organizações que não ultrapassam os limites nacionais. As federações sindicais internacionais são meras agências burocráticas que nunca coordenaram qualquer luta, nem sequer uma acção reivindicativa, visando a totalidade de uma companhia multinacional, matriz e filiais. De todos os departamentos sindicais, o das relações internacionais é certamente o mais esclerosado e sujeito à corrupção. Serve para pagar viagens dos dirigentes e outras mordomias. Enquanto os trabalhadores continuarem, divididos por sectores de actividade e fronteiras nacionais, a contestar um capitalismo supranacional, não é difícil ver quem terá a vitória do seu lado.

Nas circunstâncias actuais a questão da subcontratação e da precarização do trabalho tem representado outro malogro muito considerável dos sindicatos. Os seus dirigentes limitam-se, na melhor das hipóteses, a negociar com os patrões a percentagem de pessoal que será afastada do emprego estável no sector oficial, em vez de procurarem organizar os terceirizados e os desempregados. Aliás, bastaria recordar que os próprios sindicatos terceirizaram um grande número dos seus antigos funcionários e recorrem sistematicamente à subcontratação para adivinhar qual iria ser a sua posição nesta matéria. Os sindicatos poderiam dar enfim uma conotação positiva às suas prestações de serviços, usando-as como quadro de mobilização dos companheiros dispersos pelo trabalho precário e daqueles que estão no desemprego efectivo, mas nada parece ser feito neste sentido. Na medida em que a sindicalização acompanha frequentemente a estabilidade de emprego, os próprios membros dos sindicatos mostram-se muitas vezes relutantes em defender aqueles que estão condenados a uma actividade incerta e permanecem sem filiação sindical. Nestes casos, os sindicatos funcionam como um factor de privilégios e de divisão entre os trabalhadores. Se lembrarmos o que se passou durante a crise económica da década de 1930, vemos que em vários países a organização dos desempregados teve um papel decisivo - mas na difusão do fascismo. Eis o que nos devia levar hoje a uma reflexão, quando a xenofobia e o racismo grassam, precisamente sob o pretexto do desemprego. A situação é talvez mais grave ainda naqueles países em que a precaridade do trabalho atinge sobretudo a mão-de-obra imigrada, porque então a separação entre sindicalizados e não-sindicalizados pode ser vista como uma divisão étnica e estimular o racismo.

As lutas nos serviços públicos constituem outro campo em que os sindicatos se têm revelado incapazes de definir uma orientação positiva. O capitalista, neste caso o Estado enquanto patrão e administrador, só poderia ser posto eficazmente em causa se fosse subvertida a prestação de serviços, alteradas as suas hierarquias e prioridades. Mas para tal seria necessário, por um lado, que os sindicatos do funcionalismo público colaborassem fraternalmente com organismos de usuários, o que não sucede porque são estritamente corporativos; e, por outro lado, que se dispusessem a atacar radicalmente o Estado enquanto patrão, o que não acontece porque o seu objectivo é apenas ganhar mais tantos por cento, e para isso preferem o diálogo ao confronto. E assim, além da tal percentagem a mais, as direcções sindicais obtêm outra coisa ainda - um clima de fricções e de hostilidade entre funcionários públicos e usuários, ou seja, maioritariamente, entre duas categorias de trabalhadores.

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Os sindicatos também não têm sabido actuar nos novos quadros de luta.

É frequente ouvir que as lutas da classe trabalhadora acabaram, ou perderam a vitalidade, e que outros movimentos surgiram, dirigidos por exemplo contra o racismo ou a discriminação sexual.

É certo que o racismo, o sexismo ou a hostilidade manifestada contra pessoas homossexuais podem vitimar tanto trabalhadores como capitalistas e, neste sentido, suscitam movimentos supraclassistas. Porém - e lamentavelmente - os capitalistas têm mostrado que, no interior do seu meio social, sabem resolver estas questões de maneira muito mais rápida do que os trabalhadores. Quando uma mulher, ou alguém com uma cor de pele menosprezada, ou uma pessoa homossexual conseguem ascender às elites, são rapidamente integradas e as barreiras atenuam-se ou desaparecem. É enquanto permanecem na classe trabalhadora, e por vezes mais ainda nos seus estratos com pior remuneração, que essas pessoas sentem todo o peso das discriminações. E assim, curiosamente, a coesão de que os capitalistas têm sabido dotar-se limita substancialmente o carácter supraclassista dos movimentos contra a discriminação sexual e racial.

O racismo e o sexismo revelam-se com especial acuidade nos meios populares e é aí sobretudo que têm de ser combatidos. A classe trabalhadora mundializou-se e a população dos continentes asiático e africano, onde antes predominavam regimes económicos pré-capitalistas, embora subordinados ao capital, encontra-se hoje extensivamente proletarizada. Além disso a classe trabalhadora integrou novas categorias profissionais, nas quais é muito importante a participação feminina. Será necessário respeitar a pluralidade de comportamentos e criar ao mesmo tempo um quadro cultural comum ou, invertendo a afirmação, dar origem a uma cultura da classe trabalhadora que se afirme precisamente na multiplicidade harmónica de comportamentos. Sem isso não se poderá renovar o combate contra o capitalismo. Os trabalhadores precisam de refazer a sua coesão e é neste sentido que está em gestação uma nova cultura. Tal como as anteriores, não se imporá pacificamente. As classes só existem num relacionamento antagónico, só a luta as torna reais. A classe trabalhadora formou-se e reorganiza-se permanentemente em confronto com o capital, não apenas contra as suas manifestações exteriores, mas também contra as formas como ele se expressa no seio dos próprios trabalhadores. A nova coesão da classe explorada só poderá atingir-se através de lutas multímodas, que serão em boa parte travadas no interior dela mesma. E o movimento contra as discriminações raciais e sexuais é um aspecto fundamental deste processo. Por isso, e contrariamente ao que é comum afirmar-se, esses movimentos não são exteriores à classe trabalhadora. Têm repercussões profundas na construção de uma nova solidariedade de classe e, portanto, na contestação ao capitalismo.

É curioso observar que em todo o mundo os principais órgãos de informação relatam a multiplicação de episódios racistas em termos tais que mais parece quererem estimulá-los ou, pelo menos, fazerem-nos aceitar como um componente necessário, embora desagradável, da sociedade actual. Noticiam-se com enorme relevo agressões e chacinas étnicas e ao mesmo tempo subestimam-se, quando não se ocultam, importantes manifestações contra a xenofobia. A desnaturação das informações torna-se mais interessante ainda quando casos de superação do racismo são descritos sob uma óptica racista. Foi o que sucedeu a propósito dos grandes motins do final de Abril e princípio de Maio de 1992 em Los Angeles, precipitados pela absolvição dos quatro polícias responsáveis pelo espancamento de Rodney King. Os órgãos de informação apresentaram como uma manifestação racial o que, na realidade, demonstrou a ultrapassagem das fronteiras étnicas, pois pessoas de todas as cores de pele tomaram parte nos distúrbios e pilhagens. Mais significativo ainda é o facto de os jornalistas e os comentadores silenciarem um êxito, a meu conhecimento sem precedentes, conseguido pelos amotinados: a coberto de artifícios legais com uma validade mais do que dúbia, as autoridades decidiram levar novamente a tribunal os quatro polícias, pondo assim em causa um dos princípios básicos da jurisprudência, o de que ninguém pode ser julgado duas vezes pelo mesmo crime. Os sublevados de Los Angeles mostraram aquilo que não estavam mais dispostos a tolerar e obrigaram as classes dominantes norte-americanas a recuar precipitadamente e a limitar as iniquidades da repressão.

Nisto tudo, qual o papel dos sindicatos? Os seus limites corporativos têm-nos geralmente impedido de servir de quadro às lutas pela igualdade das cores da pele, pela emancipação feminina e pela superação de outras discriminações. Quando, no melhor dos casos, as direcções sindicais consentem em abordar estes problemas, relegam-nos para um lugar marginal. São elas a colocar-se, afinal, à margem de um dos principais eixos de luta da classe trabalhadora.

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O que seria uma actuação sindical adaptada às novas circunstâncias?

A única resposta que se pode dar está longe de ser nova. Louis-Eugène Varlin, encadernador de livros, foi um dos nomes mais luminosos do movimento operário, aos vinte e cinco anos de idade secretário da secção francesa da Associação Internacional dos Trabalhadores, quando ela foi fundada; um dos redactores dos estatutos da Internacional dois anos mais tarde; e fuzilado com trinta e dois anos no derradeiro dia da Comuna de Paris, que ele serviu enquanto membro do Comité Central da Guarda Nacional e delegado às Finanças, depois às Subsistências e Intendência. Varlin observava num artigo publicado em Outubro de 1869:

«Hoje, perante a obstinação com que os detentores dos capitais defendem os seus privilégios, a greve não passa de um círculo vicioso [...] O trabalhador pede um aumento de salário para responder à carestia causada pela especulação; os especuladores respondem ao aumento do preço da mão-de-obra mediante uma nova subida do valor dos produtos. E assim por diante, os salários e os produtos aumentando sem parar. Por que razão operários dedicados, activos e inteligentes consagram toda a sua energia, toda a influência que são susceptíveis de exercer sobre os seus camaradas, a prosseguir esse movimento que sabem não ter saída? É que para eles a questão prévia a qualquer reforma social é a organização das forças revolucionárias do trabalho. Em todas as greves o que nos preocupa não é tanto o insignificante aumento salarial, a pequena melhoria das condições de trabalho. Tudo isso é apenas secundário. [...] O supremo objectivo dos nossos esforços é o agrupamento dos trabalhadores e a sua solidariedade.»

Explicava Varlin mais detalhadamente um ano e meio depois:

«Se não quisermos converter tudo num Estado centralizador e autoritário, que nomearia os directores das fábricas, das manufacturas, dos estabelecimentos de distribuição, os quais por sua vez nomeariam os subdirectores, os contramestres, etc., organizando-se assim hierarquicamente o trabalho de alto a baixo e deixando-se o trabalhador como uma mera engrenagem inconsciente, sem liberdade nem iniciativa, se não quisermos nada disto temos de admitir que os próprios trabalhadores devem dispor livremente dos seus instrumentos de trabalho, possui-los, com a condição de trocarem os seus produtos ao preço de custo, para que exista reciprocidade de serviços entre os trabalhadores das diferentes especialidades. [...] Mas não se julgue que uma tal organização possa improvisar-se facilmente. Para isso não bastam alguns homens inteligentes, dedicados, enérgicos. É sobretudo necessário que os trabalhadores, convocados assim para trabalhar em conjunto, livremente e em pé de igualdade, estejam já preparados para a vida social. Uma das maiores dificuldades com que se têm debatido os fundadores de todos os tipos de sociedades, tentadas nos últimos anos, é o espírito de individualismo [...] Pois bem, as sociedades operárias, quaisquer que sejam as formas em que hoje existam, têm já o imenso mérito de habituar os homens à vida em sociedade e de os preparar assim para uma organização social mais ampla. [...] Mas as sociedades corporativas (de resistência, de solidariedade, sindicatos) são dignas sobretudo do nosso encorajamento e das nossas simpatias porque são elas que formam os elementos naturais da edificação social do futuro. São elas que se poderão facilmente transformar em associação de produtores. São elas que poderão pôr em funcionamento a utensilagem social e a organização da produção.»(3)

Em termos despretenciosos estão aqui esclarecidas, com uma antecipação de cinquenta anos, as principais contradições do movimento operário desde a revolução russa, as suas promessas, os lamentáveis fracassos, o ponto de recomeço.

Louis-Eugène Varlin concebia a luta enquanto pedagogia. Por isso não lhe importavam as reivindicações pontuais, mas apenas as formas de organização, que permitissem uma participação máxima de todos os trabalhadores. Gerir as lutas é o único treino para gerir, mais tarde, a sociedade e a economia. Sem isso os trabalhadores limitar-se-ão a substituir uns patrões por outros, uns administradores por outros, renovando as classes dominantes e reforçando, portanto, o capital.

Mas como poderão os sindicatos, organismos burocráticos, ter uma prática que ponha em causa a sua própria autoridade nas hierarquias?


Notas:

(1) Retomo neste artigo alguns temas desenvolvidos em cursos, seminários e palestras que tenho vindo a realizar em organismos sindicais da CUT desde 1994. (retornar ao texto)

(2) Pensador e escritor português que se filia a uma tradição do pensamento marxista que tem suas origens no comunismo de conselhos representado por Korsch, Pannekoek, Gorter, entre outros. Durante o processo revolucionário de 1974/1975 em Portugal, participou da redação do jornal Combate, que recolhia e divulgava, sem censuras nem cortes, entrevistas e experiências dos movimentos de bairro e das ocupações autogestionárias de fábricas e latifúndios. Apresenta uma visão crítica do capitalismo em várias obras, bem como do sistema soviético, qualificado por ele como capitalismo de estado. Uma de suas teses mais originais é a teoria da classe dos gestores, que seria uma outra classe social além da burguesia e do proletariado. (fonte Wikipédia) (retornar ao texto)

(3) Ambos os artigos vêm reproduzidos em J. Rougerie, «Les Sections Françaises de l’Association Internationale des Travailleurs», em La Première Internationale. L’Institution, l’Implantation, le Rayonnement, Colloque International, Paris, 16-18 de Novembro de 1964, Paris: Centre National de la Recherche Scientifique, 1968. (retornar ao texto)

Inclusão 21/02/2008
Última alteração 17/10/2023