Entrevista a "O Pasquim"

Gregório Bezerra

10 de outubro de 1978


Primeira Edição: O Pasquim, edição 500, 26/01 a 01/02/1979

Fonte: https://fdinarcoreis.org.br/fdr/2012/08/28/entrevista-de-gregorio-bezerra-a-o-pasquim/

Transcrição: COLOCARNOME

HTML: Fernando Araújo.


capa

Aqui está, narrada por ele mesmo, a quase-história da vida do político brasileiro que, no Caderno Especial do Jornal do Brasil de 14 – 1 – 79 foi chamado de: “O FRIO E SANGUINÁRIO GREGÓRIO BEZERRA”

Gregório Bezerra é uma figura lendária da História política brasileira deste século. Estava preso em Recife, em 1969, quando foi trocado pelo Embaixador Elbrick e banido do país. Depois de passar pelo México, fixou residência em Moscou, onde vive até hoje. Em meados do ano passado, esteve na França por algum tempo, quando foi feita esta entrevista. Alguns brasileiros residentes em Paris estudantes, professores, músicos, turistas involuntários — convidaram Gregório para matar as saudades da terra e ofereceram a ele um peixe ao leite de coco.Terminado o almoço, Gregório — em nome do Pasquim — foi posto diante de um gravador e interrogado – com uma paciência e uma resistência invejáveis — durante nove horas e os dois lados de seis fitas.

Aqui está, quase na íntegra, o que ele contou para a estudante Kalu, o jornalista Juarez Ferraz de Maia, o engenheiro Wilson da Silveira, o sociólogo Sérgio Ribeiro Granja, o fotógrafo chileno Jean Louis Young e para os músicos Carlos Eugênio Sarmento Coelho da Paz e Sônia Pereira da Silva, donos da casa.

As fitas me foram entregues em Paris e, durante dias, o Rick trabalhou sobre elas.

Evidentemente, a entrevista inteira cobriria todas as páginas de um número especial do Pasquim. Rick e eu, porém, tivemos o maior cuidado em deixar a entrevista exatamente como ela foi dada e contada, sem cortar nem um fato essencial, apenas deixando de ir – em muitos casos – Até aos mais mínimos detalhes, como é o jeito de ser do Gregório, um precioso contador de causos, qualidade bastante comum nos nordestinos de sua geração.

Agora é sentar, calmamente, para ler, e aprender um pouco mais do Brasil, visto de lado que – esteve completamente desconhecido por longos Anos. – (Ziraldo).

Pasquim – Onde você vive hoje e o que é que você está fazendo?

GREGÓRIO LOURENÇO BEZERRA– Vivo em Moscou e neste momento estou cumprindo uma tarefa que os meus amigos me deram, pressionados pela juventude que só conhece a minha vida por alto e que exigiram que eu acabasse de escrever as minhas memórias. Tenho que dar conta do recado, né!

Pasquim – Já escreveu muito?

GREGÓRIO – Estou em 1964.

Pasquim – Quando foi que você saiu do Brasil?

GREGÓRIO – Em 1969, quando alguns grupos de esquerda sequestraram o Embaixador americano, para cuja liberdade exigiram a liberdade de quinze presos políticos, além da publicação de um manifesto em todos os meios de comunicação.

Pasquim – Você esperava sair da prisão?

GREGÓRIO – Não. Foi realmente uma grande surpresa. Inclusive encabecei a lista dos quinze presos. Fiz uma declaração de princípios dizendo que tinha por objetivo não imigrar para outro país. Eu achava que minha pátria era o Brasil e dela eu não pretendia sair. Porém, aceitei para não criar confusões nem uma situação difícil não só para os jovens que seriam trocados pelo Embaixador como porque eu não tinha mais ilusão de ser posto em liberdade pelos meios jurídicos. Mesmo que eu cumprisse a minha condenação de vinte anos, os militares jamais me libertariam. Já estava me preparando para sair por outros meios, mas não ia deixar um pássaro na mão por dez que vinham voando. Peguei o bonde em movimento e meti a cara.

Pasquim – Por que foi que te prenderam ?

GREGÓRIO – Vocês não acham melhor a gente começar do princípio?

Pasquim – Lá isso é. Então diz aí: onde e quando foi que você nasceu?

GREGÓRIO – Nasci em Panelas de Miranda no sítio denominado Mocós, no dia 13 de março de 1900.

Pasquim – Como era sua família?

GREGÓRIO – Camponesa, pobre, analfabeta, sem terra, composta de meu pai, Lourenço Bezerra do Nascimento. Minha mãe, Belarmina Conceição do Nascimento e doze filhos. Eu era dos últimos.

Pasquim – Todos os filhos foram criados juntos?

GREGÓRIO – Até 1907, sim. Depois houve uma degringolada em consequência da morte de meus pais, da seca e da fome, e minha família disparou pelo mundo afora.

Pasquim – Você foi a alguma escola?

GREGÓRIO – Minha escola foi a enxada e a foice. Quando completei quatro anos minha mãe falou: “Meu filho, você vai inteirar quatro anos. Tá um hominho. Tá bom de trabalho. De amanhã em diante tu vai trabalhá com nois no roçado”. Meu pai pegou um cacareco de foice, gastos pelo tempo, e disse: “toma, é teus. Cuida e zela. De amanhã em diante tu vai trabalha no roçado de um tudo”. Essa foi minha escola.

Pasquim – Qual o trabalho em que você mais aprendeu?

GREGÓRIO – Eu ao completar oito anos quando comecei a trabalhar no engenho como assalariado agrícola, ganhando oitenta réis por dia, linguagem que vocês não conhecem porque hoje isso não teria nem expressão. Meu trabalho consistia em espalhar o bagaço das moendas no pátio e quando secasse juntá-los novamente para serem transportados. Mais tarde fui trabalhar no eito, juntamente com meus pais. Depois fui trabalhar de ajudante de carreteiro com um primo, porém eu era muito pequeno e não podia ajudá-lo com o feixe de cana, mas nessa tarefa me dei muito bem. Fiquei alegre pelo prazer de poder ir e vir montado na mesa do carro e tanger os bois com uma vara de ferrar. Pra mim eu era o menino mais importante do engenho, mesmo porque passei a ganhar o salário de 200 réis por dia.

Pasquim – Você recebia uma educação cristã?

GREGÓRIO – Meus pais eram católicos e iniciaram minha vida na religião católica.

Pasquim – Até quando isso teve influência sobre você?

GREGÓRIO – Até 1930, quando ingressei no Partido Comunista.

Pasquim – Através de quem você recebeu os primeiros contatos de idéias socialistas?

GREGÓRIO – Foi em 1917, em consequência do jovem movimento bolchevique na União Soviética, não o de outubro mas o de fevereiro, quando Kerensky assumiu o poder. Estávamos em plena guerra de 1914/18 e no Brasil houve um movimento pela paz e contra a guerra. Nesse período eu já era ajudante de pedreiro e participei de manifestações de rua por jornadas de trabalho de oito horas, por melhores condições de trabalho, aumento de salário e solidariedade ao jovem regime que surgia numa sexta parte do mundo.

Pasquim – Quem trazia essas idéias para lá?

GREGÓRIO – Eu não sabia ler mais como aquele assunto de pão, paz, terra e liberdade me interessava comprava sempre o jornal e pedia às pessoas que soubessem que lessem para mim. Às vezes pegava cinco ou seis pessoa para ler o mesmo jornal.

Pasquim – Não havia uma pessoa que te influenciava?

GREGÓRIO – Não, nesse momento eu não era influenciado por nenhuma facção. Tinha sido um menino e um adolescente completamente desajustado na vida. Meu mestre mesmo foi a vivência com a classe operária porque já tinha perdido o contato com os camponeses. Estava em Recife. Em consequência daquelas manifestações de rua também me entusiasmei. Esse movimentos sempre eram reprimidos pela violência da Cavalaria e como a violência da reação sempre gera a violência das massas fui envolvido nisso, sendo preso e condenado a sete anos de prisão.

Pasquim – Quando foi isso?

GREGÓRIO – Em 1917 mesmo, no dia seis ou sete de agosto. Passei uns dois anos na prisão até que fui submetido a julgamento e condenado a sete anos. Eu era uma criança. Naquele tempo não existia prisão de presos políticos, mesmo porque o movimento operário naquele período era dirigido pelo movimento anárquico-sindicalista. Passei dias, meses e anos na prisão. Lá tomei conhecimento com Antônio Severino, o famoso cangaceiro, conhecido em todo o Nordeste por ser considerado um homem bom. Meus tios e meus avós diziam que Antonio Severino tomava dos ricos pra dar aos pobres, daí seu grande prestígio perante a população do agreste e da caatinga. Um homem muito humano que se tornou meu amigo. Enquanto isso se deu a virada na Revolução Soviética em que o proletariado tomou definitivamente o poder. No dia sete de novembro, Lênin vai para o poder. Aí o linguajar das massas trabalhadoras, mesmo as do campo, modificou-se completamente. Já se falava no marxismo. Depois de 1918 passou a se falar também em leninismo, stalinismo, trotskismo, e outros slogans até então desconhecidos para a massa trabalhadora. A Revolução de 1918 foi apoiada pelo anarco-sindicalismo.

Pasquim – Que era a forma de organização mais concreta?

GREGÓRIO – Era praticamente quem orientava o movimento operário.

Pasquim – Como era a organização desse movimento?

GREGÓRIO – Não posso falar porque desconheço como era.

Pasquim – Você era sindicalizado?

GREGÓRIO – Era do Sindicato da Indústria da Construção Civil. Os sindicatos sim, sei que eram dirigidos pelo anarco-sindicalismo. O fato é que a partir de 1918 o movimento anarquista foi subdividido em duas alas: a mais moderada e a mais explosiva. No início do movimento todo dera apoio ao jovem regime soviético mas depois houve essa ruptura, uma ala apoiando e outra divergindo e até atacando. A imprensa, a favor ou contra, sempre falava nesses assuntos. Eu não compreendia bem mas comprava o jornal, a fim de me esclarecer sobre os detalhes que mais me interessavam. Uma vez, discutindo com Antônio Severino ele disse: “Cale sua boca, senão tu vai para o castigo e vai apodrecer lá. Tu não fala nesses assuntos”. Não me conformei, continuei sempre com meu entusiasmo. No fim do ano de 1922 fui submetido a novo julgamento e fui posto em liberdade, depois de tirar cinco anos de prisão. Quando saí não encontrei serviço com facilidade. Fui visitar meus parentes no interior, em Panela de Miranda, voltei e quando voltei para trabalhar me exigiram a carteira de reservista. Isso me forçou a ir para a caserna e sentar praça no Exército. Depois de um ano fui transferido para o Rio onde completei minha carreira militar e fui licenciado. Voltei pra Recife a fim de continuar minha vida de embarcadista com a profissão de canoeiro.

Pasquim – No Exército você teve contato com as idéias do socialismo?

GREGÓRIO – Não, tinha vontade disso mas não consegui, mesmo porque o Partido Comunista que tinha sido organizado no dia 25 de março de 1922 logo em seguida foi posto na ilegalidade. Eu não conhecia nenhum comunista e não tive nenhum contato. Como militar não tinha direito de participar de nenhuma organização. Em 1925 resolvi me alfabetizar porque queria tirar o curso de Sargento da Infantaria. Pedi a um colega que escrevesse uma carta para uma de minhas irmãs e ele ficou um mês me enrolado. “Deixa pra amanhã”. Aquilo não foi me agradando muito. No dia vinha dizendo: “Olha Gregório, quem pede espera”. Isso foi bom porque fiquei revoltado, tomei vergonha e comprei uma tabuada e uma Carta de ABC.

Pasquim – Quanto você ganhava como soldado?

GREGÓRIO – Sessenta mil réis porque era desarranchado. O soldado arranchado ganhava doze mil réis. Durante todo esse tempo no Rio, me matei pra estudar. Comia uma vez só por dia pra pagar professor. Em 1927, ainda no Rio, já alfabetizado, fui promovido a segundo sargento e em seguida desligado da escola para ser Instrutor da Companhia de Metralhadoras pesadas no Segundo Regimento de Infantaria na Vila Militar. Apesar de ser mau nutrido era bastante forte e fui designado para ser Instrutor de Esportes também. Dos irmãos todos, o que estava em melhores condições era eu, ganhando 320 mil réis por mês. Então resolvi preparar o enxoval de minha irmã caçula. Passei novamente a comer uma só refeição por dia. A situação estava ficando apertada pra mim, porque desprendia uma energia muito grande no meu trabalho de atletismo. Pedi transferência para a Sétima Região Militar em Recife, onde pude morar com minha família. Éramos quatro homens e duas mulheres.

Pasquim – Continuava sem mexer com política?

GREGÓRIO – Uma vez, no final de 1927, viajando na Central do Brasil encontrei um rapaz que tinha sido meu colega quando eu era ajudante de pedreiro. Chegou perto de mim e perguntou: “Já leu esse jornal?” Era a “A Nação,” editado pelo Partido. Li, reli, e me entusiasmei. Era diferente dos outros. Me entusiasmei tanto que cheguei perto de um colega que havia sido meu sargento e perguntei: “Já leu esse jornal”? Ele pegou e ficou pálido: “olha, te aconselho a guardar isso. Não pode entrar com esse jornal aqui no quartel. Guarda ou rasga se não tu te prejudica. Na nossa classe há sargentos capazes de tudo pra ganhar prestígio junto aos oficiais. Outro dia você teve um atrito com fulano e se ele te ver com esse jornal é capaz de lhe denunciar e tu pode perder tua carreira”. Não rasguei mas guardei o jornal. Meses depois o mesmo antigo colega me encontrou no trem da Central de novo e cochichou no meu ouvido: “Tu lestes este jornal”? Era “A Classe Operária”. Dessa vez falou bem baixinho no meu ouvido e pôs o jornal dentro do meu bolso. Levei pro quartel mas já não apresentei a ninguém. Esse jornal passou a ser meu quase que meu catecismo.

Em Pernambuco, em 1930, é que tomei contato com o Partido.

Os caminhos da vida

Pasquim – Através de quem?

GREGÓRIO – De discussões com um e com outro. Primeiro foi um sargento da polícia que se dizia comunista. Eu era muito estimado na caserna pelos soldados e cabos e até mesmo por alguns sargentos e meu conhecimento das pessoas foi se alastrando. Assim o Partido me procurou e em janeiro de 1930 me filiei a ele. Vacilei muito antes de entrar. O que me ajudou foram dois livros: “A Mãe” de Máximo Gorki, e “A História do Partido e das Lutas Sociais”. Eu ainda tinha muita ilusão com Deus. Já não ia muito com a religião católica devido a muitos problemas de acreditar mas era muito deista, achando que tudo que se passava no mundo era permitido por Deus. Li esses dois livros e pensei: “Será que não entendi bem”? Reli e disse com meus botões: Acho que dessa vez acertei no caminho da vida”.

Pasquim – Quem foi que te procurou?

GREGÓRIO – Pascoal Fonseca, um gráfico muito esforçado, do Comitê Estadual de Pernambuco e membro do Comitê Nacional. Do ponto de vista de literatura era atrasado como eu mas tinha uma dedicação sem limites. Me recomendou: “Você vai entrar mas não pode dizer para ninguém que é membro do Partido, nem mesmo a seus familiares. Não pode também aceitar convite para nenhuma reunião do partido no setor operário. Sua tarefa é exclusivamente na caserna, organizando a massa militar. Quando se tratar de oficiais deve nos consultar pra tomarmos algumas informações. É um trabalho secreto, ultra conspiratório, e você deve ter o máximo de cuidado”. Nesse tempo o fascismo estava em plena ascensão, tanto na Alemanha quanto na Itália ou no Brasil, com Plínio Salgado. Havia certo atrito entre os galinhas verdes de Plínio Salgado e o movimento da classe operária. Hitler, ao assumir o poder na Alemanha, deu força extraordinária ao fascismo verde brasileiro. Já existia luta entre os estudantes mais progressistas e nacionalistas, luta que se proliferava pelas ruas. Naquele tempo a maioria dos estudantes era atraída pelo fascismo por influência do clero que dava todo apoio aos galinhas verdes. Em 34, Prestes se declarou membro do Partido Comunista e em 35 foi criada a Aliança Nacional Libertadora, o maior movimento de massas organizado até hoje. Foi inspirada na organização da Frente Popular na França e na Espanha. O nome do Prestes era uma bandeira de luta para as classes trabalhadoras da cidade e do campo, até mesmo entre a pequena burguesia, e a massa se entusiasmou. O Partido começou a crescer. Na caserna os soldados procuravam o PC de uma maneira extraordinária. O programa da ANL era: confiscação das terras dos latifundiários e distribuição gratuita aos camponeses sem terra e a todos que nelas quisessem trabalhar. Isso foi muito vivo para mim, de origem camponesa, pobres, assalariados, etc. Além disso se falava na nacionalização de todos os bancos estrangeiros, das empresas estrangeiras, das quedas d’água e das minas, cancelamento da dívida nacional para com o estrangeiro e para com os agiotas internos. Havia uma reforma do ensino bastante audaciosa para a época. A ANL atraiu sobre si as reivindicações mais sentidas dos pequenos partidos que até então existiam no Brasil. Havia partidos políticos só de um estado ou até de municípios. O país vivia uma efervescência política muito grande contra Vargas – a parte mais progressista dos tenentes da Revolução de 30 rompeu com ele – e a ANL foi o suporte para toda essa massa de descontentamentos. Era um amplo movimento de massas dirigido por Arculino Carcado, Francisco Magaberra, João Mangabeira, Cabello, Abel Chermonte e outros intelectuais. Getúlio Vargas, pressionado pelos imperialistas ingleses e americanos, pelo clero e pela burguesia nacional, resolveu jogar a ANL na ilegalidade, desenvolvendo uma onda de repressão das mais violentas até então. O que provocou um certo retrocesso no crescimento da ANL que vinha dirigindo caravanas para todo o país, convocando greves, organizando comitês de defesa dos pequenos e médios proprietários e comerciantes e comitês de defesa das mulheres.

Pasquim – Essa Aliança é dirigida pelo Partido Comunista?

GREGÓRIO – O Partido participava abertamente com toda sua força no sentido de ampliar a força dessa aliança, mas ainda não dirigia. Com a ilegalidade muitos aliados se afastaram, como Pedro Ernesto, prefeito do Distrito Federal, homem de grande prestígio. Aí foi que o Partido encampou toa a força da ANL e marchou para a luta armada.

Os Idos de 35

GREGÓRIO – Quando o Partido encampou todo o movimento da ANL, Prestes lançou um manifesto aconselhando as massas que se preparassem para a tomada do poder. O trabalho na caserna duplicou para mim mas consegui levar muitos soldados para se filiarem a ANL. O soldado não tem direito de participar de qualquer organização, mesmo recreativa, ainda mais política, mas por outro lado quando participa de alguma coisa não quer perder de forma alguma, e quando perde se revolta e marcha para a frente. O soldado luta por uma conquista e não abre mão disso. Puseram a ANL na ilegalidade e a massa de soldados ficou revoltada.

Pasquim – Quantos vocês eram no seu Batalhão?

GREGÓRIO – Bastante. Não quero dizer quantos foram porque nesse trabalho não se deve descer aos mínimos detalhes. Éramos o suficiente para a tomada do poder em Recife, e isso só do ponto de vista militar, sem contar os operários, camponeses, intelectuais e elementos da pequena burguesia. A preparação para a luta revolucionária foi precedida de movimentos grevistas na indústria da construção civil, no setor da tecelagem e no setor ferroviário. Houve uma greve na Great Western que abrangia desde o Rio Grande do Norte até Alagoas cuja finalidade era aumento de salário porque os ferroviários ganhavam um salário de fome, dois mil réis por dia. A reação caiu com todo peso para esmagar os grevistas mas o Movimento organizou vários Comitês de Ajuda. Na caserna também organizamos alguns Comitês para ajudar às famílias dos ferroviários. Com cerca de dezesseis dias de greve a empresa imperialista, junto com o governo, dinamitou alguns trechos de estrada e algumas pontes e conseguiu jogar a culpa para cima dos grevistas. Como a greve era popular, muito simpatizada pelo público, o governo queria incompatibilizá-la . Então o Partido mobilizou todos os seus esforços e mandou imprimir milhões de boletins explicando a quem interessava aqueles atos de sabotagem. No auge disso Malvino Reis Neto, chefe de polícia, fascista, capitão do Exército, foi um dia para Socorro, sede do 14º Regimento de Infantaria onde mais de 400 mães de famílias ferroviárias deitaram por cima dos trilhos, cobertos com a Bandeira Nacional, para evitar que as locomotivas descessem sobre o Recife. Esse elemento chegou na estação e mandou o maquinista acelerar a máquina e passar por cima das mulheres deitadas. A massa de soldados puxou o maquinista e o foguista, jogou os dois na calçada, e a locomotiva não se mexeu. Houve um momento de confraternização entre a massa de soldados e seus irmãos operários e Reis Neto, sentindo desamparado, caiu fora. Mas não ficou só nisso. Como já havia perspectivas de um movimento revolucionário o Comandante do Regimento havia tomado todas as providências no sentido de concentrar abastecimento na cantina do quartel por 20 ou 30 dias.

Pasquim – Quer dizer que havia um clima de revolução no país?

GREGÓRIO – No dia 23 de novembro de 1935 arrebenta o movimento de Natal no Rio grande do Norte. Os insurretos tomaram conta do 28º Batalhão de Caçadores, prenderam a oficialidade, e no dia seguinte atacaram o Quartel da Polícia, que na sua maioria tinha compromisso com a ANL. Estabeleceu-se então o primeiro Governo Popular Revolucionário no Brasil. Rafael Fernandes, governador do estado, aproveitando-se de duas fragatas do governo mexicano saiu para alto-mar, deixando a cidade para os insurretos. Mas houve um erro muito grande. De posse da cidade deveria se preparar colunas para enfrentar os adversário que marchavam sobre o RGN, mas resolveram arrombar o Banco do Brasil e distribuir entre a massa de insurretos. Elementos que nunca pegaram em dez mil réis pegaram em cinquenta contos duzentos contos e não quiseram saber mais nada da luta. Só no apagar das luzes do Governo Popular Revolucionário é que organizaram uma grande coluna que saiu pra fazer guerrilha no interior do estado. Quando esta coluna chegou a uma distância de oito quilômetros, pararam para restabelecer a ordem não tinha mais nem metade. O pessoal tava com dinheiro e resolveu se esconder pra tratar da sua vida. Caíram fora. Só ficou a vanguarda e mesmo assim nem todos. Na próxima parada pra descanso não tinha nem um terço da coluna. Assim fracassou a guerrilha.

Pasquim – Não ficou nimguém pra resistir?

GREGÓRIO – Dois destacamentos guerrilheiros sob o comando de Torquato e Miguel Moreira ainda conseguiram guardar a região de Mossoró durante alguns meses porém não foram apoiados pela massa camponesa, que não estava preparada. Em Mossoró foram apoiados pelos salineiros mas no interior foram fracassando pouco a pouco até que foram cercados e Torquato preso e fuzilado no mesmo local. Miguel Moreira foi preso e morreu alguns anos depois de morte natural.

Pasquim – Como foi o levante em Recife?

GREGÓRIO – Lá a situação era boa mas o Comando-Geral da Revolução não tomou as medidas necessárias.

Pasquim – Quem era esse comando?

GREGÓRIO – Felipe Soares, um oficial da Coluna Prestes, um homem inteligente e capaz mas sem a energia suficiente para dirigir um movimento insurrecional. Pelo menos foi o que deixou expressar. Outro era Caetano Machado, Secretário Político do Nordeste. Esse sim foi responsável pelo fracasso do movimento revolucionário em Recife. Quando chegou a notícia do levante em Natal mandamos uma comunicação ao Comando, que pediu confirmação. No dia seguinte decretaram o movimento insurrecional para as 10:15 do domingo, dia 24. Isto quando já havíamos dito que o movimento não fosse deflagrado no domingo, quando muito só na meia-noite de domingo pra segunda, porque no sábado mais de 80% dos soldados são dispensados do expediente e vão pra suas casas. Só ficam no quartel aqueles soldados que não têm família, amigos ou namorada. São geralmente os que vem do interior. Não tendo pra onde ir ficam no quartel em busca da xepa. Domingo, os soldados estão nos subúrbios, vendo os mafuás.

Pasquim – Não tão a fim de revolução.

GREGÓRIO – Estávamos reunidos com o Comitê militar quando chegou a ordem para nos levantarmos naquele dia. Os companheiros olharam para mim e disseram: “Nós estamos perdidos. Os soldados estão todos fora”. Durante a noite tomamos algumas medidas de espalhar soldados pelos subúrbios tentando ajuntar os comprometidos pra voltarem pros quartéis. Às dez e quinze levantou-se o Quartel de Socorro com praticamente meia-dúzia de militares. Como o Comando já sabia do levante de Natal já havia tomado suas precauções e ofereceu grande resistência contra os insurretos, porém cerca de 30 horas depois foi dominado. Houve grande tiroteio com morte de alguns soldados. Este intervalo de 36 horas prejudicou o movimento revolucionário. O Tenente Besouchet, um dos homens de maior valor do Comitê e o que conhecia melhor o problema militar, embora ferido no tornozelo vai para Jaboatão e Lourenço, o centro fabril, conseguindo mobilizar mais de 800 operários. A massa queria lutar. Esse operário abriram o almoxarifado do Regimento e se armaram. Aí o operariado dos lugares vizinhos afluiu para o quartel. Foram distribuídos mais de 12 mil fuzis e mais de 200 metralhadoras. Mas essa massa bem municiada começou a rodopiar a torto e a direito, completamente desguarnecida. O Comando da Revolução falhou, porque devia ter enquadrado aquela massa de civis com soldados que tinham experiência de luta e de combate. Outro integrante do Comando da Revolução partiu para João Pessoa a fim de levantar seu batalhão mas já havia uma ordem de marcha para Recife para combater o movimento revolucionário, ao invés de aderir a ele. Chegaram lá na segunda-feira de manhã mandando brasa. Houve uma luta muito grande no Centro de Preparação da Reserva, corpo a corpo, tomamos o QG, e o CPOR, e a oficialidade ficou toda encurralada no segundo andar. Um oficial havia morrido e vários estavam feridos. Eu também gravemente ferido. Esperava cerca de 500 estivadores operários e carvoeiros que chegariam ali para podermos continuar a luta armada e cumprir com os objetivos políticos traçados no plano insurrecional. Quando, porém, eu mandei abrir as portas não rinha nenhum civil. Eu tinha muita arma e muita munição – era o encarregado disto – mas não tinha nenhum homem. Durante o ano de instruções, de cada dez tiros eu economizava sete pra poder haver munição na hora do levante. Nesse momento a gente tem que pelo menos fingir que tem coragem. Mas, eu não podia fazer nada ali sozinho, pois vinham me prender. Fui para outro lugar onde esperava mais 450 homens armados que também não estavam.

Pasquim – Por que esses homens não apareceram?

GREGÓRIO – Vou dizer. Mais adiante ficava o destacamento de polícia que ataquei e como os policiais não queriam nada com a luta, abandonaram a Delegacia. Tomei conta dos quatro fuzis que existiam ali. Sempre esperando os homens que me procurariam pra receber armamentos. Eram duas horas da tarde e nada deles chegarem. O meu ferimento com uma hemorragia terrível, a coxa varada de um lado até outro. Aí chegou uma ambulância com um companheiro pra me fazer curativo que disse que a coisa era séria e que não tinha ali injeções antitetânicas ou anti-hemorrágicas, eu teria que ir para o Hospital de Pronto-socorro. Fui já sabendo que seria preso.

Pasquim – Então porque foi?

GREGÓRIO – Sabia que o pessoal do Quartel-General continuaria a luta. Quando estavam limpando a coxa no Pronto-socorro chegou um grupo de militares com um oficial ferido e me prenderam. Não tinha outro jeito senão me deixar prender. Estava deitado numa mesa de operação … O Comandante Interino da Região veio falar comigo de uma maneira correta, assim como o tenente-coronel que achou que eu havia cumprido com o meu dever, lamentando que outros não o tivessem feito. Eu concordei, citando o Capitão Pedrosa, que tinha compromisso com a ANL mas que na hora do tiroteio no QG pediu que eu me entregasse para ser preso. Minha resposta foi atirar na sua direção e ele fugiu. Enfim, não fui hostilizado e os médicos militares me fizeram um curativo extenso na coxa. A guarda era toda do 14º Regimento de Infantaria, que tinha compromisso com a ANL, e que me facilitavam entrar em contato com os companheiros. Fiquei animado por ver que estavam dispostos a continuar na luta, inclusive pra me libertar. Fiquei o resto do dia esperando ser posto em liberdade. Quando foi sete horas da noite pediram que eu tivesse paciência e aguardasse para as dez horas. As dez passou para meia-noite e confesso que tava vendo a coisa pior. À meia-noite o Coronel Faria me mandou uma mensagem pedindo que eu aguardasse a chegada do 22º Batalhão de Caçadores da Paraíba. No outro dia, de manhã cedo, este Batalhão chegou, ensarilhou as armas no largo, diante da Faculdade de Direito, e entrou no pátio interno do quartel pra tomar café. Fiz ainda um chamamento para a massa de soldados concitando-os a cooperar com seus companheiros que lutavam por uma causa justa, em defesa de todos os soldados, dizendo que o que iriam fazer era crime e traição. Uma grande parte se comprometeu então a não atirar nos homens , no pátio. Havia um sargento que sentou praça comigo que disse: “Olha, sou humano e não vou atirar contra meus colegas. Mas tenho que cumprir com o meu dever. Vou atirar sem pontaria”.

Pasquim – O levante então foi fracassando aos poucos?

GREGÓRIO – Houve tempo para que a reação se concentrasse em Recife e recebesse reforços da Bahia, Sergipe, além de várias esquadrilhas de aviação. O 20º da Paraíba tinha compromisso conosco mas vários companheiros de lá foram presos. Dentro de dois dias todos os insurrectos estavam bloqueados.

Pasquim – Mas vocês não tinham uma força militar?

GREGÓRIO – A policia estava quase q eu totalmente na nossa mão e tinha compromisso conosco. Pelo menos estes não fizeram força pra esmagar o movimento. O problema é que o Coronel Nunes Faria foi chamado para o Rio na véspera e quando voltou o movimento já havia sido dominado. Não teve tempo de me fornecer os 450 homens que havia me prometido. A classe operária também precisava ser avisada mas Caetano Machado deu ordem para a deflagração sem tomar as medidas necessárias para mobilizar a classe operária. Decretou a Revolução e saiu sem se ligar com os companheiros do Comitê Estadual ou dos Municipais. A massa só soube do movimento pelo barulho das metralhadoras e o pipocar da fuzilaria. Mesmo assim muitos afluíram para seus postos e tomaram várias delegacias distritais como Casa Amarela e Torres, além de quase toda a cidade de Olinda, Mas não tinham força militar suficiente pra enfrentar a mobilização da reação, que tivera muito mais oportunidades de preparação. Os insurrectos de Socorro foram cercados pelo flanco direito e esquerdo e pela retaguarda por um batalhão de polícia do sertão, e pela frente pelo 22º Batalhão de Caçadores. Ficaram espremidos num verdadeiro sanduíche e assim a maioria foi presa. E no ato da prisão, o Coronel Higino mandou fuzilar muitos soldados e operários. Nessa operação fracassou no nordeste o movimento revolucionário de 35. Já no dia 27 levanta-se a Escola de Aviação no distrito Federal junto com o 3º Batalhão de Agildo Barata e Álvaro de Souza.

Pasquim – Que também fracassaram.

GREGÓRIO – Lutaram durante uma noite e só depois da escola destruída e incendiada é que capitularam. Posteriormente muitos dos que lutaram naquela noite, vieram a pertencer ao Partido, como Benedito de Carvalho e Davi Capistrano. Quando o general Eurico Gaspar Dutra atacou o Regimento não tiveram saída porque ele ficava ali, encostado no Morro da Urca. Havia outras unidades do Exército na Guanabara com a ANL, mas não tiveram condições de se levantar. Assim acabou todo o movimento da Aliança Nacional Libertadora. Daí por diante são prisões terríveis. De novembro de 35 a fevereiro de 36. Entretanto, não houve torturas. O que houve foram assassinatos em massa. Mas o movimento orgânico, principalmente o Partido, não ficou destruído e foi aos poucos se rearticulando, até mesmo na caserna. Tudo realmente marchava para um novo movimento insurrecional, porém veio a prisão de Prestes, de Rodolpho Ghioldi – Secretário do PC argentino – do Aaron, um americano da internacional Comunista e do Harry Berger. Este último foi barbaramente torturado, apanhou na cabeça até enlouquecer. Além destas houve uma série de prisões de pessoas em vários estados, principalmente em Pernambuco, onde a maior parte das forças tinha ficado intacta. Mais uma vez cometeu-se um grande erro. Caetano Machado, estava na prisão mas se aproveitava de sua companheira para mandar bilhetezinhos para um canto e para outro e a polícia começou a acompanha-la. Em princípio de março a agarraram , foi presa e torturada, e não teve condições físicas nem coragem ideológica pra aguentar. Abriu a boca. Caetano Machado ia à sua presença procurando negar suas declarações, mas ela então confirmava. Quando Caetano reagia a polícia trazia sua filhinha e a espremia diante dos pais. A criança berrava e nessas condições Caetano passou a confirmar as afirmações de sua companheira. Isso provocou quedas de elementos muito preciosos.

As primeiras memórias do cárcere

Pasquim – Você também foi torturado?

GREGÓRIO – Até então não. Meu depoimento foi pequeno. Procurei não citar nomes e me fixar na luta que tivemos no CPOR, na sede do Tiro, mais nada. Nessas quedas foi preso em Caruaru nosso Assistente Político junto ao Comitê Militar, que foi barbaramente torturado, e não suportando mais abriu-se e disse à polícia que o único que poderia conhecer os problemas na caserna era eu, o único encarregado daquele setor. Aí começou realmente minha odisseia. Neguei. Fui acareado com este companheiro e neguei novamente. Disse que não o conhecia que devia ter se acovardado e confessado aquilo que a polícia queria. Então entrei na sessão de espancamento, a começar pelo próprio Chefe de Polícia, que tinha ódio terrível de mim. O resto da turma de espancamento era comandada pelo Vandercock, velho torturador. A pancadaria foi dentro do gabinete do Chefe de Polícia. Não sei por quanto tempo me espancaram. Depois me amarraram, me jogaram dentro de um carro e me levaram para as matas de um subúrbio, onde me espancaram por mais uma temporada até eu desmaiar. Acordei cerca de meio-dia do dia seguinte, estendido num banco de madeira, com um enfermeiro passando pomada no meu estômago, no peito e nas pernas que estavam muito inchadas. Passei três dias sem poder falar. Quando fui interrogado novamente confirmei minhas declarações anteriores e na adiantei mais nada. Fui recolhido à prisão para ser levado em seguida à polícia, onde os espancamentos se sucederam várias vezes. Estava muito enfermo, muito doente, muito arrebentado. Chegou o momento em que passei por outra “sessão espírita”, como diz\iam, e depois de todo arrebentado fui interrogado pelo Etelvino Lins, que me olhou e perguntou se eu tinha sido espancado. Mostrei o peito, os braços a barriga, as pernas, e ele disse: “Não ouço um elemento assim. Não tomo seu depoimento. É melhor fuzila-lo”. Eu disse: “Eu prefiro. Se quiser me fuzilar agora mesmo será muito bom”. Etelvino Lins recusou-se a me ouvir mas à noite fui interrogado por vários comissários. Não dormia, não comia, nem me davam água. Duas noites nesta situação. Tive uma sincope, e chamaram um médico, que constatou a gravidade do meu caso: “Se não quiserem assumir a responsabilidade recolham este homem agora mesmo para um hospital. Do contrário não vai resistir”. Mas me recolheram à prisão, com ordem expressa de não ser atendido pelos médicos. O Chefe de Polícia me dizia: “Você vai morrer mas é no cacete. Não vai ser de vez como você quer, mas lentamente”. Continuei preso, rigorosamente incomunicável. Passaram-se alguns dias, melhorei um pouco, e fui novamente transferido polícia. Só saía pra ir lá à meia-noite. Me interrogaram a noite toda. Quando amanheceu o dia, o Chefe foi verificar meu depoimento mas eu havia me mantido naquilo e estava disposto a não dizer mais uma palavra. Aí me puxou pela perna e me mostrou dois companheiros da direção estadual: um, inchado de tanto cacete, o outro que apanhou tanto, o José Maria Abelardo, que morreria logo depois na Detenção do Recife. O Chefe de Polícia me arrastou pelas pernas, me deu mais um chute e disse: “Bandido, tu vai embora mas amanhã tu vai morrer. Já vistes teus companheiros como estão. Tu vai passar pela mesma situação”. Eu não tinha dúvidas de que ia e estava preparado psicologicamente para morrer. A única coisa que me restava era a moral e mais nada. Estava um trapo. Mas no dia seguinte, em que eu devia voltar à polícia pra ser liquidado, esse Chefe se chocou com o General Cavalcanti de Albuquerque, Comandante da Região e, como a corda arrebenta do mais fraco ele foi demitido.

Pasquim – Como era o nome desse homem?

GREGÓRIO – Malvino Reis Neto. No seu lugar foi nomeado interinamente o Capitão Mamede. Cilo Meireles, que tinha sido seu colega de turma, fez uma carta pedindo uma audiência onde levantou o problema da tortura e dos assassinatos. Foram essas duas coisas que evitaram que eu fosse liquidado. Mesmo com a ordem expressa de que eu não fosse Atendido pelos médicos, um acadêmico doutorando em medicina me viu naquela situação e procurou me passar um remédio. Com este remédio meus intestinos voltaram a funcionar, pois eu já estava há mais de quinze dias sem evacuar nada. Os intestinos voltaram a funcionar, mas eu não tinha condições físicas de evacuar. Então levaram o caso a um professor de Medicina, Geraldo de Andrade, que me mandou um dispositivo para que eu pudesse extrair os bolinhos de sangue pisado que estavam nos meus intestinos. Fui tirando com muito sacrifício, pois meus intestinos estavam completamente destruídos. Muito inchado, todo dolorido, mas aliviado. Meu melhor médico foi o sol. Ficava deitado numa tarimba, o sol ia a aquecendo minhas articulações e, com muita dificuldade, fazia alguns movimentos. Até que levei uma pedrada na cara.

Pasquim – Uma pedrada?

GREGÓRIO – O Diário Oficial era impresso dentro da Casa de Detenção, e nessa oficina trabalhava um companheiro que era do Partido e me conhecia e que me mandou este bilhete: “Conhecemos sua situação e esperamos que tenha condições de resistir. Não se preocupe com seus filhos que, enquanto eu puder trabalhar, não morrerão de fome e se educarão”. Este bilhete foi tudo para mim. Dentro do bilhete vinham cinquenta mil réis. Tudo isso estava amarrado com um cordão e uma pedra.

Pasquim – Ah, a pedrada foi esta?

GREGÓRIO – Levei uma pedrada que fez um galo na cabeça. Fiquei indignado, irritado, depois é que olhei pra pedra e vi que estava embrulhada. Tinha boi na linha. Fui me escorregando com jeito na tábua de madeira que me servia de cama, consegui botar um braço no chão onde fui me apoiando, desci as pernas e arrastei as nádegas até apanhar o bilhete. Meu guarda era um cão de fila danado: tudo que encontrava defronte do meu cubículo destruía. Se quando o dia amanhecesse ele visse uma pontinha de cigarro, por menor que fosse , pegava aquilo, rasgava e esfarinhava nos dedos pra ver se tinha algum bilhete. Quando me levavam para o banho ia agarrado comigo até o banheiro. Eu ficava em pé segurando na grade, ele entrava, desatarraxava a ducha e metia o dedo por dentro pra ver se tinha alguma mensagem. Arregaçava a camisa e enfiava o braço no esgoto do banheiro para ver se tinha alguma coisa. Um dia este guarda estava pra cima e pra baixo, aperreado, ora tirava o boné, ora punha o boné. Nessa altura eu havia melhorado e estava encostado na parede com o nariz numa abertura de cinco centímetros que deixavam na porta de ventilação. Quando ele passou eu disse: “Seu Guarda, faz favor”. “Não faço favor a preso”. “Esquece isso por um instante. Vejo que o senhor está muito preocupado”. “Que o senhor tem com isso?” “Muita coisa, porque sou humano e vejo que o senhor está sofrendo bastante”. Ele olhou para mim, tornou a olhar novamente, e disse: “Realmente estou muito preocupado. Meu filho, que adoro muito, vai morrer à míngua por falta de cinco mil réis pra pagar um médico que lhe dê uma receita”. Meti a mão no bolso, peguei os cinquenta mil réis do bilhete e lhe entreguei: “Taí. Não é ao senhor que estou dando mas ao seu filho. Se quiser salvar seu filho o senhor não pode recusar. Não quero que com isso o senhor abrande a vigilância em relação a mim, pois sei que está cumprindo ordens que se não forem cumpridas poderão fazer com que o sofra o que eu estou sofrendo”. Ficou assim sem saber se recebia e repeti: “O senhor será o único responsável pela morte de seu filho. Não estou lhe fazendo favor nenhum, nem quero que me facilite nada”. Como amava mesmo o filho, aceitou. Aí lhe ensinei qual o médico que deveria procurar, um pediatra muito capaz. Ele comprou o remédio e no dia seguinte chegou com uma fisionomia totalmente diferente pra mim. Daí em diante não era eu que procurava falar com ele mas ele comigo. Tive que dizer: “Tome cuidado. Não quero que o senhor sofra por minha causa”. “Mas preciso saber uma coisa: em que o senhor se baseia pra ter uma compreensão tão humana? Para mim o senhor era um monstro, diziam que o senhor era uma besta-fera capaz de sangrar uma criança e comer seu fígado”. Era realmente isso que diziam e que muita gente acreditava.

Pasquim – É o que dizem até hoje.

GREGORIO – Falei para ele que nós estávamos ali sofrendo justamente porque queríamos um mundo melhor, essas coisas. Falei horas. “Qual é o livro que o senhor tem que lhe dá essa força e esta compreensão? Me explica sobre isso. “Não tenho livro para lhe dar. E mesmo que eu os tivesse; são livros proibidos. Se ler estes livros será preso como comunista”. Falei o nome de alguns livros que me lembrei de memória, além do jornal “A Classe Operária” , mas frisando que não podia ler na frente de ninguém. “Em todo caso o senhor fala com Mário Piauí”. Era um dos Chefes da Guarda Civil da Detenção e membro do Partido. Mário ficou branco como uma folha de papel: “Gregório me desgraçou! Me denunciou à própria guarda! Este homem é perigoso”! Respondi: “Confie, instrua e não se preocupe”. Realmente, este companheiro entrou com outros dois e fizemos uma base do partido lá dentro da prisão. Os três nos prestaram um serviço valioso, principalmente quanto às informações de fora para dentro, funcionando muito bem até irmos pra Fernando de Noronha.

Pasquim – Qual era o tipo de ajuda que eles davam?

GREGÓRIO – Tinha um cabo meu vizinho de cela que sabia que eu estava ali e me passava informações através do Morse, batendo na parede, e assim eu ficava mais ou menos a par do que se passava no resto da prisão. Mas de repente esse cabo foi solto deixando em sua cela um papel com mais de 60 nomes de companheiros. O guarda aquele, meu ex-algoz, me deu esse papel dizendo: “Gregório, tome esse fósforo e queime isto”! Salvou 60 companheiros de serem castigados! Quando o pessoal descobriu o Código Morse passamos a usar a privada. Um sistema que chamávamos de “merdofone” ou “mijofone”, um processo seguro de comunicação interna.

Pasquim – Explica isso aí.

GREGÓRIO – Esgotava-se toda a água do vaso e com uma vassoura limpava-se tudo aquilo. Depois a gente metia a cara ali dentro e falava. Onde tinha ligações com o esgoto podia receber as comunicações e retransmiti-las para os lugares sem comunicação direta. Todos os 1600 presos da cadeia estavam constante comunicação apesar da rigorosa incomunicabilidade. Só se saia para banho de um em um. Banho de sol a mesma coisa. Mas como esse banho de sol era de dez minutos de dois em dois meses, fizemos um movimento grevista. Tínhamos duas organizações internas: a CCC (Comissão Central dos Coletivos) e Fração Partidária. Nunca tinha visto unidade tão perfeita e uma solidariedade tão incrível. Acontece que o Rio Capiberibe passava perto da prisão, cujo esgoto era despejado lá. Quando a maré enchia as águas voltava, pressionando os esgotos que desprendiam gases fétidos, intoxicando a saúde dos companheiros, e evitando a continuação desse processo de comunicação. Como é que a gente ia se comunicar a partir daí? Tentamos os camundongos. Cada cubículo começou a criar uns ratinhos, domesticando, ensinando, mas rato tem uma tendência policialesca…

Pasquim – Haja vista o Mickey.

GREGÓRIO – Um companheiro nosso pegou um ratinho depois de domesticado, amarrou uma linha e mandou uma mensagem atrás, mas o rato ficou apavorado e ao invés de correr para onde a gente queria correu para o meio dos guardas. Um rato puxando um negócio? Lá se foram 66 companheiros para um cubículo minúsculo. Dois companheiros morreram asfixiados neste castigo e dois outros baixaram enfermaria em estado de coma. O médico, apesar de tímido, ficou tão revoltado com isto que se recusou a atestar estas mortes, e assim Trindade Henrique tirou os companheiros de lá. A partir daí ficamos umas feras e fizemos uma guerra contra os ratos! Se entrasse um numa cela era logo liquidado. Como tinha muita barata daquelas cascudas começamos a domesticá-las. Não tínhamos nada pra fazer, não havia tarefa nenhuma, então esse era nosso passa tempo. Amarrávamos as baratas na altura das pernas e debaixo das asas e soltávamos depois com a linha presa. Se a gente queria que ela fosse pra direita mas ela ia pra esquerda era só puxar a baratinha, que detesta andar de ré. Se ela ia para frente mas, para a esquerda, era só puxar. Barata também é muito oportunista a primeira brecha na parede, ali se impregnava, fazendo força para não voltar. Muitas vezes só voltava o corpo: as pernas ficavam grudadas na brecha. A gente tinha que começar com outra barata. Finalmente elas começaram a compreender onde que a gente queria que elas fossem: passar debaixo da porta de madeira, ultrapassar as grades, e ficar lá fora dando o ar da graça. Os companheiros então puxavam carinhosamente a barata, punham dentro de uma caixinha improvisada, e enrolavam a linha. Na outra ponta vinha a mensagem que queríamos mandar.

Pasquim – Os guardas não percebiam?

GREGÓRIO – Não, era feito de noite, quando, barata é igual a qualquer canto de parede escura. As paredes eram pintadas com piche. Assim as baratas foram promovidas a Estafetas Especiais. Trabalhavam magnificamente! Nunca vi bicho tão feio e nojento ser tão inteligente e eficiente! A boia para nós era uma desgraça mas para a barata era um grande banquete. Por isso trabalhavam diariamente. Não só para exercitar mas para aprender que no dia em que trabalhavam comiam melhor. Saíam de um cubículo pra comer em outro cubículo. Com isso demos um curso de Máximo Gorki e alguns trechos de “Casa Grande & Senzala” de Gilberto Freyre. Pra nós isso foi importante porque não recebíamos livros. Só havia esses dois livretos que entraram não sei como, mas já eram suficientes para dar pano pras mangas. Este sistema durou quase três anos até descobrirmos um meio mais seguro de ligação. Não tínhamos como furar as paredes. Com cabos de vassoura e cabos de colher, fizemos formões para raspar as paredes. Usávamos miolo de pão mastigado pra “cimentar” a colher no cabo de vassoura. Ficava perfeito.

Pasquim – Ficavam mastigando pão pra fazer cimento? Devia ser o tal pão que o diabo amassou.

GREGÓRIO – Enquanto secava a gente examinava a parede e no lugar onde achávamos ser fácil de arrombar íamos roendo dia e noite, Quénc! Quenc! Quinze dias, um mês, dois meses, quatro meses, conforme os obstáculos que pudessem aparecer na parede como uma pedra ou um pedaço de ferro, que não se gastava com o atritar do cabo da colher. Se isto acontecesse, a gente tinha que começar outro buraco.

Pasquim – Como é que vocês despistavam os buracos?

GREGÓRIO – A gente raspava a parede de levezinho com o gume do prato e com o miolo de pão tampava o buraco, deixando uma pontinha de nada para fora de modo que só quem soubesse é que sabia que ali tinha algo pra ser puxado com a unha. Porque os guardas davam batidas nas celas, passavam as mãos nas paredes. Devia ter alguma denúncia mas nunca conseguiram provas. Davam batidas incertas, ora à meia-noite, ora às cinco horas da manhã, ora às duas da tarde, mas nunca descobriram coisa nenhuma embora as paredes da Detenção ficassem todas arrombadas. Chamávamos a isso de “tatu”. Quando faltava uns dez ou quinze centímetros para arrombar a gente ia fazendo uma economiazinha de bolachas com uma migalha de bacalhau ou carne seca para a confraternização no dia em que a gente alcançasse o outro lado. Aí era discurso de lá pra cá, de cá pra lá, por toda parte. O mais difícil foi na Cela da Juventude – onde 42 jovens estavam presos por terem denunciado que a polícia tinha matado meu irmão através de torturas – porque não tinham com que furar. Além disso, pegaram o cano da privada e passaram vários meses furando. Dia e noite, revezando. Ficou aquele buraquinho cilíndrico, bonito, parecia até um túnel. Foi muito melhor do o nosso sistema anterior de comunicação com eles. Quando botavam uma mensagem amarrada num cordão de linha, davam a descarga, a gente metia a mão na volta do sifão e agarrava a mensagem que vinha embrulhada num celofane. Pra responder era a mesma coisa.

Pasquim – Era uma merda de trabalho, né?

GREGÓRIO – Sim, era um pouco sujo, mas quebramos a incomunicabilidade. Porém, às vezes, tínhamos necessidade de um contato pessoal mesmo. Um dia o esgoto central entupiu. As fezes, a urina, a água suja, começaram a subir, a subir, e invadiu toda a primeira galeria de um lado e do outro. Aqueles bolos fecais ficavam boiando de todo jeito, uns cilíndricos, outros espichados, passavam pelo tornozelo da gente macio como se fosse uma pecinha de veludo. Passamos três dias num lago de fezes e urina. Como as autoridades não tomavam providência abrimos a boca: fizemos uma greve de fome.

Pasquim – Como eram as refeições, até então? O que vocês deixaram de comer?

GREGÓRIO – Um café da manhã, um almoço ajantarado, de noite três bolachas com uma caneca de chá que não era chá nem café nem chafé nem coisa nenhuma, era água suja mesmo. Na greve de fome, nós subimos para as grades e começamos a gritar para a rua que estavam nos matando de fome.”Socorro! Socorro!”Foi um escândalo desesperado. Mas o estrondo de todos a gritar a um só vez assustou as pessoas. Quase duas mil pessoas gritando não é brincadeira. As ruas ficaram superlotadas de transeuntes defronte do presídio, uma multidão dia e noite. Então nos tiraram e nos puseram na segunda galeria junto com os outros presos. Uma cela de cinco pessoas passava a ter 40 ou 50. Essa quebra foi casual, mas começamos a pensar nisso. A partir daí sempre a gente precisava de reunir, entupia as privadas novamente.

Pasquim – Vocês fizeram muitas greves?

GREGÓRIO – Muitas. Acabamos por conquistar uma grande reivindicação: a boia que vinha sem tempero, sem lavar, sem coisa nenhuma, passou a vir um pouco mas preparada. Até então nunca tínhamos comido arroz! Veio também uma banana ou uma laranja por dia e dez gramas de sabão por semana.

Pasquim – Vocês não tinham sabão?

GREGÓRIO – Nada. Os companheiros que fumavam viam às vezes baganas dos soldados perto da porta e pediam pelo amor de Deus que se chutasse aquela ponta pra dentro da cela. Outros pegavam um pedaço de capim ou de papel e acendiam como se fosse um cigarro. Puro gás carbônico. Então fizemos uma campanha interna contra o fumo e a maioria absoluta deixou de fumar, mas quando abriram as grades da prisão e voltamos a receber visitas todos voltaram a fumar desesperadamente. Mas a maior luta das greves internas era pelo banho de sol. Conseguimos um banho de 30 minutos a cada quatro semanas. Demorava esse intervalo porque cada cela tinha que ir na sua vez. Fizemos uma greve de fome para que fosse galeria em galeria, garantindo assim pelo menos quatro banhos de sol por semana.

Pasquim – As visitas também foram resultados de greves?

GREGÓRIO – Sim. Passei dois anos, dois meses e quinze dias sem receber visitas, até que conseguimos cinco minutos por semana, o que deixava muita gente três ou quatro meses sem receber visitas por falta de tempo para todos entrarem. Minha primeira visita foi um desastre porque veio uma companheira, uma irmã, minha filha e uma sobrinha, e o guarda ainda ficou entre a minha pessoa e a deles. Eu disse: “Levante-se que a visita é para mim. Se quiser ouvir o que estamos dizendo puxe a cadeira e se sente” Com isso fui para o castigo. Minha filha me puxava dizendo “Vamos pra casa, paizinho” e o guarda me puxava dizendo “Vamos pro castigo”. Foram cinco minutos de luta: o tira me puxava com toda a violência, mas eu não soltava a mão de minha filha. Ela foi pra casa, eu fui para o castigo, mas houve uma grita muito grande dentro da prisão e dentro de duas horas me tiraram.

Pasquim – Quanto tempo você ficou nesta prisão?

GREGÓRIO – Depois de três anos chegou a condenação do Tribunal de Segurança Nacional. Os companheiros, que até então haviam mantido uma unidade e uma coesão incrível para a situação de confinamento em que vivíamos, depois da condenação passaram a ter atritos. Havia os elementos que esperavam ser postos em liberdade, outros que receberam a mesma pena apesar de estarem na prisão o tempo suficiente para cumprir quase tudo, e muitos caíram no desespero. Tivemos muito trabalho para recuperar o sentimento de unidade que reinou durante mais de três anos. O que a polícia não conseguiu durante toda aquela temporada o TSN conseguiu com uma cajadada de condenações a torto e a direito.

Pasquim – Qual foi sua sentença?

GREGÓRIO – 28 anos de prisão. Foi a maior de Recife. Todos receberam quase o dobro das penas que esperavam. Todo dia o CCC discutia com os companheiros que tiveram atritos. Os que eram mais conceituados às vezes ficavam discutindo a noite todinha. Uns três meses depois a coisa estava normalizada. Houve alguns suicídios. Um cabo do exército cortou a carótida numa lâmina de aço que estava no cimento, outros pularam do alto, mas daí em diante os companheiros entenderam que não deviam continuar nesses atritos. Aí veio a possibilidade de irmos para ilha de Fernão de Noronha. Lá foi uma espécie de exílio pois tínhamos uma semi-liberdade, pelo menos tínhamos ar puro. Aqueles que não tinham condenações longas ficaram na detenção e os outros fomos todos pra lá, onde encontramos o pessoal do Rio. O Diretor da ilha era o Coronel Veríssimo, que tinha sido da Coluna Prestes e era tio de Érico Veríssimo. DE qualquer forma, foi um cara mais ou menos bom, a não ser por sua tendência de gostar de ganhar dinheiro e sua percentagem altamente getulista. Era 99% getulista e apenas um milímetro prestista. Como tínhamos mais experiência demos muita ajuda na formação de um Departamento de Trabalho. Tínhamos uma lavoura para plantar para nós e uma horta para fornecer verduras para a diretoria, para o destacamento policial e para a enfermaria. Até mesmo os integralistas – que essa altura estavam presos também – quando estavam doentes nos pediam verduras e dávamos de mãos beijadas. O Presídio nos fornecia adubos, ferramentas e sementes e entrávamos com a força de trabalho. Nosso lema em Fernão de Noronha era “Tudo Fazer para a Conservação da Saúde”. As poucas laranjas e vitaminas que iam para lá eram para os diabéticos. Nossa boia era melhor porque nós mesmos éramos os cozinheiros. Formávamos um grupo, um coletivo reconhecido pela Diretoria. Nossas turmas eram: Lavoura, Horta, Cozinha e Rancho, Pesca e Cultura.

Pasquim – O que é que o pessoal da Cultura fazia?

GREGÓRIO – Organizava seminários. Tínhamos também uma parte esportiva, construímos uma quadra de basquetebol e voleibol e reconstruímos o campo de futebol. Tivemos uma vida trabalhosa mas em compensação tínhamos uma certa parte da ilha praticávamos nossos esportes, tomávamos banho de sol e de mar à vontade. Nos períodos de crise, quando o navio com gêneros alimentícios atrasava – de vez em quando propositadamente – todo o coletivo se mobilizava para arranjar alimentação. Como não tinha sal pegávamos latas de querosene e enchíamos de água salgada. Tinha um navio perto que tinha ido a pique com uma carga de carvão de pedra então nossos companheiros mergulhavam pra fazer fogueiras e evaporar a água, deixando às vezes até 250 gramas de sal. Éramos os únicos a ter sal na ilha o que nos dava grande prestígio. Fizemos um teatro de brinquedo. Como era tudo homem o pessoal se fantasiava, vestia de mulher, com roupas fornecidas pelas famílias dos funcionários da ilha. Tínhamos um conjunto musical muito bom a quem chamávamos de “Os Diabos de Fernando”. Assim melhoramos o clima interno da ilha.

Pasquim – Enquanto isso havia estourado a II Guerra Mundial, né?

GREGÓRIO – Sim. Soubemos que a União Soviética havia sido invadida pela Alemanha; a guerra com a Finlândia, que ninguém compreendeu o Rodolfo Guido deu uma conferência explicando; o acordo Stalin com Hitler que ninguém entendeu: a maioria dos companheiros não compreendia que aquilo era uma tática para ganhar tempo, todas essas coisas. O Stalin dizendo: “Morte ao invasor. Nem mais uma polegada de terra”.

Pasquim – Como vocês recebiam essas informações?

GREGÓRIO – Rádios clandestinos.

Pasquim – Quais eram os companheiros famosos que estavam lá?

GREGÓRIO – Agildo Barata, Álvaro de Souza, Capitão Gonçalves, Tenente Gutman, Davi Ribeiro, Agliberto de Azevedo, Mário de Souza, Ivan Ribeiro, todos estes do Rio.Havia centenas de outros que não decorei. Todos éramos coletivistas, o que era de um era de todos. Melhoramos os casebres dos presos comuns. Nosso meio de vida chamava atenção da massa integralista porque entre eles havia 100% de egoísmo. O Oficial era tratado como oficial. O marinheiro tinha que tratar seu superior hierárquico como tal.O que campeava ali era o individualismo e a pederastia. Quando Fernão de Noronha foi transformado numa base militar, em 1942, fomos transferidos pra a Ilha Grande no Rio, e nossa política modificou-se. Em Fernão de Noronha o que queríamos era colaborar mas na Ilha Grande a situação era diferente.

Pasquim – Vocês não tentaram fugir?

GREGÓRIO – Era difícil mas eu tentei. Passei um ano e seis meses trabalhando numa jangada para fugir. Somente o Piauí e o Cabo Ananias sabiam. Fizemos uma ginástica, trabalhamos demais, construímos a jangada, fizemos uma vela, e no dia escolhido para a fuga o coração chegava a palpitar, badalando de todo jeito. Fizemos um bilhete nos despedindo do coletivo. Oito dias depois poderíamos alcançar as praias do Rio Grande ou do Ceará. M e lembro como se estivesse lá agora em cima daquela jangada. O vento foi indo, o mar sereno, e ela foi indo. Quando chegou a uma distância de uns 200 metros – só 200 metros – veio um vento forte levantando uma onda que inclinou demasiadamente a jangada. Pendemos para o outro lado tentando consertar mais veio outra onda mais forte ainda que cobriu a jangada e a emborcou par dentro da água. Ficamos de cabeça pra baixo, mergulhamos e saímos à tona do lado da jangada. Estávamos numa parte profunda do oceano. Lá tem muitos tubarões nem davam confiança pra gente. Como eu nadava muito melhor do que o Cabo Ananias eu ia até uma pedra, amarava a corda e puxava a jangada. Assim, de pedra em pedra, encostamos na ilha. Quando chegamos era tarde e tivemos que trabalhar a noite toda para cavar um buraco e enterrar uma jangada com mais de seis metros de comprimento e dois de largura. Enterramos também a vela. Trabalho de quase dois anos. Assim fracassou nossa fuga. No dia seguinte, às sete horas voltamos para o alojamento com a cara mais deslavada e acabrunhada da vida.

Pasquim – O que vocês fariam quando chegassem ao continente?

GREGÓRIO – Cada um levava roupa e um calção de banho, além de uma foice de tirar coco bem amolada. Nosso objetivo era passar na primeira delegacia depois de encostar nas praias de Ceará, atacar, tomar as armas, e cair na luta de guerrilha contra Vargas. Parecia que ia dar certo mas, na prática, fracassamos. Reuniu-se o coletivo e foi a primeira vez em que tive ocasião de discutir com Agildo Barata. Mas como estávamos cansados propus que fosse formada uma Comissão para depois discutir a questão conosco. Os companheiros não se colocaram contra nossa fuga mas concluíram que era uma ato isolado e aventureiro e que devíamos tentar uma fuga bem organizada com o apoio do exterior. O assunto ficou para ser discutido quando chegássemos à Ilha Grande. Também havia indicações de que o nazi-fascismo seria esmagado e que talvez não fosse nem necessária essa fuga bem organizada.

Pasquim – Como era a vida na Ilha Grande?

GREGÓRIO – Bem melhor do que em Fernão de Noronha. Água boa e fruta quase à vontade porque era muito barata. Como Filinto Muller foi demitido, não podendo mais proteger os italianos e alemães, o pessoal da Quinta Coluna passou a ser preso e foi para lá. Foi quando os navios brasileiros foram torpedeados pelos corsários do Eixo e a massa foi para a rua depredar casas e exigir de Vargas o rompimento com o Eixo. Na Ilha Grande começamos a entrar em entendimento com o mundo civil através dos familiares dos presos políticos da região, que nos informavam sobre o que se passava fora do nosso pequeno mundo. Soubemos do incentivo que se dava à luta democrática e pela Anistia aos presos políticos.Na medida em que as tropas fascistas iam sendo batidas, quer nos campos da Itália, quer nos campos da África e principalmente no setor oriental da União Soviética, nossa situação no presídio também ia melhorando. Podíamos ouvir rádio e receber jornais diários. A maioria dos guardas não tinha rádio e vinha nos pedir informações. A derrota de Hitler em Stalingrado despertou o entusiasmo de todo o povo brasileiro. Nesta cidade de, 36 mil pessoas haviam morrido só de fome, sitiadas pelo cinturão de Aço Nazista.

Pasquim – Qual foi a influência que isso teve sobre você?

GREGÓRIO – Com isso não só eu mas todos pudemos ver o fim da ofensiva fascista. Para nós na prisão era uma perspectiva de uma libertação mais rápida. Tínhamos certeza de que o exército fascista não teria mais condições de desfechar uma ofensiva em grande escala como em 42.

Pasquim – E sobre o povo brasileiro?

GREGÓRIO – Incentivou a juventude a continuar nas ruas com o movimento patriótico exigindo que Vargas mandasse tropas brasileiras para lutar na Itália. Em dezembro de 1944 demos uma grande festa comemorativa de Natal cujos objetivos eram políticos e econômicos, facilitando também maior contato com os amigos que lutavam pela Anistia. A festa foi coroada de êxito. Foram não só nossos parentes e amigos como diversos curiosos por conhecer os personagens famosos da ANL. Além dos que já falei estavam Carlos Marighela, Antonio Bento Tourinho, Leivas Otero, Pedro Mota Lima, José Francisco e outros.

Pasquim – Quantos presos haviam lá?

GREGÓRIO – Trezentos e poucos. Já estávamos presos há dez anos e a maioria já havia sido liberada. Logo a seguir, em 45, com o avanço impetuoso das tropas soviéticas, forçou-se a abertura da Segunda Frente, que os demais aliados haviam protelado o máximo possível. Arrebentaram o Rommel, a Raposa do Oriente. O povo brasileiro vendo isto num ambiente de grande entusiasmo, reforçando o movimento pela Anistia e pela Democracia. Falava-se abertamente que Vargas não tinha outra saída, mesmo porque as tropas brasileiras estavam lutando a favor da Democracia. Em relação ao que eram antes nossas condições carcerárias passaram a ser um paraíso, a ponto de alguns visitantes passarem até 30 dias alojados no presídio. Chegou mesmo haver um casamento de um preso político com a irmã de um dos guardas. Conseguimos que a velha prisão onde Graciliano Ramos este recolhido fosse reconstruída e transformada em alojamento para as famílias dos detentos que tinham condições de passar algum tempo lá. Os integralistas também usufruíram disto. Neste momento surgia também uma conspiração contra Vargas formada por militares e membros da UDN. É interessantes que estes mesmos homens que achavam que Vargas era um homem enviado por Deus para salvar as instituições da desordem, da anarquia e do comunismo a soldo de Moscou, agora nos procuravam para ficarmos a favor do golpe. Eu mesmo, devido ao meu ódio ao Estado Novo, achava que ele devia cair, mas Prestes realmente teve a posição equilibrada de ficar a favor de sua manutenção “porque qualquer perturbação vai interromper o envio de meios para a luta contra os ditadores nazi-fascistas. Quando Vargas namorava o Eixo todos estes elementos estavam com ele. Agora que deu uma reviravolta, a troca de camisa, querem derruba-lo? Agora é o momento que nós comunistas devemos ser francos e honrados, ficando de acordo com as posições progressistas do seu governo, evitando qualquer golpe enquanto durasse a guerra contra o inimigo fundamental de todos os povos”.

Pasquim – A maioria apoiava essa posição?

GREGÓRIO – Sim, Prestes dizia que Vargas daria a Anistia, reconheceria a União Soviética, pois isso era uma necessidade do sistema democrático. Para Prestes a instalação de uma embaixada soviética no Brasil seria o símbolo da consolidação de um futuro regime democrático e progressista que surgiria logo após a queda do Eixo.

Pasquim – Qual era sua opinião pessoal sobre isso?

GREGÓRIO – Achava que de qualquer forma Vargas devia cair mas não discordava da orientação do Partido. Nunca discordei nem me insurgi contra a maioria que o Partido tinha. Sempre me submeti ao centralismo democrático e procurei seguir à risca aquilo que a maioria decidia. Antes da decretação da Anistia fui requisitado para a Guanabara a fim de passar alguns dias com Prestes. O Chefe de Polícia, João Alberto, ex-tenentista e da Coluna Prestes, foi quem me requisitou e me disse: “Você é ex-militar e companheiro do Prestes, que está recebendo muitas visitas. Todas muito bem intencionadas. Mas de boas intenções o inferno está cheio. Vai ficar com o Prestes porque como militar conhece bem o que é Segurança. Aceita?” “Perfeitamente”. Eu tinha muita vontade de ter um contato pessoal com ele. Enquanto estávamos em Fernão de Noronha lutamos para que ele fosse para lá mas isso não foi possível. Para mim foi uma grande oportunidade de conhece-lo e de discutir com ele. Fiquei com ele na sua cela da Frei Caneca quando então me perguntou como estava situação na Ilha Grande, onde houvera um racha. Tentei expõe isto na mediada do possível até que me perguntou: “Qual é a sua opinião sobre isto?” Respondi que achava que Vargas deveria cair. “Vargas desencadeou a maior reação da História. Foi o homem que entregou minha companheira à Gestapo de Hitler. Teu irmão foi liquidado na prisão através de torturas bárbaras. Inúmeros companheiros perderam suas vidas. Mas agora ele está voltando para o povo e vai nos dar várias liberdades. Por isso é que querem derruba-lo. Enquanto estiver inclinado para a Democracia temos que apoia-lo pois convocará uma Assembléia Constituinte através da qual teremos condições de dar um pulo agigantado para a frente”, Me convenceu. Foi decretada no dia 15 ou 18 de abril de 1945 e fomos pra rua.

Pasquim – E você estava novamente livre.

GREGÓRIO – E disposto a enfrentar a luta. Andando pelas ruas do Rio senti o mundo girar dentro da minha cabeça. Saí pela Rio Branco. Praça da Bandeira. Tabuleiro da Baiana. Ia para um lado mas sentia que ia para outro muitas vezes tive que me agarrar aos postes pra recuperar o rumo. Depois de dez anos encarcerado estava completamente tonto. A liberdade é uma coisa extraordinária. Além de ser uma palavra bonita é uma coisa concreta para um cara que sente a sua necessidade. Para nós que estávamos na prisão foi realmente um paraíso. Mas, ganha a liberdade, saímos pra rua, ao invés de cruzar os braços. Trabalhamos noite e dia mobilizando as massas para o comício do campo do Vasco que teve mais de cento e tantas mil pessoas. Foi a primeira vez que Prestes falou ao público em nome do Partido Comunista. Daí por diante continuamos a mobilizar as massas populares, toda a gente boa brasileira que sempre lutou e luta pela liberdade, pela Democracia e pelo progresso nacional.

Pasquim – Qual o cargo que você ocupou nesta época?

GREGÓRIO – Era um mero militante, um homem do povo como outro qualquer. Reconhecia minhas limitações. Um dia estava na casa de Ivan Ribeiro quando Prestes mandou me convidar pra voltar a Pernambuco a fim de organizar o Partido lá, pra continuar com a luta revolucionária. Não me fiz de rogado e iniciei esta grande tarefa. Fomos de rua em rua, de beco em beco, de município em município, e criamos um grande partido, principalmente no setor operário. Além das bases que criávamos em todas as fábricas havia as de bairro e os Comitês Democrático e Popular. O movimento de massas cresceu muito em todo o país, mas principalmente em Pernambuco.

Pasquim – E nas eleições de 2 de dezembro de 45 você foi eleito deputado.

GREGÓRIO – Eu, um João-ninguém, recém-saído da cadeia, quase sem roupa, com apenas um sapato furado nos pés. Pois apesar disso fui eleito deputado, o mais votado em todo o Grande Recife e o segundo em todo o estado. Sem gastar um tostão. Muitos elementos mandaram imprimir cédulas que eles mesmos distribuíram. Minha eleição foi uma surpresa para mim e para o Partido. Jamais na minha vida esperava ser deputado, nem havia querido ser candidato, sabia que não tinha condições para enfrentar as raposas da política. Porém, o Partido e a minha bancada me ajudaram e, na medida do possível, pude cumprir com o meu dever.

Pasquim – Fale sobre sua vida de deputado.

GREGÓRIO – Não tive condições de ser apresentado ao Congresso porque não tinha roupa, mas me mandaram numa alfaiataria e me fizeram três roupas, alinhadíssimas. Nunca tinha botado uma gravata no pescoço. Aliás, até hoje não gosto. Foi a massa que soube da minha situação e que me deu tudo, inclusive a passagem para o Rio.

Pasquim – Como foi sua chegada no Rio?

GREGÓRIO – A massa me recebeu com muito calor e fraternidade e isso me incentivou muito. Um dos projetos que apresentei logo foi o do voto para os analfabetos e membros das Forças Armadas. Tinha sido sargento durante muitos anos e me sentia discriminado com aquilo. O cidadão que ia para a caserna defender a Pátria, que era o responsável pela manutenção da ordem, recebia como cidadão essa discriminação odiosa. Este projeto foi muito discutido, teve muita repercussão, e foi aprovado o direito de voto para sub-oficiais mas não passou para os soldados e os cabos e muito menos para os analfabetos. é uma questão que se discute até hoje. O Marechal Lott era favorável ao voto para os analfabetos.

Pasquim – Como ficou seu contato com as bases do Recife durante este período?

GREGÓRIO – Éramos deputados federais, porém representantes do povo. Diariamente estávamos nas portas das fábricas e em todas as concentrações populares, atendendo as associações de bairro que nos procuravam no Parlamento. Muitas vezes deixávamos de fazer uma tarefa no Parlamento para atender às dezenas e centenas de comissões que nos procuram diariamente a fim de levantar seus problemas. Aos domingos e feriados íamos para os bairros afastados e cidades vizinhas, principalmente quando da nossa campanha do “petróleo é Nosso”. Nesta época Graciliano Ramos deu uma grande contribuição em defesa do petróleo e da economia nacional. Havia comícios e conferências diárias no Rio e em São Paulo. Quando os operários entravam em greve e a polícia invadia os sindicatos, estávamos lá. Quando a polícia invadia nossas oficinas estávamos lá.

Pasquim – O que você fez quando o PC foi declarado ilegal e você perdeu seu mandato?

GREGÓRIO – Este foi um problema muito sério. Durante a batalha pela cassação do registro eleitoral do Partido a bancada teve uma posição de muito destaque no Congresso nacional, principalmente através de Prestes, mas logo depois da aprovação da Constituição de 46 este passou pro Senado e nossa bancada ficou sob a liderança de Grabois. Continuamos nesta luta com vários deputados muito capazes.

Pasquim – Tinha o Marighela.

GREGÓRIO – José Maria Crispim, Pedro Pomar, Arruda Câmara… vez por outra me cabia um papelzinho modesto na defesa desta luta. Mesmo depois do fechamento do Partido continuamos como deputado e a batalha da não cassação de mandatos durou mais de três meses. Diziam que éramos representantes de um partido fora da lei. Isto foi agravado com uma conferência que Prestes fez aos serventuários da Justiça. Um dos membros da platéia levantou-se e disse: “Senador Luiz Carlos Prestes, no caso dos Estados Unidos entrarem numa guerra contra a União Soviética, e o Brasil seja arrastado do lado deles contra a União Soviética, qual é a posição de seu partido?” Estávamos em plena guerra-fria comandada pelos EUA. Prestes respondeu prontamente que era uma pergunta capciosa, mas se realmente o Brasil fosse arrastado pelos Estados Unidos para ficar contra a União Soviética e contra a paz o Partido tomaria as armas, faria uma revolução, deporia o governo, e faria as pazes com todos os países. Disse que jamais o Partido seria um instrumento ao lado de qualquer potência imperialista contra qualquer outro povo. No dia seguinte no Congresso houve uma luta desesperada. A reação caiu em cima de Prestes, considerando o PC como um bando de traidores antipatrióticos. Prestes fez um discurso de mais de quatro horas respondendo a todas as provocações. Recebemos apoio de mais de 120 deputados e de alguns senadores. No dia 8 de janeiro de 1946, porém, houve a cassação dos mandatos.

Pasquim – Você teve vários atritos com Dutra, né?

GREGÓRIO – Eu era da Comissão do Vale do São Francisco e o Dutra foi convidado para examinar as obras da empresa hidrelétrica, mas foi logo fazendo restrições à minha pessoa, dizendo que absolutamente não andaria em companhia do deputado comunista Gregório Bezerra. José Maria Alkmin, o presidente da Comissão, teve dificuldade em colocar este problema para mim, mas eu lhe disse que não havia problema porque eu também não me sentia honrado em andar com o Dutra. Por isso logo depois da minha cassação queriam me prender. Evitei ser preso porque saí na companhia de alguns deputados, inclusive da UDN e do PSD. Passei a andar só na companhia de Pedro Pomar ou Arruda Câmara que continuavam parlamentares pois foram eleitos pela legenda do PSP de Adhemar. O Repórter Esso deu de maneira muito provocativa que o 15º Regimento de Infantaria de João Pessoa tava sendo devorado pelas chamas e que tudo indicava ser sabotagem dos comunistas. Lígia Prestes até falou: “Já começaram as provocações contra o Partido”. Respondi: “Começou tarde”.

Longe estava de supor que aquela patifaria toda fosse cair por cima de mim. No dia seguinte Pedro Pomar e eu fomos cercados, na rua, pela polícia. Houve luta corpo a corpo, eu e Pedro Pomar contra os tiras. Quando o carro do Pedro Pomar, que tinha ido botar gasolina, chegou, cheguei a entrar lá dentro, um investigador ia entrando também, fechei a porta com violência e machuquei a mão dele. O carro saiu com a polícia atrás. Quando chegamos em frente a Polícia Central me tiraram de dentro. Não sei como saí, só sei que quando estava mais equilibrado vi que estava dentro de um cofre de aço. Janeiro, um calor danado, e eu dentro de um cofre com 40 cm de largura e cerca de 1,20 m de altura. Apenas um buraquinho onde eu podia botar o nariz pra respirar. Molhado de suor. Comecei então a gritar. O Delegado quis saber por que estava gritando “Abre o cofre, que eu lhe digo”. Ele cometeu a tolice de abrir o cofre, botei a cabeça de fora e me agarrei com ele. Naquele tempo eu era bastante forte. Os investigadores tentaram me empurrar pra dentro mas aí o Delegado ia junto comigo e o cofre não cabia nós dois.

Pasquim – Não cabia nem um, quanto mais dois.

GREGÓRIO – Naquele vai e vem ele disse: “Me solta! Você está na Ordem Política e Social mas não foi preso por minha causa, foi uma ordem do Ministro da Guerra”. Respondi: “Mais uma razão pra me botarem numa prisão condigna e não aqui dentro de um cofre. Vou morrer aqui dentro mas você vai comigo também”. Naquele tempo o Partido era muito prestigiado e tínhamos panos pras mangas. “Me solta!” “não solto!” Aí veio Cecil Borer, um dos mais famosos comissários de polícia da época e me mandou levar pra uma cela. No dia seguinte foi para o Aeroporto Santos Dumont. Me arrancaram todos os botões da calça, me algemaram, e saímos. Tomamos um avião militar e seguimos para a Bahia. De lá fomos para a Paraíba, onde fui recebido no Aeroporto Militar por um tremendo aparato bélico. Saímos com batedores na frente e atrás, aquele barulho infernal, metralhadoras, fuzilaria, acho que todo o regimento estava lá Este espetáculo foi uma honra para mim. No quartel me puseram dentro de uma cela pequena com uma cama de ferro, uma mesinha e uma bacia d’água. Mais tarde chegou o Coronel Armando Batista, Comandante do Regimento e o General Adriano Massa, que mandou fazer baioneta calada, mandou abrir a porta do xadrez, chegou-se pra mim, bateu os calcanhares e fez continência como militar. Eu também como ex-militar me levantei e correspondi `sua continência. Ele disse: “General Adriano Massa”. Eu disse: “deputado Gregório Bezerra”. “Como?””Deputado Gregório Bezerra, eleito em 2 de dezembro de 1945 pela legenda do Partido Comunista”. “ O senhor não sabia, que seu mandato foi cassado?” “Realmente sabia, isto não poderia ignorar, mas meu partido apelou para o Supremo Tribunal Federal e enquanto este não resolver eu me considero deputado”. Vinte e três dias depois fui tirado para ser interrogado no auditório do Regimento. Estava toda a oficialidade, um grande aparato numa situação bastante solene. O General continuou sentado à mesa com o comandante e um datilógrafo. Depois tomou um café, endireitou o colarinho, limpou a goela, e abriu o jogo: “Sr. Bezerra, o senhor foi detido por ordem de Sua Excelência o Ministro da Guerra a pedido de Sua Excelência o General Castelo Branco de Almeida. Comandante da Sétima Região Militar, porque foi cometido um crime horroroso aqui em João Pessoa no quartel do 15º Regimento de Infantaria. Havia um plano terrorista que se fosse completamente executado destruiria todo o bairro com o morticínio de todos os viventes, moças, senhoras, crianças. Felizmente – graças a Deus – o plano não foi executado conforme planificado”. Aí fez um nariz de cera do tamanho de suas fuças. Quando acabou disse: “Eu, na minha dupla autoridade de General do Exército e Presidente do Inquérito Militar nomeado por Sua Excelência Senhor General Eurico Gaspar Dutra, aqui estou para apurar a verdade e entregar os culpados à Justiça. Neste sentido o senhor vai prestar suas declarações”. Decorei bem essas palavras que ele disse. Minha resposta foi: “General, vou prestar declarações neste inquérito não para me defender, porque o que está em jogo não é a minha pessoa, e sim o meu partido, que como militante tenho o dever de defender. Nós comunistas jamais praticaríamos um crime desta natureza. Se Vs. Ex., na sua dupla autoridade de General do Exército e Presidente do IPM, está aqui para apurar a verdade e entregar os culpados à Justiça, acho que Vs.Ex. começou sua tarefa de forma errada”. A oficialidade protestou: “Como?” Mas alguns oficiais baixaram a cara. Compreendi logo que a maioria daquela gente não estava confiando no que o General estava dizendo. Repeti novamente minha resposta. “Acho que Vs.Ex. deveria começar a apurar a verdade sobre este crime que acaba de narrar, aqui dentro do círculo da oficialidade do seu quartel e não através dos militantes do Partido Comunista do Brasil”. Houve novos protestos de alguns oficiais e me perguntaram: “O senhor não quer depor mais nada?” “Se tenho liberdade de falar alguma coisa eu falarei. Se não tenho nada mais direi a não ser repetir que este incêndio não foi praticado por comunistas mas contra o Partido Comunistas para nos fazer perante a opinião pública como um bando de sabotadores e terroristas, incompatibilizando-nos com as Forças Armadas”.

Pasquim – Qual foi a reação do General?

GREGÓRIO – Bom, pedi que tomasse por temo minhas declarações e ele não quis tomar. “Então não tenho mais nada a dizer, Vs.Ex. não encontrará um só militante comunista que tenha participado ou esteja conivente com este crime”. Como repeti e fiquei firme teve que mandar tomar por termo estas palavras. Na íntegra. “General, se o incêndio deste regimento resolvesse o problema da queda do General Dutra, se pelo menos resolvesse o problema da revolução brasileira, se pelo menos resolvesse a questão da Reforma Agrária para os camponeses pobres, sem terra, perseguidos, espoliados, nem assim eu viria de longe lá da Guanabara, pra incendiar o 15º Regimento de Infantaria de João Pessoa. Ia diretamente incendiar o Palácio do Catete onde vive e trabalha o General Dutra”. Noventa e um dias depois fui transferido pra Recife.

Pasquim – Enquanto isso você continuava preso?

GREGÓRIO – Claro. Uma noite um soldado foi me levar a boia e como estava suja falou: “Esta boia está muito suja. Se fosse o senhor, não comia”. O oficial que foi abrir a porta do xadrez mandou recolher imediatamente o soldado porque falara comigo, algo rigorosamente proibido. Fiquei com aquela boia ali. Passando a mão pelas costas da colher ouvi um chiado. Levei para a claridade onde bati uma luzinha e vi que era vidro ralado. Protestei e imediatamente mandei chamar o médico e o Comandante. O médico examinou a boia e disse : “É, parece que tem uma areinha”. “Areinha nada, doutor, vidro moído. Querem me matar aqui dentro e o senhor é responsável por minha vida”.

Pasquim – Você conseguiu provar o seu não envolvimento neste caso do incêndio?

GREGÓRIO – Claro. Mas foi duro. Porque foi uma campanha sistemática. No dia 1º de maio houve uma explosão num depósito de armamento e munição em Deodoro, no Rio, que matou muita gente além de deixar 140 pessoas queimadas. Também jogaram a responsabilidade para cima de mim. Uma fábrica de pólvora em Pontezinha, Recife, também foi pelos ares. Disseram que os comunistas estavam envolvidos.

Pasquim – Quanto tempo durou essa prisão?

GREGÓRIO – Dois anos. No julgamento passei de acusado pra acusador. Acusei o General Massa, o General Castelo Branco de Almeida e o General Pereira da Costa, Ministro da Guerra, de serem os verdadeiros incendiários ou pelo menos coniventes. Acusei o General Massa de ter dirigido um falso IPM e o Coronel Armando Batista como autor direto do incêndio. Essas acusações ficaram mais ou menos provadas.

Pasquim – Quer dizer que com 49 anos você tinha cumprido 17 de cadeia?

GREGÓRIO – Cinco, depois dez e então dois. Depois veio mais: ao todo são 23 anos de cadeia. Acusei o Auditor Heraldo Gueiros Leite de conivente e de ter permitido o espancamento de presos. Ele queria me prender em flagrante por calúnia e mandou a escolta me expulsar do recinto a ponta de baioneta. Toda vez que tinha Auditoria vinham 64 homens me escoltar de Olinda a Recife porque diziam que a massa de operários ia me arrancar das mãos do Exército pela violência. Depois diziam que eu queria transformar aquele tribunal numa tribuna de agitação política a serviço de Moscou. Um dia falei bastante e uma das testemunhas, Clóvis Faria de Oliveira, peça fundamental do processo começou a chorar em voz alta e me passou um bilhete pedindo que meus advogados requeressem sua hospitalização porque estava com os ouvidos estourados, suturando, e não podia dormir de noite de tanta dor. O juiz aí interrogou-o: “ O senhor não se auto-acusou e acusou o Sr. Gregório Bezerra”? “Ah seu doto, da forma que acusei ele acusava até Nosso Senhor Jesus Cristo e Vossa Senhoria. Quem pode contar tudo pro senhor é o Coronel Armando Batista e o Capitão Roberti Ribeiro de Moraes”.

A reação não queria que eu fosse solto. Começaram a cozinhar o julgamento em fogo lento. A Comissão de Solidariedade do Rio começou a lutar por um julgamento mais rápido. No dia do julgamento do meu processo ninguém aparecia e não havia quorum. Foi para o Supremo Tribunal Federal onde acontecia a mesma coisa. Até que vários intelectuais começaram a pressionar o STF, meu caso foi julgado, e eu fui posto em liberdade.

Uma década de Liberdade

Pasquim – Mas antes disso teve mais problemas, não. O que foi mesmo o que aconteceu?

GREGÓRIO – Eu sairia para o banho de sol, um soldado me daria um tiro, eu morreria e diriam que fora tentativa de fuga. O soldado seria promovido, eu perdia a vida, e o Partido continuava como um bando de sabotadores. Se eu tentasse a fuga na véspera do julgamento era porque tinha culpabilidade. O plano da reação foi esse mas acontece que paredes tem ouvidos e isto chegou ao conhecimento do cabo-faxineiro. De manhã cedo quando passou me jogou uma pedrinha com um bilhete: “Não saia pra canto nenhum à noite. Se tentarem lhe tirar grite que os outros presos também gritarão”. Tinha uns soldados presos por falta de disciplina. De noite o faxineiro levou algo para me defender. Minha companheira também soube de algo e foi me avisar. No dia seguinte o oficial de dia veio me tirar para o banho de sol. “Não quero banho de sol, tenente”. “Mas você tem que ir!” “Não, o banho de sol é uma concessão e vou se quiser”. Mandou abrir a cela mas eu disse: “Se entrar alguém aqui considero uma agressão física e tenho o direito de me defender”. Ficou aquela confusão, juntou uma aglomeração de soldados, e o Comandante foi lá acalmar. Mas não saí mais para o banho de sol. Veio o julgamento. Gueiros não teve condição de sustentar a denúncia, e fui posto em liberdade. Os militares do Exército e da Polícia, inconformados com minha absolvição passaram a me seguir tentando me sequestrar mas isso também chegou ao conhecimento de certas pessoas e meus advogados combinaram com o juiz auditor que eu só fosse posto em liberdade depois que o oficial de dia assinasse o alvará de soltura. Isto deu tempo para que membros do partido mobilizassem mais de 60 carros a fim de bloquear a estrada de um lado e do outro e não permitir que o serviço secreto encostasse junto do meu carro. Quando o oficial de dia me levou até o carro os amigos me protegeram. O grande número de carros tumultuou todo o trânsito da estrada, um grande barulho de caminhões e de ônibus, o que deu tempo pra que o meu carro ziguezagueasse pra trás da casinha de uns operários que improvisaram uma ponte no rio Beberibe por onde meu carro passou. Fui para o distrito de Espinheiro onde me camuflei todo: chapéu, paletó, óculos, um bigode branco. A estrada Olinda-Recife estava toda bloqueada mas passei absolutamente tranquilo. Fui para Alagoas e de lá para Belo Horizonte e para Anápolis. Em Goiana entrosei-me com a direção do Partido e caímos na luta não somente pela sua reorganização como pelas Ligas e Uniões Camponesas. Lançamos em Goiás a Campanha pela Paz, que inicialmente foi considerada ilegal. Não nos conformamos com essa arbitrariedade e realizamos o I Comício pela Paz em Campinas, subúrbio de Goiânia. O que se passou aí, então, todo o meu trabalho neste país na década de cinquenta dá pra escrever um romance. Aliás, está tudo contado nas memórias. Andei pelo interior de Goiás, onde aconteceu de tudo, onde consegui levantar 16.000 assinaturas, entre gente do campo e das pequenas cidades para o Manifesto pela Paz, atendendo ao apelo de Estocolmo, um comando contra a Bomba Atômica e o Imperialismo Americano. Tive discussões fantásticas com os homens do campo, o povo mesmo. Conheci as pessoas mais extraordinárias deste país, uma gente que ninguém nem desconfia que existe por aí e que sabe muito mais das coisas que qualquer um de nós pode imaginar. Passei por Nortelândia, Tromba, Amaro Leite, Moxó do Vaz – reorganizando as ligas camponesas, os sindicatos – Carolina, já no Maranhão; voltei para Porangatu, passei por Meia Ponte, Guaiatuba, Buriti Alegre, Morrinhos, curei gente, fiz até parto e quase morri com uma apendicite supurada.

Pasquim – Um trabalho muito difícil e sacrificado, Não?

GREGÓRIO – Muito difícil. Por isso mesmo, muitos companheiros não se dispunham a entrar pro interior. Mas, depois de esclarecida a massa camponesa torna-se nosso melhor amigo e nos dá total cobertura. Na cidade era a luta por postos médicos, melhores salários, etc. No interior , era a reforma agrária, quer dizer, uma quantidade de reivindicações que não acabavam. Bom, aí o Serviço Secreto do Exército me descobriu em Goiás e eu tive que sair de lá, indo para o norte de São Paulo, de onde também fugi devido a uma confusão em Araraquara durante a campanha eleitoral.

Pasquim – Qual campanha?

GREGÓRIO – A de 54, logo após a morte de Getúlio Vargas.

Pasquim – Como é que vocês encararam esse episódio?

GREGÓRIO – Antes do seu suicídio havíamos mobilizado as massas para defende-lo. Os camponeses dispostos a descer para São Paulo e incorporar-se à II Região Militar, mas Vargas preferiu dar um tiro no coração do que alguns passos para a frente em defesa do povo.

Pasquim – De São Paulo você foi para o Paraná?

GREGÓRIO – Sim. O Partido lá estava desmembrado e fui organizar um Comitê Regional. Durante algum tempo fui diretor do Comitê mas depois fui trabalhar exclusivamente no terreno das posses onde havia muito atrito entre os posseiros e grileiros. Consegui organizar os posseiros em defesa de seus direitos, suas famílias e suas terra, contra os grileiros e contra a polícia a seu serviço. Me deslocava muito pra Maringá, Paranavaí, Marialva, Apucarana, Cascavel, Vale do Quiquiri, Engenheiro Beltrão, Pirrabiru, Campo Mourão, São João, Paraná do Oeste, Cruzeiro do Oeste, toda a região até Foz do Iguaçu. Enquanto pude atuei ali, até sofrer um atentado, nas matas entre Pirabiru e Campo Mourão. Parei um pouco para me tratar. Quando fiquei bom dei um giro na região de Coronel Procópio, Bandeirantes, Cambará, organizando a massa de colonos do café para a sindicalização. Quando saí de lá os sindicato de Londrina tinha mais de 22 mil sócios.

Pasquim – Qual foi o resultado desse novo impulso?

GREGÓRIO – Em 1957 já tínhamos – além das Ligas e Uniões Camponesas – 58 sindicatos rurais organizados, dos quais apenas três eram reconhecidos: Tubarão em Santa Catarina, Itabuna-Ilheus na Bahia, e Campos na zona canavieira do Estado do Rio. Havia também um sindicato reconhecido em Jacarepaguá, na Guanabara, mas não tinha expressão. Os demais não eram reconhecidos pelo Ministério do Trabalho. Todas as nossas tentativas de organização de sindicatos eram rechaçadas não somente pela reação latifundiária como pela polícia e pela Igreja. Qualquer tentativa de organização no campo era considerada comunista e como tal era perseguida. Em 1959 a Comissão Provisória das Conferências havia se transformado na União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil e realizou a I Conferência de Assalariados Agrícolas, em São Paulo, com quase 500 líderes sindicais, vários deputados e senadores progressistas e nacionalistas. Não sei por que razão o governo do estado ofereceu alguns ônibus para que os delegados conhecessem São Paulo.

Pasquim – Quem era o governador?

GREGÓRIO – Não me recordo. Nessa Conferência votou-se a realização do I Congresso Nacional dos Trabalhadores Agrícolas, com todas as categorias de camponeses pobres, o que aconteceu em 1961 em São Paulo . A realização deste Congresso proporcionou um desenvolvimento extraordinário no campo. Daí por diante até um pequeno setor de Igreja Católica trabalhava conosco. A Igreja inclusive organizara alguns sindicatos rurais, sobretudo na Vila do Carmo e no município de Jaboatão em Pernambuco. Já em 62/63 conseguimos formar várias Federações de Trabalhadores Agrícolas. A ala mais conservadora do clero passara também a organizar sindicatos que eram reconhecidos pelo governo. Tínhamos centenas de Comissões Sindicais e quando o Ministro do Trabalho modificou a portaria permitindo a organização na prática de sindicatos rurais transformamos estas comissões em verdadeiros sindicatos. Neste período estávamos semi-rompidos com Julião, não porque fosse nosso inimigo, mas porque estava eufórico demais com a grande vitória da Revolução Cubana. Devo dizer que esta Revolução deu um impulso extraordinário ao movimento camponês porque estabelecíamos numa comparação e transmitíamos as experiências da reforma agrária cubana, mostrando que o caminho das massas sofridas brasileiras era o mesmo que o de Cuba, principalmente no capo. O movimento camponês deu um pulo agigantando para a frente. No meado do ano de 63 conseguimos a aplicação do salário mínimo para o campo, uma das nossas principais reivindicações. Com isto veio a luta séria porque chocava com os interesses econômicos do patronato habituado a pagar um salário de fome e de miséria, embora muitos dos usineiros compreendessem bem o problema e passassem a pagar o salário mínimo. Aí passamos a lutar pela aplicação da legislação trabalhista e previdenciária não só para os assalariados mas para todas as categorias de camponeses pobres. Houve mais luta, principalmente quando se tratava de mulher.

Pasquim – A mulher era inda mais discriminada?

GREGÓRIO – Havia uma discriminação odiosa contra a mulher. O patronato rural achava que o simples fato de ser mulher não dava o direito a um salário integral ainda que produzisse a mesma quantidade de trabalho, isto é, que davam a mesma jornada de trabalho. Achavam o maior absurdo: “Quem já viu mulher ganhar igual a homem”? Pra eles tinha que ganhar metade do salário do homem. Isto provocou greves parciais em vários engenhos e fazendas. Íamos lá, discutíamos com o patrão, e nas situações de discriminação contra a mulher, as greves eram vitoriosas. Os recalcitrantes e desumanos eram obrigados não só a atender às mulheres como ao repouso semanal remunerado e ao descanso nos dias santos e feriados. Era a aplicação da legislação trabalhista e previdenciária ao campo. As mulheres camponesas sentiram que o sol havia nascido também para elas através dos sindicatos e do Partido.

Pasquim – Nos movimentos de posseiros dos quais você participou houve algum em que estivessem armados?

GREGÓRIO – Houve apenas ensaios de luta armada no campo, como em Porecatu, que durou cerca de um ano e seis meses. De início foi uma luta defensiva contra o assalto dos grileiros apoiados pela polícia, mas depois, graças não só à polícia do Paraná como a de São Paulo, os posseiros tiveram que passar à ofensiva.

Pasquim – E a greve de 1963?

GREGÓRIO – Foi a maior greve rural que já se realizou em todo o país. Mais de 200 mil trabalhadores da zona açucareira pernambucana entraram numa greve sólida e monolítica. Criaram-se 3600 piquetes, não para evitar que os trabalhadores fossem trabalhar, mas para garantir a propriedade do patronato, evitando incêndios de canaviais, destruição de pontes e de estradas de ferro. O patronato rural nunca esteve tão garantido como durante os três dias de duração da Grande Greve dos assalariados agrícolas da zona canavieira de Pernambuco, que teve uma grande reação em todo o Brasil e foi vitoriosa porque foi desfechada num momento em que a cana devia ser cortada, transportada e moída imediatamente. Se a cana for cortada na época do seu amadurecimento perde peso no açúcar, e se for cortados e ficarem secando perdem mais ainda. Os donos de usina e os moedores de cana já teriam um prejuízo extraordinário, não somente no peso da cana como no pagamento dos dias que os trabalhadores estavam em greve. Quatro dias depois entregaram os pontos. para terem uma idéia basta dizer que o patronato rural, arrogante como sempre, senhor de tudo e de todos, teve que se dirigir ao sindicato e pedir permissão para que fosse possível que os trabalhadores que tiravam o leite do gado fossem fazer isto. De início alguns acataram que não deveriam ir, depois entramos em discussão e concluímos que era uma necessidade. A greve contra o dono do gado e não contra o gado. A vaca leiteira que não é desleitada pode até adoecer. Haveria também uma falta de leite para a massa consumidora. Em Xexéu, município de Água Preta, deu-se o incêndio de um dos canaviais e seu dono foi ao sindicato pedir homens para debela-lo. O sindicato não se opôs mas exigiu um documento por escrito do proprietário confirmando que o incêndio havia sido casual e não proposital. Mobilizaram-se mais de 200 homens que dominaram o incêndio dentro de duas horas.

Até que chegamos a 1964

Pasquim – Então chegamos a 64. Como foi a sua prisão?

GREGÓRIO – Inicialmente foi normal. Quando houve o golpe eu me achava concentrando a massa camponesa em diferentes pontos que considerava estratégicos para repelir o assalto dos golpistas em toda aquela região. A massa camponesa estava psicologicamente preparada para a luta.

Pasquim – Isso em Pernambuco.

GREGÓRIO – Principalmente em Pernambuco, onde queriam defender o governo Arraes e o Governo da República que estava fazendo concessões importantes para a massa agrícola. Essa massa camponesa nunca tinha sido beneficiada por nenhum governo e estava realmente disposta a lutar. Faltava, porém, o essencial: armas. Tinham a mentalidade de luta, queriam enfrentar os golpistas, mas lhe faltavam as armas. Concentramo-nos nestes pontos porque o 20º Batalhão de Caçadores já estava na divisa de Pernambuco com Alagoas, nos municípios de Palmares, Água Preta e Barreiros. O número de camponeses atingia 30 mil. Estávamos satisfeitos porque era um povo disposto a lutar porque não queriam perder as conquistas obtidas durante dois anos de luta titânica. O governo de Arraes foi o mais democrático e progressista que já houve em Pernambuco. E por isso mesmo era considerado comunista e acusado de cubanizar todo o estado.

Pasquim – Não era mais moscovizar mas cubanizar.

GREGÓRIO – Às quatro horas da manhã tivemos notícia que o golpe tinha sido desfechado. Terminamos nossa reunião e demos as instruções necessárias. Estávamos com 183 delgados de engenho, cada um com seu grupo de homens preparados para a luta, e me designaram para ir a Recife pedir armas ao governo. Já tinha pedido armas várias vezes sem ter obtido mas achei que naquele momento não me negariam.

Pasquim – Você havia pedido armas para que?

GREGÓRIO – A última vez havia sido quando Arraes fez o comício em Palmares. Mostrei aquela multidão e lhe disse: “Essa massa está disposta a lhe defender mas não tem armas. Se você não confia em nós deposite essas armas nas mãos dos delegados de sua confiança porque vamos precisar delas”. Arraes balançou a cabeça e desci pra misturar à multidão de camponeses que assistia À última fase do seu governo. Então na noite de 31 para 1º a massa me designou para ir a Recife buscar as armas para arma-los. Saí convencido de que voltaria com muitas armas e conduz\iria a massa à luta de resistência contra os golpistas. Quando cheguei a Prazeres, município que divide Recife de Jaboatão, eles tinham tomado conta de um posto fiscal da estrada. Marchava na minha frente um jipão do Exército que buzinou três vezes. Os caras então abriram a porteira e o jipão passou à toda.. Vim atrás e fiz a mesma coisa. Ainda fiz com a mão assim (acena um adeus). Quando cheguei em Recife, no Largo da Paz, estava tudo calmo. Estranhei essa calmaria. Como eram cinco horas da manhã e eu sabia que não encontraria ninguém desviei o jipe até onde eu morava para tomar um banho, um café, trocar de roupa, e trocar a chapa do carro. Isto feito, me despedi de minha companheira, de minha filha, de meus netos, e saí. As coisas continuavam calmas. Cheguei na redação da Folha do Povo, nosso jornal, e não encontrei ninguém. Então me dirigi para a sede do Comando Geral dos Trabalhadores, que funcionava na Av. Conde Boa Vista. O sindicato já estava ocupado pelo IV Exército e um companheiro saiu me empurrando pra fora dizendo que fosse embora porque muita gente já havia sido presa. Fui direto ao Palácio do Governo. Entrei pelo portão da direita e vi no pátio interno a polícia experimentando as metralhadoras e limpando os fuzis. “bom, então a festa vai começar”. Subi a toda pressa para falar com Arraes no seu Gabinete. Cheguei lá simultaneamente com três oficiais, um da Aeronáutica, um do Exército e um da Marinha. A porta se abriu e saiu Henildo Carneiro, Diretor de Esportes, branco que só folha de papel. Nem sequer me cumprimentou. Vi logo que Arraes estava preso. Desci no mesmo elevador, tomei o jipe, e voltei completamente frustrado. Não tinha tido sorte. Em 35 eu tinha muita arma e munição mas não tive gente para a luta. Em 64 tive muita gente para a luta mas não tive armas. Voltei a Palmares, burlando novamente a barreira, e entrei em contato com um companheiro da direção municipal do Partido a fim de cumprir determinadas tarefas. Como estava com muita fome comi um sanduíche e dois ovos estrelados e tomei um pouco de café. Pedi a este companheiro que fosse ao posto encher meu jipe com gasolina mas ele respondeu que o posto já estava em poder do Exército. Então fui eu mesmo. Encostei o jipe ao lado dos jipões do Exército e falei! “Serviço urgente”! O cara encheu o tanque rapidamente, assinei qualquer coisa, e saí. Furei novamente o bloqueio na base da buzina e fui para Catende, Águas Pretas, Xexéu, Belém de Maria, Joaquim Nabuco. Gameleira, chegando em Ribeirão mais ou menos à meia-noite.

Pasquim – Pra que era essa viagem?

GREGÓRIO – Pra desmobilizar os camponeses mais idosos, os fiados de família, ficando concentrada apenas a massa jovem. Isso porque eu estava pensando em tentar uns três ou quatro focos de resistência a fim de ver se em outros cantos outros focos surgiriam e assim pudéssemos resistir contra os golpistas. Naquele momento meu modo de pensar era de que qualquer foco de resistência que durasse um dia ou dois deflagrariam outros e talvez não se consolidasse o golpe que acabava de ser dado. Em Ribeirão, por exemplo, mandei mais de dois terços dos trabalhadores agrícolas irem para suas casas, ficando o resto de prontidão. Tudo estava parado, engenhos, usinas, ninguém trabalhava. De lá segui para Cortês, um setor muito importante para nós, onde me entendi logo com o delegado do sindicato no sentido de que tão logo soubessem de algum movimento poderiam também tomar conta da delegacia, que tinha somente três homens, e estabelecer um governo municipal. Voltei para Ribeirão para iniciar a luta mas quando cheguei dentro da Usina Pedrosa fui preso pelo Capitão Regos Barros, comandante de um grupo de policiais armados de metralhadoras. Não tive condições de reagir. Este me tratou como um oficial deve tratar um preso político, mas, mais adiante fui assaltado por um destacamento do 20º Batalhão de Caçadores e um grupo de 15 pistoleiros comandados por José Lopes de Siqueira Santos, um assassino de camponeses. Houve algumas discussões e quiseram me liquidar ali mesmo, porém desistiram graças ao protesto do capitão que tinha me prendido, dizendo que estava a serviço do Exército, que seguia ordens do Coronel Ivan Rui, o novo Chefe de Polícia, e que se me liquidassem seria um crime. Com isso meus assaltantes me levaram à presença do Comandante do 20º Batalhão de Caçadores que já estava acantonado na cidade de Ribeirão. Lá me pôs sob a guarda de uma companhia de metralhadoras pesadas, todos de baioneta calada, e reuniu a oficialidade, que resolveu que ao invés de me fuzilarem ali mesmo iriam me apresentar ao General Justino Alves Bastos, Comandante do IV Exército em Recife. Me algemaram os pés e as mãos, me amarraram de corda dos pés ao pescoço e me jogaram como um fardo de feijão dentro da carroceria de um caminhão. Em Recife, inicialmente, fui recebido pelos coronéis Ibiapina e Bandeira, uma recepção agressiva, insultuosa, e tive que responder como deveria, o que me valeu uma coronhada de fuzil na face direita que quebrou todos os dentes deste lado, e outra coronhada no estômago. Caí jorrando sangue pela boca. Me levantaram e o Coronel Ibiapina fez um comício perante os militares ali presentes, dizendo que eu era um bandido, um sanguinário, um incendiário e um traidor da Pátria, que eu queria fazer a revolução para entregar o Brasil à Rússia, e que eu tinha um plano terrorista para queimar todas as crianças do bairro Casa Forte, um bairro de burgueses.

Pasquim – As crianças são as vítimas favoritas dos comunistas.

GREGÓRIO – Terminou dizendo que em 1935 eu teria morto 120 soldados dormindo por não quererem aderir ao movimento revolucionário a serviço de Moscou. Então protestei, disse que era uma calúnia, que eles, coronéis, deviam honrar seus galões porque sabiam que estavam mentindo. Neste momento chegou o General Alves Bastos, que perguntou ao Coronel Ibiapina se me conhecia. Respondeu que sim, que me conhecia do Colégio Militar de Fortaleza, que eu tinha sido um dos sargentos mais queridos e estimados não só pelos alunos como também pelo professorado.

Pasquim – Ibiapina disse isso?

GREGÓRIO – Sim, mas acrescentou que naquele momento tinha nojo de mim. “Tenho nojo de ti, Gregório”. Respondi: “Eu também tenho nojo de todos os fascistas fantasiados de coronéis do Exército”. Outra coronhada de fuzil, desta vez no baixo ventre. Quando me levantaram novamente o General me interrogou: “O que estavas fazendo no campo”?Respondi de uma maneira muito franca: “Mobilizando as massas camponesas para oferecer resistência ao golpe militar que acaba de ser dado A serviço do imperialismo americano”. “E os depósitos de munição e armamento sob tua responsabilidade?” “Que depósitos, General?” “Os que estão em seu poder”. “ Se eu tivesse armas e munição em meu poder não estaria aqui sendo insultado e agredido pelo Coronéis Ibiapina e Bandeira”. “Onde estavas então?” “Na rua, junto com as massas, oferecendo resistência ao golpe militar-terrorista”. Outra coronhada de fuzil. Tornei a cair e tornaram me levantar. Eu estava como se fosse um tronco de madeira. Não tinha movimento nem nada.

Pasquim – Todo amarrado.

GREGÓRIO – O general me fez algumas outras interrogações e me mandou recolher à fortaleza das Cinco Pontas, onde esteve Graciliano Ramos. O comandante de lá não quis me receber alegando que as celas estavam superlotadas de oficiais da polícia. Me levaram para o parque de motomecanização do IV Exército, no bairro da Casa Forte. Quando vou descendo da camioneta, pondo o pé direito no solo – o outro ainda estava no estribo – recebo uma porrada de ferro que me abriu a cabeça. O sangue espirrou e eu caí. Aí foi coronhada de fuzil, soco, pontapé, por toda parte do corpo. Me bateram por alguns minutos, depois me arrastaram pelas pernas e me meteram numa sala pequena onde me espancaram. Até então ainda tinha resistência, contraía a musculatura de modo que não sofria muito, mas depois de um determinado período a gente vai relaxando sem querer, a musculatura vai ficando flácida, e aí piora. Quando me levantaram toda a minha roupa estava ensopada de sangue. Me tiraram a roupa e mês vestiram um calção de ginástica. Me puseram numa cadeira com um sargento me segurando pela retaguarda e outro pela frente, e o Coronel Vilote fez uma cruz na minha cabeça arrancando os cabelos com um alicate. A dor que eu sentia era indescritível. Não satisfeito ainda me levaram e me fizeram pisar numa poça de ácido de bateria. Dentro de uma fração de minutos as solas dos pés estavam totalmente destruídas. Aí me arrastaram e me fizeram passear sobre pedregulhos de pedrinhas britadas bem fininhas. Aquelas pedras finas penetravam pela carne do pé como se fossem lâminas de navalha ou gilete, uma dor terrível! Eu sentia fogos sair dos olhos. Depois me arrastaram novamente pra dentro da sala onde escorreguei no meu próprio sangue e cai de bruços. Vilote então me pisa na nuca e manda os sargentos sapatearem em cima de mim. Ficaram em cima do meu corpo como quem estava sambando. Não tenho noção de quanto tempo isso durou. E não ficaram satisfeitos. Amarraram três cordas no meu pescoço e saíram me arrastado até a rua. Um me puxava pra direita, outro para esquerda e outro pra trás. Eu sentindo a corda penetrando cada vez mais no meu pescoço. Ainda tinha forças pra procurar retrair a musculatura do pescoço porém vez por outra afrouxava. Diante do CPOR o Coronel Vilote fez um comício concitando alunos, soldados e oficiais a me lincharem porque eu era um bandido, um assassino, um terrorista que queria fazer a revolução comunista para entregar o Brasil a Moscou. Repetiu que eu tinha um plano terrorista para matar queimadas todas as crianças da Casa Forte.

Pasquim – Quem disse isso agora foi o Coronel Vilote?

GREGÓRIO – Sim, este foi meu verdugo do princípio ao fim. Como não foi atendido no seu comício paralisou ônibus, trem, bicicleta, automóveis, caminhões, tudo, e ficou aquela massa concentrada diante daquele espetáculo medieval. Ele gritava para a massa : “lincha esse bandido! MaTE-O! Joguem garrafas pedaços de ferro, dê pedradas neste bandido que é monstro! Queria incendiar o bairro para queimar crianças! Está inativo, não pode atacar nem defender, mate-o”! E a massa não atendia. Mandava a massa olhar para mim e todos só olhavam para frente. Enfurecido, batia no meu corpo com uma barra de ferro e dizia: “Eu sou ibadiano, filho da puta!” Os sargentos faziam coro: “Nós somos ibadianos também, Gregório! Tu queria nos entregar, bandido! Vai nos pagar caro”! Saíram me arrastando até o jardim da Casa Forte, onde Vilote fez outro comício concitando a me linchar. Mais uma vez ninguém lhe atendeu, o que me encorajava, me dava ânimo, me dava uma vontade louca de resistir. Só tinha mesmo a minha moral porque fisicamente não estava me governando. Aí um sargento propôs que Vilote me levasse ao pátio de sua casa onde havia numerosas famílias com moças e senhoras. Mas foi uma besteira que ele fez. Tinha realmente muitas moças e senhoras que viram meu calção ensanguentado e meu corpo jorrando sangue. Todos ficaram horrorizados. A própria senhora do Vilote foi tomada de crise nervosa, chorando até enlouquecer. Ele batia nas fendas dos ferimentos da minha cabeça e o sangue esguichava, tingindo de vermelho toda a fisionomia. Gritava: “Este é o tratamento que nós damos a comunistas! Você está chorando por causa deste bandido? Venha assistir seu enforcamento agora mesmo na Praça da Casa Forte”!

Pasquim – Você achava que seria enforcado?

GREGORIO – Olha, a morte ali pra mim não era problema. Tinha muita vontade de viver mas se morresse não tinha problema. Estava convencido de que seria enforcado. No meio de um grupo de moças e senhoras tinha uma com um lenço encarnado na cabeça como proteção contra o sol e de repente o Coronel partiu pra cima dela: “Você não tem vergonha não? Ta usando o símbolo de Moscou na cabeça”! Aí arrancou com toda brutalidade o lenço da cabeça da moça, o que chocou todas as pessoas presentes. Trouxe o lenço e amarrou no meu pescoço de modo que tampasse minha aparência de semi-degolado. A essa altura eu já não sentia mais nada. Os olhos pesavam toneladas queria abri-los e não podia. Sentia frio e muita sede. As pernas pareciam pesavam milhares de toneladas. E lá se foram me arrastando novamente. Aí houve vários protestos. Dom Távora, bispo de Natal, várias Madres Superioras de colégios e conventos, padres, pastores protestantes, e inclusive elementos da burguesia que não me conheciam foram ao General Alves Bastos. Dois generais da reserva assistiram àquele quadro e foram ao General dizer que se era uma questão de fuzilamento que me fuzilassem mas não praticassem um ato medieval publicamente, em plena luz do dia, porque aquilo denegria as tradições do Exército Nacional e desmoralizavam as Forças Armadas. Houve um grande clamor. O rádio anunciava que eu estava sendo trucidado na Praça da Casa Forte e a multidão foi pra as ruas e as praças, encaminhado-se para lá. Com isto o General Alves Bastos mandou o Coronel Ibiapina me tirar das garras do seu comparsa. Quando Ibiapina encontrou-se com aquele desfile medieval tirou o lenço do meu pescoço e afrouxou os laços de corda porque eu quase não respirava mais. Quando pude respirar fiquei alegre cá com meus botões porque senti que tinha vida e que eu queria viver. Aí me aceitaram no Forte das Cinco Pontas.

Pasquim – A imprensa acompanhou tudo isso, né?

GREGÓRIO – Fui inclusive filmado e esta jornada foi para a televisão de noite. Já corria o boato que eu tinha sido eliminado a cacete pelo Coronel Vilote e vários sargentos, então diante disso me levaram pra Cinco Pontas, me jogaram três baldes de água pela cabeça, um sargento me fez um curativo na cabeça – mas não nas outras partes do corpo – limparam ligeiramente o sangue do rosto, e me filmaram mais uma vez para mostrar que eu estava vivo, mas quando foi para o ar de noite chocou o espírito humanístico do povo pernambucano, inclusive entre setores da burguesia. A partir deste momento minha filha ia diariamente pedir meu corpo para ser enterrado. “Me entreguem o corpo do meu pai, ele é meu pai e tenho o direito de enterra-lo! Quero o cadáver de meu pai!” Com tanto alarme e confusão tiveram que manda-la lá dentro pra ver que eu não estava morto. Quatro dias depois. Foi muito bom porque ela viu meu estado.

Pasquim – Como é que você estava?

GREGÓRIO – Do mesmo jeito: só de calção, com aquele sangue fedorento… Minha filha tentou me fazer um curativo com o lenço que trazia mas não foi suficiente. Chorou muito mas eu disse: “Olha, minha filha , não chora. Não dê sinal de fraqueza diante destas bestas”. Conversamos um pouquinho e ela se retirou. Na outra semana levou umas pomadas pra aliviar a dor e com uma pinça tirou muitas pedrinhas de dentro dos meus pés. Minhas juntas estavam todas inchadas. Pra ir ao banheiro saia engatinhando e quando chegava não conseguia urinar porque os testículos e a próstata estavam totalmente arrebentados. A agonia terrível de querer urinar sem poder. Suava, suava e doía. Lutei uma noite toda para conseguir urinar até que chegou um momento em que fui massageando a próstata com a mão que estava melhor e senti que algo rasgou-se no seu interior. Começou a sair sangue pisado pela via urinária. Na medida em que eu dava uma massagem violenta aquele jato de sangue pisado ia engrossando, engrossando… às cinco horas da manhã já saía sangue e urina e meu estado começou a aliviar. A febre era altíssima, muita dor de cabeça, senti que tava ruim mesmo. Mas consegui escapar. De oito em oito dias minha filha vinha me visitar e me levava caldo de lima e água de coco, além dos remédios que os médicos amigos me mandavam. Graças a essa solidariedade, principalmente de minha filha, estou aqui batendo papo com vocês. Mas foi duro.

Pasquim – Quando foi que você conseguiu andar?

GREGÓRIO – Só em setembro. Dois meses depois ficou comigo Joel Silveira, um jovem trotskista, que com a pinça de que eu dispunha continuou a tirar as pedrinhas dos pés, além dos pedações de carne podre que iam secando. À medida que os pés foram desinchado as pedrinhas iam pulando e ficando mais fáceis de serem arrancadas. O pio eram as pedras redondas que ficavam encravados na carne de maneira ruim para tomar banho de sol nas pernas, depois punha as costas assim, fui vivendo. Não me davam o direito de receber médicos, não me faziam curativos, não me deixavam baixar hospital, mas seis ou sete meses depois eu estava praticamente bom. Os ossos da bacia e a próstata é que me incomodavam muito. A bacia me incomoda até hoje. Mas o fato é que estou vivo, tenho reivindicações muito sérias a fazer e quero voltar ao Brasil na primeira oportunidade. Espero que, muito breve, eu e vocês todos que estão exilados possamos voltar pra nossa pátria.

Pasquim – Nós também. Mas, agora conta: o que foi que aconteceu de 1964 até 1969, quando você saiu do país.

GREGÓRIO – Bem … conforme eu disse no princípio, eu cheguei só até 1964…

Pasquim – A gente lê o resto da história quando seu livro sair.


Inclusão: 02/10/2022