Ao meu Filho.
Jovens garotos e garotas que leem essas páginas, lhes peço: leiam com plena fé na sinceridade do homem que lhes dirige a palavra, leiam com uma atenção livre dos preconceitos que lhes prendem desde a sua infância, leiam permitindo se formar em vocês o chamado das sua consciência, a qual as dificuldades da vida ainda não distorceram a voz, leiam com seus olhos abertos e seu espírito livre.
Do quê nasceu o socialismo?
Faz tempo que os homens trabalham, sofrem e pensam sobre essa terra. Seus esforços acumulados pelos séculos criaram pouco a pouco uma moralidade universal, constituíram um patrimônio comum de sentimentos que cada um leva em si desde o nascimento, que cada um de vocês pode encontrar em si mesmo. Nós nascemos com o sentimento da igualdade, com o sentimento da justiça, com o sentimento da solidariedade humana. Nós sabemos, antes de ter aprendido, e por um instinto que é a herança dos nossos ancestrais, que nós aparecemos neste mundo iguais, com o mesmo direito à vida, com o mesmo direito à felicidade, com o mesmo direito de desfrutar das riquezas comuns da natureza e da sociedade. Nós sabemos que deve existir uma relação permanente, igualitária entre nossos direitos e nossos deveres, entre nosso trabalho e nosso bem-estar. Nós sentimos que nossa felicidade não é independente da dos outros homens, que mesmo nosso trabalho ficaria sem sentindo sem o deles, e que seus sofrimentos e suas misérias são as nossas, que toda injustiça que os atinge deve nos machucar. Nós sentimos que a virtude verdadeira, aquela que busca a plena satisfação do coração, é de saber sacrificar, seja nosso interesse presente ou nosso lucro egoísta, pela felicidade comum e pela justiça futura, e que são as formas autênticas dessa fraternidade que nos ensinam as religiões, da imortalidade que elas nos prometeram
Do quê nasceu o socialismo? Da revolta de todos esses sentimentos feridos pela vida, desconhecidos pela sociedade. O socialismo nasceu da consciência da igualdade humana, enquanto que a sociedade onde nós vivemos é inteiramente baseada no privilégio. Ele nasceu da compaixão e da raiva que suscitam em todo coração honesto esses espetáculos intoleráveis: a miséria, o desemprego e o frio, ainda que a terra, como disse um poeta, produza pão o suficiente para alimentar todas as crianças dos homens, ainda que a subsistência e o bem estar de cada criatura viva devessem ser garantidos pelo seu trabalho, ainda que a vida de cada homem devesse ser garantida por todos os outros. Ele é nascido do contraste por vezes escandaloso e desolador, entre o luxo de uns e a indigência de outros, entre o trabalho exaustivo e a preguiça insolente. Ele não é, como foi dito tantas vezes, o produto da inveja, que é a mais baixa das motivações humanas, mas da justiça e da piedade, que são as mais nobres.
Eu não pretendo defender, compreendam bem, que todos os sentimentos generosos e desinteressados da alma humana sejam manifestados no mundo somente pelas doutrinas socialistas. Eles são mais antigos, se não forem eternos. O instinto da justiça, da solidariedade, da moralidade humana que encontra hoje sua expressão no socialismo teve, ao longo da história, outras roupagens e levou outros nomes. Esses é o instinto que deu força às religiões modernas, porque todas, no seu nascimento, na sua primeira fase de proselitismo popular, sempre se dirigiram a ele. Um enciclopedista do século XVIII, um jacobino da Convenção, um democrata de 1830 eram provavelmente movidos pelos mesmos sentimentos que hoje são a mola e a força viva da nossa ação. Mas — este é o ponto essencial — a fé socialista é a única forma desse instinto universal que responde exatamente às condições da vida social, da vida econômica. Todas as outras foram superadas pelo curso do tempo. Todas as outras são discordantes e retardatárias. Esses que se dotam de boa fé o compreendem e vêm a nós.
O socialismo é então uma moral e quase uma religião, tanto quanto uma doutrina. Ele é, eu repito, a aplicação exata ao estado presente da sociedade dos sentimentos generosos e universais sobre os quais as morais e as religiões foram sucessivamente baseados. Sua doutrina é mais econômica do que política. Por quê? Porque a análise da história — análise que cada um de nós pode verificar — e confirmar pela sua experiência cotidiana — estabelece precisamente que os fatos econômicos, ou seja, as formas da propriedade, os fenômenos da produção, da troca e da distribuição das mercadorias, dominam cada vez mais a evolução das sociedades modernas, governam cada vez mais as suas instituições e suas relações políticas. Sua doutrina tem como princípio inicial o que chamamos de luta de classes. Por quê? Porque na verdade, o caráter essencial das sociedades modernas, consideradas do ponto de vista econômico, é a divisão progressiva em duas classes de indivíduos que as compõem: de um lado os possuidores, os que detêm o capital e os meios de produção criados pela natureza ou pelo trabalho acumulados dos séculos; do outro os proletários, os que a propriedade constitui unicamente na sua força pessoal de trabalho, na sua vida e nos braços. Concentração progressiva dos capitais e dos instrumentos de trabalho nas mãos dos possuidores, crescimento progressivo do número dos proletários, tal é a característica dominante da evolução econômica há um século e meio, isto é, desde que a ciência multiplicou o domínio dos homens sobre as riquezas e as forças naturais. É obrigação imperiosa para o proletário trabalhar a serviço e pelo lucro do capital, se tornar assalariado de um patrão, tal é a consequência inelutável dessa evolução.
Por que somos socialistas?
Somos socialistas a partir do momento que consideramos este fato essencial: o patronato e o salariado constituem um ao outro e se opõem um ao outro, a partir do momento em que recusamos aceitar esse fato como necessário e eterno, a partir do momento em que deixamos de dizer: "Bah! Essa é a ordem das coisas; sempre foi assim, e nós não mudaremos nada", a partir do momento em que sentimos que essa dita ordem das coisas estava em contradição flagrante com a vontade de justiça, de igualdade, de solidariedade que vive em nós.
É verdade então, que sempre fomos assim, sempre e em todo lugar? Não, o esforço secular dos homens para viver em sociedade, para explorar em comum o patrimônio das riquezas naturais já conheceu outras formas na história. O próprio salariato apresentava características menos definidas no tempo do artesanato, do pequeno negócio e da pequena indústria. Sua generalidade, suas condições atuais, datam do progresso do maquinismo e do desenvolvimento das sociedades anônimas de capitais. É verdade que se tornou hoje a lei comum. Mas é essa lei que nem nossa razão nem nosso coração não aceitam mais.
Você é o filho de um assalariado, operário, empregado, jornaleiro agrícola. Exceto por ocorrência providencial, seu destino é de permanecer toda a sua vida um assalariado. Então, ao seu lado, na rua vizinha, o filho de um possuidor, de um detentor de capitais. Ao menos por circunstâncias extraordinárias, ele ficará por toda sua vida, direta ou indiretamente, um patrão. Você trabalhará para ele, para a empresa que ele dirige, ou para a empresa na qual ele investiu seus recursos, e da qual ele colocou os títulos no seu baú. O produto do seu trabalho servirá por um lado a lhe manter, e vocês aos seus, mas o excedente, a constituir seus lucros. Esse salário, quando se tornou o mestre absoluto, ele comprimiu, manteve a uma taxa irrisória e desumana, para encher em várias vezes seus bolsos e aumentar seus benefícios. Ele deve aumentá-lo pouco a pouco quando seus camaradas e você, agrupados pela sua defesa comum, lhe fazerem sentir, de tempo em tempo, a ameaça da sua força, também quando, sob a influência dos pensadores e dos homens de ação socialistas, a opinião pública seja aberta às ideias de progresso e de equidade. Portanto, seu salário não representar nunca o valor total do seu trabalho. Sempre, onde quer que seja, uma parte deste valor será capturada, retida pelo lucro do capital que o outro possui desde o seu nascimento e que você não possuía. Ele será assim por toda a vida dele, e portanto durante toda a sua. Por quê? Isto é justo? E isso pode durar?
O que diziam, centro e trinta anos atrás, os homens da Revolução francesa? Eles diziam: filhos de nobres, filhos de burgueses, filhos de servos ou camponês, os homens nascem todos livres, todos consagrados na sua igualdade natural. Sem mais distinções de origem, do que precede sua vinda ao mundo, do que antecede a manifestação da sua utilidade pessoal... Os homens da Revolução acreditaram conquistar sua obra fundindo todas as ordens da antiga sociedade. Eles não pensavam que, na sociedade moderna, a mesma desigualdade reapareceria, sob uma forma menos suportável ainda, pela formação e pela distinção das classes. Eles não pensavam que nós deveríamos retomar, após eles, sobre novos meios, a sua tarefa revolucionária. Filhos de possuidores ou filhos de proletários, os homens nascem todos livres, todos iguais. Por que a sociedade liberta uns, escraviza outros, explora o trabalho de uns pelo lucro dos outros?
Nos dirão: a sociedade distribui a cada um dos seus membros o papel, a tarefa que convém às suas faculdades. É bom que um comande e que o outro obedeça, que um dirija e que o outro execute, que um trabalhe com o cérebro e que o outro com os braços. Existe necessariamente uma hierarquia de empregos sociais, aos quais uma sociedade policiada segundo a diferença das aptidões, ou seja, da inteligência e da cultura. Ou seja, é preciso de homens para todas as tarefas, e será absurdo que cada um deles pretenda dirigir os outros. Mas onde encontraremos a garantia que o filho do possuidor seja mais digno que o filho do proletário? Quando então comparamos suas aptidões, a ver sua inteligência e sua cultura? Um é mais instruído que o outro? Isto é porque um privilégio anterior, uma distinção arbitrária anterior os separou, quando sua consciência se abria à vida. Os filhos dos possuidores tiveram suas escolas, onde a instrução quase não tem fim, onde o espírito mais medíocre, por força do tempo e da solicitude, acaba usurpando um semblante de conhecimento. Os filhos dos proletários tem as suas, onde o estudo é limitado nos seus programas e na sua duração, e que os mais aptos devem sair mais rápido para levar à sua família um complemento de subsistência, para entrar por sua vez na servidão do trabalho assalariado. Se pretendemos reservar aos mais dignos os empregos de direção e de comando, que comecemos a dar a todos parte igual! Que a instrução seja comum entre todas as crianças, igual para todos, que ela se torne entre eles um meio de seleção exata... e então nós veremos bem a quem o prêmio do mérito virá. Que de grau em grau a escola nacional leve para as culturas superiores e os altos empregos sociais aqueles que se mostrem os mais dignos, somente, sejam filhos de proletários; e elimine os outros, sejam filhos de possuidores. Nesse dia, poderemos constatar em qual classe da sociedade a seiva humana pulsa com mais vivacidade e frescor. Então, justificaremos um privilégio pelo outro, nada mais.
Nos responderão ainda, como nos livros de moral: Só depende dos filhos dos operários. Forem eles laboriosos, sóbrios, econômicos, apliquem todas a sua força ao seu trabalho, que eles adquirirão a confiança daqueles que lhes empregam, e, pouco a pouco, de degrau em degrau, eles poderão se tornar por seu turno patrões ou proprietários. Não existe mais, na nossa sociedade atual, casta fechada da qual a entrada seja interditada. Entre os patrões de hoje, quantos são filhos de proletários, quanto começaram na vida sem o privilégio hereditário do capital, somente com o dom da sua energia e da sua inteligência. Eu concedo ainda. É verdade que, entre os patrões de hoje, e por vezes entre os mais poderosos, nem todos o são pelo direito de nascimento. As sociedades modernas fazem uma terrível consumação de homens. Há nelas uma inexistência de talentos, assim como há um dia de falta de carvão. Elas não podem se embaraçar sobre as escolhas ou discutir sua origem. Entretanto reflitam. Se as crianças dos operários e dos camponeses fossem todas igualmente sóbrias, econômicas, laboriosas, poderiam elas se tornar todas, em recompensa das suas virtudes, patrões e proprietários? Não é evidente que a classe privilegiada é, pela sua própria natureza, um tipo de oligarquia, uma classe necessariamente limitada. Um ou outro entre vocês, pelo seu mérito ou pela sua boa sorte, poderá talvez um dia superar a barreira; mas ela não se abrirá para todos. Dizíamos antes, antes da abolição das leis que reservavam às pessoas de "sangue azul" todas as graduações militares, que cada soldado levava na sua cartucheira o bastão do marechal da França. O que queríamos dizer com isso? Que mais nenhum obstáculo legal o impedia um soldado de chegar à graduação suprema, e da mesma forma, não há impossibilidade legal que o pequeno aprendiz se torne um dia o chefe da grande usina. Mas a quê se reduz essa chance? Quantos soldados, de sua cartucheira, tiraram o bastão marechal?
A verdadeira igualdade
O que provariam então essas promoções isoladas? Se os privilegiados de hoje são nascidos um pouco em todo lugar, os privilégios não são menos iníquos, nem menos odiosos. Se não existe mais entre as classes muros estanques, se seus limites são indecisos, elas não são menos inimigas. Se produzem trocas entre elas, quem nega isso? Mas na aleatoriedade dessas trocas vemos somente acidentes, não o jogo normal de uma lei. Que um operário ascenda à burguesia, é um milagre. Que um burguês recaia ao trabalho manual, é uma catástrofe. Que um patrão seja filho de um operário e de um camponês, eu compreendo. Mas o que serão seus filhos? Os filhos de burgueses como os outros. A burguesia ganhou um pouco de sangue novo, isso é tudo.
Essa não é a verdadeira igualdade. Mesmo que na sociedade atual — e isso não é nem verdade nem possível — existisse uma harmonia entre os privilégios sociais e as qualidades individuais, se aqueles que comandassem fossem os mais dignos de comandar, se os mais ricos fossem os mais dignos da fortuna; lembrem disso: que o capital se transmite indefinidamente, enquanto nenhuma qualidade do corpo e do espírito é necessariamente hereditária. Com cada geração, a classificação humana recomeça sobre novas condições. O filho do homem mais inteligente pode ser um idiota, o filho do homem mais enérgico pode ser um fraco. Se eles não levam suas medidas de nascença, o luxo e a preguiça podem prontamente lhes afligir. Por qual direito eles podem reivindicar o privilégio social senão o seu direito de nascença? Eles tiram então da sua herança, como um delfim da França tirava a coroa do direito divino, como um primogênito nobre tirava os títulos e as terras da sua casa. A sociedade atual não impede o operário, o camponês de por vezes conquistar as altas dignidades capitalistas, mas reenvia suas crianças à oficina ou à terra, quando elas não são boas, como acontece, a conduzir a carroça ou a manusear o martelo?
A verdadeira igualdade consiste na justa relação de cada indivíduo de onde quer que ele venha, com sua tarefa social. Certo, o socialista não nega esse dado brutal; a desigualdade natural, a desigualdade da força, da saúde, da inteligência entre os indivíduos. Ele não pretende passar sobre eles um rolo compressor para reduzi-los todos ao mesmo nível, para os conformar todos dentro de um tipo de humano médio. A tarefa que ele quer assumir é cem vezes mais pesada do que da sociedade atual, porque ele quer explorar da melhor forma esta terra, tirar o rendimento mais rico dos recursos da natureza e da indústria, os produzir com a menor despesa de trabalho humano, os repartir segundo o justo equilíbrio das necessidades. Então, ainda mais do que a sociedade atual, e porque sua obra terá trabalhos de direção mais complexos, ele dá valor à inteligência e à ciência. Nós compreendemos claramente, os socialistas, que cumpriremos a imensa obra que nos é dada pelo destino, que ao colocar cada trabalhador no posto exato de trabalho, naquele que é adequado às suas faculdades, judiciosamente reconhecidas e cultivadas pela educação comum. Mas essas alterações necessárias, nós as regularemos somente pela consideração das aptidões pessoais, no lugar de abandoná-las tolamente, como o regime burguês, aos acidentes de nascença. Então, nesta repartição das tarefas, nós não pretendemos introduzir nenhuma ideia de hierarquia e de subordinação. Nós não separaremos novamente a unidade social em castas móveis mas entrincheiradas. Melhores ou piores, mais fracos ou mais fracos, todos os trabalhadores nos parecem iguais e solidários diante do mesmo dever. A boa distribuição do trabalho comum exige que entre eles, o comando recaia sobre os mais dignos, mas lhe será confiado para o benefício comum e não para sua felicidade e benefício particulares. Nosso objetivo não é de forma alguma remunerar seu mérito que é obra da natureza e do esforço acumulado da civilização, mas de utilizar no interesse de toda a coletividade. Eles não serão propriamente chefes, mas trabalhadores como os outros, associados, unidos na mesma obra com seus irmãos de trabalho, cada um penando em seu posto, todos se esforçando pelo mesmo objetivo, que é o bem estar igual e a felicidade comum dos homens.
De que é feito o capital?
Dessa maneira, por uma revolução semelhante àquela que fizeram nossos pais, instalaremos a razão e a justiça onde hoje reinam o privilégio e o acaso. Na República do Trabalho, não haverá distinções sociais, mas somente repartições profissionais. Essas afetações terão como base única a aptidão pessoal, própria a cada indivíduo, nascendo e se apagando com ele. A sociedade atual, pelo contrário, se baseia essencialmente sobre a divisão entre classes: classe dos possuidores, classe dos proletários, e essa divisão tem por princípio o capital, porque ela se transmite e se perpetua, como vocês viram, com o próprio capital.
É hora agora de voltar atrás e visualizar de mais perto essa palavra da qual nós já nos servimos tantas vezes. O capital, que é esse talismã mágico que a presença ou a ausência transforma nossa condição, nosso estado, nossa vida inteira. Como ele se apresenta a nós, qual é a sua origem ou sua razão de ser, de que ele é feito?
Se eu digo que meu vizinho é um capitalista rico, isso significa que ele é proprietário de terras e de usinas, que ele possui o que se chama hoje de valores mobiliários — ações de sociedades ou rendas do Estado — que ele tem grandes somas depositadas com um banqueiro ou com seu notário e muitos bilhetes de banco ou ouro nos seus bolsos. O ouro e os bilhetes de banco não são riquezas reais, são dinheiro, ou seja valores fictícios, imaginados em um estado distante da civilização para representar os artigos e as mercadorias de toda espécie, para facilitar a troca e a conservação. Os metais preciosos e o numerário são, no regime atual, os meios de pagamento universalmente adotados, eles não são, por eles mesmos, de nenhuma utilidade social. É fácil conceber uma sociedade futura com um alto grau de cultura e de civilização, onde o dinheiro não será entretanto empregado. Será suficiente adotar, entre os homens, uma outra forma de distribuir os produtos do seu trabalho e as riquezas naturais. Se nós fazemos, pela imaginação, o esforço de suprimir todo o ouro e todos os bilhetes existentes sobre essa terra, os interesses privados de uma multidão de homens serão momentaneamente abalados, no seu conjunto, a riqueza total do mundo não será de nenhuma forma diminuída. Porque, considerado em si mesmo, o dinheiro não satisfaz nenhuma das necessidades dos homens. Não é com o ouro que comemos, que nos esquentamos ou que nos vestimos, que construímos ou decoramos uma casa, que cultivamos a terra ou construímos uma máquina. Nós passamos, pouco a pouco, a considerar o ouro como o símbolo representativo de todos os valores, mas ele não é ele mesmo um valor, a não ser para os raros industriais que o empregam como matéria prima. Uma conta em um banco não é outra coisa que uma certa quantidade de dinheiro depositada e que o depositário pode nos representar ao nosso pedido.
As rendas ou as ações não são outra coisa que o dinheiro com valor variável e produzindo vencimentos anuais. Na origem da conta, há um investimento de numerário. Na origem do título de renda ou da ação, há uma operação de depósito, ou seja de trocar o valor mobiliário por uma certa quantidade de ouro ou de bilhetes. Toda essa primeira categoria de capitais representam, sob uma forma simples ou complicada, direta ou indireta, apenas o dinheiro e seus diversos modos de transformação.
Poderíamos buscar juntos a origem, e nos convenceríamos facilmente que na imensa maioria dos casos a posse de numerário, sob suas múltiplas formas, não corresponde de nenhuma forma ao trabalho pessoal do homem que o detém, que esse valor foi criado, antes dele, por fora dele, pelo trabalho de outros homens. Mas eu prefiro insistir sobre o fato essencial, que aqui tratamos unicamente de um valor imaginário, de um valor de convenção, que nós, outros homens, jogamos com o dinheiro como vemos as crianças brincando com fichas ou pedras, que poderíamos suprimi-la com um decreto sem que a verdadeira consistência do mundo mudasse, sem que a soma das riquezas reais que ela produz para as necessidades dos homens fosse diminuída em um pedaço de pão. Nos afirmaram muitas e muitas vezes que, mesmo sob a primeira forma, o capital era indispensável para a vida das sociedades. A qual função vital das sociedades ele era então necessário? Falar assim, como fazemos todo dia, é fazer uma confusão pueril entre os capitais em si mesmos e os produtos ou mercadorias de toda espécie que, na economia atual, eles representam e permitem sozinhos adquirir. Os capitais não são necessários, e só podem parecer assim por conta de uma ficção, de uma convenção universal. Não é, eu repito, com o dinheiro que montamos a usina ou que fazemos uma terra produtiva, é com os materiais ou as ferramentas que o dinheiro não criou e que existiriam sem ele. Não é realmente com o dinheiro que pagamos os salários, é com os artigos de todo tipo que trocamos hoje pelo dinheiro, mas que são produzidos sem ele, e que poderiam ser repartidos de outra forma. Se vocês quiserem apreciar a importância relativa do trabalho e dos capitais de troca, pensem que poderíamos retirar do mundo, sem empobrecê-lo, todas as riquezas em dinheiro, enquanto não saberíamos tirar, sem paralisar sua vida, um só dia do trabalho unânime dos homens. Entretanto a posse desse símbolo convencional, desse simulacro, assegura aos felizes eleitos, como nos contos de fadas, todos os favores e a satisfação de todas as suas vontades: o direito de não participar com trabalho no labor comum do mundo, o direito de tirar um grande tributo sobre o que produz o trabalho dos outros, o direito de fazer florescer sua preguiça e seu luxo sobre a extenuação e a miséria da multidão. Nossos olhos e nosso espírito estão acostumados a esse espetáculo; passamos a julgá-lo natural. Se encontrássemos seu retrato em qualquer relato de explorador, ou nas visões imaginárias de um Rabelais ou de um Swift, seu absurdo nos marcaria tanto quanto sua injustiça.
Sobre a segunda classe de capitais: a terra, seu solo e seu subsolo, as forças que ela esconde, os prédios que a cobrem, os instrumentos de todo tipo dos quais a indústria humana a povoou. Aqui, é outra coisa. Esse capital é real. Ele representa nosso verdadeiro patrimônio, nossa verdadeira riqueza. Ele não é menos indispensável para nossa vida que o trabalho, porque é a ele que o trabalho se aplica, é ele que o trabalho valoriza. Essas riquezas comuns da terra são a própria condição da nossa existência; também o labor contínuo dos homens em parte as criaram, em parte as organizaram: e se o futuro pode nos prometer um bem estar cada vez maior, conforto e segurança cada vez maiores, é pela sua exploração mais exata e mais sábia. Mas, se é assim, como conceber que isto que é necessário para a totalidade dos homens seja propriedade exclusiva de alguns? Onde estão seus títulos? O capital útil do mundo é para uma parte, a herança do trabalho secular da humanidade, porque todas as gerações que se sucederam sobre essa terra e que a cada turno adicionaram sua parte. Não temos todos a mesma vocação para as riquezas naturais. Não somos todos, ao nascer, proprietários iguais e indivisos como do ar e da luz? Não temos todos o mesmo direito e o mesmo dever, — o dever de utilizá-las e de acrescentá-las na medida das nossas forças? Que dia, para tomar a palavra de um poeta, como Esaú, vendemos nossa parte da herança? E tudo que foi incorporado na natureza, há centenas de milhares de séculos, desde que o homem apareceu sobre essa terra, o trabalho acumulado das gerações, como um punhado de indivíduos pode se arrogar o poder de deter, ele sozinho, o benefício e uso? É a todos os homens que deve pertencer os bens criados por todos os homens, é a coletividade presente que é a única herdeira legítima da coletividade indefinida do passado. A necessidade comum, a origem comum, é ela que justifica duplamente a comunidade do capital, tanto que o capital represente o conjunto das riquezas naturais e dos meios de produção.
Há nessa verdade algo de esclarecedor e necessário, e não podemos mais tirar os olhos uma vez que a vemos claramente. Entretanto, é natural que ela tenha há muito fugido da inteligência humana. Ao longo dos séculos, o trabalho humano persistiu em um estado de disseminação extrema e de ignorância recíproca. Curvado sobre sua tarefa isolado, não percebendo nada do que cumpriam os outros homens, empregando pouco mais em seu esforço particular do que sua própria força, o trabalhador adaptava, adicionava a sua pessoa o seu instrumento de trabalho. O pequeno campo que o camponês cultiva, o martelo do ferreiro, o trabalho do tecelão lhe pareciam como um prolongamento do seu braço. Esse aspecto individualista do trabalho parecia assim justificar, ou mesmo criar, a propriedade privada. Mas há cento e cinquenta anos, as grandes indústrias e as grandes aglomerações de homens se formaram. A exploração das riquezas naturais não recai mais sobre o esforço divido dos indivíduos. As necessidades adquiridas do mundo não podiam mais ser satisfeitas, a população multiplicada do mundo não pode mais subsistir pela totalização das tarefas distintas e independentes. Os meios de produção sobre os quais se baseia a existência do universo moderno se separam cada vez mais da pessoa que os manipula para se ajustar em um conjunto organizado. Cada dia vemos se intensificarem os laços de dependência mútua entre as múltiplas espécies de meios de trabalho e de trabalhadores. A economia de outrora abandonava cada um a sua própria sorte, a sua iniciativa autônoma. A economia de hoje os junta, por bem ou por mal, nas combinações e nas disciplinas coletivas. Em pouco tempo as próprias necessidades da vida do mundo obrigarão a submeter a direcionamentos unidos — não somente nacionais mas universais — as fabricações e as culturas, a distribuição das matérias-primas e a repartição dos produtos. Será necessário para acabar com a falta de produtos, e com a insuficiência da mão de obra; será necessário para garantir o equilíbrio entre a produção global do mundo, e o crescimento contínuo da população e das necessidades. O próprio capitalismo, sob a pressão dessa necessidade, teve que se orientar, durante os vinte anos que precederam a guerra, para a organização centralizada da indústria. Mas nesse corpo único, do qual dependerá também a vida do mundo, quem tem a qualidade para integrar suas funções essenciais, para dirigir seus movimentos, para recolher o fruto da sua atividade universal? Alguns privilegiados? Certamente não, a coletividade inteira e universal dos homens. E assim, as formas coletivas e a produção moderna vêm adicionar uma justificativa a mais, impor como uma necessidade a mais, as formas coletivas da propriedade.
Realizar a fraternidade como igualdade
O bem dos homens pertence coletivamente a todos os homens; o trabalho dos homens — dos vivos e dos mortos — deve beneficiar coletivamente a todos os homens. Cada um deve seu trabalho à obra comum; cada um deve recolher sua parte do trabalho comum. Nessas fórmulas tão simples havia o essencial do pensamento socialista. Nossa doutrina é então essa que pode realizar a fraternidade como igualdade. Quem a pode contestar ou combater? Aqueles que não querem compreendê-la ou aqueles que tem seus interesses lesados por ela. Aqueles que ela deve derrubar dos privilégios, aqueles que ela deve interromper a usurpação. A usurpação consagrada pela lei, protegida por todos os poderes de propaganda e de pressão, perpetuados por todas as formas de herança social, mas que hoje contrariam à razão e à justiça, se encontram hoje em contradição manifesta com a moralidade geral desse mundo, com as leis e as necessidades gerais da produção. A propriedade, na legalidade capitalista, é a absorção total e eterna da coisa apropriada, é o direito de utilizá-la à sua vontade, de transformá-la, de transmiti-la, de destrui-la. O proprietário de um fardo de trigo pode queimá-lo, se for do seu agrado, enquanto falta pão na cidade vizinha. O proprietário de uma usina pode deixá-la parada, se for do seu agrado, enquanto utilidades de primeira necessidade faltem à indústria ou ao cultivo. Pouco importa o interesse comum, a coisa é dele. O jogo da concentração, da capitalização, da herança pode reunir nas mãos de uma centena de homens, a rigor nas mãos de um só — Wells realizou esse sonho — toda a propriedade útil do mundo. Pouco importa a escravidão universal, a propriedade permanece sagrada... Talvez, mas é o instinto de conservação que deve então, ele somente, legitimar a revolta. Ouvimos que a propriedade individual já obteve algumas conquistas, que o progresso material e moral das sociedades já arrancou dos proprietários alguns dos seus atributos seculares. Um romano era proprietário dos seus filhos como dos seus animais de ganho; ele podia vendê-los ou matá-los. Um agricultor das Antilhas era proprietário dos seus escravos como dos seus campos de cana de açúcar. Mas a consciência humana elevou seu grito e essas formas de propriedade foram abolidas. Outras tombarão por sua vez, que são nascidas da mesma concepção distorcida e exorbitante do direito. O que dizemos hoje, é que um homem não pode se tornar mestre absoluto, mestre único, mestre eterno por sua descendência, daquilo que a coletividade dos homens anteriormente recolheu ou criou, daquilo que hoje condiciona a vida coletiva dos homens. E nós proclamamos o socialismo quando dizemos isso.
Você escuta agora as réplicas interessadas ou céticas. Como, nos chamam de galhardos, justificar o socialismo que você invoca! Paradoxo tocante! Mas você sabe bem que os homens não tem naturalmente gosto pelo trabalho. Por que trabalhamos? Para ganhar dinheiro, para acumular, para transmitir aos seus filhos o fruto do seu acúmulo. Quando você suprimir esses dois contrapesos da preguiça humana, o desejo do ganho e a herança, você abandonaram totalmente o animal humano na sua apatia atávica. Ele não trabalhará mais do que para satisfazer suas necessidades elementares, ou só trabalhará por constrangimento. Ou a produção indefinidamente rareada, ou os trabalhos forçados e galés, sua cidade socialista terá necessariamente um ou o outro. Escolha...
É bom que eu suponha essa linguagem. Nós a ouvimos, ou você vai ouvi-la. É bom também que eu responda, apesar do desencorajamento que se pode sentir diante do assédio incessante da eterna estupidez, da eterna rotina, da eterna descrença. Onde aprendemos que um solteiro, que um homem ou uma mulher sem filhos seja menos ativo, menos industrioso, menos afeito ao ganho, que um pai de família? Que cada um o veja, e verifique. Eu vi frequentemente que a carga de sua família obrigaria um homem a um trabalho excessivo, na maioria das vezes, parcamente remunerado. Eu nunca vi que a falta de filhos transformasse um homem esforçado e adequado ao trabalho em um vagabundo. A verdade é que, simplesmente, por um instinto secreto de moralidade, nós ficamos menos envergonhados em atribuir a nossos filhos do que a nós mesmos nosso apetite pessoal por lucro. Acontece que os burgueses começam cada vez mais cedo a "se retirar dos assuntos" como eles dizem, porque sua fortuna adquirida, medíocre para uma família numerosa, é ao contrário suficiente da sua casa vazia. Mas se eles vendem seus fundos de comércio ou fechar suas lojas, de qual atividade útil essa retirada prematura priva a sociedade? Não, não é verdade que a transmissão hereditária, símbolo e meio da usurpação capitalista, seja o agente indispensável da prosperidade social... O apetite do ganho, a vontade de ganhar dinheiro? É outro assunto. Se nós consideramos em torno de nós a luta dos homens, ela parece dirigida, de fato, por esse único motivo. Ganhar dinheiro, esse é o real ideal humano, o único que proclama que tenta realizar uma sociedade pervertida. Conquistar por nossa conta a maior parcela de privilégios que o dinheiro representa ou permite adquirir, é o programa de vida que o espetáculo contemporâneo nos propõe. Todo nos chama para essa luta: a opinião e a moral, que deveriam a arrefecer, a exaltam, é preciso um tipo de heroísmo para se subtrair voluntariamente ao contágio. Esse é o sentimento motor de hoje, não perdemos nossa tarefa de contestá-lo. Mas de onde tiramos o direito de concluir que a humanidade não possa conhecer outros? O sofisma é esse.
Tenho para mim uma visão menos desesperada ou menos desdenhosa da humanidade. Eu creio, tenho certeza, você tem certeza como eu, que outro tipo de motivação poderia levar os homens a superar sua indolência natural. E sequer temos certeza que a sua indolência seja natural? Pelo contrário, entre os dados naturais do problema, aqueles que são fornecidos pela natureza, temos o direito de colocar o gosto pelo trabalho. O homem ama empreender sua atividade, empregar sua força. Quando ele se esquiva da tarefa, é porque a sociedade o acorrentou a um trabalho outro que aquele onde seu próprio temperamento o destinava. Esse desacordo, o evitaremos sem dúvida, colocaremos na própria base da economia social a procura da afinidade entre o trabalho e o trabalhador. É ao contrário o lazer prolongado que entedia e que extenua, e, talvez, na sociedade futura, não teremos mais vontade de lazer do que de trabalho. Essa é a verdade, e, para se convencer dela, basta observar um pouco o espetáculo atual das coisas. Basta se elevar pelo pensamento acima do nível miserável dos costumes atuais, costumes que são produto direto, e não a causa, do nosso regime social. Façamos este esforço. Consideremos se é ou não o apetite de ganho que provoca os grandes testemunhos do trabalho humano, que suscita as grandes tarefas da história. É o apetite de ganho que edificou os templos da Acrópole ou as catedrais góticas? É o apetite de ganho que inspirou os grandes trabalhos da Renascença, os grandes construtores de ideias do século XVIII?... Se a literatura e a arte se tornaram hoje trabalho e mercadoria, é porque o contágio do lucro ganhou o escritor e o artista, mas não citaremos uma bela obra, de nenhuma era, que seu autor a tenha concebido com espírito mercantil. É o apetite de ganho que incita o sábio à meditação, à descoberta, é para "ganhar dinheiro" que trabalharam Newton, Lavoisier, Ampère, Pasteur? A invenção prática, o aperfeiçoamento industrial não são devidos a esperança do lucro, mas a uma necessidade íntima de pesquisa e de descoberta que coloca em si mesmo sua satisfação. Você não encontrará uma tarefa verdadeiramente útil para a humanidade que a origem não seja desinteressada... Pelo contrário vemos ao nosso redor qual tipo de atividade o desejo de ganho provoca. É para ganhar dinheiro que lançamos um negócio, que montamos uma casa bancária, de seguros ou de comércio, que compramos e que revendemos, que agiotamos e especulamos. O desejo de ganho forma e entretém essa espuma, essa fermentação pútrida que vemos se instalar na superfície da vida econômica. A sociedade atual está repleta de corajosos aventureiros, lançados à conquista da fortuna como partiam antigamente à conquista do ouro, e que, por todos os meios, tentam colocar a seu benefício a corrente de capitais. Mas que riqueza real a sua audácia já acrescentou ao mundo? Em que a sociedade seria empobrecida quando nos livrarmos de todas essas iniciativas parasitárias? Elas distribuem arbitrariamente a riqueza, elas não a criam. Você encontra o símbolo dessa falsa atividade no movimento de alta ou baixa da Bolsa, que faz passar o dinheiro dos bolsos de uns para os outros, mas que não modificam em um centavo o capital fundiário do mundo. Suprimindo ela, colocaríamos fim à vontades individuais, não atentaríamos contra nenhuma utilidade coletiva. Não alteraríamos ou atrasaríamos a vida social, pelo contrário, a sanaríamos, a livraríamos de uma doença, de uma infecção.
Consagrar seu trabalho ao interesse coletivo
Se é verdade que para fornecer sua contribuição plena de trabalho, o homem deve superar uma inclinação natural, seria falso, de toda forma, que o desejo de ganho seja a motivação indispensável desse esforço, ele o faz pela virtude das motivações morais. Ele pode fazê-lo por uma aplicação desinteressada à obra empreendida, por fidelidade a uma disciplina consentida, por devoção a um ideal comum, por entregar sua razão e sua alma a uma grande fé. Considere então as tarefas que impõe à humanidade o estado presente do mundo e se pergunte se é o apetite egoísta do lucro que pode nos colocar no estado de cumpri-las. O lucro capitalista, o que quer que façamos, não será nunca nada mais que o apanágio de uma oligarquia — não quero dizer de uma elite — e a humanidade não resolvera os problemas de vida e morte colocados diante dela pelas circunstâncias, exceto graças ao esforço organizado de todos os trabalhadores. Ela não os resolverá exceto se cada trabalhador tiver em si mesmo a consciência clara de consagrar seu trabalho ao interesse coletivo, que compreende necessariamente seu próprio interesse, no lugar de o oferecer em tributo a essa oligarquia privilegiada. Ela não os resolverá exceto se uma fé comum erga os trabalhadores acima dos fins egoístas, exalte seu valor, acalme sua alma ferida por tantos sofrimentos e misérias. Essa fé, somente nós a propomos hoje, somente nós podemos criá-la, e criá-la indistintamente em todos os homens. Eu acrescento que somente nós podemos colocar os meios e a recompensa nessa própria vida, nessa vida terrestre, e não na promessa indefinida da imortalidade.
Mas se você concordar, retornemos ao argumento, retomemos a ofensiva. Pesquisemos na sociedade atual, os efeitos e as incidências de um trabalho verdadeiramente criador. Eu suponho que amanhã um inventor imagine alguma ferramenta nova que revolucione a técnica de uma das grandes indústrias diretoras, a metalurgia ou a têxtil, que reduza em uma proporção considerável a mão de obra e o custo de produção. Há então grandes chances que esse inventor desconhecido, como tantos outros, morra no desespero e na miséria. De vãos apelos aos capitalistas, que hoje sozinhos podem colocar em obras novos procedimentos mecânicos, tendo esgotado sua paciência, abreviado sua vida; pois, alguns anos mais tarde, uma sociedade financeira explorará suas patentes adquiridas a um preço vil e recolherá um imenso benefício. Mas admitamos que, por exceção providencial, ele mesmo possa fazer valer sua descoberta. Eu vejo bem o lucro que ele próprio poderá retirar: nós teremos sobre a terra mais um milionário. Qual lucro terá a coletividade?
Na medida em que a indústria universal seja adaptada aos novos procedimentos, centenas de usinas serão condenadas ao fechamento. A demissão de mão-de-obra determinará uma baixa geral dos salários; a massa dos produtos jogados no mercado provocará problemas econômicos dos mais complexos. Veremos pelo menos o consumidor se beneficiar da redução dos preços de venda? De maneira alguma; ele não se beneficiará senão de maneira irrisória. Os preços de venda não serão baixados senão na quantidade necessária para derrubar a concorrência, e nosso inventor embolsará o excedente. Uma crise universal de um lado; do outro uma imensa fortuna individual, ou seja eternamente transmissível. Tal é a demonstração de contas. Isso não revolta a razão?
Nosso inventor virá nos replicar: "Minha fortuna é entretanto boa para mim; eu a ganhei; ela é o fruto da minha descoberta, o produto do meu trabalho". Mas é verdade que sua descoberta seja dele? O mesmo homem a teria feito, vivendo sozinho em uma ilha deserta, nascendo em uma tribo selvagem da Oceania? Não se supõe o contrário, todo o acúmulo prévio do trabalho humano? Não é, pelo menos, o resultado de uma colaboração, de uma coincidência entre seu gênio individual e o esforço coletivo da civilização? A coletividade deveria então, pelo menos, recolher sua parte do benefício. Por que ela é frustrada, não somente pelo lucro do próprio inventor, mas dos seus descendentes até a última geração?... E esse exemplo não lhe faz colocar o dedo na injustiça fundiária que está na própria raiz dos modos atuais da propriedade? Aconteceu por vezes na história que as massas operárias se insurgissem contra os progressos do maquinismo que os privavam momentaneamente do seu ganha-pão. E nos atribuíram, com uma acusação insultante, o desvio desses trabalhadores investidos contra a ciência e o progresso. Eles estavam errados contra a ciência e o progresso; eles tinha razão contra a sociedade capitalista. Era culpa sua que um progresso da civilização coletiva, que deveria razoavelmente se traduzir em um crescimento do bem estar coletivo, não gerava para eles mais do que miséria e fome? Na medida que as ferramentas humanas se aperfeiçoam, na medida que a ciência, obra comum dos homens, estende seu império sobre as forças naturais, qual deveria ser o resultado? O aumento da soma dos produtos que cada um dispõe, a diminuição da soma de trabalho que cada um deve. Cada passo adiante da civilização deveria assim se traduzir em um benefício unânime, universal, e ele se traduz pelo contrário em uma nova ruptura do equilíbrio entre aqueles que possuem e aqueles que trabalham. Concebemos uma sociedade que, como o sentido da palavra impõe, faça verdadeiramente associados todos os indivíduos que ela engloba, que faça lucrar cada homem do trabalho de todos, que os faça lucrar todos de cada avanço da indústria e da ciência.
Grandes pensadores esperaram da ciência a renovação das sociedades humanas. Como o trabalhadores revoltados diante da máquina, eles tinham razão e eles estavam errados. A ciência aumenta e aumentará indefinidamente o rendimento do trabalho, mas, se o pacto social se torna viciado em sua essência por uma cláusula desigual, ao aumentar as riquezas, não faremos mais do que aumentar a desigualdade. Teremos multiplicado as movimentações do capital sobre o trabalho, teremos multiplicado a divergência entre os lucros do capitalista e os salários do trabalhador. Se a regra da partilha é injusta, a injustiça aumentará com a massa dos produtos a partilhar... É com o socialismo que a ciência se tornará realmente benfeitora, e podemos dizer que nesse sentido o socialismo e a ciência são realmente o complemento um do outro. A ciência desenvolve as riquezas da humanidade; o socialismo garantirá a exploração racional e a distribuição igualitária. Cada descoberta da ciência, qualquer que seja o domínio especial onde ela se manifeste, será de alguma forma espalhada no conjunto do corpo social para causar nele um melhoramento correspondente: aumento do bem-estar se a soma dos artigos é aumentada, aumento do lazer se a soma do trabalho necessário para os produtos é reduzida. Inversamente, a instauração do regime socialista implica um chamado ardente e constante ao socorro da ciência. Utilizando imediatamente, para o bem comum, cada conquista da ciência, nós provocaremos incessantemente novas; nós colocaremos seu programa de pesquisas em ritmo incessante desenvolvendo ao redor dele uma atmosfera de desinteresse e de confiança que ela necessita.
É assim que só o socialismo, resolvendo essa contradição mortal, pode recolocar a sociedade no verdadeiro caminho do progresso. Eu me resguardarei de desenhar um quadro paradisíaco do estado de coisas que ele quer criar. Eu sei bem que, nesse mundo, a própria natureza introduz causas irremediáveis. Nós não suprimiremos a doença, a morte de crianças, o amor infeliz, mas, ao lado dessas misérias naturais, há outras que são o produto de um mau estado social e que podem desaparecer com ele. Imagine o grupo humano, uma vez livre desses obstáculos artificiais. Suponha que, por uma seleção judiciosa, todos os indivíduos se encontrem distribuídos nos diversos quadros da atividade social; suponha que cada um, sem exceção dê a sociedade cada dia algumas horas de trabalho útil, digo trabalho que ele goste, porque o interesse comum concorda aqui, como em todas as coisas, com as condições da felicidade pessoal. Suponha que, em todo o universo, a produção seja organizada de modo a obter o melhor rendimento dos recursos naturais, cada terreno ou cada grupo fabricando ou cultivando o que ele pode criar com o máximo de abundância, de perfeição ou de economia, toda concorrência nacional ou internacional suprimida, os métodos e as ferramentas mais recentes ficando a serviço do trabalho. Suponha que todo o trabalho humano seja ordenado como uma única usina, onde a tarefa particular de cada oficina, de cada operário, venha se juntar em um programa conjunto, constantemente revisado segundo os recursos ou as necessidades. Suponha que esse programa se limite às produções verdadeiramente úteis, e não desperdice mais tanta atividade laboriosa para satisfazer — ou mesmo criar — necessidades fictícias, modas de um dia. Não acredita que esse esforço disciplinado seja suficiente para garantir a cada homem o que a humanidade lhe deve de nascença: o bem-estar, senão a felicidade? Não há lugar para todos sob o sol? O trabalho comum não pode garantir a cada um alimentação abundante, roupas cômodas, habitações espaçosas e limpas, o livre uso de todos os recursos e de toda a utilidade coletiva?
Visões quiméricas, nos dirão. Mas onde está a quimera? Nós acabamos de ver durante cinco anos, a humanidade se dobrar em uma disciplina de destruição e de morte. Ela não poderá aceitar uma disciplina de criação e de vida? Durante cinco anos, toda a atividade dos homens se encontrou realmente ordenada em um plano comum, em direção a um objetivo único. Queremos fazer pela vantagem comum o que é feito pela miséria comum; pelo lucro de todos o que é feito pelo lucro de alguns. Se tivéssemos disposto, durante cinco anos, à nossa vontade e sem contestação, de todos os poderes do trabalho, de todas as riquezas da terra, você duvida que conseguiríamos ordenar o mundo segundo nossas quimeras?... Visões miseráveis, ainda nos dirão! Teorias que não invocam nada e não querem satisfazer o homem senão no apetite puramente material!... Isso será já muito a lhes satisfazer. Isso será livrar a sociedade dos males que a desonram, e que um coração piedoso, um espírito direito não podem contemplar sem revolta e sem vergonha: a miséria, a fome, todo seu lamentável cortejo de doenças, de estupidez, de degradações. Mas não é verdade que nos dirigimos ao animal humano, à besta humana. Nos dirigimos, você viu, ao que há de mais puro, de mais elevado no homem: o espírito de justiça, de igualdade, de fraternidade. No escravo oprimido, queremos suscitar essa nova moral que se revela com a liberdade.
A liberdade do corpo prepara a do coração e do espírito. Destruindo a servidão do trabalho, pretendemos destruir todas as servidões. O socialismo transformará, renovará a condição da mulher, a condição da criança, a vida passional, a vida da família. Ele comporta uma libertação, uma depuração universal. Criando e organizando o lazer para todos os trabalhadores, — lazer verdadeiro onde a atividade persiste, e não repouso forçado pelo acúmulo de um trabalho excessivo, — ele permitirá o acesso de todos às mais nobres ocupações humanas; ele abrirá para todos os tesouros da ciência, das letras, da arte. Eu me lembro de um dito profundo de um filósofo: "Tudo na árvore quer ser flor..." Na humanidade, todos aspiram ao florescimento, à mais rica realização do espírito e da alma. Esse instinto, reprimido no subsolo da consciência por todas as amarras, por todas as misérias sociais, é o socialismo que saberá lhe dar força e esplendor.
Guerra e capitalismo
Vocês sem dúvida perceberam: eu cheguei ao fim dessas poucas páginas sem lhes falar do evento formidável do qual nos livramos penosamente e cuja sombra ainda pesa sobre nós. Eu não dediquei à guerra nada além de argumentos acessórios; eu não fiz nada mais do que alusões raras e indiretas.
Eu poderia dedicar, pelo contrário, os meios essenciais da minha contestação. Seria fácil para mim lhes mostrar que entre o capitalismo e a guerra existe uma relação de conexão necessária, que esses dois poderes do mal nascem um do outro, seguindo a análise, eu poderia lhes fazer perceber, no próprio desenvolvimento da guerra, a oposição crescente dos interesses capitalistas contra o interesse comum, a necessidade crescente de métodos de organização coletiva. Eu poderia lhes mostrar a incapacidade do capitalismo de resolver os problemas assombrosos que a guerra deixou.
Sua impotência salta aos olhos. Nós o vemos ceder pouco a pouco sob o peso dos crimes que ele próprio acumulou. Ninguém pode mais duvidar que ao dar início a essa guerra, ele assinou, a longo ou curto termo, seu decreto de destituição e de morte... Mas eu não entrei nesses desenvolvimentos que pareciam portanto impor as circunstâncias. Eu lhes falei como eu o faria antes da guerra. Foi de propósito.
A guerra projetou um esclarecimento brutal e súbito dos vícios essenciais da sociedade burguesa. Ela despedaçou subitamente o véu sobre a realidade das coisas. Mas essa realidade preexistia à guerra, e esse é o porquê éramos socialistas antes da guerra. Nós não queremos fazer vocês socialistas de puro sentimento. Para nós é preciso fazer algo mais que uma comoção de revolta contra o espetáculo assustador que o gênero humano acaba de suportar. Para nós é necessária a sua adesão refletida, total. Assim eu me apliquei a lhes mostrar, não os argumentos atuais do socialismo, mas suas razões fundamentais, aquelas que não eram menos verdade hoje do que ontem e que restarão verdadeiras amanhã, até a transformação inevitável.
O que é exato, é que a guerra apressou singularmente o momento onde as ideias mestras do socialismo devem se incorporar à consciência universal... Não é estranho? A humanidade só se eleva lentamente ao nível de certas ideias, entretanto tão claras, tão imperiosas, que parecia que elas deveriam se impor imediatamente a toda razão. As poucas raças que conhecemos a história desenvolveram os germes de uma riqueza e de uma perfeição tais que nada mais grandioso aparecerá sobre o céu. E entretanto quantas das verdades tornadas essenciais, elementares para nós que esses grandes homens nunca perceberam! Um Platão nem mesmo condenou a barbárie, a horrorosa iniquidade do direito de conquista e da escravidão. Rabelais e Pascal nem mesmo previram os princípios morais e políticos que a Revolução francesa publicou no mundo e que a razão humana não discutirá mais. Se a questão fosse colocada diante deles, eles saberiam resolvê-la como nós. Mas ela não se colocava; ela não podia se colocar ainda... Então parece súbito que em um momento determinado da história, a inteligência dos homens adquire um novo sentido.
É assim com o socialismo. Nenhuma verdade mais evidente desde que ela foi uma vez concebida. A única surpresa, é que possamos contestá-la e possamos conhecê-la mal, é que tantos grandes espíritos puderam passar para o seu lado sem poder vê-la, como antes os navegadores, sem se dar contar, passavam perto de continentes desconhecidos. Mas hoje tocamos na terra nova. A guerra adiantou o tempo onde, para todos os homens, para todos aqueles, pelo menos, que não se recusam obstinadamente a abrir os olhos, o mundo aparecerá sob um aspecto imprevisto, se iluminará com um luar desconhecido e inevitável.
Nesse dia a humanidade não compreenderá mais como ela pode manter ao seu redor, durante séculos, tantas mentiras e erros absurdos. Me permitam usar ainda uma comparação. Há duzentos anos, os cirurgiões praticaram pela primeira vez a operação da catarata, e devolveram a vista a cegos. Pudemos comparar então a ideia que eles faziam do mundo na sua noite, e aquela que lhe fornecia a visão restituída. Eles acreditaram conhecer, por ouvir dizer, através de suas sensações incompletas, o que é exatamente a luz, o que é uma flor, o que é um olhar humano. Mas ao contrário, eles não conheceram nada de exato. Eles viveram em um mundo de ilusões estranhas e mentirosas que eram feitas para eles exceto pelas trevas que os cercavam. Eles não captavam a realidade do mundo até ter a venda arrancada de seus olhos. O socialismo, uma vez concebido, produz em nós a mesma revolução espiritual. É a venda arrancada de nossa inteligência. Pela primeira vez a realidade do universo social aparece para nós, e nos damos conta que, até então, tínhamos vivido no preconceito, na rotina absurda, na mentira, na noite.
É a essa tarefa de libertação que convidamos vocês, jovens. Para vocês mesmos, e então para aqueles que lhes cercam e que vocês podem persuadir. Vocês são a esperança, vocês são a vida que vem, a seiva que pulsa; de vocês dependerá o destino próximo da humanidade. Reflitam, examinem. Vocês estão em um momento de escolhas decisivas, porque é na sua idade que o pensamento e a ação se desenham para o resto da existência. É ao fim da juventude e em todos os primeiros momentos da idade madura, enquanto esse curto intervalo de alguns anos, que todos os pensamentos fecundos da vida se formulam, que as resoluções eficazes de ação se fixam em nós. A alternativa capital é então ofertada. Vocês estarão do lado do futuro ou do lado do passado, do lado da iniquidade ou do lado da igualdade, do lado do egoísmo ou do lado da fraternidade? Vocês não podem ficar neutros; é preciso se pronunciar, é preciso escolher... E bom! Vocês se arranjarão com a justiça, com a verdade, com a vida. Vocês não farão um cálculo baixo; o padrão da sua idade é a escolha aventureira antes que o cálculo mercenário. Vocês escutarão o chamado generoso e quente dos seus corações... E se vocês surpreenderem, ao redor de vocês, a tentação vil de estar do lado do mais forte, lembrem a esses egoístas imprudentes que a própria força, em um dia talvez próximo, estará a serviço da justiça...