Economia Política
(Curso Popular)

Segunda Parte - Sociedade Mercantil

A. Bogdanoff


Capítulo IIII - O Capitalismo Mercantil


I - Conceito geral do capital
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Vulgarmente costuma dizer-se que o capital é a riqueza que produz lucro; mas isto é absolutamente errôneo, porque nenhuma riqueza pode, por si só, originar lucro.

Consideremos um exemplo concreto; um comerciante possui certa quantidade de dinheiro, que emprega na aquisição de mercadorias, e, depois, pela venda destas, percebe certo lucro. Esta operação pode exprimir-se com a fórmula seguinte: D (dinheiro), M (mercadoria), D1 (dinheiro), designando-se por D1 uma quantidade maior que D, porque, do contrário, a operação não teria objetivo. Suponhamos que D representa 8 libras esterlinas e que D1 representa 10. Suponhamos igualmente que a produção do metal-moeda contido em dois shillings exige o gasto de um dia de força de trabalho socialmente necessário. Por conseguinte, ao gastar as 8 libras o comerciante não só torna a recebê-las, como também recebe outras mais, ou produtos que representam vinte dias de trabalho socialmente necessário.

O excedente pode derivar de duas causas. É possível que a transferência das mercadorias do produtor, de quem o comerciante as comprou, ao consumidor, a quem ele as vendeu, requeresse o gasto de vinte dias de trabalho. Em tal caso, o comerciante completa a obra do produtor direto, concluindo o processo do trabalho necessário para a produção da mercadoria; o que então recebe o comerciante apresenta o mesmo caráter que o que recebe o artesão. Entretanto, na maioria dos casos, a quantidade de trabalho empregado pelo comerciante não corresponde, de modo algum, à diferença entre D e D1.

Esta diferença é motivada pelo fato de que o comerciante não paga ao artesão a totalidade do trabalho que empregou, mas só uma parte. A mercadoria custa ao produtor noventa dias de trabalho, mas o comerciante não lhe entrega nove libras, mas só oito, apropriando-se, deste modo, de dez dias de trabalho suplementar. Neste caso o comerciante já não aparece na qualidade de um artesão ocupado no transporte dos produtos, mas na função de capitalista. Seu dinheiro e demais propriedades, utilizadas para adquirir o trabalho suplementar do produtor de mercadorias, desempenha o papel de capital.

Não obstante, dão-se casos em que parece que a renda derivada do capital não tem nada a ver com o processo do trabalho, como, por exemplo, na obtida pelo capital emprestado a crédito, ou capital usurário. Admitamos o caso de um agiota que empresta certa quantia a um camponês ou a um artesão, e que depois de certo prazo recebe uma quantia consideravelmente maior do que a emprestada. Este agiota realiza uma operação que pode exprimir-se pela fórmula D (dinheiro) e D1, que representa uma quantia maior que D. Aqui a ilusão de que D aumentou por si mesmo é maior que no caso precedente, porque a função do usurário não tem nada a ver com o processo de produção. Mas se examinarmos a questão, veremos que se o agiota recebeu certo lucro foi somente por haver emprestado seu dinheiro (ou uma parte de sua propriedade em forma de sementes, matérias primas, etc.) a um produtor de mercadorias. Se houvesse conservado seu dinheiro em seu cofre, é evidente que sua quantidade não teria sofrido a menor alteração. Mas emprestando o dinheiro ao produtor de mercadorias deu a este a possibilidade de convertê-lo em meios de produção (utensílios, matérias primas, etc.), e com a adição de certa quantidade de trabalho obteve produtos de um valor maior que a soma original, parte de cujo novo valor se apropria o agiota em forma de juros sobre o capital.

Isto mesmo pode aplicar-se ao capital de uma empresa industrial. Como nos casos anteriormente examinados, o movimento do capital começa pelo dinheiro. Um fabricante compra meios de produção e força de trabalho, os quais constituem o capital industrial. Quando terminar o processo da produção obtém mercadorias que são vendidas por uma soma de dinheiro que excede à que foi empregada. A diferença o fabricante obtém, ao pagar os salários aos operários, pois só lhes dá uma parte dos valores que acrescentaram aos meios de produção, ao convertê-los em um produto acabado. Assim, pois, o lucro obtido do capital, neste caso, se deve também à apropriação do produto do trabalho de outrem, à exploração da força de trabalho de outra pessoa.

Esta exploração é possível, ou porque os meios de produção, sem os quais esta não pode ser realizada, não pertencem ao produtor direto, ou porque este não os possui na suficiente quantidade, mas constituem, no todo ou em parte, a propriedade privada do capitalista. Sob este ponto de vista, o capital deve definir-se como um meio de produção que chegou a converter-se em um meio de exploração, pelo fato de constituir uma propriedade privada.

A maioria dos economistas burgueses define o capital como "um produto do trabalho que se utiliza para a produção ulterior". Se esta definição fosse exata, o pau que o selvagem emprega para arrancar a fruta das árvores ou a lança que usa para matar uma fera afim de devorar sua carne seria também capital. Semelhante definição poderia fazer-nos crer que o capital existiu desde o aparecimento do homem; entretanto todos vemos que a existência do capital é condicionada a um sistema específico de relações de produção, qual seja a organização da troca. Como este sistema não é eterno, mas aparece em determinada fase do desenvolvimento econômico e em outra fase dada pode desaparecer, o capital constitui um fenômeno historicamente transitório. Sob este ponto de vista a sovela do sapateiro ambulante ou o arado do camponês que trabalha junto com sua família não constituem capital, como não o constituem o arco ou o machado de pedra do homem primitivos. Os meios de produção e o dinheiro (que constitui a forma do valor dos primeiros) só se convertem em capital nas mãos dos que, baseando-se em seus direitos de propriedade, os empregam para apropriar-se do trabalho suplementar de outrem, quer se trate de operários assalariados ou produtores aparentemente independentes. Se estes mesmos meios de produção deixassem de ser de propriedade privada, deixariam também de ser capital, ainda que desde logo pudessem continuar sendo usados na produção.

II - As relações técnicas e a produção

Dois fatos fundamentais determinaram a transição da sociedade do artesanato urbano à sociedade capitalista mercantil: o primeiro, o incremento geral da produção, e o segundo, o rapidíssimo desenvolvimento do ramo da produção constituída pela distribuição das mercadorias.

O incremento geral da produção foi um resultado necessário das forças de desenvolvimento que atuavam na sociedade do artesanato urbano.

O progresso particularmente considerável do "transporte comercial" foi devido ao fato de que com o incremento da produção em geral e da crescente divisão do trabalho, era necessário não só transportar uma massa maior de produtos, como também transportá-los a distancias maiores que antes.

A produção crescente já não se limita aos mercados vizinhos, mas pouco a pouco entra em relação com mercados mais distantes, aos quais tem de ser transportada uma quantidade de produtos cada vez maior. O descobrimento dos mercados mais distantes, assim como a manutenção de relações com eles, torna cada vez mais difícil a tarefa. Ao mesmo tempo, a remessa de produtos da fábrica ao mercado adquire uma importância crescente no sistema geral de produção.

Paralelamente com isto se verificam certas transformações nas funções sociais dos diversos grupos da sociedade.

III - A expansão do poder do capital mercantil sobre a produção

À medida que a área do mercado se estendia, tornando difícil e mesmo impossível ao pequeno produtor de mercadorias manter o contato com ele, foi aumentando o poder econômico e a importância social da classe que se especializava nesta função.

Ao tratar-se de produzir mercadorias para um mercado amplo, ilimitado e distante, o pequeno produtor não pode colocar pessoalmente suas mercadorias, como acontecia na maioria dos casos quando o mercado era limitado e próximo. Por conseguinte, a operação final da produção (a distribuição do produto) acabou por separar-se dos demais processos e o produtor sentiu a imperiosa necessidade de um intermediário. Isto foi causa de acabar o produtor por ver-se submetido à dependência econômica do comerciante. O produtor tinha de vender sua mercadoria ao comerciante para poder continuar seu trabalho; mas as condições da transação deixaram de ser idênticas para ambas as partes. Em primeiro lugar, o produtor não conhece as condições reais do mercado em que o comerciante vende seus produtos. Em segundo lugar, o produtor não pode esperar, porque, devido ao seu pequeno "stock", tem que vender imediatamente seus produtos para poder adquirir os meios necessários à continuação de seu negócio. O comerciante, pelo contrário, como possui todos os conhecimentos necessários e dispõe de melhores elementos, pode demorar suas compras se as condições que se lhe oferecem não lhe agradam. Por conseguinte, o produtor tem de ceder quase sempre e aceitar o preço oferecido pelo comerciante.

Entretanto, isto não significa que o produtor venda sua mercadoria por um preço arbitrariamente baixo. Em primeiro lugar, como entre os comerciantes existe a concorrência, pode encontrar em último caso, ainda que com grande dificuldade, outro comerciante. Em segundo lugar, ao comerciante não lhe convém destruir a empresa do produtor impondo-lhe condições demasiado desfavoráveis, porque ao fazê-lo não poderia obter lucro dele no futuro, e deste modo destruiria a base de seu próprio bem-estar. Por conseguinte, a exploração é levada a um grau que ainda permite ao pequeno produtor obter os meios necessários para prosseguir sua indústria.

Deve fazer-se constar que muitas vezes o comerciante comprador não era simplesmente um comerciante mas um produtor que ultimava a operação final da manufatura de uma determinada mercadoria antes de enviá-la ao mercado. Por exemplo, na fabricação de relógios, em que desde o início interveio um certo número de pequenos produtores, cada um dos quais fabricava as diversas peças, os artesãos que montavam estas costumavam agir como comerciantes. Em sua essência, este caso não difere de modo algum do outro: o produtor que adquire a preponderância é aquele que leva a cabo as últimas operações na manufatura de um produto, quer se trate só da última quer das duas últimas.

A consecução do predomínio econômico do comerciante é facilitada pelo fato de que as pequenas indústrias são muito instáveis. Todo contratempo acidental, toda calamidade natural ou econômica expõe o pequeno produtor à ruína, e o obriga a recorrer ao auxílio dos membros da sociedade economicamente mais poderosos, que costumam ser os próprios comerciantes. Em tal caso, estes assumem outra função: a de agiotas ou emprestadores. Ao emprestar dinheiro ao produtor, para que este possa manter sua indústria, o que o comerciante realmente faz é pagar de antemão os preços das mercadorias que o produtor, seu devedor, há de produzir. O resultado é que o preço destas mercadorias será entretanto mais baixo e a dependência do produtor relativamente ao comerciante será ainda mais permanente. Por via de regra, em tais circunstâncias, o produtor se compromete a não vender suas mercadorias a outro comerciante senão a seu credor.

O agiota e o comerciante comprador nem sempre são uma e a mesma pessoa: frequentemente ambas as funções estão separadas. Não obstante, este fato não altera a situação do produtor. Muitas vezes, o agiota acaba por converter-se em comerciante comprador, ampliando deste modo sua função socialmente produtiva. O comerciante, por sua vez, se vê obrigado pelas circunstâncias a proceder como agiota, prestando auxílio às indústrias cuja existência se vê ameaçada.

Assim, ainda que formalmente o pequeno produtor continue sendo livre, sua independência real desapareceu. Baseando-se em sua força econômica, o comerciante intervem nas atividades produtivas do pequeno produtor e procede como regulador e organizador supremo da produção. Visando lucros, o comerciante indica a quantidade, a qualidade e a data de entrega de determinado produto e estipula seu preço, o que o produtor se vê obrigado a aceitar, porque, do contrário, não lhe é possível vender suas mercadorias.

De acordo com sua conveniência, o comerciante obriga o produtor a restringir a produção ou o ajuda a aumentá-la. Indiretamente, o comerciante influi na técnica da produção, pedindo produtos de uma qualidade determinada. Em geral, o comerciante, se não de modo formal, ao menos efetivamente, se converte no organizador da pequena indústria.

Deste modo, as pequenas empresas trabalham na realidade sob a autoridade de um só organizador. Esta submissão está muito longe de ser completa: todavia fica ao pequeno produtor uma relativa independência nas questões internas da empresa. Esta é a organização capitalista mercantil da produção.

A produção capitalista mercantil não pode considerar-se como o tipo da pequena produção. Ainda que a maior parte do processo da produção de mercadorias se verifica em pequenas oficinas e formalmente separadas, constitui, não obstante, a produção em grande escala destinada ao mercado.

À medida que se foi desenvolvendo, o capital mercantil foi adquirindo maior poderio sobre o produtor e aumentou sua influência na organização interna da indústria. É de se notar que os vestígios das relações feudais não impediram de modo algum ao capital mercantil apoderar-se da faculdade organizadora, e com ela a faculdade de explorar os camponeses. Ao usurpar o bem-estar de seus camponeses, o proprietário de terras reduziu seu próprio poder de resistência ao capital mercantil. Transformando os tributos feudais em um pagamento metálico, obrigou os camponeses a vender seus produtos, e deste modo os pôs em mãos do capital mercantil. Finalmente, o mesmo proprietário de terras assumiu a função de capitalista mercantil como açambarcador ou como agiota.

Frequentemente, o comerciante se dedicou a facilitar ao produtor os materiais de produção. À medida que isto se tornou mais frequente, a transação foi se tornando cada vez mais simples: o comerciante se limitava a entregar estes materiais ao pequeno produtor, o qual tinha que fabricar para ele mercadorias a um preço previamente combinado. Como consequência disto, o produtor perdeu ainda mais sua independência. Em sentido rigoroso, já não pode dizer-se que o produtor vende seus artigos ao comerciante: o que faz é apenas receber um estipêndio deste pelo trabalho que emprega em converter seus materiais em produtos acabados e a título de indenização pelo desgaste das ferramentas de sua propriedade. Se deixar de ser para tal indenização, teremos o que comumente se chama trabalho assalariado.

Este é o sistema doméstico da produção capitalista em grande escala, segunda fase do desenvolvimento do capitalismo mercantil.

Esta fase do capitalismo se arraigou de tal maneira na sociedade, que ainda perdura atualmente, no período de dominação da forma mais elevada do capitalismo.

A prova de que a produção capitalista doméstica é uma produção em grande escala consiste em que não só os artigos são enviados ao mercado em grandes quantidades, senão também em que as matérias primas distribuídas entre os pequenos produtores individuais são igualmente recebidas em grande escala.

É evidente que quanto maior é a dependência real do pequeno produtor com relação ao capital mercantil, mais rapidamente perde os últimos vestígios de independência e menos capaz se torna de resistir os ataques ulteriores de dito capital.

Às vezes, depois da ruína completa do pequeno produtor, o capitalista mercantil acha vantajoso provê-lo, não só de materiais, como também de ferramentas, e deste modo desaparecem definitivamente os últimos vestígios da independência da pequena empresa. Esta é a última fase do desenvolvimento do capital mercantil e a linha divisória de sua transição ao capital industrial.

IV - A decadência da pequena empresa e o desenvolvimento da luta de classes

Com a organização das empresas dos pequenos produtores individuais, o aspeto exterior do capital mercantil muda muito pouco; mas nas relações entre os grupos, opera-se uma considerável modificação.

A princípio, a intromissão do capital mercantil na vida da pequena empresa é vantajosa para o produtor. O comerciante, obrigado a competir com os compradores locais, paga ao produtor preços equitativos e sobretudo faz-lhe grandes pedidos destinados a mercados distantes. Mas as coisas variam à medida que o produtor cai na dependência econômica do comerciante. O jugo do capital mercantil se converte então para o produtor em uma carga sempre crescente e muitas vezes intolerável. O bem-estar da pequena empresa fica reduzido a tal nível, que ao capitalista mercantil já não lhe fica nada de que apoderar-se. O pequeno produtor se esgota em seus esforços por conservar sua posição anterior, ou ao menos por mantê-la em um nível determinado. E não só ele se esgota, como também obriga sua mulher e seus filhos a trabalhar com mais afinco. As crianças são obrigadas a trabalhar em uma idade na qual antes podiam desenvolver-se livremente. Os membros femininos da família deixam de limitar-se às fainas domésticas que antes as ocupavam, e tomam parte ativa na produção para o mercado em todas as esferas em que a técnica da produção o permite. O chefe da família acaba por converter-se em um explorador de seus parentes, da mesma maneira como ele é explorado pelo capitalista mercantil.

Este fato se evidencia em particular na indústria rural doméstica, em que a agricultura se pratica como uma ocupação subsidiaria do artesanato. Esta indústria não dispõe, para sua defesa, de organizações tão fortes como os grêmios dos artesãos da cidade, e por tal motivo cai mais facilmente sob o domínio do capital mercantil. Ao fixar o preço das mercadorias do artesão rural, o comerciante tem em consideração o apoio subsidiário que aquele obtém da agricultura e reduz os preços a tal nível que o artesão, nem mesmo com suas duas ocupações, pode assegurar-se os meios necessários de subsistência. A exploração da força de trabalho do artesão rural alcança tais proporções, que conduz à degeneração de dita classe.

Tal é também o destino da economia campesina com sua indústria doméstica subsidiária. A situação, tanto do camponês como do artesão na aldeia, tornou-se absolutamente insuportável quando a exploração do capital mercantil veio a juntar-se à exploração já existente do proprietário de terras. Isto deu origem às sublevações camponesas que se verificaram em todos os países e que caracterizam as primeiras fases do capitalismo mercantil.

Graças à força de suas organizações gremiais, os artesãos das cidades puderam opor uma resistência maior e mais duradoura ao poder do capital mercantil; mas também eles se viram submetidos cada vez mais à influência deste. Como consequência, nas relações internas da família urbana ocorreram as mesmas transformações, se bem que em menor grau que nas famílias rurais. Por outro lado, verificou-se uma considerável alteração nas relações entre o mestre artesão e seus operários assalariados, jornaleiros e aprendizes.

O antagonismo de interesses entre o mestre artesão e seus operários, que se havia desenvolvido, mas que permanecia encoberto por seu trabalho em comum e por suas relações de igualdade quase doméstica, acabou por manifestar-se em toda sua clareza. Para poder manter sua difícil posição, o mestre artesão, oprimido pelo capitalista, se vê obrigado a oprimir a seus jornaleiros e aprendizes, a exigir-lhes um trabalho mais prolongado e mais intenso por uma remuneração menor e um nível de vida inferior. Por sua vez, os jornaleiros e os aprendizes se opõem energicamente a isto. A coesão peculiar à empresa artesã desaparece então e é substituída por relações de hostilidade.

Resumindo a situação, poderíamos dizer que a força do capital mercantil transforma as relações internas, da economia pequeno-burguesa e introduz nela o espírito de exploração. O chefe de família se converte, queira ou não queira, no explorador de seus familiares; o mestre artesão se converte no explorador de seus companheiros de trabalho.

De par com isto, a transformação das relações entre o mestre artesão e seus subalternos foi seguida de uma transformação no caráter dos grêmios. Estes se converteram cada vez mais em organizações de luta dos mestres artesãos contra os capitalistas mercantis, por um lado, e contra os jornaleiros, por outro.

Na luta contra o capital mercantil, as normas estabelecidas pelos grêmios contra a concorrência e a redução dos preços foram modificadas e ampliadas. Por outro lado, os grêmios tiveram de fazer todo o possível para conservar sua exclusividade legal na produção e venda das mercadorias, exclusividade que os capitalistas se esforçavam por destruir. Mas, em regra geral, na luta contra o capital mercantil os grêmios foram abalados até seus alicerces e revelaram uma absoluta carência de integridade e de unidade interna.

Em troca, a solidariedade do grêmio em sua luta com os jornaleiros se manteve inabalável. Foram tomadas medidas as mais enérgicas para impedir que os jornaleiros pudessem chegar a mestres artesãos, pois o aumento do número destes aumentaria a concorrência.

Todas estas inovações suscitaram a enérgica oposição dos jornaleiros. Quanto menos possível se torna para o jornaleiro subir de posto, tanto mais precária se torna sua situação, e deste modo os antigos laços que uniam o mestre artesão aos jornaleiros toram substituídos por vínculos de camaradagem entre os próprios jornaleiros, imbuídos de um espírito de hostilidade contra o mestre. Assim surgiram as organizações de jornaleiros, que a princípio apresentavam o caráter de irmandades religiosas, mas que logo, "sob o manto da piedade" — para empregar as palavras dos mestres artesãos ingleses do seculo XIV — começaram a visar fins puramente econômicos.

Cada agrupamento unia os jornaleiros de uma profissão particular, a princípio dentro de uma mesma cidade; mas logo a identidade de interesses fez atingir estas organizações os limites das cidades isoladas, e formaram-se agrupamentos de jornaleiros de cada profissão que abrangeram várias cidades e até várias nações. Entretanto, estas organizações não passaram daí. Os jornaleiros de várias profissões não só não se uniam, como mesmo se tratavam com recíproca hostilidade, como os mestres artesãos dos diversos grêmios.

Graças à força considerável de seus organizadores, os jornaleiros puderam obrigar aos mestres a fazer-lhes diversas concessões e outorgar-lhes certas melhorias. Os mestres fizeram todos os esforços possíveis por destruir estas organizações, e amiúde fizeram tentativas para conseguir a aprovação das leis necessárias. Em tais casos, os agrupamentos se transformaram em organizações clandestinas, mas não deixaram de existir. As principais armas empregadas nestas lutas eram a greve e o boicote. Em suma, e finalmente, a derrota das organizações dos jornaleiros era inevitável, porque estava predestinada pela essência mesma da situação. Estas organizações só podiam lutar contra os mestres artesãos; mas seus verdadeiros opressores não eram estes últimos, mas os capitalistas, que exploravam os mestres e os obrigavam, por sua vez, a explorar os jornaleiros.

Assim, sob a influência do capital mercantil, as organizações artesãs degeneraram e desapareceram.

V - A função do Estado

No que diz respeito à organização política, o período do capitalismo mercantil foi a época mais florescente da monarquia absoluta.

Os fortes vínculos econômicos que existiam entre as diversas partes do Estado, criadas pelo desenvolvimento das comunicações, formaram a base da unidade estável da nação. Ao mesmo tempo, a monarquia absoluta tinha de empreender lutas que fortaleceram seu poderio e lhe granjearam a simpatia e a confiança da classe capitalista mercantil da sociedade.

Sua primeira tarefa consistiu em destruir os últimos vestígios do antigo feudalismo, que não podia adaptar-se às novas condições históricas, e que havia iniciado contra toda a sociedade uma luta desesperada por sua existência. Só uma parte da classe feudal (os elementos economicamente mais poderosos e mais progressistas) podia manter sua antiga posição como proprietários de terras e funcionários, na voragem das relações de troca do capitalismo mercantil em desenvolvimento. Os mais débeis viram-se indefesos na esfera de uma luta de interesses puramente econômicos, e rapidamente pereceram sob os golpes do capitalismo mercantil e usurário. A existência dos senhores feudais pôde manter-se algum tempo ainda porque conservavam em seus domínios um sistema de economia natural autônoma. O desenvolvimento das relações monetárias destruiu pouco a pouco estes vestígios, e com eles a possibilidade de existência dos últimos senhores feudais. Entretanto, como estes não podiam aceitar semelhante perspectiva, aproveitando-se de seus antigos direitos de impor tributos aos comerciantes que atravessavam seus territórios, saíram pelas estradas, em companhia de seus sequazes, a despojar as caravanas dos mercadores, com o que obtinham seus meios de subsistência, embora ao mesmo tempo causassem um prejuízo enorme ao desenvolvimento da produção social. O Estado, valendo-se de sua força militar, submeteu a estes senhores feudais, destruiu seus castelos e estabeleceu a segurança nas comunicações de que a indústria e o comércio necessitavam.

A outra tarefa da monarquia burocrática foi a supressão das sublevações camponesas. Como vimos, a causa destas sublevações foi o jugo insuportável da dupla exploração que os camponeses tinha de suportar por parte do senhor de terras e do capitalista mercantil. Enquanto as relações de troca foram relativamente reduzidas e cada comarca levou uma vida isolada, estas sublevações apresentavam um caráter local e eram fáceis de sufocar. O desenvolvimento do capitalismo mercantil, ao criar vínculos amplos e fortes entre diversas regiões, criou também o motivo de vastas sublevações camponesas que abrangeram países inteiros. Ao mesmo tempo tornou ainda mais difícil a situação dos camponeses, o que emprestou às suas sublevações um caráter particularmente obstinado e feroz. As sublevações de camponeses que estalaram na Itália no seculo XIII, na Inglaterra e França em fins do XIV, na Boêmia no XV e na Rússia, nos séculos XVII e XVIII, exigiram um grande esforço por parte da organização do Estado para serem sufocadas. A mais notável de todas, entretanto, foi a que estalou na Alemanha.

Em todos os países as sublevações dos camponeses acabaram com a derrota dos rebeldes. Isso foi devido á sua falta de organização e ao fato de que tinham diante de se a compacta organização do Estado dos senhores de terras, sendo o seu espirito incapaz de elevar-se acima dos interesses locais.

Não obstante, a emancipação dos camponeses era uma necessidade histórica, que acabou por converter-se na terceira missão do Estado ao termo do período do capitalismo mercantil.

As sublevações dos camponeses destruíram os alicerces da servidão e revelaram os perigos das relações precedentes tanto para a sociedade como para os próprios senhores de terras. Para a classe capitalista mercantil, a servidão era um obstáculo na senda do desenvolvimento, pois a impedia em grau considerável de assenhorear-se do poder organizador sobre a produção agraria. Por outro lado, para o Estado, que frequentemente precisava de dinheiro, a massa camponesa, obrigada a entregar ao senhor de terra uma enorme parte de seu produto e tendo seu trabalho dificultado pelas obrigações que o prendiam à terra, constituía uma má fonte de receita. Por último, muitos senhores de terras acharam de mais vantagem explorar suas terras, arrendando-as, que tratar diretamente com trabalhadores forçados e improdutivos. A combinação de todas estas forças sociais acabou por vencer a resistência da massa retrógrada dos senhores de terras feudais.

Em alguns casos, a emancipação dos camponeses se verificou lentamente, passo a passo, quase por si mesmo (Inglaterra). Em outros foi objeto de um ato legislativo especial. Em muitos países da Europa verificou-se em princípios do período do capitalismo industrial; mas as forças que a motivaram se desenvolveram principalmente sobre a base do capitalismo mercantil.

VI - A ideologia e as forças de desenvolvimento no período do capitalismo mercantil

O capitalismo mercantil constitui a segunda fase da sociedade baseada na troca, fase nitidamente ligada com o artesanato urbano e com a servidão rural, que examinamos em separado unicamente por conveniências do estudo. Em todas suas características principais a consciência social continuava desenvolvendo-se na mesma direção que a observada no período de transição da sociedade autônoma natural para a sociedade baseada na troca. O tipo psicológico predominante era, entretanto, o rural.

Nas corporações industriais, desenvolvidas na família urbana e nas relações feudais dos servos, a sociedade conservava ainda as condições da subordinação do indivíduo ao patriarca. Estas condições obstruíam o desenvolvimento da individualidade, e, ao destruí-las, o capitalista mercantil contribuiu para a emancipação desta. As relações patriarcais subsistiam em vigor em duas instituições da sociedade: na forma politica da monarquia absoluta e na forma doméstica da empresa industrial. Também aqui puderam observar-se algumas modificações. A monarquia absoluta não apresenta de modo algum essa intimidade de contato entre governantes e súditos, que era a característica da forma patriarcal, inclusive durante seu desenvolvimento feudal. Em seu lugar encontramos o frio formalismo da burocracia. Na família, por outro lado, as relações adquirem mais brandura: o poder do chefe de família e a submissão dos demais membros não são tão pronunciados.

Os conhecimentos humanos aumentaram de tal maneira que as relações comerciais uniram regiões diversas, e até países inteiros, com vínculos cada vez mais fortes. Fez-se sentir a necessidade de impulsionar o desenvolvimento da ciência, e neste sentido a classe mercantil e seus trabalhadores se avantajaram ao resto da sociedade, porque a troca de produtos criou a necessidade de transportar livros de contabilidade, de procurar novos mercados mais vantajosos para a compra e venda, de estudar as condições econômicas e jurídicas de seu país, assim como as instituições e os demais costumes dos outros países; de falar idiomas estrangeiros, etc. As antigas escolas da Igreja tornaram-se insuficientes para estes fins, e então surgiram escolas seculares, primeiramente nas cidades. Tanto os reis e os príncipes como os simples cidadãos tomaram parte ativa no estabelecimento destas instituições, porque viam na ciência uma arma para combater o feudalismo do clero. E mesmo nas classes inferiores da sociedade surgiu um intenso interesse pela instrução. Sobretudo os camponeses começaram a ver na instrução o único meio de sair de sua difícil situação e elevar-se na escala social. Ao mesmo tempo foram suprimidos importantes obstáculos que se opunham ao desenvolvimento da instrução. Neste sentido teve muitíssima importância a queda da servidão. Sob o feudalismo, a instrução era absolutamente inaccessível para o camponês. Sob o ponto de vista do senhor feudal, a instrução era nociva para o camponês e para a sua moralidade.

Paralelamente ao desenvolvimento do conhecimento, continuaram desaparecendo os vestígios do fetichismo natural. Este processo se evidencia quando se comparam as doutrinas do catolicismo com as da Reforma, que superaram aquelas.

Em lugar do fetichismo natural, começou a desenvolver-se na sociedade a consciência do fetichismo das mercadorias. A cobiça, a irresistível caça ao dinheiro, constituem o traço característico da Idade Média e dos albores da época moderna. As tenazes investigações dos alquimistas e as viagens aventureiras tinham em vista o mesmo objetivo. A pedra filosofal e a índia desempenhavam o mesmo papel na psicologia daqueles tempos.

A força básica da sociedade capitalista mercantil, como de todas as sociedades baseadas na troca, era a concorrência. Suas operações ganharam em força e clareza, e o desenvolvimento se fez mais rápido à medida que se foram enfraquecendo e desaparecendo os obstáculos que se levantavam em seu caminho: as forças feudais e gremiais, a exagerada intervenção do Estado no comércio e na indústria, etc.

A classe mercantil ia à frente do desenvolvimento e arrastava atrás dela as demais forças sociais, em particular o Governo. Sua necessidade de mercados, seus esforços para ampliar a esfera da troca, levaram ao aperfeiçoamento da navegação e à construção de embarcações maiores e mais resistentes, capazes de sulcar o Oceano, tanto mais que o progresso da astronomia e o uso do compasso permitiu dirigir os navios com maior precisão.

Em estreita relação com o desenvolvimento geral das comunicações surgiram varias indústrias completamente novas, que exerceram uma influência considerável no desenvolvimento ulterior da vida econômica, como por exemplo, a fabricação de papel e a imprensa. Como instrumentos poderosos de difusão do conhecimento, estas indústrias aceleraram muitíssimo o desenvolvimento da produtividade do trabalho.

Em todas as demais esferas da indústria se fez sentir um progresso geral. A extensão da produção e a técnica sofreram modificações. Este período do capitalismo mercantil é o que os historiadores costumam designar como o "período das grandes invenções e descobrimentos" .

Este período é também o da "renascença da ciência e da arte", as quais se aperfeiçoaram com o concurso das formas jurídicas, literárias e artísticas legadas pelo mundo clássico. Este patrimonio havia permanecido intacto até que a sociedade alcançou de novo a fase de desenvolvimento das relações de troca que existiu no período mais florescente do mundo clássico.

Historicamente, o começo do período do capitalismo mercantil, no que se refere ao Sudoeste da Europa, data do seculo XIII, enquanto que no Noroeste remonta aproximadamente ao seculo XIV. Na realidade, o desenvolvimento do capitalismo mercantil é quase inseparável do desenvolvimento das relações de troca. No início da época moderna começaram a desenvolver-se na Europa manufaturas que revelavam uma nova forma de capitalismo e que continuaram se desenvolvendo paralelamente com o progresso do capitalismo industrial.

O desenvolvimento original do capital mercantil nas republicas italianas (Veneza, Gênova, etc.) foi devido a que serviam de intermediários entre a Europa ocidental e os países asiáticos. Esta situação, a que chegaram as republicas italianas como consequência de sua posição geográfica, permitiu-lhes enriquecer-se mediante a exploração comercial das duas esferas de produção com as quais mantinham relações de troca.

O desenvolvimento ulterior do capitalismo mercantil e sua necessidade de mercados levou ao descobrimento de novas terras, como a América e as costas da Africa, e ao estabelecimento de rotas marítimas às índias orientais e à China. O capitalismo mercantil começou a desenvolver-se rapidamente nos países que, por sua proximidade dos mares, podiam aproveitar melhor os novos mercados, como Portugal e Espanha. O comércio que antes se mantinha com a Asia oriental por terra firme, cessou quase por completo, e os intermediários, as repúblicas italianas, começaram a decair rapidamente.

A Espanha conseguiu monopolizar as novas terras descobertas e alcançou rapidamente um alto grau de prosperidade e poderio, desempenhando um importantíssimo papel em seu enriquecimento os metais preciosos da América, os quais da mesma forma favoreceram o desenvolvimento do comércio em toda a Europa.

Mas o desenvolvimento do capital mercantil na Espanha era instável e pouco tempo durou, porque não se baseava em um desenvolvimento correlativo da produção. O desenvolvimento econômico, baseado na pilhagem e no monopólio, não é nunca estável, porque empresta excessiva força aos elementos parasitários da sociedade, impedindo por isso o progresso. A dominação comercial e econômica passou depois à Holanda cujo desenvolvimento industrial foi mais rápido. Mais tarde como é sabido, o posto da Holanda foi ocupado pela Inglaterra.

Simultaneamente, com a passagem do comércio de um pais a outro, verifica-se na produção uma expansão gradual da função organizadora do capital mercantil. Ao aumentar sua influência na esfera da produção, o capital mercantil assume cada vez mais o caráter de capital industrial.


Inclusão 12/05/2016