Assassínio dos Mortos

Amadeo Bordiga

31 de dezembro de 1951


Primeira Edição: Battaglia Comunista, n.º 24, 19-31 Dicembre 1951

Tradução: Pim Misidjan - da versão disponível em https://www.marxists.org/archive/bordiga/works/1951/murder.htm com consulta da versão original italiana

HTML: Fernando Araújo.

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Em Itália, temos já uma longa experiência de "catástrofes que atingem o país", e também alguma especialização na sua "encenação". Terramotos, erupções vulcânicas, cheias, dilúvios, epidemias... Os efeitos são sobremaneira sentidos, indubitavelmente, pelas pessoas mais pobres e pelos que vivem em zonas de alta densidade; se cataclismos normalmente muito mais aterradores se fazem sentir em todos os cantos do mundo, nem sempre estas condições sociais desfavoráveis coincidem com igualmente más condições geográficas e geológicas. Mas todas as gentes e todos os países têm os seus próprios tesouros: tufões, seca, maremotos, fomes, ondas de calor e de frio, todas a nós desconhecidas no "jardim da Europa”; e quando se abre o jornal, inevitavelmente se encontra mais que um item, das Filipinas aos Andes, das Calotes Polares ao Deserto Africano.

O nosso capitalismo, tal como já foi dito mais de cem vezes, é, quantitativamente, coisa pouca, mas hoje está na vanguarda, em sentido "qualitativo", da civilização burguesa, da qual oferece os maiores precursores, a partir do seio de um esplendor Renascentista(1), no desenvolvimento habilidoso de uma economia baseada nos desastres.

Não sonharíamos verter uma única lágrima se uma monção inundasse cidades inteiras na costa do Oceano Índico, ou se fossem submersas pelos maremotos causados por sismos submarinos, mas descobrimos como mendigar esmolas de todo o mundo pelo Polesine.(2)

A nossa monarquia foi gloriosa, ao saber acorrer não onde se dançava (Pordenone), mas onde se morria de cólera (Nápoles), ou às ruínas de Reggio e Messina, levadas ao solo pelos terramotos de 1908. Agora, o falinhas-mansas do Presidente(3) foi levado à Sardenha. Se os Estalinistas não têm estado a fingir, têm-lhe teatralmente mostrado equipas de "trabalhadores Potemkin" em ação, que correm de seguida para o outro lado do palco como os guerreiros n'Aida.(4) Era demasiado tarde para evacuar os desalojados do Pó enchente, mas conseguiu obter-se uma boa peça com os deputados e ministros a remar nos seus botes diante de câmaras e microfones colocados para uma transmissão mundial das suas lamentações.

Eis a ideia genial: o Estado devia intervir! E temos estado a aplicá-la nos últimos noventa anos. O desalojado profissional italiano colocou a ajuda estatal no lugar da graça divina e na mão da Providência. Está convencido que o orçamento de Estado tem limites muito mais generosos que a compaixão de Deus, nosso Senhor. Um bom italiano gasta alegremente dez mil liras espremidas dos seus impostos para que meses e meses depois possa "sacar" mil liras de dinheiro governamental. Mais ainda, durante uma destas contingências periódicas, hoje popularmente apelidadas de "emergências", mas que ocorrem em todas as estações, um conjunto de não menos profissionais "desalojados" irá arregaçar as mangas e dedicar-se ao negócio de procurar concessões, à orgia dos contratos.

O atual Ministro das Finanças, Vanoni, suspende, pela sua autoridade, todas as restantes funções estatais e declara que não irá providenciar um único cêntimo para todos os outros "Decretos Especiais" de modo a que todos os meios possam ser concentrados na resolução do presente desastre.

Não poderíamos pedir melhor prova que esta para justificar que o Estado serve para nada, e que se a mão de Deus verdadeiramente existisse, Ela daria um presente esplêndido a todos os tipos de desalojado ao causar terramotos e levar este estado diletante e charlatão à falência.

Mas se a ingenuidade da pequena e média burguesia brilha mais claro quando procura uma panaceia para o terror que a congela, na esperança morna de um subsídio e de uma indemnização a si garantidos liberalmente pelo governo, a reação dos capatazes das massas operárias parece não menos insensata, quando estes gritam que aqueles perderam tudo no desastre, exceto, infelizmente, as suas correntes.

Estes líderes, que fingem ser "marxistas", têm, para estas situações supremas, que interrompem o bem-estar do proletariado que deriva da exploração capitalista normal, uma fórmula económica ainda mais ignorante que a da intervenção estatal. A fórmula é bem-conhecida: "façamos os ricos pagar!”

Vanoni é, assim, odiado, por não conseguir identificar e impor impostos aos altos rendimentos.(5)

Continua, no entanto, a bastar uma mera migalha de marxismo para estabelecer que os altos rendimentos se multiplicam nos locais com níveis elevados de destruição, sendo os grandes negócios baseados neles. "A burguesia tem de pagar pela guerra!', afirmaram esses falsos pastores em 1919, em vez de incitarem o proletariado à sua destruição. A burguesia italiana ainda por cá está, e investe entusiasticamente a sua receita ao pagar por guerras e outros desastres, pelos quais recebe sempre quatro vezes mais.

ONTEM

Quando a catástrofe destrói casas, campos e fábricas, atirando a população ativa para o desemprego, destrói indubitavelmente riqueza. Mas isto não pode ser remediado por uma transfusão de riqueza a partir de outro lugar, como se fosse uma miserável operação de salvamento e resgate num velho sótão, onde os anúncios, o envio e o transporte custam muito mais que o valor das roupas velhas.

A riqueza que desapareceu era a de trabalho velho e passado. Para eliminar os efeitos da catástrofe, uma enorme massa de trabalho vivo e presente é necessária. Assim, se usarmos a definição concreta e social, não abstrata, de riqueza, podemos atribuir o direito a certos indivíduos, que formam a classe governante, de usar o trabalho vivo e contemporâneo. Formam-se novas receitas e nova riqueza privilegiada na mobilização de novo trabalho, e a economia capitalista não oferece quaisquer meios de "trocar' riqueza acumulada noutro lugar para diminuir a lacuna na riqueza na Sardenha ou no Veneto, da mesma maneira que não se pode tirar às margens do Tibre o que se quer reconstruir nas margens engolidas pelo Pó.

É por isso que taxar os donos dos campos, casas e fábricas deixados intactos para reconstruir os afetados é uma ideia estúpida.

O centro do capitalismo não é a detenção destes investimentos, mas um tipo de economia que permite retirar e lucrar dos frutos do trabalho humano em ciclos intermináveis, subordinando o emprego deste trabalho a essa remoção.

Assim, a ideia de remover a crise de alojamento em período de guerra com um congelamento dos rendimentos dos senhorios das casas não danificadas levou à provisão de casas em estado pior ainda que o causado pelos bombardeamentos. E, contudo, os demagogos entoam argumentos fáceis de modo a não confundir as massas operárias.

A base da análise económica marxista é a distinção entre trabalho morto e vivo. Não definimos capitalismo como a posse de molhos de trabalho passado e cristalizado, mas como o direito a extrair a partir do trabalho vivo e ativo. É por isso que a economia presente não poderá culminar numa boa solução, realizando, com a despesa mínima do trabalho presente, a conservação racional do que o trabalho passado nos transmitiu, nem culminar em melhores bases para o desempenho do trabalho futuro. O interesse da economia burguesa é o frenesi do ritmo laboral contemporâneo, e ele favorece a destruição de massas ainda úteis de trabalho passado, não ligando nem um tusto aos seus descendentes.

Marx explica que as economias antigas, que eram mais baseadas no valor de uso que no valor de troca, não necessitavam de extrair tanto mais-trabalho como a economia presente, relembrando a única exceção: a da extração de ouro e prata (não é sem razão que o capitalismo surgiu do dinheiro), onde o trabalhador era forçado a trabalhar até à morte, como descrito por Diodoro Sículo.

O apetite pelo mais-trabalho (Capital., Vol. I, Cap. X, §2: "A avidez por mais-trabalho") não leva só à extorsão, dos vivos, de tanta força de trabalho que encurta as suas vidas, mas tem também sucesso em destruir o trabalho morto de modo a substituir produtos ainda úteis por outro trabalho vivo. Tal como Maramaldo(6), o capitalismo, opressor dos vivos, é também o assassino dos mortos: "Assim que ospovos, cuja produção ainda se move nasformas inferiores do trabalho escravo, da corveia etc., são arrastados pela produção capitalista e pelo mercado mundial, que faz da venda dos seus produtos no exterior o seu principal interesse, os horrores bárbaros da escravidão, da servidão etc. são coroados com o horror civilizado do sobretrabalho."(7)

O título original do parágrafo citado é "Der Heisshunger nach Mehrarbeit", literalmente; "O apetite voraz por mais-trabalho".

A fome por mais-trabalho do capitalismo de pequena escala, tal como tida na nossa doutrina, contém já em si toda a análise da fase moderna do capitalismo que tem crescido extraordinariamente: a fome voraz pela catástrofe e pela ruína.

Longe de ser nossa esta descoberta (e que se dane quem "descobriu a pólvora",(8) especialmente quando entoam desafinadamente até o compasso, e depois acreditam ser criadores), a diferença entre o trabalho vivo e o morto está na distinção fundamental entre capital constante e variável. Todos os objetos produzidos pelo trabalho que não são destinados ao consumo imediato, mas sim empregues em trabalho adicional (hoje em dia chamados bens intermediários), formam capital constante. "Ao ingressar como meios de produção em novos processos de trabalho, os produtos perdem o seu caráter de produtos. Agora eles funcionam simplesmente como fatores objetivos do trabalho vivo.”(9)

Isto é verdadeiro para a matéria-prima principal e subsidiária, máquinas e todos os outros instrumentos de fabrico que se deterioram progressivamente. A perda devido ao uso, que deve ser compensada, faz com que o capitalista precise de investir outra porção, sempre de capital constante, que a economia atual chama amortização. Desvalorização rápida: é esse o ideal supremo desta economia de coveiros.

Lembrámos, a propósito do "diabo no corpo"(10), como, em Marx, o capital tem a função demoníaca de incorporar o trabalho vivo em trabalho morto que se tornou uma coisa. Que maravilha que as margens do Pó não sejam imortais e que hoje possamos "incorporar trabalho vivo nelas"! Os projetos e as especificações estarão prontos numa questão de dias. Ora pois, têm o diabo no corpo!

"Sôr engenheiro, o departamento de projetos da nossa firma predispôs alguns estudos técnicos e económicos: aqui está a papinha toda feita." E a análise de preços dá mais valor à pedra de Monselice que ao mármore de Carrara.(11)

"A capacidade de conservar valor ao mesmo tempo que adiciona valor é um dom natural da força de trabalho em ação, do trabalho vivo, um dom que não custa nada ao trabalhador, mas é muito rentável para o capitalista, na medida em que conserva o valor existente do capital."(12)

Este valor, que é simplesmente "conservado", sempre graças à operação do trabalho vivo, é apelidada de parte constante do capital ou capital constante por Marx. Mas: "... a parte do capital constituída de [investida em] força de trabalho [salários] modifica o seu valor no processo de produção (...) produz um excedente, um mais- valor...".(13)

Assim, chamamos-lhe ""parte variável", ou, simplesmente, capital variável.

A chave reside aqui. A Economia burguesa calcula o lucro em relação ao capital constante, que fica quieto e não se mexe: de facto levá-lo-ia o demo se o trabalho do operário não o "preservasse". A Economia marxista, pelo contrário, coloca o lucro apenas em relação ao capital variável e demonstra como o trabalho ativo do proletário: a) conserva o capital constante (trabalho morto), e b) aumenta o capital variável (trabalho vivo).

Este aumento, a mais-valia, é recebido pelo empreendedor. Este processo, como explicado por Marx, do estabelecimento da taxa sem ter em conta o capital constante, é como igualá-la a zero: uma operação corrente na análise matemática das questões em que estão grandezas variáveis em jogo.

Assim que o capital constante é igualado a zero, ocorre um desenvolvimento gigantesco do lucro, ou seja, o lucro da empresa mantém-se se a desvantagem de manter capital constante for removida dos ombros do capitalista.

Esta hipótese é precisamente a presente realidade do capitalismo de Estado.

A transferência de capital para o estado significa que o capital constante é nulo. Nenhum elemento da relação entre empresários e trabalhadores muda, uma vez que isto depende apenas da magnitude do capital variável e da mais- valia.

Serão as análises do capitalismo de Estado algo novo? Sem fugir à questão, usemos o que conhecemos desde, pelo menos, 1867. É uma fórmula curtíssima: Cc = 0.

Não deixemos Marx sem esta passagem ardente depois da fria fórmula:

"O capital é trabalho morto, que, como um vampiro, vive apenas da sucção de trabalho vivo, e vive tanto mais quanto mais trabalho vivo suga"(14)

O capital moderno, que precisa de consumidores à medida que precisa de produzir cada vez mais, está altamente interessado em deixar que os produtos do trabalho morto caiam em desuso o mais rapidamente possível, de modo a impor a sua renovação com trabalho vivo, o único tipo do qual "suga" lucros. É por isso que rejubila quando a guerra é declarada e é por isso que está tão bem treinado para a práxis das catástrofes.

A produção de automóveis na América é gigantesca, mas todas - ou quase todas - as famílias têm viatura própria, por isso a procura pode estar esgotada. Então, é melhor que estes carros durem apenas um curto período. De modo a que assim seja, são primeiramente mal construídos, com uma série de peças defeituosas. Se os utilizadores partirem o pescoço mais frequentemente, não faz mal: perde-se um cliente, mas há mais um carro para ser substituído. Depois, apelam à moda com um subsídio estupidificante e grande de propaganda comercial, através do qual todos quererão o modelo mais recente, tal como as mulheres que têm vergonha de vestir um vestido, mesmo se perfeitamente bom, " do ano passado".

Os tolos são enganados e deixa de importar que um Ford construído em 1920 dure mais que um modelo novo de 1951. E, finalmente, os carros velhos não são usados sequer como sucata, são colocados em cemitérios automóveis. Quem se atreverá a levar um, dizendo: deitaste-lo fora como se não tivesse valor, qual será o mal de o arranjar e o reutilizar? Rapidamente apanhará com um pontapé no traseiro e uma pena de encarceramento.

Para explorar o trabalho vivo, o capital deve destruir o trabalho morto que ainda é útil. Com o vício de sugar sangue fresco e jovem, mata cadáveres.

Assim, enquanto a manutenção dos taludes do Pó por dez quilómetros precisa de trabalho humano custando, digamos, um milhão por ano, é mais útil ao capitalismo permitir a sua reconstrução total custando mil milhões. Se assim não fosse, teria de esperar mil anos. Significará isto, então, que o sórdido governo fascista tenha sabotado os taludes do Pó? Claro que não. Significa que ninguém tem protestado por um orçamento anual de um mísero milhão. Não é gasto, mas engolido no financiamento de outros "projetos de larga escala" de "nova construção" com estimativas orçamentais de milhares de milhões. Agora que o demónio inundou os taludes, encontra-se alguém com os melhores motivos do sacrossanto interesse nacional que ativa as firmas de construções e os reconstrói.

Quem é culpado de preferir os projetos à larga escala? Os fascistas e os comunistas oficiais. Ambos resmungam que querem uma política produtivista de emprego total. A criatura preferida de Mussolini, o produtivismo, consiste no estabelecimento de ciclos "hodiernos" de trabalho vivo a partir do qual os grandes interesses financeiros e especulativos fazem milhares de milhão. Modernizemos as máquinas antiquadas dos grandes industrialistas e modernizemos os taludes dos rios, após deixá-los colapsar, tudo à custa do povo. A história, destes últimos anos, da gestão administrativa das obras públicas e da proteção industrial, está cheia destas obras-primas, que vão da provisão de matérias-primas vendidas abaixo de custo, aos trabalhos "empreendidos por um monopólio estatal" na "luta contra o desemprego" na base de "capital constante igual a zero".

Trocado por miúdos, gasta-se tudo em salários, e uma vez que o equipamento da empresa é composto apenas de pás, convence-se Deus que é útil trocar a terra primeiro daqui para ali, e, imediatamente depois, de volta para aqui. Se Deus hesitar, a empresa chama o líder sindical: uma manifestação de trabalhadores de pá ao ombro sob as janelas do ministério e tudo fica bem. A pólvora é descoberta e sobrepõe-se a Marx: as pás, o único capital constante, deram à luz a mais-valia.

HOJE

Sem dúvida, o tamanho do desastre ao longo do Pó foi enorme, e o custo estimado dos danos continua a subir. Admitamos que a área cultivada de Itália perdeu cem mil hectares ou mil quilómetros quadrados, cerca de um tricentésimo ou três por milhar do total. Cem mil habitantes terão de ter abandonado a área, que não é a mais densamente populosa da Itália, ou, arredondando, um quingentésimo ou dois por milhar.

Se a Economia burguesa não fosse tresloucada, poderia ser feita uma banal continha. O património nacional sofreu um rude golpe, embora a zona não tenha sido totalmente destruída. Quando as águas recuarem, o solo agrícola permanecerá no mesmo lugar, na sua maior porção, e a decomposição da vegetação, juntamente com a deposição do aluvião, compensará parcialmente pela fertilidade perdida.

Se o dano for de um terço do capital total, custará um milésimo do capital nacional, mas isto tem uma receita média de cinco por cento ou cinquenta por mil. Se por um ano todos os italianos poupassem cerca de um quinquagésimo do seu consumo, o dano seria compensado.

Contudo, a sociedade burguesa é praticamente o oposto de uma cooperativa, mesmo se os grandes aventureiros do capital nativo escaparem a Vanoni ao demonstrar que a "propriedade parcial" das suas empresas tenha sido distribuída pelos empregados.

Todas as operações produtivistas da economia italiana e internacional são um tanto ou quanto destrutivas como o desastre de Pádua: a água entrou por um buraco e saiu por outro.

Um problema deste calibre é insuperável em termos capitalistas. Se fosse uma questão de produzir as armas para fornecer as cem divisões de Eisenhower num ano, a solução seria encontrada.(15) Estas operações são de ciclo-curto, e o capitalismo rejubila se o pedido das 10.000 armas tenha uma data de entrega em 100 e não 1.000 dias. O "pool" do aço não existe sem razão!(16)

E, contudo, não se pode formar um "pool" de organizações hidrológicas e sismológicas, pelo menos enquanto a magna ciência do período burguês não for verdadeiramente capaz de provocar sucessivas enchentes e terramotos, como bombardeamentos aéreos.

Aqui, é uma questão de uma transmissão geração-a-geração, lenta e incapaz de acelerar, dos resultados do trabalho "morto", que dura séculos, sempre sob a tutela dos vivos, das suas vidas, e do seu menor sacrifício.

Admitamos, por exemplo, que a água no Polesine vai recuar numa questão de meses e que a fuga em Occhiobello é fechada antes da primavera; apenas um ciclo anual de colheitas seria perdido: nenhum "investimento" produtivo o poderia substituir, mas diminui-se a perda.

Se, pelo contrário, se acreditar que todos os taludes do Pó e de todos os outros rios comecem a desfazer-se frequentemente, devido tanto às consequências de uma fraca manutenção durante trinta anos de crise como à desflorestação desastrosa das montanhas, então a panaceia pecará ainda mais pela demora. Nenhum capital será investido pelo bem dos nossos bisnetos!

O nosso pai escreveu em vão que apenas alguns exemplos da floresta virgem se mantêm intactos, crescendo sem a intervenção do trabalho humano. O sistema de silvicultura torna-se assim quase como o trabalho do Homem, apesar do capital mínimo envolvido na operação. Apesar de tudo, árvores que crescem alto, as mais importantes na economia pública, precisam sempre de muito tempo para crescer antes de dar um produto útil. Contudo, a ciência silvicultora mostrou que o melhor ano para cortar madeira não é no final da vida máxima das árvores, mas, se contarmos o crescimento atual como crescimento médio, vemos que é ao fim de 80, 100 ou mesmo 150 anos para um carvalho. Di Vittorio e Pastore(17) atirariam esse livro, se alguma vez o tivessem aberto, pela janela fora.

Como diz a opereta: rubar, rubar, il Capital (l'amor) non sa aspettar... !(18)

Ainda há notícias piores a relatar. Fala-se relativamente pouco do desastre na Sardenha, na Calábria e na Sicília. Aqui, os factos geográficos diferem drasticamente.

O gradiente suave do vale do Pó provocou uma acumulação de água que, de seguida, inundou a argila e os solos impermeáveis por baixo. As mesmas razões no Sul e nas Ilhas, de chuvas torrenciais e desflorestação das montanhas, juntamente com o acentuado declive até ao mar, provocaram a destruição. Os riachos das montanhas levaram a areia e a gravilha da rocha firme e destruíram campos e casas, numa questão de horas, sem, contudo, causar muitas vítimas.

Não só o saque das magníficas florestas de Aspromonte e da Sila pelos libertadores aliados é irreparável, como também aqui a renovação da terra inundada pelas águas é praticamente impossível e não apenas custosa para os "investidores" e para os "ajudantes" (com mais interesses próprios que os primeiros, se isso for possível).

Não só os estreitos pedaços de solo cultivável, mas também os estratos finos e não-rochosos que o suportavam foram levados pelos deslizamentos de terras, solos que foram levados montanha acima inúmeras vezes ao longo das décadas pelos assustadoramente pobres agricultores. Todas as plantações, todas as terras, a base de uma agricultura deveras lucrativa, e a indústria em algumas povoações, caíram com o solo e as laranjeiras e limoeiros que foram levados para o mar.

Voltar a plantar uma vinha destruída demora cerca de dois anos, mas as plantações de citrinos apenas dão uma colheita completa após sete a dez anos e uma grande quantidade de capital é necessária para as estabelecer e operar. Naturalmente, as boas escrituras não nos dão o custo da operação impensável de voltar a levar o solo caído centenas de metros montanhas acima, e, de qualquer modo, a água voltaria a levá-lo até ao mar antes que as plantas pudessem fixar as suas raízes.

Nem mesmo as casas poderão ser reconstruídas nos seus sítios antigos por razões técnicas, não económicas. Cinco ou seis aldeias desgraçadas na costa Jónica da província de Reggio Calábria não serão reconstruídas nas suas colinas, mas sim junto ao mar.

Na Idade Média, depois do desaparecimento dos últimos vestígios das magníficas cidades costeiras da Magna Grécia, o zénite da agricultura e arte do mundo antigo, ter sido provocado pela devastação, a população agrícola pobre refugiou-se de incursões de piratas sarracenos ao viver em aldeias construídas nos cumes de montanhas, menos acessíveis e, por isso, mais fáceis de defender.

As estradas e os caminhos de ferro foram construídos ao longo da linha costeira com a chegada do governo "de Piemonte", e, onde a malária não o proibia, onde as montanhas estavam próximas do mar, todas as aldeias tinham junto à sua estação de ferro a sua porção "marinha"(19). Tornou-se conveniente expedir madeira.

Amanhã, apenas as "marinhas" permanecerão, e lá estão eles arduamente reconstruindo algumas casinhas. Então, e se o camponês voltar a subir a ladeira onde nada pode criar raízes e onde os desnudados estratos de rocha friável não permitem que as casas sejam reconstruídas? E os trabalhadores junto ao mar, o que farão? Hoje já não podem emigrar como os calabreses das terras baixas nefastas e os lucanos dos "barreais malditos" tornados estéreis pelo corte ganancioso dos bosques e florestas que antes cobriam as montanhas e as árvores que se espalhavam pelos pastos das terras altas.

Certamente que nestas condições nenhum capital ou governo intervirá, desgraça total da hipocrisia obscena com a qual a solidariedade nacional e internacional foi elogiada.

Isto não é delineado por um facto sentimental ou moral, mas sim pela contradição entre a dinâmica convulsiva do supercapitalismo contemporâneo e todas as exigências sãs da organização da vida dos grupos humanos na Terra, permitindo-lhes a transmissão de boas condições de vida pelo tempo.

Bertrand Russell, o vencedor do Prémio Nobel, que pontifica suavemente na imprensa mundial, acusa o Homem de pilhar exageradamente os recursos naturais, tanto que o seu esgotamento possa já ser calculado. Reconhecendo o facto da conduta de políticas absurdas e tresloucadas pelas grandes potências, Russell denuncia as aberrações da economia individualista e conta a piada dos irlandeses: porque é que devia preocupar-me com os meus descendentes, se eles ainda não fizeram nada por mim?

Russell junta aos números das aberrações, em conjunto com as do fatalismo místico, as do comunismo, que afirma: se acabarmos com o capitalismo, o problema está resolvido. Depois de uma tal mostra de ciências sociais, físicas e biológicas, o filósofo não consegue ver que é um facto igualmente físico que o enorme nível de perda de recursos naturais e sociais está essencialmente ligado a um tipo específico de produção, e pensa que tudo pode ser resolvido como se por um sermão moral, um apelo Fabiano à sabedoria humana de todas as classes.

O corolário é lamentável: tornar-se-á a ciência impotente quando tem de resolver problemas da alma?

Aqueles que alcançam o progresso humano sério, dando decisivos passos em frente na organização da vida humana, não são, em verdade, os

conquistadores e dominadores que continuam a atrever-se a ostentar a sua ganância pelo poder, mas os enxames de benfeitores insípidos e proponentes do PRE(20), e fraternidade entre os povos, como tantos pacifistas de pomba branca em mão.

Na passagem da cosmologia à economia, Russell critica as ilusões liberais da panaceia da competição livre e admite que "Marx previu que a competição livre entre os capitalistas levaria ao monopólio, e a prova da sua afirmação foi o estabelecimento de um sistema virtualmente monopolístico para o petróleo por Rockefeller."

A partir da explosão solar, que um dia nos irá transformar instantaneamente em gás (o que poderia dar razão ao irlandês), Russell termina com sentimentalismo lamechas: "As nações que desejam prosperidade terão de colaborar, mais que competir."

Não é verdade, sr. vencedor do Prémio Nobel, que escreveu tratados sobre a lógica e o método científico, que Marx calculou o desenvolvimento do monopólio cinquenta anos antes do facto?

Se a frase anterior fosse um bom exemplo da dialética, o oposto da competição seria o monopólio, não a colaboração.

Tomai notas: Marx também previu a destruição da economia capitalista, do monopólio de classe, não com a colaboração, com a qual estais devoto a elogiar todos os Truman e Estaline de boa vontade, mas com a guerra de classes.

Tal como Rockefeller veio, "que venha o cota do bigode!"(21) Mas não o do Kremlin. Esse, apesar de Marx, está prestes a barbear-se à americana.

Battaglia Comunista, 1951


Notas de rodapé:

(1) "A primeira nação capitalista foi Itália." (Engels, "Prefácio à Edição Italiana do Manifesto Comunista"). (retornar ao texto)

(2) O autor refere-se às cheias de 1951 em Polesine, região histórica do vale do Pó, em Itália. Dois terços da região foram inundados e cerca de 150 mil pessoas tiveram de evacuar a área. (N. do T.) (retornar ao texto)

(3) Luigi Einaudi, Presidente de Itália entre 1948 e 1955. (retornar ao texto)

(4) Potemkin construiu aldeias pré-fabricadas para mostrar à Czarina Catarina II na sua viagem ao interior da Rússia. Deram-lhe a impressão de prosperidade rural, mas após cada visita eram rapidamente desmanteladas para voltarem a ser montadas noutros pontos da viagem. (retornar ao texto)

(5) No início de 1951, Vanoni introduziu o imposto sobre o rendimento singular (IRS) em Itália. Este imposto entrou no Livro Guinness dos Recordes como o "imposto menos pago do mundo". Nos nossos dias, a evasão ao fisco continua a assolar a Itália. (cf. 11- ed., 1963, p.10). (retornar ao texto)

(6) Maramaldo matou o moribundo General Francesco Ferrucci em 1530, no último ato da independência de Florença antes da restauração dos Médicis. Em italiano, hoje, perdura a frase "tu uccidi un uomo morto", com o significado equivalente a "bater no ceguinho" em português, embora com uma ideia mais trágica, bem como o adjetivo "maramaldesco", semelhante a "vilanesco" em significado. (N. do T.) (retornar ao texto)

(7) Capital, Vol. I, Cap. X. Adaptado da tradução para o português do Brasil, de Rubens Enderle, Boitempo Editorial (São Paulo-SP), 2011. (retornar ao texto)

(8) A palavra usada no original italiano é "troviero". Isto significa literalmente "encontrador" (sic), e no seu contexto, significa, na realidade, algo como "alguém que acha erradamente que descobriu algo importante", como algum apologista burguês que pensa ter negado Marx. (N. do T.) (retornar ao texto)

(9) Capital, Vol. I, Cap. X. (retornar ao texto)

(10) "Doutrina do Corpo Possuído pelo Demônio", Battaglia Comunista, n° 21, 1951. Única versão em português (do Brasil) disponível online em medium.com. (retornar ao texto)

(11) Monselice: localização das pedreiras mais próximas do Pó; Carrara: o principal centro de produção de mármore em Itália. (retornar ao texto)

(12) Capital, Vol. I, Cap. VIII. (retornar ao texto)

(13) ibid. De notar que o tradutor de Capital para o português prefere a tradução "mais-valor" para "Mehrwert", sendo o termo "mais-valia" mais usado, geralmente, noutras traduções. (N. do T.) (retornar ao texto)

(14) Capital, Vol. I, Cap. X., §1. (retornar ao texto)

(15) Referência ao início da Guerra na Coreia. (retornar ao texto)

(16) O «"pool" do aço» é uma referência à criação da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, predecessora institucional da CEE e da UE, no contexto do estímulo da indústria siderúrgica da R.F.A. no pós-guerra, como permitindo às potências da OTAN ter fácil e barato acesso a recursos estratégicos. (N. do T.) (retornar ao texto)

(17) Os líderes dos sindicatos "comunista" e "católico" do período, respetivamente. (retornar ao texto)

(18) Em português, numa tradição menos fiel ao original: "para roubar, para roubar, o capital (o amor) não sabe esperar...!" (N. do T.) (retornar ao texto)

(19) A expressão entre aspas tenta transmitir uma aproximação do significado original em italiano ("marina"), habilmente traduzido para o inglês ("on-sea"). Com efeito, ainda hoje se encontram, numa rápida incursão pelos mapas do sul de Itália, bonitos pares de vilarejos com nomes como "Paesa" e "Paesa Marina". Em Portugal não se regista uma abundância de fenómenos semelhantes. Mais frequentemente, como em Cacela, Algarve, se usa o topónimo "Vila Nova". (N. do T.) (retornar ao texto)

(20) O Programa de Recuperação Europeia, isto é, o "Plano Marshall". (retornar ao texto)

(21) Do original "baffone", "homem com grande bigode" (dito no sul de Itália), significando neste contexto José Estaline. (N. do T.) (retornar ao texto)

Inclusão: 07/10/2020