Paris: Maio de 68

Maurice Brinton


O “SOVIET” DA SORBONNE


capa

NO SÁBADO, 21 DE MAIO, POUCO ANTES DA MEIA-NOITE, o primeiro-ministro da França, Pompidou, passou por cima do ministro do Interior e do ministro da Educação e emitiu ordens ao “independente” Poder Judiciário. Ele declarou que a polícia seria retirada do Quartier Latin, que as faculdades reabririam na segunda- feira, dia 13 de maio, e que a lei “reconsideraria” o caso dos estudantes presos na semana anterior. Este foi o maior recuo político de sua carreira. Para os estudantes, e para muitos outros, era a prova viva da eficiência da ação direta. As concessões tinham sido conquistadas através da luta, e não teriam sido conseguidas por nenhum outro meio.

Segunda-feira de manhã cedo, os pelotões da CRS que guardavam a entrada da Sorbonne foram discretamente retirados. Os estudantes entraram, primeiro em pequenos grupos, depois em centenas, depois em milhares. Lá pelo meio-dia a ocupação foi concluída. Cada tricolore(1) foi prontamente trazida abaixo, todos os auditórios foram ocupados. Bandeiras vermelhas foram hasteadas nos mastros oficiais e em mastros improvisados em várias janelas, algumas tremulando sobre as ruas, outras tremulando sobre o grande pátio interno. Dezenas de metros acima do burburinho de estudantes, enormes bandeiras vermelhas e pretas se agitavam lado a lado na cúpula da capela.

O que aconteceu nos dias que se seguiram deixará uma marca permanente no sistema educacional francês, na estrutura da sociedade francesa e — mais importante de tudo — na cabeça das pessoas que viveram e fizeram história durante os agitados primeiros quinze dias. A Sorbonne foi repentinamente transformada de um antiquado recinto onde o capitalismo francês selecionava e moldava seus hierarcas, seus tecnocratas e sua burocracia administrativa, em um vulcão revolucionário em plena erupção, cuja lava se espalharia longe e amplamente, cauterizando a estrutura social da França moderna.

A ocupação física da Sorbonne foi seguida por uma explosão intelectual de violência sem precedentes. Tudo, literalmente tudo, foi repentinamente e simultaneamente posto em discussão, em questionamento, em objeção. Não haviam tabus. É fácil criticar a caótica irrupção de pensamentos, ideias e propostas desencadeadas sob tais circunstâncias. Pessoas eram criticadas e rotuladas de “revolucionários profissionais” ou pequeno-burgueses, de acordo com a preferência. Mas agindo dessa forma, esses críticos apenas revelavam o quanto anda estavam aprisionados na ideologia de uma época anterior, assim como deixavam claro a sua incapacidade de transcendê-la. Eles não conseguiram reconhecer a tremenda importância do novo, de tudo que não pudesse ser apreendido dentro das suas próprias e preestabelecidas categorias intelectuais. Este tipo de fenômeno já foi testemunhado diversas vezes, já que sem dúvida ele aparece em todas as grandes insurreições da história.

De dia e de noite todos os auditórios ficavam lotados. Eram locas de contínuos e apaixonados debates sobre todos os temas que inquietassem o pensamento humano. Nenhum palestrante formal jamais havia conseguido um público tão grande, jamais havia sido ouvido com tão profunda atenção — ou se teria perdido tão pouco tempo com ele se falasse baboseira.

Uma certa ordem rapidamente apareceu. No segundo dia um mural foi posto próximo da entrada da frente, divulgando os temas de discussão e o local onde seriam discutidos. Eu anotei os seguintes temas: “Organização da luta”, “Direitos políticos e sindicais na Universidade”, “Crise da Universidade ou crise social?”, “Dossiê da repressão policial”, “Autogestão”, “Não-seleção” (ou como abrir as portas da Universidade para todos), “Métodos de ensino”, “Exames” etc. Outros auditórios foram reservados para os comitês de aliança estudantes-trabalhadores, que logo assumiriam grande importância. Em outros locais haviam ainda discussões sobre “repressão sexual”, “questão colonial” e “ideologia e mistificação”. Qualquer grupo de pessoas que desejasse discutir qualquer cosa que fosse, teria apenas de entrar em um dos auditórios ou numa sala. Felizmente haviam dezenas de auditórios.

A primeira impressão era de que se tratava de uma gigantesca panela de pressão — com pensamentos e aspirações retidos — que fora repentinamente aberta, fazendo com que explodisse e seu conteúdo fosse assim lançado do domínio dos sonhos para o domínio do real e do possível. Através da transformação do meio ambiente, as próprias pessoas se transformaram. Aqueles que nunca se atreveram a dizer nada, de repente sentiam como se seus pensamentos fossem os mas importantes do mundo — e então os expressavam. O tímido tornou-se comunicativo. O desamparado e isolado de repente descobriu que a força coletiva se encontra em suas mãos. O tradicionalmente apático de repente se engajou intensamente. Uma tremenda onda de comunidade e coesão apanhou aqueles que anteriormente se achavam impotentes e isolados como se fossem marionetes dominadas por instituições que eles não poderiam compreender nem controlar. As pessoas simplesmente apareceram e começaram a conversar umas com as outras sem o menor sinal de constrangimento. Este estado de euforia permaneceu durante a primeira quinzena em que eu estive lá. Uma frase rabiscada no muro resuma isso perfeitamente: “Déjà dix jours de bonheur”.(2)

No jardim da Sorbonne, a política (vista com maus olhos durante toda uma geração) foi à desforra. Barracas com literatura brotaram ao longo de todo o perímetro interno, enormes retratos apareceram nos muros internos: Marx, Lenin, Trotsky, Mao, Castro, Guevara, uma ressurreição revolucionária quebrando as fronteiras do tempo e do espaço. Inclusive Stalin apareceu temporariamente (sobre uma barraca maoísta), até ter sido sugerido com discernimento aos companheiros que ele não se sentia realmente em casa com tal companhia.

Nas barracas todo tipo de literatura florescia repentinamente diante do sol de verão: panfletos e brochuras anarquistas, stalinistas, maoístas, trotskistas (de três tipos), do PSU e dos independentes. O jardim da Sorbonne tornou-se uma gigantesca feira, na qual os produtos mais exóticos não precisavam mais ficar embaixo do balcão, podendo agora serem expostos à vista.

Edições antigas de revistas, amareladas pelos anos, foram desenterradas, e muitas vezes saíam tão bem quanto os materiais mais recentes. Em todos os lugares haviam grupos de dez ou vinte pessoas discutindo acaloradamente, conversando sobre barricadas, sobre a CRS, sobre suas experiências, mas também sobre a Comuna de 1871, sobre 1905 e 1917, sobre a esquerda italiana em 1921 e sobre a França em 1936. Uma fusão estava ocorrendo entre a consciência das minorias revolucionárias e a consciência da enorme quantidade de novos grupos de pessoas arrastados dia após dia pelo redemoinho da controvérsia política. Os estudantes estavam aprendendo em dias o que outros levaram uma vida inteira para aprender. Muitos estudantes secundaristas vieram observar o que estava acontecendo. Eles também foram sugados pelo turbilhão. Lembro-me de um garoto de catorze anos explicando para um incrédulo homem de sessenta anos o porquê dos estudantes deverem ter o direito de depor os professores.

Não foi só isso que aconteceu. Um grande piano apareceu de uma hora pra outra no grande jardim central e permaneceu lá por vários das. As pessoas chegavam e o tocavam, cercadas por outras que as incentivavam com entusiasmo. Enquanto as pessoas falavam nos auditórios sobre o neocapitalismo e suas técnicas de manipulação, Chopin, compassos de jazz, trechos de La Carmagnole e composições atonais se espalhavam no ar. De noite houve um recital de percussão, e depois alguns clarinetistas apareceram. Essas “diversões” podem ter enfurecido alguns dos mais decididos revolucionários, mas elas eram uma parte tão significativa da completa transformação da Sorbonne quanto as doutrinas revolucionárias que eram apregoadas nos auditórios e salas.

Uma exposição de imensas fotografias da “noite das barricadas” (em lindos semitons) apareceu de manhã, montada em painéis. Ninguém sabia quem a havia montado. Todos concordavam que ela sucintamente resumia o horror e o glamour, a raiva e a esperança daquela fatídica noite. Até mesmo as portas da capela que davam para o jardim foram logo cobertas com frases: “Abram essa porta — Finis, les tabernacles”, “A religião é a última mistificação”. Ou mais radicalmente: “Queremos um lugar para mijar, não para rezar”.

A maioria dos muros externos da Sorbonne também foram logo enchidos de cartazes — cartazes anunciando as primeiras greves de ocupação, cartazes descrevendo os índices salariais de setores inteiros de trabalhadores de Paris, cartazes anunciando as próximas manifestações, cartazes descrevendo as passeatas de solidariedade em Pequim, cartazes denunciando a repressão policial e o uso de gás CS (o tipo mais comum de gás lacrimogêneo) contra os manifestantes. Haviam dezenas de cartazes advertindo os estudantes contra as táticas oportunistas do Partido Comunista, contando como o Partido havia atacado o movimento e como ele procurava agora assumir a sua liderança. Haviam cartazes políticos aos montes. Mas também haviam outros, conclamando um novo ethos. Um grande cartaz, por exemplo, próximo da entrada principal, ousadamente afirmava “Defence d’interdire”(3). Além de outros, similares nesse sentido: “Somente a verdade é revolucionária”, “Nossa revolução é maior do que nós mesmos”, “Recusamos o papel que nos foi designado, não seremos treinados como cães policiais”. As preocupações das pessoas variavam mas convergiam. Os cartazes refletiam a filosofia profundamente libertária que prevalecia: “A humanidade só será livre quando o último capitalista for enforcado com as tripas do último burocrata”, “A cultura está se desintegrando, Crie!”, “Eu faço dos meus desejos a realidade por eu acreditar na realidade dos meus desejos”, ou simplesmente, “Criatividade, espontaneidade, vida”.

Lá fora, na rua, centenas de transeuntes paravam para ler esses papéis de parede improvisados. Alguns olhavam de boca aberta.

Outros riam com escárnio. Outros concordavam balançando a cabeça. Alguns discutiam. Alguns, criando coragem, entravam realmente no recinto antes sacrossanto da Sorbonne, sendo encorajados pelos inúmeros cartazes que afirmavam ele estar agora aberto a todos. Jovens trabalhadores que “não seriam vistos neste lugar” um mês atrás, agora entravam em grupos. No início não entravam muito à vontade, mas depois como se fossem donos do lugar, o que na verdade eram, é claro.

Conforme os dias passaram, outro tipo de invasão ocorreu: a invasão do céptico e do descrente, ou — mais benevolentemente — daqueles que “vieram apenas para ver”. Essa invasão gradualmente ganhou força. Em certos momentos ela ameaçou paralisar o trabalho que estava sendo feito, parte do qual teve de ser transferido para a Faculdade de Letras, no Censier, também ocupada pelos estudantes. Contudo, fez-se necessário que as portas ficassem abertas 24 horas por dia. E essa mensagem com certeza se espalhou. Delegações de outras universidades foram as primeiras a vir, depois as de colégios, mas tarde as de fábricas e escritórios, com o intuito de verem, questionarem, discutirem, estudarem.

No entanto, o sinal mais revelador do novo e inebriante clima era visto nas paredes dos corredores da Sorbonne. Em torno dos auditórios principais há um labirinto de tais corredores: escuros, empoeirados, depressivos, e até então despercebidos corredores que levam de lugar nenhum a nenhum lugar. De repente estes corredores voltaram a ter vida através de uma chuva de brilhantes e sábios murais — muitos dos quais de inspiração situacionista. Centenas de pessoas paravam para ler pérolas como: “Não consuma Marx. Viva-o”, “O futuro só conterá o que pusermos nele hoje”, “Quando perguntados, responderemos com perguntas”, “Professores, vocês fazem nos sentirmos velhos”, “Não é possível integrar uma sociedade em desintegração”, “Devemos continuar sendo os desadaptados”, “Trabalhadores do mundo inteiro, divirtam-se”, “Aqueles que fazem uma meia-revolução apenas cavam sua própria sepultura (Saint-Just)”(4), “Por favor, deixe o PC (Partido Comunista) tão limpo ao sair quanto você gostaria de encontrar ao entrar”, “As lágrimas da burguesia são o néctar dos deuses”, “Longa vida à comunicação, abaixo a telecomunicação”, “O masoquismo hoje se veste como reformismo”, “Não reclamaremos nada. Não pediremos nada. Tomaremos. Ocuparemos”, “A única profanação ao Túmulo do Soldado Desconhecido foi a profanação que o colocou lá”, “Não, não seremos pegos pelo Grande Partido da Classe Trabalhadora”. E uma grande frase, bem exposta:

“Desde 1936 eu tenho lutado por aumentos salariais. Meu pai, antes de mim, também lutou por aumentos salariais. Agora eu tenho uma TV, uma geladeira, um Volkswagen. Porém, apesar de tudo, minha vida continua sendo uma vida de cachorro. Não discuta com os patrões. Elimine-os”.

Da após dia o pátio e os corredores permanecem abarrotados, num fluxo bidirecional para todas as partes imagináveis do enorme prédio. Pode parecer o caos, mas é o caos da colmeia ou de um formigueiro. Uma nova estrutura está gradualmente sendo construída. Uma cantina foi transformada em um grande salão. As pessoas pagam o que podem pagar por um copo de suco de laranja, menthe, ou grenadine — e por pãezinhos de presunto ou salsicha. Eu averiguei se os custos eram cobertos e me disseram que a receita e os custos estavam sendo mais ou menos iguais. Em outra parte do prédio uma creche para crianças foi organizada, em outro lugar um posto de primeiros socorros, em outro um dormitório. Regularmente são organizados roteiros para varreduras. As salas são distribuídas para o Comitê de Ocupação, para o Comitê de Imprensa, para o Comitê de Propaganda, para os comitês de aliança estudantes/trabalhadores, para os comitês que tratam de estudantes estrangeiros, para os comitês de ação dos secundaristas, para o comitê que trata da distribuição do espaço físico, e para as inúmeras comissões que se encarregam de projetos tais como a produção de um dossiê sobre as atrocidades policiais, o estudo das implicações da autonomia, do sistema de avaliação etc. Qualquer um procurando com o que se ocupar pode prontamente encontrar algo para fazer.

A composição dos comitês era muito variável. Muitas vezes mudava de um dia para o outro, na medida que os comitês tornavam-se independentes. Para aqueles que pressionavam exigindo soluções instantâneas para os problemas, era respondido: “Paciência, companheiro. Nos dê uma chance de construir uma alternativa. A burguesia controlou esta universidade por quase dois séculos. Ela não resolveu nada. Nós estamos construindo da estaca zero. Precisamos de um mês ou dois...”

Defrontado com essa tremenda explosão, que não havia sido prevista e nem era capaz de ser controlada, o Partido Comunista tentou desesperadamente salvar o que podia de sua abalada reputação. Entre os dias 3 e 13 de maio, todas as edições de l'Humanité traziam parágrafos atacando os estudantes ou fazendo repugnantes insinuações sobre eles. Agora a linha repentinamente mudou.

O Partido enviou dezenas de seus melhores agitadores à Sorbonne para “esclarecer” o caso. O caso era simples. O Partido “apoiava os estudantes” — mesmo se houvessem alguns “elementos suspeitos” na liderança. Ele “sempre havia apoiado” e sempre apoiaria.

Cenas impressionantes se seguiram. Cada “agitador” stalinista foi imediatamente cercado por um grande grupo de jovens bem informados, que denunciavam o papel contrarrevolucionário do Partido. Um mural foi elaborado pelos companheiros do Voix Ouvrière no qual foi colocado, dia após dia, cada afirmação que havia aparecido no l’Humanité ou em algum panfleto do Partido, atacando os estudantes. Os “agitadores” nem conseguiam falar direito. Eles foram massacrados (não-violentamente). “A prova está lá, companheiro. Os companheiros do Partido gostariam de se aproximar e ler exatamente o que o Partido disse menos de uma semana atrás? Talvez o l’Humanité queira conceder aos estudantes um espaço para responder algumas acusações feitas contra eles?” Outros estudantes começaram a lembrar o papel do Partido durante a guerra da Argélia, durante a greve dos mineiros de 1958, durante os anos de “tripartismo” (1945­1947). Apesar de tentarem se esquivar, os “agitadores” não puderam escapar dessa “lição imediata”. Era interessante notar que o Partido não pôde confiar esta operação de “salvamento” aos seus membros mais jovens, estudantes. Somente os “companheiros antigos” poderiam se aventurar nesse ninho de cobra. Tanto assim que as pessoas iriam dizer que qualquer um na Sorbonne acima dos quarenta anos era um informante da polícia, ou um capataz stalinista.

Os períodos mas dramáticos da ocupação foram sem dúvida as Assembles Générales(5), ou sessões plenárias, realizadas todas as noites no maior anfiteatro. Este era o soviete, o local de origem supremo de todas as decisões, a fonte e a origem da democracia direta. No anfiteatro cabiam 5 mil pessoas sentadas em seu enorme semicírculo e em três séries de galerias sobre ele. Visto que frequentemente nem todos os assentos eram ocupados, a multidão podia circular entre eles e ir até o palco. Uma bandeira preta e uma vermelha pairavam sobre uma singela mesa de madeira na qual ficava sentado quem presidia a sessão. Tendo visto reuniões de cinquenta pessoas virarem um caos, foi uma experiência surpreendente ver uma reunião com 5 mil pessoas conseguir tratar de assuntos práticos. Os acontecimentos reais determinavam os temas e asseguravam que a maioria das discussões tivessem os pés no chão.

Uma vez que os tópicos eram decididos, todos tinham direito de falar. A maioria das falas eram feitas do palco, mas algumas eram feitas do meio do público ou das galerias. O equipamento de som normalmente funcionava, mas às vezes não. Alguns oradores prendiam imediatamente a atenção sem precisarem falar alto. Outros provocavam uma reação hostil por causa de sua voz estridente, de sua falta de sinceridade, ou de sua mas ou menos óbvia tentativa de manipular a Assembleia. Qualquer um que enchesse linguiça, ficasse falando do passado, viesse recitar uma obra, ou falasse com palavras de ordem, logo era posto para correr pelo público, que era, politicamente, o mais sofisticado que eu já havia visto. Todos que apresentavam ideias práticas eram ouvidos atenciosamente. E da mesma forma aqueles que procuravam interpretar o movimento através de suas experiências pessoais, ou que procuravam mostrar o caminho a seguir.

À maioria dos oradores foram concedidos três minutos. Alguns foram deixados falar durante muito mas tempo devido à aclamação popular. A própria multidão exercia um controle tremendo sobre a plataforma política e os oradores. Uma relação de mão dupla emergiu muito rapidamente. A maturidade política da Assembleia foi mostrada de forma ainda mais impressionante: ela rapidamente percebeu que vaias e aplausos durante as falas atrapalhavam o rápido andamento das decisões da Assembleia. Boas falas eram muito aplaudidas — no final.

Discursos demagógicos ou desnecessários eram imediatamente postos de lado. As conscientes minorias revolucionárias desempenharam um importante papel catalítico nessas deliberações, mas nunca procuravam — pelo menos as mais inteligentes — impor suas vontades à massa. Embora nos seus primeiros estágios a Assembleia tivesse uma boa quantidade de exibicionistas, provocadores e loucos, o preço da democracia direta não era tão pesado quanto se poderia esperar.

Ocorreram momentos de empolgação e momentos de esvaziamento. Na noite de 13 de maio, após uma grande passeata pelas ruas de Paris, Daniel Cohn-Bendit se defrontou com J.M. Catala, secretário-geral da União dos Estudantes Comunistas, na frente do auditório lotado. A cena permanece gravada na minha mente.

“Explique-nos”, disse Cohn-Bendit, “por que o Partido Comunista e a CGT instruíram seus militantes para que dispersassem na Denfert Rochereau?, por que os impediram que se juntassem a nós no debate no Champs de Mars?”

“É muito simples”, disse Catala desdenhosamente. “O que havia sido acordado entre a CGT, a CFDT, a UNEF e as outras instituições que organizavam a manifestação estipulava que a dispersão seria feita em determinado lugar. O Comitê Organizador não havia sancionado nenhuma atividade posterior...”

“Uma resposta reveladora”, replicou Cohn-Bendit. “As organizações não tinham previsto que seriamos l milhão nas ruas. Mas a vida é maior que as organizações. Com l milhão de pessoas quase tudo é possível. Você diz que o Comitê não havia sancionado nada a mais. No dia da Revolução, companheiro, você sem dúvida nos dirá para não nos misturarmos a ela há que ela não foi sancionada pelo comitê organizador apropriado...”

Esta réplica trouxe a casa abaixo. Os únicos que não se levantaram para ovacionar foram as poucas dezenas de stalinistas, e também, de forma reveladora, aqueles trotskistas que tacitamente aceitavam as concepções stalinistas – e cuja única querela com o Partido Comunista vem do fato de terem sido excluídos da “organização”.

Naquela mesma noite a Assembleia tomou três importantes decisões. De agora em diante, a Sorbonne se constituirá numa espécie de quartel- general revolucionário (“Smolny”(6), alguém gritou). Aqueles que participaram na Sorbonne não devotaram seus esforços para uma mera reorganização do sistema educacional, mas a uma total subversão da sociedade burguesa. De agora em diante, a universidade estaria aberta a todos aqueles que concordavam com esses objetivos. Quando essas propostas foram aceitas, o público se pôs de pé e cantou a mais alta e apaixonada Internationale que eu ouvi até hoje. Ela deve ter sido ouvida até o Élysée Palace, no outro lado do rio Sena...


Notas de rodapé:

(1) Alusão à bandeira francesa, que possui três cores: branco, azul e vermelho. (N.T.) (retornar ao texto)

(2) “Já são dez dias de felicidade”. (N.T.) (retornar ao texto)

(3) É proibido proibir. (N.T.) (retornar ao texto)

(4) Louis Antoine Saint-Just (1767-1794) foi um jacobino atuante e de grande influência na revolução francesa. Autor de O Espírito da Revolução e da Constituição na França (São Paulo: UNESP, 1998). (N.T.) (retornar ao texto)

(5) Em francês no original. Assembleias Gerais. (N.T.) (retornar ao texto)

(6) Prédio onde se instalava o Comitê Central do partido bolchevique em 1917. (N.T.) (retornar ao texto)

Inclusão: 20/06/2020