O Imperialismo e a Economia Mundial

N. Bukharin

Terceira Parte: O Imperialismo, Reprodução Ampliada da Concorrência Capitalista


Capítulo XI — Os Métodos de Luta para a Concorrência e o Poder


capa

1 — Métodos de luta entre empresas individuais; 2— Métodos de luta entre trustes; 3 — Métodos de luta entre os trustes capitalistas nacionais; 4 — Importância econômica do poder; 5 — Militarismo; 6 — Modificação da estrutura do poder.

O desenvolvimento da concorrência, que expusemos no capítulo precedente, faz com que o desaparecimento contínuo da concorrência entre unidades econômicas menos importantes agrave a que se efetua entre as grandes unidades. Singulares modificações nos métodos de luta acompanham esse processo.

A guerra que as economias individuais realizam entre elas desenvolve-se, ordinariamente, através da depreciação dos preços: as pequenas empresas vendem o mais barato possível, restringindo até o extremo limite seus níveis de vida; os capitalistas esforçam-se em reduzir os custos de produção, melhorando a técnica e diminuindo os salários, etc. Quando a luta dos trustes substitui a das empresas individuais, os métodos da luta (na medida que ela é mantida no nível do mercado mundial) sofrem certa modificações; os baixos preços de mercado interno cedem lugar a preços altos, que vão facilitar a luta no mercado externo, luta essa que é exercida através da baixa dos preços externos em detrimento dos preços internos. A importância do poder governamental aumenta, lança-se mão dos direitos alfandegários e das tarifas de transportes; a imensa força dos trustes, que estão em oposição tanto no mercado externo como no interno, permite-lhes, ainda, em certas circunstâncias, o emprego de outros métodos. Assim, se o truste constitui uma empresa combinada, se possui, por exemplo, estradas de ferro, navios comerciais, energia elétrica, e assim, por diante, está apto, constituindo um Estado dentro do Estado, para complicar seriamente a atuação de seus concorrentes, regulamentando à sua vontade as tarifas de transporte por mar e por terra, os preços da energia elétrica, etc. Mais eficazmente ainda, pode fechar a seus concorrentes todo acesso às fontes de matérias primas e aos mercados e cortar-lhes o crédito. Tais métodos são usados, principalmente, onde existem cartéis combinados. “Em princípio”, as matérias primas produzidas pelas empresas filiadas aos cartéis não são vendidas aos produtores livres; os membros dos cartéis comprometem-se a nada comprar destes últimos; e, o que é pior, sob a pressão do cartel e de seus agentes, forçam-se os clientes comuns dos cartéis a observar esse compromisso (para o que se distribui entre eles prêmios, concessões, descontos, etc.). Mencionemos, enfim, a depreciação voluntária dos preços e a venda com prejuízo às quais se recorre para liquidar um concorrente.

Aí, “não se trata de ganhar alguma coisa para a empresa, no momento, mas de vencer a concorrência, sendo a luta, a partir de então, conduzida sem levar em conta os custos de produção. Não são estes últimos que determinam o limite extremo dos preços, mas o poder dos capitais e a capacidade de crédito do cartel, isto é, o tempo que seus filiados são capazes de sustentar uma luta da qual eles não tiram, enquanto esperam, qualquer lucro”(1).

No mercado interno, apela-se para este método a fim de eliminar definitivamente um concorrente; no mercado externo, ele só faz agravar o “dumping”. Há, porém, procedimentos de luta ainda mais originais. Referimo-nos às lutas dos trustes norte-americanos, em que os acontecimentos ultrapassam os limites do permitido em um “Estado policiado”: recrutamento de quadrilhas de capangas que atacam e destroem estradas de ferro, sabotam e arruínam as canalizações de petróleo; incêndios e assassinatos; suborno em profusão dos funcionários e, notadamente, de corporações inteiras de juízes; espionagem junto aos concorrentes, etc., tudo isso vê-se em grande escala na história da formação das formidáveis empresas da América do Norte(2).

Quando a concorrência atinge seu paroxismo, ou seja, a concorrência entre trustes capitalistas nacionais, a utilização do poder governamental e das possibilidades com ele relacionadas exerce papel preponderante. É certo que o aparelho estatal sempre foi arma nas mãos das classes dominantes do país, seu “defensor” e “protetor” no mercado mundial, mas nunca teve importância tão considerável quanto na época do capital financeiro e da política imperialista. A formação dos trustes capitalistas nacionais transfere a concorrência quase totalmente para o domínio internacional. A partir desse momento, é evidente que os órgãos dessa luta “externa”, e, em primeiro lugar, o poder governamental, devem fortificar-se ao extremo. O sentido capitalista das altas tarifas aduaneiras, que aumentam a capacidade combativa do truste capitalista nacional no mercado mundial, acentua-se progressivamente; as formas mais diversas de “proteção à indústria nacional” multiplicam-se, são garantidas as rendas de toda espécie de empreendimentos arriscados mas de “utilidade pública”, é paralisada de todas as maneiras a atividade dos “estrangeiros” (ver, por exemplo a política adotada na Bolsa pelo governo francês, descrita no segundo capítulo). Surge a possibilidade de um tratado de comércio: logo o poder governamental das partes contratantes intervém e de suas relações de força (em última análise, da força militar) dependem os resultados do tratado; fala-se da conclusão de empréstimos ou de concessões de crédito a um país qualquer — e o governo, tendo atrás de si a força militar, impõe a mais alta taxa de juros possível, assegura contratos de venda obrigatórios, exige concessões, combate os concorrentes estrangeiros. Se a luta começa pela exploração capitalista de um país formalmente não ocupado, é ainda da força militar do Estado que depende a efetivação dessa ocupação. Em tempo de “paz”, o aparelho militar do Estado esconde-se sob pavilhões de onde não cessa de agir; em tempos de guerra intervém diretamente. Quanto mais tensa é a situação no âmbito mundial — e nossa época caracteriza-se precisamente por uma extrema tensão da concorrência entre grupos capitalistas financeiros nacionais — tanto mais se faz apelo ao punho de ferro do Estado. Os últimos vestígios da antiga ideologia do “laissez faire, laissez passer’’ desaparecem, e a época pertence ao “novo mercantilismo”: o imperialismo.

A tendência imperialista une os fenômenos da economia ao alto poder político. Tudo ê organizado em grande escala. A livre circulação das forças econômicas que, ainda recentemente, seduzia os pensadores e os homens de negócios, está prestes a desaparecer. Em toda parte, vê-se o fluxo e refluxo de imigrantes, e o Estado vela por esse processo. Novas forças econômicas e sociais requerem uma forte proteção no interior e fora do país: para esse fim, o Estado cria novos órgãos e uma infinidade de instituições e funcionários. Por todos os lados, a atividade governamental enriquece-se de novas funções. Sua influência se faz sentir cada vez mais intensamente sobre sua política exterior. O governo não se nega mais a velar diretamente pelos interesses de seu povo (está claro que, ao ler os economistas burgueses, deve-se tomar a palavra “povo” em sentido relativo). Em qualquer parte do globo, onde esses interesses se manifestem, a economia nacional e a política se interpenetram. A ruptura com a época do velho liberalismo, com a teoria do “laissez faire”, com a doutrina da harmonia dos interesses acentua-se: é-se forçado a crer que o mundo torna-se mais cruel e mais guerreiro. O universo volve-se mais unificado: todos os homens entram em contacto e se influenciam reciprocamente e, ao mesmo tempo, se atropelam e se abatem(3).

Se a importância de poder governamental em geral aumenta, o desenvolvimento de sua organização militar, o exército e a marinha de guerra, sobressaem- se particularmente. A luta entre os trustes capitalistas nacionais é decidida, antes de tudo, pelo confronto de suas forças militares, constituindo o poder militar de um país a última instância para que apelam os grupos capitalistas. O orçamento nacional, que aumenta em proporções fenomenais, paga tributo cada vez mais pesado aos gastos consagrados à “defesa do país”, para empregar o eufemismo usado para designar as despesas destinadas à militarização.

O quadro no final deste capítulo ilustra o crescimento prodigioso das despesas militares e a parte que elas representam nos orçamentos nacionais.

A atual situação dos orçamentos bélicos traduz-se nas seguintes cifras: Estados Unidos (1914): 173.522.804 dólares para o exército e 139.682.186 dólares para a marinha de guerra, o que dá um total de 313.204.990 dólares; França (1913): 983.244.376 francos para o exército e 467.176.109 francos para a marinha de guerra, ou seja, o total de 1.450.400.485 francos (em 1914, 1.717.202.233); Rússia (1913, unicamente para as despesas ordinárias): 581.099.921 rublos para o exército e 244.856.500 para a marinha de guerra, ou seja, 825.946.421 rublos totais; Grã- Bretanha (1913-1914): 28.220.000 libras para o exército e 48.809.300 para a marinha, dando 77.029.300 libras esterlinas totais; Alemanha (1913, despesas ordinárias e extraordinárias): 97.845.960 libras esterlinas, etc.(4).

Atravessamos uma fase de desenvolvimento febril dos armamentos terrestres, navais e aéreos. Cada aperfeiçoamento da técnica militar requer a reorganização do mecanismo militar; toda inovação, todo acréscimo do poder militar de um Estado incita os demais a seguir seu exemplo. Observa-se aí o mesmo fenômeno que vimos em matéria de política aduaneira; quando um Estado aumenta seus impostos, esse aumento repercute nos demais através de uma alta geral por ele provocada. Evidentemente, este é ainda um caso particular do princípio da concorrência, de vez que o poder militar do truste capitalista nacional é a sua arma na luta econômica. O desenvolvimento dos armamentos, que cria uma consequente procura no setor da metalurgia, aumenta intensamente a importância da grande indústria e, em particular, dos “reis do canhão” à Krupp. Mas seria certamente raciocinar de maneira superficial se afirmássemos serem as guerras provocadas pela indústria de canhões(5). Esta nada mais é que simples setor econômico, “um mal” artificialmente provocado que desencadeia as “batalhas dos povos”. De que expusemos, conclui-se que o armamento é um atributo necessário do poder governamental, que preenche uma função bem definida na luta entre os trustes capitalistas nacionais.

A sociedade capitalista é inconcebível sem armamentos, como o é sem guerras. E, assim como não são os preços baixos que engendram a concorrência, mas, ao contrário, a concorrência que engendra a depreciação dos preços, a existência do exército não é a causa essencial, a força motora das guerras (embora a guerra seja impossível sem exército), mas, ao contrário, é a fatalidade dos conflitos econômicos que condiciona a existência dos exércitos. Eis porque, nos nossos dias, quando os conflitos econômicos adquirem o mais alto grau de tensão, assistimos à corrida armamentista. A dominação do capital financeiro supõe o imperialismo e o militarismo. Neste sentido, o militarismo é um fenômeno histórico tão típico quanto o capital financeiro.

Na medida que cresce em importância, o poder governamental modifica sua estrutura interna, tornando-se mais do que nunca o “comitê executivo das classes dominantes”. Embora tenha sempre representado os interesses das “camadas superiores”(6), ele equilibrava (na medida que essas camadas constituíam uma massa mais ou menos amorfa), a classe (ou classes) desorganizada, cujos interesses incarnava. Hoje, as coisas modificaram-se radicalmente; a partir de então, o aparelho governamental incarna não somente os interesses das classes dominantes, em geral, mas ainda, sua vontade coletivamente determinada, estabelecendo equilíbrio não somente entre membros esparsos das classes dominantes, mas entre suas organizações. Assim, o governo torna-se de facto um “comitê” eleito por representantes das organizações patronais, e o diretor supremo do truste capitalista nacional.

Reside aí uma das principais causas das crises do parlamentarismo. Outrora, o parlamento era a arena onde desenrolava-se a luta entre as facções dos grupos dominantes (burguesia, proprietários de terras, várias camadas da burguesia, etc.). O capital financeiro fundiu a quase totalidade de seus matizes em uma “massa reacionária única”, agrupada em uma multidão de organizações centralizadas. Por outro lado, as tendências “democráticas” e liberais são substituídas por tendências monarquistas claramente explícitas no imperialismo moderno, que tem sede da ditadura do Estado. De uma certa forma, o parlamento, hoje, não é mais que um cenário decorativo, onde são levadas a efeito as decisões tomadas previamente nas organizações patronais e onde a vontade coletiva do conjunto da burguesia organizada busca somente sua consagração formal. Um “poder forte”, apoiado sobre uma frota e um exército gigantescos, constitui o ideal do burguês moderno. Não se trata de “sobrevivências capitalistas” como alguns supõem, não estamos diante de vestígios do passado, de testemunhos fortuitos do velho mundo. É uma formação social e política inteiramente nova, engendrada pelo desenvolvimento do capital financeiro. Se a velha, política caporalista do “ferro e do sangue” serviu de modelo para a forma, só o fez na medida que o motor que aciona a vida econômica moderna impulsiona o capital pela via de uma política agressiva e da militarização do conjunto da “vida social”. A melhor prova disso não está somente na política exterior de países democráticos como a Inglaterra, França, Bélgica (ver a política colonial da Bélgica), Estados Unidos, mas, ainda, nas mudanças sobrevindas em sua política interna (militarização e desenvolvimento do espírito monarquista na França, ataques repetidos contra a liberdade das organizações operárias em todos esses países, etc. ) .

Sendo ele próprio o principal acionista do truste capitalista nacional, o Estado moderno constitui também sua mais alta instância organizada em escala universal. Donde seu poderio formidável, quase monstruoso.

Despesas com o Exército e a Armada
Estados Anos Despesas
militares
por
habitantes
Despesas
nacionais
totais por
habitantes
Despesas
militares
em %
em relação às
outras despesas
Anos Despesas
militares
por
habitantes
Despesas
nacionais
totais por
habitantes
Despesas
militares
em %
em relação às
outras despesas
Inglaterra 1875 16,10 41,67 38,6 1907-08 26,42 54,83 48,6
França 1875 15,23 52,71 29,0 1908 24,81 67,04 37,0
Áustria-Hungria 1873 5,92 22,05 26,8 1908 8,49 38,01 22,8
Itália 1874 6,02 31,44 19,1 1907-08 9,53 33,24 28,7
Rússia 1877 5,24 15,14 34,6 1908 7,42 20,81 35,6
Japão 1875 0,60 3,48 17,2 1908 4,53 18,08 25,1
Alemanha 1881-82 9,43 33,07 28,5 1908 18,44 65,22 28,3
Estados Unidos 1875 10,02 29,89 33,5 1907-08 16,68 29,32 56,9
O. SCHWARZ: Finanzen der Gegenwart, in Handwôrterbuch d. Staatsivissenschaften. Observemos que as cifras relativas à Alemanha e à Áustria são falsas, em virtude de não incluírem as despesas extraordinárias e provisórias; as que dizem respeito aos Estados Unidos não compreendem as “despesas civis” de certos Estados, de maneira que o aumento indicado (de 33,5 para 56,9) é inferior à realidade.

Notas de rodapé:

(1) V. Fritz KESTNER: Die Organisationszwang. Eine Untersuchung über die Kämpfe zwischen Kartellen und Aussenseitern, Berlim, 1912. A propósito de Kestner, ver também o artigo de Hilferding: Organisationsmacht und Staatsgewalt (Neue Zeit, 32, 2). (retornar ao texto)

(2) Ver LAFARGUE: Os trustes norte-americanos; Nazarewsky, op. cit. Ver também Gustavus MAYERS: History of the great american fortunes. O relatório do Comitê legislativo de seguros para 1906 diz: “Está provado que as grandes companhias de seguros esforçaram-se por submeter a legislação deste Estado (Nova Iorque) e de outros... Três companhias dividiram o país entre si... para se evitarem maiores dificuldades, cada uma tratando somente de sua zona”. Mayers ajunta: “É formidável: a corrupção, como a indústria, torna-se um sistema e se moderniza!” O mesmo relatório apresenta as seguintes cifras: em 1904, a Mutual gastou em despesas de corrupção 264.254.000 dólares; a Equitable, 172.698.000 e a New-York, 204.019.000 (t. III, pág. 270). (retornar ao texto)

(3) Prof. ISSAIEV: op. cit., págs. 261-262. (retornar ao texto)

(4) Colhemos estes dados no The Statesman Year-Book, 1915. (retornar ao texto)

(5) Ver, por exemplo, o livro de Pavlovitch citado acima. Kautsky oferece uma variante ainda mais banal dessa teoria, quando afirma (v. Nationalstaat, Imperialischerstaat und Staatenbund, assim como vários artigos na Neue Zeit da época da guerra) que a guerra foi provocada... pela mobilização. O que corresponde, virtualmente, a pôr as coisas de pernas para o ar. (retornar ao texto)

(6) Certos sociólogos e economistas burgueses reconhecem isso, notadamente Oppenheimer, que vê no Estado a organização das classes detentoras dos meios de produção (a terra* em primeiro lugar) para a exploração das massas populares. Sua definição aproxima-se, até certo ponto, da teoria marxista, embora alterando-a sensivelmente (importância primordial da terra, etc.). É interessante notar que, em suas notas polêmicas contra Oppenheimer, uma autoridade, como o economista e sociólogo alemão Adolf Wagner, admite em larga medida, a definição de Oppenheimer, relacionando-a entretanto com o Estado “histórico”. Ver seu artigo: Staat in nationalõkonomischer Hinsicst (Handw. d. Staatsw., t. VII, 3.a ed., pág. 371). (retornar ao texto)

Inclusão 19/12/2015