A Teoria do Materialismo Histórico
Manual Popular de Sociologia Marxista

N. Bukharin


Capítulo V - O Equilíbrio Entre a Sociedade e a Natureza


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§ 30. A natureza como meio para a sociedade

Se estudarmos a sociedade como sistema, o meio no qual ela evolui será representado pela "natureza exterior", isto é, primeiramente pelo nosso planeta com todos os seus caracteres naturais. Não é possível imaginar uma sociedade humana fora desse meio que lhe fornece a alimentação. Esta é a sua significação vital. Entretanto, seria ingenuidade considerar a natureza do ponto de vista da finalidade; seria ingenuidade dizer que o homem é o rei da natureza e que tudo na natureza é feito para satisfazer as necessidades humanas. Realmente, a Natureza combate às vezes o homem de maneira tão violenta que pouca coisa resta para o "rei da natureza".

É somente depois de uma luta longa e obstinada contra a natureza que o homem começa a domá-la.

Entretanto, o homem, como espécie animal, e a sociedade humana, são produtos da natureza, uma parte deste todo infinito. O homem jamais poderá sair da natureza, e mesmo quando ele a submete, ele não faz mais do que explorar as leis da natureza para os seus próprios fins. É portanto compreensível que a natureza deva exercer uma grande influência sobre o desenvolvimento da sociedade humana. Antes de começar a estudar as relações que se estabelecem entre o homem e a natureza, assim como as formas nas quais se exprime a influência da natureza sobre a sociedade humana, é preciso primeiro que examinemos os lados pelos quais a natureza toca o homem mais de perto. É bastante olhar em torno de nós para verificar a dependência da sociedade relativamente à natureza:

"A terra (é preciso incluir neste termo também a água do ponto de vista econômico) que fornece ao homem a sua alimentação, os seus meios brutos de subsistência, existe sem nenhum concurso de sua parte, como objeto universal do trabalho humano. Todos os objetos que por meio do trabalho o homem tira de suas relações diretas com a terra, são objetos de trabalho dados pela natureza: Assim, por exemplo, o peixe que é pescado, a arvore que é abatida na mata virgem, o mineral que é extraído da terra. Guarda-comida primitivo do homem, a terra é também o primeiro arsenal de seus meios de trabalho. Ela lhe fornece, por exemplo, a pedra que ele emprega na sua funda, ou para desgastar, cortar, etc..." (Karl Marx, Capital, tomo I).

A natureza aparece diretamente como um objeto de trabalho em certos ramos da indústria (industria mineira, caça, agricultura em parte, etc...). Em outros termos, é ela que fornece a matéria prima necessária para a fabricação e para uma série de meios de existência. Além disto, como já dissemos, o homem se serve das leis da natureza para lutar contra ela.

"Ele utiliza as propriedades mecânicas, físicas e químicas dos corpos para obrigá-los a agir segundo os seus fins como forças que devem influir sobre outros corpos".

O homem explora a força do vapor, da eletricidade, etc... a gravidade etc... etc... Se assim é, é compreensível que o estado da natureza em determinado lugar e em dado momento não pode deixar de influir sobre a sociedade humana. O clima (grau de umidade, regime dos ventos, temperatura, etc...), o relevo do solo (as montanhas e os vales, a distribuição das águas, a natureza dos rios, a existência dos metais, dos minerais, etc..), o litoral (se o país é marítimo), o regime das águas, a existência de certas espécies de animais e de plantas, etc..., eis os principais fatores que influem sobre a sociedade humana. É impossível pescar baleias sobre a terra; é difícil desenvolver convenientemente a agricultura nas montanhas; não se pode explorar as florestas em um deserto; não é possível nos países frios viver durante o inverno debaixo de uma tenda; é inútil aquecer as casas nos países quentes; nos lugares onde o solo não fornece metais, não haverá ferraduras nas patas dos cavalos.

Examinando mais detalhadamente a influência da natureza, chegamos às seguintes observações:

Repartição das terras firmes e dos mares: — O homem, em geral, é um animal terrestre. O mar age de duas maneiras: Em primeiro lugar ele divide. Esta é a razão por que o mar muitas vezes serviu de fronteira natural; por outro lado, em certo grau de evolução, o mar torna-se, ao contrário, a melhor via de comunicação. O litoral influi principalmente pela sua maior ou menor adaptabilidade à formação de portos. A maioria dos portos modernos foram mesmo criados em conformidade com as comodidades naturais do litoral, com poucas exceções (por exemplo, Cherburgo). A superfície da terra, agindo pela sua fauna e pela sua flora, exerce igualmente uma influência direta, se bem que diferente, segundo o grau de desenvolvimento da civilização, principalmente sobre as vias de comunicação (atalhos, caminhos, vias férreas, túneis, etc.).

As pedras e os minerais: — As construções são elevadas de acordo com a natureza das pedras de que se dispõe: nas montanhas, encontra-se sobretudo a pedra dura (granito, porfiro, basalto, xisto, etc...); nos vales encontra-se sobretudo uma pedra mole. Quanto aos minerais e aos metais, a sua importância aumentou sobretudo nestes últimos tempos (o ferro, o carvão). Certos minerais foram a causa principal das migrações e da colonização (o chumbo atraiu os fenícios para o Norte, o ouro para a África do sul e a Índia oriental; o ouro e a prata atraíram os espanhóis para a America, etc...). É segundo a localização das minas de carvão e de ferro que se repartem os diferentes centros de industria pesada. O caráter do solo determina, antes de tudo, a flora e o clima.

As águas continentais: — Em primeiro lugar a água tem importância como água potável (ver o seu "preço" no deserto); em seguida, ela desempenha um grande papel na agricultura (conforme a sua quantidade, é preciso drenar ou irrigar o solo); sabe-se a grande importância que tem para a agricultura as inundações provocadas pelos grandes rios (Nilo, Ganges etc), e a influência que este fato exerceu sobre a civilização egípcia e hindu. Por outro lado, a água tem uma grande importância como força motriz (os moinhos de água são uma das mais antigas invenções; foi em torno deles que se desenvolveram as cidades; nos tempos modernos a água é usada para a eletrificação como "hulha branca", sobretudo na América, Alemanha, Suíça, Noruega, Suécia e Itália Enfim, é preciso ainda sublinhar o grande papel que representa o sistema de águas como sistema de comunicação (certos sábios dão a isto importância particular).

O clima age sobre os homens principalmente pela influência que exerce, sobre a produção. No domínio da agricultura, é do clima que depende a escolha das culturas; o clima determina também a duração da estação agrícola (assim, por exemplo, na Rússia, a estação de trabalhos agrícolas é muito curta, enquanto que em certos países, mais próximos dos trópicos, ela dura quase o ano inteiro); por isto mesmo, o clima influi também sobre a indústria, liberando a mão de obra, etc. Ele desempenha igualmente um papel muito importante nos transportes (caminhos para os trenós, no inverno, portos fechados ou não para o gelo, rios, etc.).

O clima frio exigem trabalho mais intenso para a alimentação, o vestuário, as habitações, o aquecimento artificial, etc. Passa-se mais tempo dentro de casa no Norte e ao ar livre nos trópicos.

A flora age de diversas maneiras: nos estágios inferiores da civilização, é do caráter das florestas que dependem os caminhos (matas impenetráveis); é a madeira que determina caráter das construções, do aquecimento, etc; a caça depende da qualidade das plantas da mata ou da estepe; dela dependem também a agricultura e a criação.

A fauna representava para os povos primitivos uma força inimiga poderosa; em geral, ela constituía para eles uma fonte alimentação e, portanto, um objeto de caça e de pesca; mais tarde, ela determinou a domesticação de animais e exerceu assim uma certa influência sobre a produção e os transportes (animais de tiro).

O mar, como meio de transporte, desempenhou e desempenha ainda um papel importante. O transporte dos viajantes e das mercadorias é mais barato através do mar; além disto, apresenta um largo campo de exploração para um grande número de indústrias (a pesca, a caça às focas, às baleias, etc.) (Ver A. Hettener: Die geographischen Bedingungen der menschlicken Wirtschaft, (As condições geográficas da economia humana), em Grundriss der Socialokonomik, Esquema da economia social, de Gottel-Herkner. Tubingen, 1914).

A influência das condições climatéricas é caracterizada pelo fato seguinte: baseando-nos sobre o estudo da carta das temperaturas anuais, médias (das linhas isotérmicas)(1) "Pode-se observar que as aglomerações humanas mais importantes estão agrupadas entre duas isotérmicas extremas a de + 16.° e a de + 4.°. A isotérmica de + 10° define com exatidão suficiente o eixo central desta zona climatérica e da civilização; é ali que se acham agrupadas as cidades mais ricas e mais povoadas do mundo: Chicago, New York, Filadélfia, Londres, Viena, Odessa, Pequim. Sobre a isotérmica + 16.° se encontram São Luiz, (dos Estados Unidos), Lisboa, Roma, Constantinopla, Osaka, Kyoto, Tókio). Sobre a isotérmica + 4.°; (Quebec, Cristiania, Stokolmo, Leningrad, Moscou). Ao sul da isotérmica + 16.°, a titulo de exceção, acham-se disseminadas algumas cidades cuja população passa de 100.000 homens (México, Nova Orleans, Cairo, Alexandria, Teerã, Calcutá, Bombaim, Madras, Cantão). O limite setentrional ou a isotérmica + 4.°, tem um caráter mais absoluto: Ao norte desta linha não há mais cidades importantes, excetuando Winnipeg (Canadá) e alguns centros administrativos da Sibéria (L. I. Metchnikov: A civilização e os grandes rios históricos, teoria geográfica do desenvolvimento das sociedades modernas).(2)

§ 31. Relações entre a sociedade e a natureza. Processos de produção e de reprodução

Sabemos já que as causas de mudança de um determinado sistema devem ser procuradas nas relações entre este sistema e o seu meio. Sabemos também que mesmo os traços principais da evolução (o progresso, a estagnação ou a destruição dum sistema) dependem particularmente das relações entre um dado sistema e o seu meio. É portanto nas variações destas relações que se deve procurar a causa que provoca a variação do próprio sistema Mas onde devemos procurar as relações entre a sociedade e a natureza, se estas variam continuamente?

Já vimos que estas relações variáveis provêm do domínio do trabalho social. Com efeito, de que modo se exprime o processo de adaptação da sociedade humana à natureza? Ou em outros termos, em que consiste o estado do equilíbrio instável entre a sociedade e a natureza?

A sociedade humana, enquanto vive, é obrigada a procurar sua energia material no mundo exterior; ela não pode existir de outra maneira. Ela se adapta tanto melhor à natureza quanto mais energia dela retira: é somente quando a quantidade desta energia aumenta que estamos em presença do desenvolvimento de uma sociedade. Admitamos, por exemplo, que num belo dia todas as empresas deixem de funcionar, as fabricas, usinas, minas, vias férreas, o trabalho dos campos e nas florestas, sobre a terra e sobre os mares. A sociedade não poderia durar nem oito dias, porque, mesmo para viver das reservas, é necessário transportar, descarregar, distribuir.

"Toda criança sabe que qualquer nação pereceria de fome, se ela parasse o seu trabalho, já não digo por um ano, mas por algumas semanas apenas. (K. Marx: Carta a Kugelmann).

Os homens trabalham a terra, recolhem o milho, a cevada, o trigo, criam os animais, cultivam o algodão, linho, cânhamo, cortam o mato, tiram a pedra das pedreiras e satisfazem assim as suas necessidades de alimentação, vestuário e habitação. Eles extraem o carvão e o minério de ferro das profundezas da terra, constroem máquinas de aço, com auxilio das quais penetram na natureza em diferentes direções, transformando a terra inteira numa oficina gigantesca, onde os homens malham com martelos, inclinam-se sobre as bancas, cavam a terra, seguem a marcha regular de máquinas monstruosas, cavam túneis nas montanhas, cortam os oceanos com seus navios, transportam a correspondência através dos ares, envolvem a terra com uma rede de trilhos, colocam cabos no fundo dos oceanos, e em toda parte, a começar pelas cidades tentaculares, tumultuosas, para acabar nos cantos perdidos de nossa terra, correm atarefados como formigas, trabalhando para o seu "pão quotidiano", adaptam-se à natureza, e adaptam esta ultima a si mesmos. Uma parte da natureza — o meio, — o que aqui chamamos a natureza exterior, — opõe-se a uma outra parte, a sociedade humana. A forma de contacto entre estas duas partes de um mesmo todo é constituída pelo processo do trabalho humano. O trabalho é antes de tudo um processo que tem lugar entre o homem e a natureza, processo no qual o homem determina por sua própria atividade, regra e controle, a troca das matérias entre se mesmo e a natureza. Ele se opõe como força natural à essência da natureza. (O Capital tomo I). O contacto direto entre a sociedade e a natureza, isto é, a transferência de energia da natureza à sociedade, é um processo material.

"Para assimilar nova substancia em forma adaptada à sua própria vida, o homem põe em movimento as forças naturais que pertencem ao seu corpo: as mãos e os pés, a cabeça e os dedos." (ibid.).

Este processo material de "troca das matérias" entre a sociedade e a natureza constitui precisamente a relação essencial entre o meio e o sistema, entre as "condições exteriores" e a sociedade humana.

Para que a sociedade possa continuar a existir, é necessário que o processo da produção se renove constantemente. Suponhamos que, em certo momento, tenha sido produzida uma determinada quantidade de trigo, calçados, caminhos, etc., e que durante o mesmo período tudo isto foi consumido. Está claro que a produção teve que recomeçar um novo ciclo de movimentos. Ela deve renovar-se constantemente, um elo deve seguir-se a outro. O processo da produção, considerado no ponto de vista da repetição destes elos (ou como se diz, dos ciclos de produção), chama-se processo de reprodução. Para que este tenha lugar, é necessário que todas essas condições materiais se realizem. Por exemplo, para produzir tecidos, é preciso ter teares; para fazer os teares, é preciso aço, para o aço é preciso carvão e minério; para transportar estes últimos, são necessárias as vias férreas e, por conseguinte, trilhos, locomotivas, etc., assim como estradas, navios, etc.; são necessárias também as usinas, entrepostos, etc.. Em uma palavra, é necessário toda uma série de produtos materiais de naturezas diferentes. Não é difícil verificar que estes produtos materiais desaparecem no processo da produção, uns mais rapidamente, outros menos: a alimentação dos tecelões é consumida, os teares gastam-se, os edifícios envelhecem e exigem reparações, as locomotivas se estragam, os dormentes e trilhos se deterioram. Assim, a substituição contínua, graças à produção dos mais variados objetos, deteriorados ou desaparecidos, é a condição necessária para a reprodução. A cada momento, a sociedade humana, para continuar o processo da reprodução, necessita de uma certa quantidade de alimentos, de edifícios, de produtos da industria, de transportes, etc... Todos estes objetos precisam ser produzidos para que a sociedade mantenha o seu nível de vida, a começar pelo trigo e pela cevada, o carvão e o aço, para acabar pelos microscópios ou o giz empregado nas escolas, pelas encadernações de livros ou pelo papel de jornal, pois todas estas coisas fazem parte da vida material da sociedade, são partes materiais integrantes do processo geral de reprodução.

Assim, "a troca de materiais" entre a sociedade e a natureza deve ser considerada como um processo material. É com efeito um processo material, porque diz respeito a objetos materiais (objetos de trabalho, meios de trabalho e produtos que deles resultam — tudo isto são objetos materiais); por outro lado, o próprio processo de trabalho constitui uma perda de energia fisiológica (dos nervos, músculos, etc...) que aparece materialmente na ação física dos homens que trabalham.

"Se estudarmos todo este processo do ponto de vista de seu resultado, isto é, do produto, então os meios e objetos do trabalho constituirão os meios de produção e o próprio trabalho será um trabalho produtivo" (Capital — tomo 1).

O caráter material do trabalho produtivo é também reconhecido, pudicamente pelos sábios burgueses, quando se dedicam "a uma especialidade". Assim, o professor Herkner (H. Herkner: Arbeit und Arbeitsteilung — Trabalho e Divisão do Trabalho) escreve:

"Se quisermos explicar a essência do trabalho, é preciso tomar em consideração duas espécies de fenômenos: Em primeiro lugar, o trabalho físico se manifesta por determinados movimentos exteriores. Assim, a mão esquerda de um ferreiro segura com tenazes um pedaço de ferro aquecido ao rubro e o coloca sobre a bigorna, enquanto que a mão direita dá uma forma ao objeto do seu trabalho, a golpes de martelo. Pode-se determinar neste caso o número, o aspecto e a grandeza dos resultados do trabalho... Pode-se descrever todo o processo do trabalho", etc...

Herkner chama a isto trabalho "no sentido objetivo". Por outro lado, pode-se estudar o mesmo processo do ponto de vista dos pensamentos e dos sentimentos que animam o trabalhador. Isto será o estudo "do trabalho no sentido subjetivo". Como procuramos as relações entre a sociedade e a natureza, e como estas relações se exprimem justamente pelo trabalho objetivo (material), podemos por enquanto deixar de lado a parte "subjetiva" do processo. Assim, precisamos estudar a produção material de todos os elementos materiais (componentes, objetos) necessários para o processo da reprodução.

Entretanto, o fato dos instrumentos de medida, por exemplo, serem objetos materiais e a sua fabricação ser do domínio da produção material, necessária para o processo da reprodução, não resulta daí absolutamente, como o afirma Kautsky (Neue Zeit — 15.° ano, volume 1.°, pag. 233) e Cunow (Produktions-weise und Produktionsverhaltnisse nach Marxscher Auffassung O modo de produção e as relações de produção segundo Marx, Neue Zeit, 39.° ano, vol. pag. 408), que as matemáticas e os estudos matemáticos dependem também da produção, porque são necessárias para a produção. E entretanto, se todos os homens emudecessem subitamente, e se não houvesse outras maneiras de comunicar a palavra desaparecida, a produção cessaria também. Assim, a linguagem é tão necessária para a reprodução como muitas outras coisas em qualquer sociedade humana. Mas seria ridículo considerar a linguagem como um elemento de produção. Não temos que nos preocupar aqui tão pouco de uma outra questão, que parece "árdua", saber o que é que apareceu em primeiro lugar: a galinha ou o ovo (a sociedade ou a produção)? Esta pergunta não tem cabimento. É impossível imaginar a sociedade sem produção, como também não se pode falar em produção quando não existe a sociedade. O que importa é isto: será verdade, sim ou não, que a transformação de sistemas seja determinada pela transformação das relações entre elas e o seu meio? Se assim é a questão será a seguinte: onde devemos procurar esta transformação quando se trata da sociedade? Resposta: no trabalho material. Formulada assim a questão, a maior parte das refutações "profundas" ao materialismo histórico perde a sua significação, e torna-se claro que é aqui que é preciso procurar "a causa das causas" da evolução social. Voltaremos a este ponto mais adiante.

"As trocas materiais" entre o homem e a natureza consistem, como já vimos, em tirar energia material da natureza exterior, e infundi-la na sociedade; a perda de energia humana (a produção) provém do fato de retirar-se energia da natureza, energia que deve ser fornecida à sociedade (distribuição dos produtos entre os membros da sociedade) e assimilada por ela (consumo); esta assimilação é a base de uma perda ulterior; é desta maneira que gira a roda da reprodução. O processo da reprodução, tomado no seu conjunto, contêm igualmente diversos elementos que constituem um todo, uma unidade, cuja base continua a ser entretanto o processo da produção. Com efeito, é fácil de compreender que a sociedade humana toca de mais perto e de maneira mais direta à natureza exterior, no processo da produção: há um atrito com a natureza justamente por este lado: esta é a razão porque, no processo da reprodução, o lado produtivo determina tanto a distribuição quanto o consumo.

O processo da produção social é a adaptação da sociedade humana à natureza exterior. Mas trata-se de um processo ativo. Quando uma espécie animal qualquer se adapta a natureza, ela se submete, na realidade, à influência do meio. Quando se trata da sociedade humana, ela se adapta ao meio, adaptando-o a si mesma. Ela está submetida à ação da natureza enquanto objeto, mas, ao mesmo tempo, ela própria transforma a natureza em objetos para o seu uso. Assim, por exemplo, quando a coloração de certas espécies de insetos ou pássaros começa a se assemelhar à cor do ambiente no qual vivem estas espécies, isto não é resultado de esforços feitos por estes organismos, nem da ação destas espécies sobre a natureza exterior. Este resultado foi obtido aqui ao preço da perda de uma quantidade imensa de indivíduos durante milênios e graças à sobrevivência de certos indivíduos mais aptos e que se cruzaram constantemente. Os fatos se passam diferentemente na sociedade humana. Ela luta contra a natureza, ela abre sulcos na terra, abre caminhos através das matas impenetráveis, ela domina as forças da natureza, fazendo-as servir para seus próprios fins; ela muda o próprio aspecto da terra. Não é uma adaptação passiva, mas ativa. É nisto sobretudo que a sociedade humana se distingue das outras sociedades animais.

Os fisiocratas (economistas franceses do século XVIII) já o compreenderam perfeitamente. Assim, Nicolas Baudeau (Primeira Introdução à Filosofia Econômica ou Analise dos Estados Policiados, 1767. Coleção dos economistas e dos reformadores sociais da França, publicada por Dubois, Paris, p. 2) diz:

"Todos os animais trabalham diariamente na procura do gozo dos produtos espontâneos da natureza, isto é, dos alimentos que a terra por si mesma lhes fornece. Certas espécies mais industriosas juntam e conservam estes esmos produtos para deles gozarem no futuro... Somente o homem, destinado a estudar os segredos da natureza e de sua fecundidade... se propôs suprir a isto procurando, pelo seu trabalho, produtos mais úteis, em número maior do que aquele que a superfície da terra inculta e selvagem lhe poderia fornecer. Esta arte, mãe de tantas outras artes, pela qual nos dispomos, solicitamos, e por assim dizer, forçamos a terra a produzir o que nos convém, isto é, o que é útil ou agradável, é talvez um dos caracteres mais nobres e mais distintos do homem sobre a terra".

"...O homem, escreve o geógrafo L. Metchnikov (o.c), tem em comum com todos os organismos a qualidade preciosa graças à qual ele se adapta ao meio, mas domina todos os outros pela sua aptidão particular e ainda mais preciosa de adaptar o meio às suas necessidades".

Estritamente falando, os germens de uma adaptação ativa (pelo trabalho) existem em certas espécies de animais, por assim dizer, sociáveis (nos castores, que constroem diques, nas formigas que fazem formigueiros gigantescos, utilizam os pulgões e certas plantas, nas abelhas, etc...). Por outro lado, as formas primitivas do trabalho humano eram também semelhantes às do trabalho instintivo dos animais.


§ 32. Forças produtivas. As forças produtivas como índice da relação entre a natureza e a sociedade

Assim, o processo de troca de matérias entre a sociedade e a natureza, é um processo de reprodução social. A sociedade perde neste processo a sua energia humana de trabalho e recebe em troca uma quantidade determinada de energia natural que ela assimila (os "objetos naturais"), como se exprimia Marx. É evidente que o balanço desta operação tem uma importância decisiva para a evolução da sociedade. O que ela recebe é mais do que ela perde? E se é assim, de quanto é maior. Está claro que a grandeza do excesso que ela recebe tem consequências muito importantes.

Vamos supor que uma sociedade qualquer seja obrigada a gastar todo o seu tempo de trabalho para satisfazer as suas necessidades essenciais. Isto significa que à medida que os produtos obtidos são consumidos, uma quantidade igual é fabricada novamente, mas não em número maior. Neste caso, a sociedade não tem o tempo necessário para criar uma quantidade suplementar de produtos, para aumentar as suas necessidades, para criar alguns produtos novos: ela consegue apenas manter o equilíbrio: ela vive para o seu pão de cada dia; ela come aquilo que produz; come-se justamente o necessário para poder trabalhar; todo o tempo é empregado na fabricação de uma quantidade de produtos sempre constante. A sociedade marca passo num nível miserável de vida. Não é possível aumentar as necessidades, vive-se segundo os seus meios, e estes são muito restritos.

Admitamos agora que, devido a certas causas, a mesma quantidade de produtos necessários seja obtida sem que o tempo de trabalho seja empregado inteiramente; que seja suficiente a metade deste tempo (assim, por exemplo, a tribo primitiva se transportou para um lugar onde a caça é duas vezes mais abundante, e a terra duas vezes mais fértil; ou que o método de trabalhar a terra se modificou, ou que foram inventados novos instrumentos de trabalho, etc. etc.).

Desta maneira, a sociedade tem livre a metade do seu antigo tempo de trabalho. Ela pode empregar este tempo ganho em novos ramos de produção: na fabricação de novos instrumentos, na procura de novas matérias primas, etc. e em seguida, em certos gêneros de trabalhos intelectuais. Assim, novas necessidades podem nascer e desenvolver-se e, pela primeira vez, o aparecimento e desenvolvimento da "cultura" torna-se possível. Se este tempo ganho for empregado para aperfeiçoar, ao menos em parte, as antigas formas de trabalho, empregar-se-á no futuro, para satisfazer as antigas necessidades, não mais a metade do tempo de trabalho, mas um pouco menos (novos aperfeiçoamentos aparecem no processo de trabalho); no ciclo seguinte da reprodução, o tempo de trabalho diminuirá ainda mais, etc.; e o tempo livre assim adquirido será empregado cada vez mais de um lado para a fabricação de instrumentos, utensílios, de máquinas sempre novas, e de outro lado, para a criação de novos ramos de produção, destinados a satisfazer a novas necessidades, e enfim, para o desenvolvimento da cultura a começar pelas categorias desta cultura que são mais ou menos ligadas ao processo da produção.

Vamos supor agora que as necessidades que ocupavam anteriormente a totalidade do tempo de trabalho exigem agora não mais a metade, mas o dobro do tempo de antes (quando, por exemplo, a terra está cansada); é evidente que neste caso, se não for possível modificar os métodos de trabalho, ou emigrar, a sociedade sofrerá forçosamente um recuo; uma parte da sociedade perecerá infalivelmente. Admitamos ainda que uma sociedade muito desenvolvida, tendo uma "cultura" avançada, necessidades muito variadas, um grande número de indústrias "artes e ciências" florescentes encontre obstáculos para satisfazer as suas necessidades; que, por exemplo, como consequência de certas causas, ela não seja mais capaz de dirigir o seu aparelho técnico (ele é, por exemplo, o teatro de uma luta de classe incessante, luta na qual nenhuma classe consegue vencer a outra, e o processo de produção, com toda a sua técnica superior, cessa de funcionar); volta-se então aos velhos métodos de trabalho; seria preciso, para satisfazer as antigas necessidades, perder uma quantidade enorme de tempo, o que é impossível. A produção diminui, volta às suas formas antigas; as necessidades se restringem, o nível de vida baixa; a flor "das ciências e das artes" fenece; a vida espiritual se empobrece e a sociedade, se o recuo em questão não é provocado por causas passageiras, caminha para traz, volta "á barbárie".

O que há de notável em todos os casos citados acima? É que o desenvolvimento da sociedade é determinado pelo rendimento ou produtividade do trabalho social. Entende-se por produtividade do trabalho, a relação entre a quantidade de produtos obtidos e a quantidade de trabalho empregada; ou em outros termos, a produtividade do trabalho é a quantidade de produtos obtidos em uma unidade de tempo de trabalho; por exemplo, a quantidade de produtos obtida em um dia ou em uma hora, ou em um ano. Se a quantidade de produtos obtidos em um dia de trabalho aumenta do dobro, diz-se que a produtividade do trabalho dobrou; se ela diminui de metade, diz-se que a produtividade de trabalho diminuiu de 50%.

É fácil de compreender que a produtividade de trabalho social exprime muito exatamente todo o "balanço" das relações entre a sociedade e a natureza. A produtividade do trabalho social constitui precisamente o índice desta relação entre o meio e o sistema, relação que determina a situação do sistema dentro do meio, e cujas transformações indicam as transformações inevitáveis de toda a vida interna da sociedade.

Examinando o problema da produtividade social, é preciso contar também como perda a parte do trabalho humano que foi empregada na confecção de instrumentos de trabalho necessários. Se, por exemplo, um certo produto era feito a mão quase sem auxilio de instrumentos, e se em seguida começou-se a fabricá-lo com a ajuda de máquinas muito complicadas, e se, graças à aplicação destas máquinas, a quantidade de produtos obtida aumentou do dobro, isto não quer dizer que a produtividade do trabalho tenha dobrado para toda a sociedade: não foi contada aqui a despesa de trabalho humano empregado na fabricação das máquinas (ou antes, a parte deste trabalho que se aplica ao produto devido ao gasto destas máquinas.). Assim, o aumento da produção do trabalho será inferior ao dobro.

Detendo-se em detalhes, pode-se refutar a própria concepção da produtividade do trabalho social na sua aplicação a toda sociedade, como o faz, por exemplo, P. P. Maslov no seu "Capitalismo". Pode-se dizer que a concepção da produtividade do trabalho não pode ser aplicada senão a ramos particulares da produção: foi produzida este ano em um certo número de horas de trabalho uma certa quantidade de calçados; no ano seguinte, durante o mesmo tempo, fabricou-se duas vezes mais. Mas, como comparar e adicionar a produtividade do trabalho no domínio da criação de porcos e no da cultura de laranjas? Isto não é o mesmo que comparar a musica, a taxa de desconto e a beterraba açucareira, coisa que Marx ridicularizava tão acerbamente? Pode-se entretanto responder com dois argumentos: Em primeiro lugar, todos os produtos úteis e socialmente assimiláveis são comensuráveis enquanto energias úteis; não exprimimos a cevada, o frumento, a beterraba e a batata em calorias? Se não conseguimos ainda exprimir assim praticamente outros objetos, isto nada prova; basta saber que é possível. Por outro lado, podemos comparar os diversos objetos complexos, por meios indiretos e complicados. Não é possível explicá-lo aqui em detalhe. Citemos somente alguns casos mais simples. Se, por exemplo, fabricou-se em certo número de horas de trabalho, no decurso de um ano, mil pares de calçados, dois mil maços de cigarros e vinte máquinas, e em outro ano, durante o mesmo tempo de trabalho, mil pares de meias, mil novecentos e noventa e nove maços de cigarros, vinte e uma máquinas e cem castiçais, podemos dizer, sem errar, que a produtividade do trabalho aumentou, em geral. Pode-se opor ainda um outro argumento, que consiste em dizer que não se produzem somente objetos de uso corrente, mas também instrumentos de produção. Com efeito, do ponto de vista prático, isto constitui uma grande dificuldade: entretanto, por métodos bastantes complicados, podemos igualmente levar em conta este fato.

Assim, as relações entre a natureza e a sociedade se exprimem pela relação entre a quantidade de energia útil criada de um lado, e a despesa de trabalho social de outro, isto é, pela produtividade do trabalho social. Mas, a despesa de trabalho social é, como já vimos, composta de duas partes: o trabalho incluído nos meios de produção e o trabalho "viva", isto é, a despesa de uma força viva de trabalho. Se nós examinarmos o grau de produtividade do trabalho do ponto de vista das partes materiais que o compõem, encontraremos três grandezas: 1ª a massa dos produtos fabricados; 2ª a massa dos meios de produção; 3ª a massa das forças de trabalho, isto é, dos operários vivos. Todas estas grandezas dependem umas das outras. Com efeito, é evidente que se nós conhecemos a qualidade dos meios de trabalho e dos operários, sabemos também quanto eles poderão produzir em determinado tempo; duas grandezas determinam a terceira: o produto. Estas duas grandezas tomadas em conjunto formam o que nós chamamos as forças produtivas materiais da sociedade. Se soubermos quais os meios de produção de que a sociedade dispõe, qual é a sua quantidade, quantos operários tem essa sociedade, saberemos desde logo qual é a produtividade do trabalho social, qual é o grau de dominação desta sociedade sobre a natureza, em que medida esta sociedade domina a natureza, etc... Em outros termos, temos nos meios de produção e nas forças de trabalho um índice preciso do grau de desenvolvimento social.

Mas podemos estudar a questão de uma maneira um pouco mais profunda. Podemos dizer que os meios de produção determinam por si mesmos as forças de trabalho. Se, por exemplo, uma maquina de composição entrou no sistema de trabalho social, operários especialistas aparecem também. Os elementos que agem no processo do trabalho não constituem, tão pouco, um aglomerado desordenado, mas um sistema onde cada objeto e cada indivíduo se acham, por assim dizer, em seu lugar: uma coisa está adaptada a outra. Por conseguinte, se temos os meios de produção, deduz-se daí que temos também operários apropriados. Em seguida, entre os próprios meios de produção, podem-se distinguir dois grupos importantes: as matérias primas e os instrumentos de trabalho. É fácil observar que são justamente os instrumentos de trabalho que constituem a parte ativa; é com eles que o homem trabalha a matéria prima. Mas, se nos disserem que em determinada sociedade existe um certo instrumento, pode-se daí concluir que existe também a matéria prima correspondente (examinamos um caso de uma marcha normal da reprodução). Deste modo, podemos dizer com absoluta certeza: o índice material preciso das relações entre a sociedade e a natureza é dado pelo sistema dos meios sociais de trabalho, isto é, pela técnica de uma determinada sociedade. Nesta técnica exprimem-se as forças produtivas materiais da sociedade e a produtividade do trabalho social. Assim como a estrutura dos fragmentos de ossos tem grande importância para o estudo da organização das espécies animais desaparecidas, também os fragmentos dos meios de trabalho têm uma grande importância para o estudo das formações sociais e econômicas desaparecidas (isto é, das sociedades de tipos diferentes. N. B.).

"As épocas econômicas não se distinguem pelo que é produzido, mas pelo modo de produção e pelos meios de trabalho empregado". (K. Marx: Capital, tomo I).

Pode-se ainda procurar resolver estes problemas de outra maneira. Sabemos que os animais "se adaptam" à natureza. Em que consiste, antes de tudo, esta adaptação? Na modificação dos diferentes órgãos destes animais: as pernas, os maxilares, as barbatanas, etc..

É uma adaptação passiva, biológica, enquanto que a sociedade humana se adapta ativamente, não biologicamente, mas tecnicamente.

"Os instrumentos de trabalho constituem o objeto ou o conjunto de objetos que um operário coloca entre se e o objeto de seu trabalho e que lhe servem para exercer a sua ação sobre este objeto... Assim, o objeto dado pela própria natureza torna-se um órgão de sua ação, órgão que ajunta aos membros do seu corpo, aumentando assim, mau grado a Bíblia, as dimensões naturais deste ultimo". (Capital, t. 1).

É assim que a sociedade humana cria pela sua técnica um sistema artificial de órgãos que exprimem a adaptação direta e ativa da sociedade, à natureza. (Notemos, entre parênteses, que a adaptação física direta do homem à natureza torna-se assim supérflua: comparado a um gorila, o homem é um ser fraco; na sua luta contra a natureza, ele coloca diante de si não os maxilares, mas um sistema de máquinas). Examinando o problema deste ponto de vista, chegamos à mesma conclusão: o sistema técnico da sociedade é o índice material preciso da relação entrega sociedade e a natureza.

Em outro ponto do Capital, diz Marx:

"Darwin despertou o interesse pela história da tecnologia natural, isto é, pela história do desenvolvimento dos órgãos, das plantas e dos animais, órgãos que desempenham o papel de meios de produção para manter a sua existência. A história do desenvolvimento dos órgãos de produção do homem social, destas bases materiais de toda organização social, não merecerá também atenção A tecnologia revela a relação ativa entre o homem e a natureza este processo direto de produção pelo qual ele mantém a sua existência; ao mesmo tempo, ela revela também o modo pelo qual se formam as relações sociais e as concepções intelectual que daí resultam...

"O emprego e a criação de meios de trabalho, se bem que eles sejam comuns em sua forma embrionária a certas espécies animais, constituem especificamente os traços característico do processo do trabalho humano, e esta é a razão por que Franklin definiu o homem como "a toolmaking animal", isto é, como "um animal que fabrica instrumentos". (Capital t. I).

É curioso verificar que os instrumentos primitivos foram, com efeito, criados "à imagem" dos membros do corpo humano.

"Utilizando os objetos que se acham diretamente debaixo da mão, dá-se aos instrumentos primitivos a forma de membros humanos alongados, reforçados e mais precisos." (Ernst Kapp: Grundlinieneiner Philosophie der Technik — Esboço de uma Filosofia da Técnica — Braunschweig 1877, p. 42). "Assim como o instrumento contundente tem o seu, modelo no punho, também os instrumentos cortantes derivam das unhas e dos dentes. O martelo, com o seu lado cortante se transforma em machado; o indicador levantado tendo uma unha aguda se transforma na sua imagem técnica em verruma; uma fileira de dentes em lima e serra, enquanto que a mão que aperta e os dois maxilares se transformam em pinças e tenazes. O martelo, o machado, a faca, a tesoura, o virabrequim, a serra, a pinça, são instrumentos primitivos". (Ibid. p. 43-44). Um dedo recurvado torna-se um gancho, a concha da mão um recipiente; encontramos certos traços da mão, do punho, dos dedos, etc, na espada, na lança, no leme, na pá, no ancinho, etc..." (Ibid pag. 45).

É fácil ver como se processa a passagem dos instrumentos simples aos mais complexos na vida primitiva:

"Um pau evolui de varias maneira: para cair pesadamente sobre a cabeça do inimigo ele se transforma em tacape; para cavar a terra e trabalhá-la, em pá; para atravessar a caça, em dardo, etc..." (G. Lilienfeld: Wirtschaft und Technik — A Economia e a Técnica em Grundriss der Socialoekônomik — Esboço de Economia Social, 2ª parte, pag. 228).

As relações existentes entre a técnica e a pretensa "riqueza da cultura" saltam aos olhos. Basta comparar, por exemplo, a China moderna e o Japão. Na China, como consequência de toda uma série de condições particulares, a produtividade trabalho e da técnica social evolui muito lentamente, e a China apresenta no momento o tipo de uma cultura relativamente estacionaria. São os impulsos de uma nova técnica capitalista que exercem aqui uma influência revolucionaria. Pelo contrario, o Japão deu nestas ultimas dezenas de anos um passo gigantesco para a frente no domínio do desenvolvimento técnico; é assim, que a cultura japonesa fez também progressos extremamente rápidos: basta lembrar a ciência japonesa.

Na primeira metade da idade média que, do ponto de vista da cultura geral, era muito inferior à sociedade antiga, a técnica deu um grande passo para traz relativamente à antiguidade e muitos processos e invenções mecânicas da antiguidade foram completamente esquecidos...

"á exceção da (técnica da guerra e da metalurgia do ferro ligada a esta ultima". (V. K. Agafonov: A Técnica moderna. O balanço da Ciência, tomo 3.°, pag. 16).

Está claro que não se pôde criar uma "riqueza intelectual" sobre uma tal base técnica: a sociedade dispunha de muita pouca seiva para viver "uma vida intensa". O progresso feito pela Europa corresponde ao desenvolvimento da técnica capitalista (entre 1750 e 1850 a técnica sofreu uma verdadeira revolução; inventou-se a maquina a vapor, os transportes a vapor, utilizou-se o carvão, trabalhou-se o ferro por meio de processos mecânicos, etc...). Em seguida aplicou-se a eletricidade, a técnica das turbinas, os motores Diesel, os automóveis, a navegação aérea. Os meios técnicos da sociedade e as suas forças produtivas atingem um nível sem precedentes. Não é de admirar que a sociedade humana tenha podido nestas condições desenvolver "uma vida espiritual" muito complexa e muito variada. Com efeito, se considerarmos o florescimento das antigas culturas com a sua vida espiritual relativamente complexa, veremos imediatamente como era atrasada a sua técnica em comparação com a técnica capitalista da Europa moderna e da America. A principal aplicação dos instrumentos mais ou menos complicados se limitava aos trabalhos de construção, às aduções de água e às minas. A própria obtenção da produção máxima era baseada, não sobre a perfeição dos instrumentos, mas pela aplicação de uma massa colossal de forças vivas de trabalho.

"Herodoto conta como 100.000 homens arrastaram pedras durante três meses para a construção pirâmide de Keops (2.800 A. C.) e como foram necessários 10 anos de trabalhos de aterramento preparatórios para construir uma estrada desde as pedreiras até ao Nilo". Agafonov, o. c. pag. 5).

Vê-se pela definição de maquina que dá Vitruvio, o engenheiro de Roma antiga, a que ponto a técnica era então relativamente pobre:

"a maquina, diz ele, é uma construção em madeira que presta grande serviço para levantar as cargas". (Id. pag. 3). Estas "máquinas em madeira serviam sobretudo para levantar cargas, exigindo aliás o emprego de uma quantidade considerável de forças humanas ou animais".

§ 33. O equilíbrio entre a natureza e a sociedade, suas rupturas e seus restabelecimentos

Se nós examinarmos agora todo o processo em seu conjunto, veremos que o processo de reprodução é um processo de ruptura e de restabelecimento constante entre a sociedade e a natureza.

Marx distingue a reprodução simples e a reprodução crescente.

Em que consiste a reprodução simples? Como sabemos, no processo de produção, os meios de produção são consumidos (trabalha-se a matéria prima, empregam-se diferentes materiais, tais como óleos lubrificantes, trapos, etc...; as próprias máquinas, as edificações onde se trabalha, os instrumentos de trabalho e as suas peças se desgastam); por outro lado despende-se também a força de trabalho (quando os homens trabalham, eles se desgastam também, a sua força de trabalho é consumida e certas despesas são necessárias para reconstituir esta força). Para que o processo da produção possa continuar, é preciso que no decurso desse processo, e por si mesmo, seja reproduzido aquilo que foi gasto por ele. Assim, por exemplo, emprega-se na indústria têxtil, como matéria prima, o algodão; os teares se gastam. Para que a produção possa continuar, é preciso que, ao mesmo tempo, se colha algodão e se construam teares. — De um lado, o algodão desaparece para se transformar em tecido; de outro lado o tecido desaparece (ele é utilizado pelos operários, etc.) o algodão reaparece. De um lado, os teares desaparecem e reaparecem de outro. Em outros termos, os elementos necessários para a produção, uma vez gastos, devem ser reconstituídos. É preciso que constantemente se possa substituir tudo aquilo que é necessário para produção. Se esta substituição é realizada na mesma proporção em que foi gasta, temos uma reprodução simples. Isto corresponde a uma situação em que a produtividade do trabalho social é invariável; as forças produtivas não mudam, a sociedade não caminha nem para adiante, nem para trás. Não é difícil verificar que estamos aqui em presença de um equilíbrio estável entre a sociedade e a natureza. Aqui, a ruptura de equilíbrio (os produtos desaparecem), e o seu restabelecimento (os produtos reaparecem) se renova constantemente, mas este restabelecimento é sempre feito na mesma base: produz-se justamente tanto quanto foi gasto; gasta-se novamente outro tanto e torna-se a produzir a mesma quantidade, etc... A reprodução se faz sempre com o mesmo ritmo.

As coisas se passam diferentemente quando as forças produtivas aumentam. Então, como vimos acima uma parte do trabalho social se libera e é empregada em alargar a produção social (criam-se novos ramos desenvolvem-se os antigos). Isto significa que não somente os elementos de produção que existiam anteriormente são substituídos, mas que outros elementos novos são introduzidos no ciclo da produção. A produção não segue aqui o mesmo caminho, o mesmo ciclo, mas ela se alarga. Neste caso temos a reprodução crescente. É fácil verificar que o equilíbrio aqui se restabelece de maneira diferente: gasta-se uma certa quantidade, mas produz-se mais; o gasto aumenta, a produção aumenta mais ainda. O equilíbrio se restabelece cada vez sobre uma nova base, mais larga. Trata-se de um equilíbrio movei com um resultado positivo.

Enfim, apresenta-se um terceiro caso; o da diminuição das forças produtivas. Aqui, o processo de reprodução caminha para traz: a reprodução torna-se cada vez menor. Consumiu-se uma certa quantidade, produziu-se menos; consome-se menos, produz-se ainda menos.

Aqui, a reprodução não segue o mesmo movimento circular. Ela não se alarga, mas ao contrario, o circulo se torna cada vez mais estreito; a base vital da sociedade se retrai cada vez mais; o equilíbrio entre a sociedade e a natureza se restabelece sobre uma nova base, mas esta diminui constantemente.

Ao mesmo tempo, a própria sociedade não se adapta a esta nova base restringida, senão ao preço de uma destruição parcial de si mesma. Temos aqui um equilíbrio móvel negativo. A reprodução neste caso pode ser denominada reprodução negativa crescente, ou então, sub-produção crescente.

Examinamos esta questão por todas as suas faces, e em toda parte verificamos o mesmo fato. Tudo se reduz, por conseguinte, ao caráter do equilíbrio entre a sociedade e a natureza. As forças produtivas servindo de índice preciso do equilíbrio, podemos julgar, segundo elas, do caráter do equilíbrio. É evidente que o mesmo pode ser dito sobre a técnica da sociedade.

§ 34. As forças produtivas como ponto de partida para a analise sociológica

De tudo o que precede resulta necessariamente a seguinte regra cientifica:

"Para estudar a sociedade, as condições de seu desenvolvimento, suas formas, seu conteúdo, etc, é preciso começar por uma analise das forças produtivas, isto é, da base técnica da sociedade".

Examinemos com efeito alguns argumentos que foram apresentados ou que podem ser apresentados contra este ponto de vista.

Vamos tomar em primeiro lugar as refutações dos sábios que admitem de uma maneira geral a concepção materialista. Assim, G. Cunow diz (Neue Zeit, 39° ano, vol. 2.°, pag. 350) que a técnica

"está ligada muito intimamente às condições naturais. A presença de certas matérias primas, por exemplo, decide se em princípio certas fôrmas da técnica podem ser criadas e em que condições elas se desenvolverão. Nos lugares, por exemplo, onde certas espécies de arvores, de minérios, de fibras ou de conchas não existem, os indígenas não podem aprender por se mesmos a trabalhar estes materiais e fazer com eles instrumentos e armas".

Nós mesmos citamos, no princípio deste capitulo, alguns fatos que mostram a influência das condições atuais. Por que não começar por eles? Por que motivo o ponto de partida metodológico não será precisamente a natureza. Ela influi incontestavelmente sobre a técnica mais o menos do modo a que se refere Cunow. Por outro lado. todo mundo compreende que a natureza existiu antes da sociedade. Não estaremos nós pecando contra "verdadeiro" materialismo, quando tomamos como base para a analise o aparelho técnico e material da sociedade humana?

Basta, porém, examinar este problema mais de perto para ver a que ponto são pouco convincentes as provas apresentadas por Cunow. Sem minas de carvão, evidentemente, não será possível extrair a hulha do solo. Mas, infelizmente não se extrairá muito mais, se utilizarmos o dedo para cavar a terra. E sobretudo será difícil procurar, pois os homens desconhecem até a sua utilidade. As matérias primas não se encontram, como o pretende Cunow, na natureza. As matérias primas, segundo Marx, são um produto do trabalho e não se encontram no seio da natureza, como também não se encontra um quadro de Rafael ou o colete do sr. Cunow. Cunow confunde as matérias primas com o objeto de trabalho "possível"(3). Cunow esquece completamente que uma técnica apropriada é necessária para que as arvores, o minério, as fibras, etc, possam desempenhar o papel de matérias primas. O carvão não se torna matéria prima senão quando a técnica se desenvolve ao ponto de penetrar nas profundezas do subsolo e o extrair do reino das trevas para o trazer à luz do dia.

A influência da natureza no próprio fornecimento de materiais, etc., é o produto do desenvolvimento da técnica. Com efeito, enquanto a técnica não aproximou s seus tentáculos do minério de ferro, este ultimo podia dormir o seu sono de morte que sua influência sobre o homem era igual a zero.

A sociedade humana trabalha na natureza e sobre a natureza considerada como seu objeto. Sobre isto não há duvida alguma. Mas os elementos que existem na natureza são nela encontrados de maneira mais ou menos constante; por este motivo eles não podem explicar as transformações. O que varia é a técnica social que, certamente, se adapta a aquilo que existe na natureza (ao nada não podemos adaptar nada, e não basta dispor de um buraco para poder fundir um canhão). Se a técnica constitui a quantidade variável e se é a transformação da técnica que provoca as variações de relações entre a sociedade e a natureza, está claro que é nela que se deve encontrar o ponto de partida da analise das transformações sociais(4).

L. Metchnikov exprime-se desta maneira absurda:

"Estou longe de me associar à teoria do fatalismo geográfico, à qual se reprocha frequentemente o fato de ela pregar o princípio da influência do meio (isto é, da natureza, N. B.) que determina tudo na natureza. Na minha opinião, devem-se procurar as transformações não no próprio meio, mas nas relações que se estabelecem entre o meio e as aptidões naturais dos seus habitantes para a cooperação e para o trabalho social solidário. Assim, o valor histórico de um determinado meio geográfico, admitindo mesmo que do ponto a vista físico, permanece imutável em qualquer circunstancia, pode e deve variar segundo o grau de aptidão de seus habitantes para o trabalho solidário voluntário". (p. 27-28).

Isto não impede, aliás, o mesmo Metchnikov de cair em outro excesso e de superestimar "o fator geográfico". (Ver o relatório de Plekanov em "Critica de nossas criticas"). O caráter passivo da influência da natureza é reconhecido atualmente por quase todos os geógrafos, bem que a multidão dos sábios burgueses não entenda absolutamente nada do que seja materialismo histórico. Assim, Mac Farlane (John Mac Farlane; "Economic Geography" — Geografia Econômica —, Londres, Isaac Pittman & Son), escreve a propósito das "condições naturais da atividade econômica" (cap. 1.°):

"Estas condições físicas... não determinam em um sentido absoluto o caráter da vida econômica, mas exercem sobre ela uma influência que, sem duvida, é mais notável nos períodos primitivos da história humana, mas que não é menos real nas civilizações adiantadas, quando o homem já aprendeu a se adaptar ao seu meio (ambiente) e a receber dele uma quantidade crescente de bens".

Sabe-se o papel que desempenha o carvão e a que ponto a industria dele depende. Entretanto, com as transformações introduzidas na técnica da extração e da transformação da turfa, a importância da hulha pode diminuir consideravelmente, e este fato acarreta um reagrupamento completo dos centros industriais. Com a eletrificação, é o alumínio, que anteriormente desempenhava um papel insignificante, que adquire uma importância particular. A água, como fonte de força motriz, teve outrora uma importância muito grande (roda d’água), em seguida ela a perdeu, e atualmente volta a recuperá-la (as turbinas, a "hulha branca"). As relações de espaço na natureza permanecem as mesmas, mas as vias de comunicação as encurtam para o homem; com o desenvolvimento da navegação aérea, o quadro mudará ainda mais.

Esta influência dos meios de transporte (grandezas muito variáveis em função da técnica) tem uma importância decisiva, mesmo para a repartição geográfica da industria. Encontram-se considerações muito interessantes, a este respeito, na teoria de A. Werber sobre "a repartição dos centros industriais". (Ver A. Weber: Industrielle Standortslehre e também Ueber die Standorte der Industrien, 1ª parte: Reine Theorie des Standortes, 1909).

Encontramos a expressão poética da dominação crescente do homem sobre a natureza, de sua força ativa, no Prometeu de Goethe:

Zeus, cobre o teu céu
Com as nuvens
E, semelhante a uma criança
Que corta as cabeças dos cardos,
Diverte-te com os carvalhos e os cumes das montanhas;
E, entretanto, tu és obrigado
A me deixar a minha terra
E a minha choupana, que não construíste,
E a minha lareira,
Da qual tu invejas
O calor.

Assim, está claro que as diferenças nas condições naturais podem explicar as diferenças que existem na evolução dos diferentes povos, mas elas não podem explicar a evolução da mesma sociedade. As diferenças naturais tornam-se em seguida, depois da união destes povos em uma só sociedade, a base da divisão social do trabalho.

"Não é a fecundidade absoluta do solo, mas a sua diferenciação, a diversidade de seus produtos naturais, que formam a base da divisão social do trabalho e que obrigam o homem, como consequência da variedade das condições naturais que o envolvem, a variar também as suas próprias necessidades, suas aptidões e os meios de produção. (Marx: Capital, tomo 1).

Um outro grupo de argumentos invocados contra a concepção da evolução social exposta acima, é constituído pelos argumentos que indicam a importância essencial e decisiva do acréscimo da população. A tendência à multiplicação é infalivelmente inerente à natureza humana. Ela existiu em nós antes da historia humana. É o único processo natural, animal, biológico que tem existido antes da formação da economia social. Não estará este processo na base de toda evolução? A densidade crescente da população não determinará a marcha da evolução social?

Mas não é difícil verificar que a lei funciona aqui em sentido contrario: é do grau de desenvolvimento das forças produtivas, ou o que vem a dar ao mesmo, é do grau do desenvolvimento da técnica que depende a própria possibilidade do acréscimo da população. O aumento do número de homens (aumento mais ou menos estável) não é outra coisa senão um alargamento, um acréscimo do sistema social. E este acréscimo não é possível senão quando as relações entre a sociedade e a natureza variam de maneira favorável. Um maior número de homens não pode existir sem que a base vital da sociedade se alargue. Ao contrario, o retraimento desta base vital deve trazer fatalmente como consequência uma diminuição do número de homens. Como se produzirá este fato, isso é uma outra questão: será pela baixa da natalidade, ou pela regulamentação da mesma, pela morte, pelo aumento da mortalidade como consequência de moléstias, pelo desgaste prematuro dos organismos e uma diminuição da longevidade? Pouco importa: esta relação essencial entre a base vital da sociedade e a sua grandeza encontrará a sua expressão de uma ou de outra maneira.

Além disto, é um erro representar o aumento da população como um processo de multiplicação biológica e "natural". Este processo depende das condições sociais as mais variadas: da divisão em classes, da separação destas classes e, por conseguinte, da forma da economia social.

A forma da sociedade, a sua estrutura, dependem por sua vez, como o provaremos adiante, do nível de desenvolvimento da técnica e o movimento da população, isto é, a variação de sua densidade, não é tão simples. Somente os ingênuos podem pensar que o problema da multiplicação é tão simples e primitivo para os homens como para os animais. Assim, por exemplo, para que a população possa aumentar, é preciso sempre, na sociedade humana, que as forças produtivas tenham aumentado. Sem isto, como já vimos, o excedente da população nada teria para comer. Mas, por outro lado, não é sempre para todas as classes que o aumento dos bens materiais provoca uma multiplicação reforçada: enquanto uma família proletária pode diminuir artificialmente o número de seus filhos, por causa das dificuldades da vida, a mulher chique foge da maternidade para não perder a sua elegância e um camponês francês não quer ter mais de dois filhos para não dividir muito a herança. E é assim que o movimento das populações dependem de toda uma série de condições especiais, da forma da sociedade e da situação que as classes e grupos particulares nela ocupam.

Por conseguinte, no que se refere à população, podemos dizer: é indiscutível que o aumento da população pressupõe o desenvolvimento das forças produtivas da sociedade; em segundo lugar, cada época, cada forma de sociedade, a situação diferente das classes, determinam leis particulares para os movimentos da população.

"A lei abstrata (universal, independente de um determinada forma, N. B.) que rege a população, não existe senão para as plantas e os animais, senão enquanto o homem não se intromete historicamente neste domínio..." "cada meio de produção histórica e particular tem suas leis que determinam o movimento de população particular e tendo uma significação histórica". (Karl Marx: Capital t. 1).

Os meios históricos de produção, isto é, as formas da sociedade, são determinados pelo desenvolvimento das forças produtivas, isto é, pelo desenvolvimento da técnica. Assim, não são as leis do movimento da população que constituem o fator decisivo, mas é o desenvolvimento das forças produtivas e as leis que regem este desenvolvimento (ou diminuição), que determinam o movimento da população.

A burguesia tentou, mais de uma vez, colocar no lugar das leis sociais outras "leis" provando que a miséria das massas, estabelecida por Deus, é inevitável e que esta situação é independente do regime social. É sobre isto que se baseia a superestimação da "geografia" na doutrina do meio, quando se forçam os fenômenos da natureza para explicar os acontecimentos históricos (assim Ernst Miller "provava" que a marcha da história dependia do magnetismo terrestre; Jevons explicava as crises industriais pelas manchas do sol, etc). Entre estas tentativas podemos colocar também a do pastor e economista inglês Robert Malthus, que via a fonte da miséria da classe operária na tendência pecaminosa dos homens em se multiplicarem. A sua "lei abstrata da população" consiste no seguinte: a população aumenta mais depressa do que os meios de subsistência (os meios de subsistência em progressão aritmética, isto é, como 1, 2, 3, 4, 5, etc.; a população em progressão geométrica, isto é, como 2, 4, 8, 16, etc.). As concepções dos sábios burgueses modernos começam a modificar-se radicalmente e a doutrina de Malthus torna-se obsoleta: a causa disto é que em certos países (na França e em outros) a natalidade diminui a tal ponto que começa a faltar soldados para a burguesia, a carne para o canhão, e a burguesia faz todos os esforços para incitar a classe operária e camponesa a procriar o mais possível.

Já os fisiocratas percebiam que o acréscimo da população dependia do desenvolvimento das forças produtivas. Assim, Le Mercier de la Riviére, em "l'Ordre naturele et essenciel des societés politiques", diz em substancia:

"Se os homens se alimentassem somente dos produtos que a terra lhes fornece sem nenhum trabalho preparatório, seria preciso dispor de uma enorme quantidade de terra para aprovisionar um pequeno número de homens; entretanto, sabemos por nossa própria experiência que, graças à ordem física de nossa constituição, temos tendência a nos multiplicar consideravelmente. Esta qualidade natural seria contraditória e marcaria uma desordem na natureza, se a ordem natural da reprodução dos meios de existência não lhe tivesse permitido a multiplicação na mesma escala e nós mesmos nos multiplicássemos".

E diz ainda:

"não temo que venham com argumentos, citando certas populações da América, para me provar que a ordem natural dos nascimentos não torna necessária a cultura. Eu sei que existem povos que não cultivam ou quase não cultivam a terra, e apesar do solo e do clima lhes serem igualmente favoráveis eles matam as crianças, estrangulam os velhos, empregam certos medicamentos para impedir o processo natural de nascimentos." (E. Grosse: "Formen der Familie und Formen der menschlichen Wirtschaft". — As formas da família e da economia humana —, 1896).

E diz ainda, entre outras coisas:

"Os Boschimanos e os Australianos têm o habito de usarem a "cinta da fome" por razões muito reais. Os habitantes da Terra do Fogo sofrem constantemente a fome. Nas histórias contadas pelos Esquimós, a fome desempenha também um papel muito importante. É evidente que uma população limitada por uma cultura tão insuficiente, não chegará nunca a formar uma população numerosa... É por esta razão que os caçadores primitivos desvelam-se afim de que o seu número seja proporcional aos seus meios de subsistência. Assim, na Austrália, o infanticídio é muito comum. A grande mortalidade infantil faz o resto".

Sabemos que existem, em algumas populações da Polinésia, leis segundo as quais cada família só tem licença para ter um número restrito de filhos e onde se paga uma multa se este número ultrapassar (P. Mombert: "Wirtschaft und Bevoelkerung" — A economia e a População, — em "Grundriss der Socialoekonomie" — Esquema de economia social, — 2.ª parte). Mombert cita os fatos seguintes: depois de ter descrito o desenvolvimento econômico na época carlovingiana (passagem ao sistema rotativo trienal), diz:

"como consequência do grande desenvolvimento da produção de produtos alimentares, verificamos nessa época um aumento extraordinário na população da Alemanha".

No século XIX, a Europa fez um progresso imenso no domínio da produção agrícola.

"E ao mesmo tempo a população na Europa começou a crescer em tais proporções, que nunca no passado se observou tamanho aumento". (Ib.).

Em seguida, começa um período em que a produção dos meios de existência diminui. Que resulta daí? A emigração para a America. Na Rússia, observam-se as mesmas leis. (Ver a este respeito os trabalhos do camarada M. N. Pokrovsky).

Enfim, é preciso indicar ainda uma série de argumentos dirigidos contra a teoria do materialismo histórico e especialmente as teorias conhecidas sob o nome "teoria das raças". Vejamos em que consistem: A sociedade é composta de homens, mas os homens entraram na história, nem todos iguais, mas diferentes, tendo crânios, cérebros, pele, cabelos, estrutura física diferentes e por conseguinte tendo aptidões diferentes. É compreensível, portanto, que sejam muitos os que entram na arena da história e poucos os eleitos. Certos povos se revelam "históricos", porque eles assim o são.

Seu nome aparece na boca de todo o mundo; todos os professores das faculdades deles se ocupam; outros, "raças inferiores" por sua própria natureza, são incapazes e nunca puderam fazer nada de extraordinário; os representam como que um zero histórico. Estes povos não merecem o nome de "povos históricos"; eles são quando muito o adubo da história, como, por exemplo os povos coloniais de certos países "selvagens" que preparam o solo para a civilização burguesa européia. É nesta diferença de raças que jaz a causa do desenvolvimento diferente da sociedade. A raça é ponto de partida para o estudo da história. Tal é, em seus traços gerais, a teoria das raças.

A respeito desta teoria, G. Plekanov escreveu com razão o seguinte:

"Quando se propõe a questão de saber qual é a causa de um acontecimento histórico dado, acontece frequentemente que homens sérios, que não são absolutamente tolos, se contentam com resposta que nada resolvem e que não apresentam senão um repetição da pergunta em outros termos. Admitam que se interrogue um "sábio" sobre uma das perguntas acima. Perguntai por que motivo certos povos se desenvolvem com tão espantosa lentidão, enquanto que outros seguem rapidamente o caminho da civilização O "sábio" responde, sem hesitar, que isto se explicar pelas qualidades da raça. É compreensível a significação de uma tal resposta? Certos povos se desenvolvem lentamente, porque a qualidade de sua raça é tal que eles não podem se desenvolver senão lentamente outros, pelo contrario, tornam-se rapidamente civilizados, porque a qualidade de sua raça consiste no fato deles se poderem desenvolver rapidamente. (Critica nossas criticas).

A teoria das raças é em primeiro lugar contrária aos fatos. Considera-se a raça negra como uma raça "inferior", incapaz de se desenvolver por sua própria natureza. Entretanto, está provado que os antigos representantes desta raça negra, os Kuchitas, haviam criado uma civilização muito elevada nas Índias (antes hindus) e no Egito. A raça amarela, que não goza tão pouco de grande favor, criou entre os chineses uma cultura que era infinitamente mais elevada que a dos seus contemporâneos brancos; os brancos não eram então senão meninos em relação a eles. Hoje em dia sabemos perfeitamente que a base dos conhecimentos dos antigos gregos lhes foi transmitida pelos Assirios-Babilonicos e Egípcios. Bastam estes fatos para mostrar que as explicações tiradas dos argumentos das raças de nada servem. Entretanto, podem dizer-nos: quem sabe se tendes razão, mas pode-se afirmar que um negro médio é igual, por suas qualidades, a um europeu médio? Não se pode responder a esta pergunta por uma saída virtuosa como o fazem certos professores liberais: todos.os homens são iguais; segundo Kant, a personalidade humana constitui um fim por si mesma; Jesus Cristo ensinava que não havia nem helênicos, nem judeus, etc. (ver por exemplo, em Khvostov: "É provável que a verdade esteja do lado dos defensores da igualdade dos homens... "A teoria do processo histórico"). Pois, tender para a igualdade entre os homens, não significa reconhecer a igualdade de suas qualidades, e aliás, tendemos sempre para aquilo que ainda não existe, pois, e outro modo, arrombaríamos portas abertas. Não procuramos no momento saber para o que devemos tender. O que nos interessa é saber se existe uma diferença entre o nível de cultura dos brancos e dos negros em geral. Certamente, esta diferença existe. Atualmente os "brancos" são superiores aos outros. Mas isto o que prova? Prova que, atualmente, as raças mudaram de posição. E esta conclusão contradiz a teoria das raças. Com efeito, ela reduz tudo às qualidades de raças, à sua "natureza eterna". Se assim fosse, esta "natureza" se teria feito sentir em todos os períodos da história. O que podemos concluir daí? Que a própria "natureza" muda constantemente com relação às condições de existência de uma determinada "raça". Estas condições são determinadas pelas relações entre a sociedade e a natureza, isto é, pelo estado das forças produtivas. Assim, a teoria das raças não explica de nenhum modo as condições de evolução social. Aparece também claramente aqui que é preciso começar a sua analise pelo estudo do movimento das forças produtivas.

A respeito da concepção de raça e da distinção entre as, raças, uma grande variedade de opiniões divide os sábios Topinard (citado por Metchnikov, pag. 40) observa com razão que o termo "raça" é utilizado para fins muito secundários: assim, por exemplo, as raças indo-germânica, alemã, eslava, latina e inglesa, bem que estes termos não sirvam senão para definir aglomerações de elementos antropológicos os mais variados. Na Ásia os povos foram misturados tantas vezes e de maneira tão radical, que a raça mais característica para este continente se encontra talvez em algum lugar do outro lado do Pacifico ou perto do circulo Polar. Na África, o mesmo processo se repetiu varias vezes. Na America, onde se passou um fato semelhante já no período histórico, não se encontra mais raças primitivas; mas somente o resultado de cruzamentos e misturas infinitas (Ed. Meyer). Meyer observa muito judiciosamente:

"No que concerne a raça, é certamente possível que o gênero humano tenha aparecido desde o princípio em diferentes variedades ou então se tenha dividido desde o princípio em espécies diferentes; parece-me que sob este aspecto seja difícil exprimir uma opinião fundamentada. Por outro lado, é absolutamente certo que todas as raças humanas se misturaram continuamente... que nunca se pôde, e que é em geral absolutamente impossível, delimitá-las estritamente — o exemplo das populações do vale do Nilo é típico neste ponto — e que o pretendido tipo de raça pura não existe senão nos lugares onde os povos foram isolados artificialmente uns dos outros, graças às condições exteriores, como se verifica, por exemplo, na Nova-Guiné e na Austrália. Entretanto, nada justifica a suposição de que nos achamos aqui em presença de um estado natural e primitivo do gênero humano; é muito mais provável que esta homogeneidade seja, pelo contrario, o resultado de um isolamento" (Ib.).

O professor R. Michels ("Wirtschaft und Rasse", — A economia e a raça — em "Grundriss der Socialoekonomie", cita toda uma série de exemplos muito interessantes que mostram a variabilidade das pretendidas qualidades de raça no domínio do trabalho. Por exemplo

"a resistência dos trabalhadores chineses é extraordinária e os torna aptos a carregar pesadas cargas. É por isto que utilizam tanto os "coolies chineses". Entretanto, está claro que as "cargas" que são colocadas nas costas dos coolies são determinadas ainda pelo seu estado de escravidão semi-colonial. Consideram-se os negros como maus trabalhadores, e entretanto existe um ditado francês: "trabalhei como um negro". Os negros tornavam-se raramente patrões, mas eles foram boicotados pelos brancos, etc... Ainda há alguns exemplos interessantes tirados do domínio das "diferenças nacionais": "Quando se começou a construir na Alemanha as primeiras vias férreas, um autor alemão advertia que de direito os caminhos de ferro não apresentavam nenhum interesse para o caráter nacional alemão, porquanto este ultimo baseava-se, felizmente, sobre o princípio do "festina lente" (apressa-te devagar). Para se servir das estradas de ferro, é preciso um outro povo, uma outra vida, um outro gênero de pensamento. Kant reprochava aos italianos as suas tendências estreitamente praticas e o estado florescente de seus bancos. Agora é preciso procurar alhures a fonte deste fenômeno, etc... Michels chega a esta conclusão perfeitamente justa:

"O grau de capacidade econômica de um povo corresponde ao grau de civilização técnica, intelectual e moral que ele atingiu no momento em que o julgamos".

O maior número de absurdos foi dito pelos partidários da teoria das raças durante a guerra, que eles quiseram também explicar pela luta das raças, bem que a inépcia destas explicações fosse evidente para qualquer homem de espírito são. (Os sérvios aliados aos japoneses guerreavam contra os búlgaros: os ingleses com os russos contra os alemães, etc...). O representante mais autorizado da teoria das raças, na sociologia, é Gumplowicz.

Bibliografia do capitulo V

Além das obras mencionadas no capitulo precedente:


Notas de rodapé:

(1) Linhas de igual temperatura média. — N. T. (retornar ao texto)

(2) Estes exemplos somente se referem ao hemisfério Norte. — N. T. (retornar ao texto)

(3) "Se o objeto de trabalho já foi, por assim dizer, filtrado por um trabalho precedente, nós o denominaremos matéria prima toda matéria prima constitui um objeto de trabalho mas todo objeto de trabalho não é uma matéria prima". (Capital, T. 1). (retornar ao texto)

(4) Os erros do sr. Cunow não o impedem de refutar com justeza Horter, P. Barth e outros, que confundem os meios de produção com a técnica. Falaremos disto mais adiante. (retornar ao texto)

Inclusão 16/06/2011
Última alteração 22/03/2016