Algumas considerações a respeito do movimento estudantil brasileiro

José Chasin

Novembro-Dezembro de 1961


Fonte: Revista Brasiliense, Rio de Janeiro, n. 38, p. 154-157, nov-dez 1961.

Trascrição: Frederico Barreto

HTML: Fernando Araújo.


Os movimentos estudantis, no Brasil, nunca chegaram a merecer um estudo mais sério e aprofundado, processando-se quase que inteiramente ao sabor das injunções circunstanciais, não recebendo de seus mais responsáveis militantes uma interpretação cuidadosa que possibilitasse a fixação clara e precisa de seus objetivos. Consequentemente a força política da classe estudantil, por vezes exercida com vigor, é ainda frágil como manifestação e ainda mais como porta-voz de palavras-de-ordem, dado que não se pode tomar a maior parte das proposições esporadicamente lançadas e mesmo certos extremismos vocabulares como formulações inteiramente consequentes que estejam a refletir uma consciencialização efetiva de objetivos a serem alcançados. Trata-se, em última análise, do caráter fluido que manifestam as atividades políticas estudantinas que necessitam um pouco mais de fôlego e de um prazo um pouco mais longo de execução, e do fato de inexistirem uma clara definição da política estudantil e de um programa que esta se atribuiria.

É fundamentalmente com o intuito de contribuir para que tal estado de coisas seja corrigido que nos permitimos algumas considerações, nada mais fazendo do que trazer o problema à ordem do dia.

Desde logo, duas questões fundamentais devem ser tratadas: o que é atualmente e o que deve ser o movimento estudantil brasileiro.

Evidentemente não poderemos estudar as referidas questões isoladamente, fora do contexto global da sociedade brasileira. Muito pelo contrário, só e somente só pela caracterização desta última e pela identificação de seu estágio atual de desenvolvimento é que poderemos reconhecer a importância e atribuir um papel político adequado à camada estudantil da nação.

Claro está, no entanto, que um estudo sistemático abordando exaustivamente semelhantes temas transcende as possibilidades de um trabalho que pretende ser apenas uma abertura de discussão.

Tendo em mente esta ressalva, diremos que o que de imediato se observa, na atuação dos universitários brasileiros, é que sendo a classe constituída por menos de noventa mil indivíduos, atua, em caráter permanente, como grupo político, através de apenas um ínfimo número de seus elementos. E quando dizemos que a atuação política efetiva é exercida por poucos, não queremos com isto defender a idealização de um estado de coisas em que os universitários, como um todo, estivessem arregimentados em termos de uma organização partidária, dividindo disciplinadamente as tarefas próprias de um órgão dessa natureza. Apenas afirmamos que os líderes do movimento estudantil, na sua grande maioria, lutam numa situação de contradição consigo mesmos, dado que quase sempre não são mais do que autolíderes, já que não conseguem demover a grande massa universitária de sua posição de inércia, nem têm consequentemente tentado movimentar os colegas estudantes para um trabalho coletivo.

A constatação desse fenômeno não visa uma crítica fácil, mas a denuncia de uma grave deformação do movimento universitário brasileiro que tem acarretado não poucos males à atuação política de nossos estudantes, não lhes permitindo ostentar a força que é necessária o estudantado, numa sociedade subdesenvolvida como a nossa, possuir. Deformação essa que não provém evidentemente das más intenções dos “cabeças”; o problema no meio universitário não é de honestidade, mas da incapacidade ou do temor de quase todos os seus responsáveis em observar a realidade tal como ela se apresenta e a partir dela elaborar objetivamente o trabalho. Dessa maneira o afastamento entre dirigentes e dirigidos é pronunciado e tanto mais sério à medida que consideramos as finalidades da política estudantil como sendo as de grupo de pressão e esclarecimento junto à opinião publica. Outro papel e outros propósitos, nas condições brasileiras, parecem-nos errôneos e extemporâneos. Se não vejamos.

No longo e profundo processo de transformações que no Brasil vem se desenvolvendo desde 1930, onde, em última análise, reconhecemos a evolução de uma sociedade de economia colonial para o estágio de um país de estrutura capitalista em formação, as formas políticas que têm representado esta luta, apesar dos variados perfis assumidos, no decorrer dessas três décadas, definem-se fundamentalmente pelo antagonismo entre as ideias democráticas que tentam se firmar e as posições antipopulares e antiprogressistas que assumem ao sabor dos tempos os mais variados aspectos de repressão. Tal antagonismo atingiu, em nossos dias, como veio atestar a crise de 25 de agosto, uma conformação particularmente grave e decisiva.

Nessa luta ideológica em que se dividem democratas (de posições que variam do mais vago liberalismo até às que defendem ideias comunistas) e antidemocratas (desde os “coronelistas” até os neofascistas) é que o movimento universitário encontra o seu verdadeiro papel político, dado que é composto por elementos cujo caráter de intelectuais em formação possibilita o uso efetivo do equipamento próprio do campo do conhecimento. £ manuseando ideias e delas tornando-se veículo que o estudante, na qualidade de ser político, põe a funcionar as suas verdadeiras potencialidades de elemento aprimorador e transformador da realidade social.

Tal concepção poderia parecer, a alguém menos avisado, mero devaneio utópico de um idealista sonhador. Por que iria o estudantado propagar ideias, entrar em contacto com as massas, ensinando-lhes a melhor diagnosticar os seus males e demonstrando-lhes o seu formidável poderio? Não seria esta uma atitude gratuita e mesmo impossível por carecer de motivação?

Responder afirmativamente a estas perguntas, principalmente quando em nome de um anêmico realismo, mais ou menos em voga, atualmente, nas supercúpulas da política universitária não é só mistificar o próprio realismo, como também demonstrar uma insensibilidade política alarmante e um desconhecimento imperdoável das verdadeiras reivindicações dos estudantes brasileiros. Essas reivindicações têm ganho, aliás, nos últimos tempos, basta lembrar a crise de Recife, uma força extraordinária e podem ser sintetizadas como sendo a exigência de uma total melhoria do sistema de ensino em geral e da Reforma Universitária em particular.

E ao falarem em Reforma Universitária os estudantes estão a denunciar a já patenteada falta de correlação entre o que lhes ensina a escola e aquilo que a vida prática deles exige. Conscientes dessa anomalia, querendo, desde os bancos escolares, tomar providências para que as suas existências como profissionais sejam menos incongruentes e difíceis, as massas universitárias se prontificam para batalhar por um ensino melhor e mais coerente com a vida nacional. E através desse processo de luta que vêm percebendo e perceberão cada vez mais que uma efetiva Reforma Universitária está condicionada a reformas e transformações de toda a sociedade global, e que somente por intermédio destas é que aquela se tornará possível.

Outra razão, que nos evidencia a justeza, hoje mais do que nunca, da tese de que o movimento universitário deve ter por objetivo ser um amplo grupo de pressão e esclarecimento da opinião pública (no momento tal possibilidade de trabalho reuniria mais ou menos facilmente as massas estudantis, dado que a mesma iria defender as suas reais vocações democráticas), é aquela que provém da consideração do quadro atual da vida política nacional.

Com a crise provocada pela renúncia do Sr. Jânio Quadros aguçou-se intensamente a instabilidade do regime vigente, deixando a descoberto as mais profundas contradições da estrutura socioeconômica da nação.

A curto prazo as soluções que parecem ter as maiores probabilidades de virem a ser tentadas são, a grosso modo, de duas ordens. A primeira delas lançaria mão de um governo forte, numa tentativa de reeditar uma versão cabocla das experiências de tipo peronista ou nasseriano, desvinculada completamente dos interesses mais legítimos do povo brasileiro. A segunda hipótese estaria em função de uma vigilância ofensiva da massa que forneceria a base para um governo que daria início a transformações de estrutura, respeitando as nossas conquistas democráticas.

Claro está que somente a segunda fórmula é favorável à classe estudantil, não só devido à possibilidade de, então, dar consecução às suas reivindicações específicas, mas também porque o estudante vem gradativamente reconhecendo, enquanto cidadão e estudioso, que a liberdade é um bem concreto e não abstrato, e que a base da liberdade individual é a liberdade da massa.


Inclusão: 27/04/2023