Jânio, do parto à sepultura

José Chasin

Março-Abril de 1962


Fonte: Revista Brasiliense nº 40. São Paulo: Brasiliense, mar./abr. 1962

Trascrição: Frederico Barreto

HTML: Fernando Araújo.


A curiosa figura de professor desconcertante tornara-se político. Como tantos outros vinha, para o início da caminhada, frágil e desnudo. Como tantos outros poderia sobreviver e chegar a se impor, ou morrer ao cabo de um parco número de anos de um primeiro mandato.

Sua história completa será um dia contada; uns a distorcerão agigantando, outros a miniaturando, ate que um Brasil futuro permita a completa objetividade histórica. Sua vida, política e pessoal, será narrada no fundamental e no pormenor, no pitoresco e no dramático, no angustiante e no ridículo.

Apesar disso, hoje, e aqui, buscaremos explicitar, apenas pela rama, a marca mais profunda de um processo que tomou em morto- -vivo aquele que, como fenômeno político, mais impressionou por aquilo que deixou de ser.

O caminhamento político de Jânio Quadros e longo, apesar da brevidade dos apenas quinze anos de sua militância. É também riquíssimo em episódios, embora uno do nascedouro à foz. Acreditamos mesmo que as características básicas do presidente já eram potencialidades no vereador, que o rebelde deputado estadual continha já o prefeito agressivo, e que o governador manhoso encubava o presidente polifrontista.

Não pretendemos, no entanto, uma análise meramente pessoal ou psicológica do sucesso janista. Falar em desequilíbrios, loucuras e idiossincrasias não basta e pouco explica.

Queremos, isto sim, compreender os motivos da decomposição política de um homem que tinha estofo para ser um autentico e honesto líder popular e que muito depressa teve que embair a massa para se sustentar como político. Um homem que ao atingir o ápice da carreira chega tão vazio que lança mais de quatro anos de mandato presidencial numa perigosa empreitada, e perde. Um homem que vem do povo, cresce com ele e dele tem a confiança e, no entanto, contra o mesmo se volta, o trai e abandona. Queremos as raízes econômicas, políticas e sociais desse fenômeno que muitos erroneamente encaram como pessoal, mas que e evidentemente o produto de uma fase histórica do processo evolutivo da sociedade brasileira.

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De vereador a presidente, o Sr. Jânio Quadros foi, a nosso ver, fiel a um estilo político que se fundava, basicamente, em algumas teses que podem ser resumidas em: apartidarismo e moralismo dando como consequência o polifrontismo político. Em outras palavras, negou uma estrutura partidária dessincronizada da realidade brasileira e que sofrivelmente representa os interesses das classes nacionais. Ao mesmo tempo, coerente com sua origem, filiou-se à prática da moralização, diagnosticando os males da Nação como originados nos costumes corrompidos e encarnados sempre na celula-indivíduo, e nunca na estrutura social, econômica e política. Estas nunca foram para Jânio Quadros mais do que formas inteiramente vazias, e que ganham a substância dos homens que as ocupam. Dessa forma, a realidade objetiva foi sempre concebida, por ele, como o resultado da volição individual. O seu ideal de político e estadista, em consequência, concretiza-se na imagem de árbitro dos homens e das classes, do governante impoluto, descompromissado que distribui justiça em nome da autoridade que o conjunto social lhe confere, e pautado naquilo que elege como os interesses mais legítimos da nacionalidade. Daí, o fato deste profundo subjetivismo se ver estraçalhado quando em confronto com os elementos objetivamente dinâmicos da sociedade global, assumindo o caráter concreto de polifrontismo político que no poder desgosta a classe dominante e ao povo dá a ideia de tergiversação e demagogia.

A vida política de Jânio Quadros e a reafirmação contínua de tais fatores, decompondo-se a mensagem janista à medida que ganhava influencia em âmbitos cada vez maiores, ate a total desintegração quando do exercício da presidência da República.

Sempre afirmando-se apartidário, e mesmo antipartidário, o Sr. Jânio Quadros, no entanto, em função da estrutura eleitoral brasileira, periodicamente, via-se obrigado a ligações com agremiações políticas das quais, passado o momento da votação, buscava se desvencilhar, numa afirmação sistemática de uma fórmula política que não admite um esquema permanente, nem a defesa de princípios ou programas. Querendo ser homem sem partido, revelava que sempre desejou, profundamente, ser um indivíduo desvinculado de qualquer classe. Não queria representar nenhuma delas no poder. Pretendia-se o magistrado. Donde a visão mítica que formula de si mesmo e do poder, principalmente do presidencial.

Pretendendo não representar ninguém no poder, ao mesmo tempo que concebia o bom e o ruim, o vantajoso e o desvantajoso, o verdadeiro e o falso sempre encarnados nos indivíduos, numa valoração ideológica pequeno-burguesa, veio a se constituir em “reformador dos meios”, acreditando que, depurados os meios, os bons fins naturalmente se imporiam. Não se elevou nunca ao nível de compreensão de que os meios em política se valoram em função dos fins que perseguem. Não nos moldes do maquiavelismo vulgar que aconselha o emprego de todos, mas no sentido de que os meios são, a cada momento, fins intermediários e que, como tais, podem, quando adequados, levar ao objetivo final, ou, quando incorretos, desviar o processo do alvo colimado. Num ou noutro caso, porém, os meios são compreendidos e valorados somente à luz de seus objetivos. Confundir meios e fins, como o fez Jânio Quadros, unicamente conduz à submissão do político ao instrumental e elimina a existência efetiva de propósitos.

Embora lutando sempre contra o compromisso o ex-presidente, à medida que avançava na arena política nacional, era obrigado progressivamente a ligações mais serias. Se ate a governança conseguira manter uma posição de ponderável independência, menor evidentemente do que quando prefeito, o mesmo não se deu a partir do momento em que passou a atuar em plano nacional.

Na qualidade de candidato, papel em que várias vezes atuou, o Sr. Jânio Quadros sempre viu as legendas partidárias como meras formalidades legais. Para sua consciência utilizar-se de uma delas era o mesmo que preencher um requerimento, sempre obtuso, sem o qual, no entanto, não se obtém o deferimento de nenhuma repartição, por mais direitos que sobre o requerido se tenha.

No desempenho de cargos executivos estruturava equipes na base de compromissos pessoais em substituição às organizações partidárias, tentando desse modo, ser o único portador e condutor do caráter político do governo. Semelhante prática foi-lhe mais ou menos fácil de executar no exercício da prefeitura e bem mais árduo na governança de São Paulo. Contudo, conseguiu, ainda que com concessões cada vez mais serias, fazer predominar o seu intento.

Quando já provável candidato à presidência da Republica, encontrou-se na contingência de, desta vez, não obter apenas uma legenda, mas uma estrutura político-partidária de cobertura nacional. Era preciso uma verdadeira máquina, muito bem articulada, que lhe permitisse contatos de norte a sul do País. Empolgaria as massas com sua própria pessoa, mas necessitava de um organismo que fosse ocupando as trincheiras que fosse conquistando. Não podia, por razões óbvias, contar com a coligação PSD-PTB. Restava-lhe a UDN. A eterna vigilante de há muito precisava de um “veículo popular”, dado que seus automóveis de luxo, movendo-se nos atalhos da Republica, nada mais conseguiam do que alcançar as veredas do golpismo.

A simbiose se deu. Aparentemente uma mutua cooperação. Em realidade uma ação parasitária do grêmio político, ação que chegaria ao fim de processo característico dessa ordem de relacionamento, isto e, o debilitamento progressivo e a extinção do parasitado.

Ao assumir o poder, no exato momento em que anunciava seu ministério, Jânio Quadros já se apresentava potencialmente sem autoridade. Atesta-o a composição do referido ministério, particularmente sua fração militar. Coerente com seus princípios políticos errôneos constituiu aquilo que muitos consideraram um esquema ministerial despersonificado que, entretanto, mostrou possuir um caráter definido, especialmente naquela parcela que garante 011 não, em países como o nosso, a vigência de um governo.

Jânio Quadros, que buscava sempre o descompromisso, que subjetivamente não realizava acordos, fiel unicamente a uma ideologia inconsequente, viu-se enquadrado desde o primeiro dia de seu exercício presidencial a um esquema asfixiante que não lhe permitia a menor parcela de realização de seu tão acalentado ideal de magistratura.

Tendo diante de si um legislativo opositor, com quem se negava a negociar, não possuindo esquema próprio para transformar em dispositivo de execução de seu comando, e situado numa estrutura que o dominava, o futuro renunciante se entregou a um trabalho desesperado de manutenção do prestígio popular de que desfrutava, enquanto aguardava uma reformulação, talvez, da Câmara, ou um cochilo da organização político-partidária que 0 prendia. Enquanto isso, ocupava-se de rinhas, propaganda, roupas de banho, funcionalismo e, como medida realmente concreta sancionou a “204”. Sua política exterior, consubstanciada na posição assumida diante do problema da autodeterminação do povo cubano, evidentemente positiva e irreversível, e, para nós, entretanto, nada mais do que a manifestação janista que reitera a vontade de imparcialidade, ao mesmo tempo que encontra uma razão de combate sempre vazada em termos de ameaças.

Contudo, era cada vez mais patente que a magistratura não se realizava. Parece-nos que a tomada de consciência efetiva de tal fato, que tardou um pouco, ao se dar trouxe mais um elemento: ou JQ faria novos compromissos no sentido de romper com as forças que o bitolavam, ou tentaria livrar-se de todos os compromissos, aceitos ou não, de uma só vez, inclusive os constitucionais. A segunda hipótese foi a escolhida, devido às teses individualistas do janismo.

A esta altura dos acontecimentos, o esquema basicamente udenista e retrógrado, que estava no exercício efetivo do poder, resolveu consumar 0 processo, isto e, calar definitivamente o impaciente presidente, ou fazê-lo saltar dos trilhos que o conduziam. A tarefa não era difícil, bastava um piparote. Um piparote com uma boa desculpa e uma fórmula para continuar no poder. O próprio Jânio ofereceu ambas as coisas, ao resolver que iria governar.

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Volta, agora, Jânio Quadros e volta como foi.

Suas convicções, em nada se alteraram. Suas explicações, aparentemente contraditórias, corroboram sua velha concepção da atividade política.

Acusa gregos e troianos e se reafirma o político-magistrado. Não condena estruturas, mas homens. Ao falar em grupos econômicos que coagem povo e governo brasileiros não tenciona refutar um sistema econômico espoliativo, mas a ganância de alguns determinados que pondera prejudiciais.

Insiste o político subjetivista na crença de que a volição individual e a única fonte do Bem e do Mal, no terreno político. Não afirmou ele, na sua última declaração publica, que à testa dos ministérios militares havia colocado aqueles que considerava os melhores soldados, sem qualquer consideração de ordem política? A persistência em se definir como o defensor de todos, o que vale dizer de ninguém, continua a demonstrar que seu ideal permanece o mesmo: a magistratura.

Em poucas palavras, Jânio Quadros parece que não inferiu nada dos episódios de agosto. Sua diagnose continua enraizada numa concepção idealista rudimentar da política. A realidade objetiva não ganhou em suas convicções “status” mais elevado. Aliás, se isto tivesse ocorrido, Jânio teria deixado de ser Jânio. Teria de abandonar o seu desprezo pelas estruturas partidárias (o que não implica necessariamente na sua filiação a um dos partidos existentes), ultrapassar a ideologia do moralismo e indicar claramente a quem pretenderia servir: às massas ou às classes dominantes, isto e, deveria abandonar seu mais caro sonho — o desempenho do poder em moldes de sobranceira magistratura. Entretanto, isto seria vir a conhecer um homem publico distinto daquele que foi o presidente renunciante. Seria observar a metamorfose de alguém que tentou conciliar objetividades antagônicas através de instrumentos subjetivos.

Impuseram-se, como não poderia deixar de ser, os elementos objetivos. O que pode ainda o relutante subjetivista? Quais suas perspectivas?

Acreditamos que o Sr. Jânio Quadros está sendo conduzido, sendo irrelevantes suas intenções, a atuar em termos de uma política engajada, único modo consequente de fazer política. Queremos dizer que, desejando ou não, terá que se pôr, no processo de suas atividades públicas, a serviço de uma classe. O que evidentemente já ocorreu há tempos ainda que disto não tenha querido tomar consciência. Tendencia que culminou na presidência da República, existindo, todavia, já na altura de seu governo em São Paulo.

No Brasil de hoje não existe a possibilidade de escolha entre inúmeras posições ou se realiza a filiação ao bloco progressista da Nação, composto primordialmente pelas massas populares, ou, então, assume-se posição antípoda, engrossando os grupos retrógrados. Em outras palavras, a cristalização dos problemas nacionais impele para a esquerda ou para a direita. Não há outra alternativa. Para que lado pode ir o Sr. Jânio Quadros?

Político individualista, fluído ideologicamente e consciente ou inconscientemente incapaz de realizar uma política baseada em estruturas orgânicas que se fundamentem em princípios, não pode merecer a confiança das esquerdas. De mais a mais a sua filiação a um movimento dessa ordem exigiria a reformulação total de seus objetivos e métodos políticos, no sentido do abandono da concepção idealista do mundo, substituindo-a pela adoção de métodos e propósitos realizáveis objetivamente e em favor da massa. Os ideais autênticos, mas errôneos, do Sr. Jânio Quadros, estariam, assim, desbaratados.

Parece-nos que e junto a uma posição cada vez mais direitista que o mesmo possui, a curto prazo, maiores possibilidades.

As forças antidemocráticas e antiprogressistas provaram, já, a si mesmas que podem rebocar o prestígio popular do Sr. Jânio Quadros e ultrapassá-lo no processo, tal como ocorreu durante o governo e o episódio da renúncia. No entanto, perceberam também que sozinhos não conservam o poder. Daí desejarem um Jânio populista, composto de convicções subjetivistas, mas que seja dócil e ostente certo formalismo democrático. Jânio Quadros e para essas forças o veículo de ascensão que, no entanto, devido a seu estilo político, enquadram e dominam. Daí a grita da reação nos últimos meses, temendo que JQ tivesse aprendido a lição e retornado com concepções alteradas. Como tal não se deu...

Jânio Quadros, por seu lado necessita uma imediata recuperação e como permanece o mesmo homem que sempre foi, tentará reeditar experiências anteriores, parcialmente vitoriosas em âmbito municipal e estadual, mas impossíveis em plano nacional.

Precisa o ex-presidente, de novo, de uma legenda forte, de uma estrutura político-partidária que faça o papel que a UDN já representou. De posse de semelhante instrumento pode tentar uma das duas seguintes empreitadas: postular a governança paulista, ou voltar ao cenário federal através do legislativo.

Consideramos a primeira hipótese como a menos coerente, do ponto de vista janista, não só porque representaria, para o estágio de desenvolvimento do político, um retrocesso, mas também porque o esquema situacionista de São Paulo poderia vir a ser uma parcela da sustentação necessária para o salto ao Parlamento. Segunda hipótese, esta, que acreditamos ser o objetivo natural, dentro das atuais circunstâncias, para o prosseguimento da ação política do Sr. Jânio Quadros, dado que através do Parlamento pode chegar novamente ao Executivo federal na qualidade de primeiro-ministro.

Os fatos, referimo-nos aos que vem se desenvolvendo desde a declaração conjunta dos Srs. Carvalho Pinto e Jânio Quadros, parecem fortalecer a segunda das fórmulas, ainda que ambíguo seja aquilo que ninguém sabe se e efetivamente um rompimento verdadeiro e definitivo. Caso o mesmo se concretize, ou o ex-presidente apresenta os primeiros sintomas de uma alteração de seus preceitos políticos, ou, o que nos parece mais provável, o Sr. Jânio Quadros nada mais está tentando do que fazer uma demonstração de força e liderança que liquide com as dúvidas de alguns recalcitrantes, ao mesmo tempo que força a armação de um dispositivo que, partindo de São Paulo, provoque a alteração da composição do Legislativo federal a seu favor.

Para tanto necessita, como já dissemos, de um esquema do tipo da campanha presidencial, e não vemos porque não viria a contar com a maior parte das forças que o apoiaram em 1960. Se as mesmas encamparam Jânio presidente, o que não pensam fazer com Jânio presidente de um gabinete escorado numa Câmara direitista, ou pelo menos para-direitista?

Se o Sr. Jânio Quadros quer se conservar objetivamente como representante de suas conhecidas teses, só lhe resta abandonar a política. Por outro lado, se sua ânsia de poder o espicaça, como parece, não tem outra alternativa a não ser morrer como dono de ideais equidistantes das classes sociais e passar ao serviço de uma delas. A curto prazo só pode ser títere do reacionarismo. Se outra coisa deseja ser, deve primeiro enterrar o Jânio que existe e a longo prazo esforçar-se por vir a merecer o apoio dos progressistas. Haverá tempo suficiente?

De qualquer forma, inexistem condições para a subsistência do Jânio tradicional, tal qual ele mesmo se concebe. Este, politicamente, em termos objetivos, está definitivamente sepultado.


Inclusão: 27/04/2023