Entrevista a Maurício Santana Dias

Carlos Nelson Coutinho

21 de Novembro de 1999


Primeira Edição: Folha de S. Paulo. Caderno Mais!, 21 nov. 1999. Entrevista realizada por Maurício Santana Dias

Fonte: https://www.acessa.com/gramsci/?page=visualizar&id=326

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


No dia 8 de novembro de 1926, o deputado e secretário-geral do PCI (Partido Comunista Italiano), Antonio Gramsci (1891-1937), foi preso pelas forças de Mussolini. Dois anos mais tarde, em seu julgamento, o promotor teria afirmado: "É preciso impedir que esse cérebro funcione por 20 anos". Gramsci foi então condenado a uma pena pouco maior que essa, da qual cumpriu mais de dez anos. No cárcere, entre 29 e 35, produziu uma das mais importantes obras de reflexão política do século.

Foi numa carta de 19 de março de 27 que Gramsci manifestou pela primeira vez o desejo de escrever um estudo de fôlego. Algo que transcendesse os artigos que publicava nos jornais de esquerda e o ajudasse a superar a miséria da vida carcerária. Nele, Gramsci buscou sobretudo reelaborar e ampliar as concepções marxistas sobre a sociedade, a cultura e o Estado modernos, propondo uma via democrática ao comunismo.

Entretanto Gramsci teve de esperar até fevereiro de 29, quando o diretor do presídio de Turi, na região de Bari (Itália), finalmente lhe permitiu estudar e escrever na cadeia. Com uma grafia legível, miúda e sem emendas, ele preencheu durante seis anos seguidos — até abril de 35, quando sua saúde se agravou — 32 cadernos de capa dura, três deles dedicados exclusivamente a exercícios de tradução.

São esses Cadernos do Cárcere que começam a chegar às livrarias do país a partir de dezembro, quando a Civilização Brasileira lançará o primeiro dos seis volumes. Além disso, estão previstos outros cinco volumes: dois reunindo os escritos pré-carcerários e três com as cartas do cárcere [Estas Cartas foram integralmente publicadas em dois volumes, em 2005]. A edição e tradução das obras completas ficaram a cargo do professor titular de teoria política da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) Carlos Nelson Coutinho, tradutor de Gramsci nos anos 60, e dos co-editores Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira. Gramsci é tema também do livro de Norberto Bobbio, Ensaios sobre Gramsci e o Conceito de Sociedade Civil, agora publicado pela Paz e Terra.

Movido pelo "pessimismo da inteligência e o otimismo da vontade" — o "mote" dos Cadernos—, esse intelectual nascido na Sardenha, de origem proletária, medindo pouco mais de 1,50 m, deixou uma obra que, na opinião das personalidades ouvidas pela Folha (leia abaixo), não perdeu o vigor e a atualidade — ao contrário do que ocorreu com outras vertentes do pensamento marxista.

Além de ter reformulado as bases do pensamento político de esquerda, Gramsci foi um criativo analista da imprensa, da literatura, do teatro, das instituições de ensino, dos intelectuais — aos quais atribuiu um papel fundamental na transformação da sociedade. Um pensador que, da prisão, preocupou-se com a totalidade dos fenômenos que cercavam o homem do seu tempo, como afirma Coutinho na entrevista abaixo.

Folha - A década de 90 assistiu ao colapso do "socialismo real" e, também, a uma retração do pensamento marxista. Agora começa a ser lançada no Brasil a edição completa dos Cadernos do cárcere. Qual o sentido dessa publicação?

Carlos Nelson Coutinho - Não é justo dizer que o pensamento marxista sofreu uma retração. O fim do chamado "socialismo real" representou a crise terminal de uma específica leitura de Marx, o chamado "marxismo-leninismo", hábil pseudônimo de stalinismo. Essa leitura serviu de ideologia de Estado para aqueles regimes ditos "comunistas", os quais, a meu ver, nada mais tinham a ver com o marxismo. Mas o fato é que alguns autores marxistas até começaram a ser lidos com mais atenção depois do colapso do "socialismo real". Entre eles, eu destacaria os integrantes da Escola de Frankfurt (em particular Walter Benjamin), mas, sobretudo, Antonio Gramsci. Embora sejam muito diferentes entre si, Benjamin e Gramsci nada têm a ver com o "marxismo-leninismo". Republicar Gramsci tornou-se, assim, uma demanda real. Quando ele foi publicado aqui, parcialmente, em meados dos anos 60, chegamos a dispor em português de uma massa de textos que, com exceção do italiano e do espanhol, não estava disponível ainda em nenhuma outra língua. Gramsci foi lido, reeditado, utilizado dentro e fora da universidade, em vários campos, da teoria política à antropologia, da crítica literária à pedagogia e ao serviço social. Penso que o sentido dessa nova edição é torná-lo mais bem conhecido no Brasil e, desse modo, propor um novo debate sobre suas idéias. E isso precisamente no momento em que parece estar começando a ruir a hegemonia do "pensamento único", neoliberal. 

Folha - O sr. foi um dos responsáveis pela divulgação de Gramsci no Brasil, a partir dos anos 60. Considerando as grandes transformações que ocorreram de lá para cá, não só no país, quais as suas expectativas quanto à recepção dessa obra?

Coutinho - Gramsci é hoje uma referência essencial para boa parte da esquerda e centro-esquerda brasileiras, do PSTU (Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado) ao PPS (Partido Popular Socialista), passando pelas várias correntes do PT (Partido dos Trabalhadores). Não só: até mesmo o presidente Cardoso, numa entrevista à Veja, usou Gramsci para justificar suas posições políticas neoliberais. Embora os Cadernos do cárcere possuam uma articulação interna sistemática, a sua forma de apresentação é claramente fragmentária: isso parece permitir interpretações ilimitadas, como se a obra de Gramsci fosse uma "obra aberta".

Não creio que o seja: Gramsci era um comunista, refletiu sobre as condições da revolução socialista no que ele chamou de "Ocidente", propondo uma estratégia diversa daquela dos bolcheviques na Rússia de 1917. Mas o fato de que sua interpretação provoque acesos debates, que tanto o PSTU quanto o presidente Cardoso possam citá-lo com aprovação, parece-me uma prova de que é preciso relê-lo com atenção.

Folha - Em que condições Gramsci escreveu os cadernos?

Coutinho - Em condições muito difíceis. Preso pelo fascismo em 1926, só em 1929 ele teve autorização para escrever em sua cela. A partir de então, e até 1935, quando suas condições de saúde o impediram definitivamente de trabalhar, preencheu 32 cadernos escolares, que ocupam cerca de 3.000 páginas impressas. Três deles eram formados por exercícios de tradução, sobretudo do russo e do alemão. Os outros 29 contêm apontamentos de sua autoria. O próprio Gramsci os dividiu em "cadernos miscelâneos" e "cadernos especiais". Nos "miscelâneos", juntou notas sobre variadíssimos temas; nos "especiais", em geral mais tardios, tentou agrupar essas notas segundo temas específicos, como "Introdução ao Estudo da Filosofia", "Para uma História dos Intelectuais", "Americanismo e Fordismo" etc.

Folha - Nos anos 60, os marxistas mais influentes eram Louis Althusser e Herbert Marcuse  além do marxismo-leninismo, orientado pelo PC soviético. Como o pensamento de Gramsci se inseriu nesse contexto?

Coutinho - Com muita dificuldade. Antes que ocorresse a influência de Althusser e de Marcuse, alguns intelectuais comunistas — entre os quais me incluo — tentaram renovar a cultura teórica do PCB, que naquele momento já competia com outras correntes progressistas, como os cristãos de esquerda. Fomos apoiados nessa iniciativa por Ênio Silveira, que então dirigia a Civilização Brasileira. Gramsci, juntamente com Lukács e Sartre, representou na época uma renovação do marxismo nos campos da filosofia e da crítica literária. Deixamos de lado o fato de que Gramsci era o maior teórico político marxista do século 20. Não o fizemos intencionalmente, mas criamos assim uma tácita "divisão do trabalho": a direção do PCB decidia sobre a linha política, enquanto nós tentávamos definir a linha cultural. Isso não deu e não podia dar certo: quando a linha "moderada" do PCB começou a ser criticada, também foram criticados Gramsci e Lukács. É o momento em que Marcuse esgota edições a cada três meses e Gramsci é vendido em estantes de saldo a preço de banana. As coisas hoje mudaram. Gramsci continua a ser lido, enquanto ninguém mais lê Marcuse. Mas não digo isso com espírito revanchista: é uma pena que ninguém mais leia Marcuse. Ele, com seu salutar radicalismo, tem muito a nos dizer.

Folha - Em fins dos anos 60, grande parte da esquerda radicalizou suas ações contra o regime militar e partiu para a luta armada  sob a influência de Mao, Trotski e Fidel Castro. Isso teria contribuído para o "pé atrás" em relação às teorias gramscianas?

Coutinho - Muito provavelmente. Gramsci propunha algo diverso: para ele, em países mais complexos socialmente, como já era o caso do Brasil naquele momento, a estratégia era outra. Em vez da luta armada, da "guerra de movimento", devíamos adotar a "guerra de posição", a luta progressiva pela hegemonia etc. O PCB até fazia isso, mas o fazia tão malque era difícil convencer quem não fosse um disciplinado militante. Assim, num terreno marcado pela disputa entre Mao, Fidel e Brejnev, não havia nenhum lugar para Gramsci, o que foi péssimo para a esquerda brasileira. Só no final dos anos 70 é que Gramsci voltou a ser lido e a ter influência. Isso ocorreu sobretudo porque, naquele momento, entraram em crise tanto o "sovietismo" do PCB quanto as ilusões da chamada "esquerda armada".

Folha - Em que medida os conceitos gramscianos de "hegemonia" e "sociedade civil" renovaram o pensamento marxista?

Coutinho - Foi principalmente por causa deles que o marxismo se tornou contemporâneo do século 20 e, espero, também do século 21. Gramsci percebeu que, a partir da segunda metade do século 19, havia surgido uma nova esfera do ser social capitalista: o mundo das auto-organizações, do que ele chamou de "aparelhos privados de hegemonia". São os partidos de massa, os sindicatos, as diferentes associações — tudo aquilo que resulta de uma crescente "socialização da política". Ele deu a essa nova esfera o nome de "sociedade civil" e insistiu em que ela faz parte do Estado em sentido amplo, já que nela têm lugar evidentes relações de poder. A "sociedade civil" em Gramsci é uma importante arena da luta de classes: é nela que as classes lutam para conquistar hegemonia, ou seja, direção política, capacitando-se para a conquista e o exercício do governo. Ela nada tem a ver com essa coisa amorfa que hoje chamam de "terceiro setor", pretensamente situado para além do Estado e do mercado.

Ao descobrir essa nova esfera, ao dar-lhe um nome e ao definir seu espaço, Gramsci criou uma nova teoria do Estado. O Estado, para ele, não é mais o simples "comitê executivo da burguesia", como ainda é dito no Manifesto comunista, mas continua a ser um Estado de classe. Contudo, o modo de exercer o poder de classe muda, já que o Estado se amplia graças à inclusão dessa nova esfera, a "sociedade civil". Buscar hegemonia, buscar consenso, tentar legitimar-se: tudo isso significa que o Estado deve agora levar em conta outros interesses que não os restritos interesses da classe dominante. Com isso, Gramsci chegou a compreender o tipo de Estado que é próprio dos regimes liberal-democráticos, um Estado bem mais complexo do que aquele de que falam Marx e Engels no Manifesto ou Lenin e os bolcheviques no conjunto de sua obra.

Folha - O que é a chamada "revolução passiva"?

Coutinho - Esse é outro conceito central em Gramsci. Indica eventos concretos nos quais a classe dominante, reprimindo ou excluindo as demais, empreende processos de renovação "pelo alto", autoritários ou ditatoriais. Indica também épocas históricas em que a classe dominante, tentando excluir os "de baixo", recolhe algumas de suas demandas, mas impedindo que eles sejam protagonistas nos processos de transformação.

Para Gramsci, por exemplo, foram "revoluções passivas" tanto o fascismo quanto o "fordismo". Parece-me um grande equívoco, infelizmente adotado hoje por alguns autores brasileiros, ver na "revolução passiva" uma coisa também positiva, algo que a esquerda pode usar em sua luta pela transformação da sociedade. Gramsci a considerava um fenômeno negativo, já que é uma modalidade de transformação utilizada pelas classes dominantes para conservar o seu poder. Um político brasileiro, o velho mineiro Antonio Carlos (agora imitado pelo seu homônimo baiano), resumiu muito bem o espírito da revolução passiva, quando, em 1930, afirmou: "Façamos a revolução antes que o povo a faça". A chamada Revolução de 30, aliás, é um caso emblemático de "revolução passiva".

Folha - Gramsci faz uma distinção entre dois modelos básicos de sociedade: as "orientais" (pouco diversificadas) e as "ocidentais" (muito complexas). Como situar o Brasil nesse quadro?

Coutinho - Para Gramsci, no "Oriente" (e ele está pensando principalmente na Rússia czarista), o Estado em sentido estrito é tudo e a sociedade civil é primitiva e gelatinosa; no "Ocidente" (e ele está pensando na Europa Ocidental e nos EUA), há um equilíbrio entre as duas esferas. Foi a partir dessa distinção que ele não só renovou a teoria do Estado, mas também se empenhou em criar um novo paradigma de revolução socialista, adequado ao "Ocidente", diverso daquele dos bolcheviques, que seria válido apenas para países "orientais".

O Brasil foi claramente "oriental" durante o Império e a República Velha. A partir de 30, com interrupções, houve um processo de "ocidentalização", de crescimento e complexificação da sociedade civil. Hoje, penso que já somos uma sociedade "ocidental". Claro, um "Ocidente" periférico e tardio, que contém em seu interior vastas zonas "orientais". Mas esse era também o caso da Itália nos anos 30, e Gramsci não hesitou em considerá-la "Ocidente".

Por isso, um caminho viável para o socialismo no Brasil não pode ser concebido a partir do que existe aqui de "orientalidade", mas deve respeitar essa "ocidentalidade" e se basear numa paciente batalha pela hegemonia, pela conquista de espaços na sociedade civil. Embora a expressão não seja de Gramsci, agrada-me chamar esse caminho de "reformismo revolucionário".

Folha - Gramsci atribuía à cultura, à superestrutura, uma dimensão política que foi subestimada pelo marxismo ortodoxo  muito preso ao determinismo econômico. Quais as implicações dessa abordagem?

Coutinho - Certamente, entre os marxistas, Gramsci foi um dos que mais valorizaram a cultura e seu papel não só na transformação da sociedade, mas também na sua conservação. Essa valorização é um dos momentos constitutivos do seu conceito de hegemonia. Em Gramsci, hegemonia não é apenas direção política, mas também cultural, isto é, obtenção de consenso para um universo de valores, de normas morais, de regras de conduta. Mas é preciso observar o seguinte: embora tenha ligado a cultura à "grande política", que definia como um momento de liberdade e de universalização, Gramsci sempre combateu a instrumentalização política da cultura, sempre respeitou sua autonomia, sua especificidade. Ou seja: a arte, assim como a cultura em geral, não se faz apenas com boas intenções políticas.

Folha - Os cadernos foram escritos antes que houvesse TV, Internet, mídia eletrônica -- o que se tem chamado de "quarto poder". Como um gramsciano avaliaria a emergência desse novo fenômeno?

Coutinho - Na medida em que o mundo da mídia continua a ser propriedade privada de pequenos grupos da classe dominante, isso provoca um indiscutível desequilíbrio na disputa pela hegemonia. A nova mídia eletrônica, sobretudo a TV, tem um peso inegável na formação da opinião pública, na construção da cultura que está na base das relações de hegemonia. Mas essa nova mídia também está imersa na sociedade civil e sofre sua influência. Lembro que, na campanha pelas Diretas-já, em 84, a Globo começou simplesmente ignorando o movimento. Mas, a partir de um certo momento, à medida que a campanha se tornava de massa, não só foi pressionada a "repercutir" a campanha, mas até mesmo assumiu um tom simpático a ela.

Também aqui, portanto, trata-se de lutar pela conquista de espaços no interior da mídia, o que significa lutar por sua efetiva democratização. Isso implica não só uma pressão da opinião pública, mas também a elaboração de uma legislação adequada, que desprivatize o controle da mídia e o torne efetivamente público. Isso não é sinônimo de estatização, mas sim de controle efetivo pela sociedade civil. Se o rádio e a televisão são uma concessão pública, devem evidentemente ser publicamente controlados. Em suma, um gramsciano veria o mundo da mídia como mais um espaço de luta pela hegemonia. Nesse sentido, ele estaria mais próximo de Benjamin, que supunha ser possível utilizar revolucionariamente a "reprodutibilidade técnica" da cultura, do que de Adorno e Horkheimer, que condenam em bloco o que chamam de "indústria cultural". 


Inclusão 05/07/2019