Liberal-socialismo: um sorvete quente? 

Carlos Nelson Coutinho

Abril de 2002


Primeira Edição: Especial para Gramsci e o Brasil. Texto originalmente publicado na Folha de S. Paulo, 13 abr. 2002.

Fonte: https://www.acessa.com/gramsci/?page=visualizar&id=86

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


Walquiria Domingues Leão Rego. Em busca do socialismo democrático. O liberal-socialismo italiano: o debate dos anos 20 e 30. Campinas: Unicamp, 2001. 231p.

No século XX, a Itália foi palco de uma esplêndida floração do pensamento político, talvez só semelhante àquela que experimentou no século de Maquiavel. Uma floração que abrangeu diferentes correntes ideológicas e interpretativas, que vão do elitismo de Mosca e Pareto ao corporativismo fascista de Gentile e Ugo Spirito, do liberalismo de Croce ao marxismo de Gramsci e Togliatti. Em quase todas as vertentes teórico-políticas entre as que se travou a dura batalha de idéias (e não só de idéias) no “século dos extremos”, pode-se encontrar um expressivo pensador italiano de estatura universal. E muitos deles — basta pensar em Mosca e em Gramsci — continuam a ser lidos e a influenciar os rumos da teoria política neste início de século XXI.

Entre as várias vertentes que disputaram hegemonia na teoria política italiana do século passado, há uma que nem sempre mereceu, pelo menos no Brasil, a devida atenção: o chamado “liberal-socialismo”, que — no dizer de um seus expoentes, Guido Calogero — apresentava-se como uma proposta de superação das “insuficiências unilaterais do liberalismo e do socialismo”. Decerto, um dos expoentes mais tardios desta vertente, Norberto Bobbio, tornou-se universalmente conhecido. Mas pouco se sabe no Brasil sobre as origens políticas e intelectuais de Bobbio, que remontam em grande parte a este caldo de cultura liberal-socialista forjado na Itália dos anos 20 e 30.

É grande mérito de Walquíria Domingues Leão Rego ter apresentado, neste seu recente e belo livro, uma ampla e bem informada análise textual e contextual do liberal-socialismo italiano — análise que, de resto, não pretende ser apenas uma pesquisa erudita de coisas mortas, mas contribuição para um debate extremamente atual, precisamente aquele sobre os vínculos entre socialismo e democracia. Walquíria não busca apenas expor o que disseram os liberais-socialistas (o que faz, de resto, com grande correção filológica), mas também sugerir que a proposta por eles formulada continua atual diante da tarefa de buscar aquilo que, já no título do seu livro, ela chama de “socialismo democrático”. Portanto, como toda boa produção de teoria política, o livro de Valquíria é simultaneamente analítico e propositivo.

Penso ser possível sugerir que, neste livro, há uma contradição entre os planos propositivo e analítico. Walquiria assim resume sua proposição: “A manutenção da força analítica do marxismo, como crítica radical do capitalismo, [...] [pode] ser revigorada [...] se assimilar [...] o princípio de que liberalismo político e socialismo podem se interpenetrar teoricamente” (p. 216). Portanto, Walquíria assume, em última instância, a proposta do próprio liberal-socialismo, tal como foi expressa por Calogero na frase acima citada, quando fala em “insuficiências unilaterais” do liberalismo e do socialismo.

Tal proposta poderia ser objeto de uma crítica externa: o déficit democrático de um certo tipo de socialismo não pode ser sanado com o recurso ao liberalismo, mas sim com a explicitação da ineliminável dimensão democrática presente na reflexão dos próprios Marx e Engels e de seus mais lúcidos continuadores. (Uma crítica que, de resto, Walquíria não desconhece, já que nos fala da existência, nos liberais-socialistas, de uma “confusão entre liberalismo e democracia” [p. 205].) Contudo, parece-me aqui mais útil propor uma crítica imanente: no plano analítico do seu livro, a própria Walquíria nos mostra a inconsistência da proposta “liberal-socialista” por ela objetivamente adotada.

Tomemos, inicialmente, o caso de Piero Gobetti, o jovem intelectual liberal que se tornou amigo de Gramsci e colaborou no “cotidiano comunista” L’Ordine Nuovo. Walquíria põe Gobetti na gênese do movimento que levaria ao liberal-socialismo; contudo, como ela mesma nos diz, Gobetti era explicitamente contrário ao socialismo enquanto modo de produção. Ele defendia, juntamente com o liberalismo político, também o liberismo econômico. Mas julgava que a burguesia italiana, que tomara o poder com o Risorgimento, fracassara em sua missão de promover uma verdadeira “revolução liberal” na Itália, já que aderira ao protecionismo e à corrupção. Via assim no proletariado de Turim, com cujas lutas simpatizava, o sujeito de uma nova revolução na Itália, mas não de uma revolução socialista e, sim, de uma verdadeira revolução liberal. Essa simpatia pelo proletariado o aproximou de Gramsci, que — em “Notas sobre a questão meridional”, de 1926 — sugere que tal simpatia poderia ter levado Gobetti a ulteriores desenvolvimentos teóricos e políticos. Mas Gobetti morreu aos 25 anos, pouco antes da redação do texto de Gramsci, e não teve assim o tempo necessário para efetuar tais desenvolvimentos e superar a evidente contradição contida em suas posições teóricas e práticas. De qualquer modo, sua juvenil tentativa de juntar liberalismo e proletariado não indica nenhuma pista para conjugar democracia e socialismo.

No que se refere a Aldo Capitani e, sobretudo, a Guido Calogero — os primeiros a tentar teorizar o “liberal-socialismo” —, concordamos inteiramente com Walquíria quando, referindo-se ao que eles concebiam como socialismo, nos diz: “O socialismo é entendido como [...] justiça social com amplas liberdades. Aqui ele [o socialismo] é, antes de tudo, um ideal ético [...]. O sentido do que seria uma economia socialista nunca será tematizado rigorosamente por estes homens” (p. 124). Quanto a Carlo Rosselli, é ainda Walquíria quem nos informa que o seu “socialismo liberal” (expressão por ele preferida a “liberal-socialismo”) previa “uma economia mista organizada em dois setores” (p. 125). Tampouco Bobbio, o último e mais famoso expoente do chamado liberal-socialismo, jamais se deu o trabalho de definir em sua obra o que entende por socialismo. Então, o que resta? Socialismo como “ideal ético”, como “economia mista” — ou seja, o socialismo tal como é entendido por uma tendência que, de Bernstein à atual direita do PT (desculpem-me a remissão a um fato de conjuntura!), falam em socialismo precisamente com o objetivo de negá-lo como uma nova formação social, situada para além do capitalismo.

O liberal-socialismo, portanto, malgrado a simpatia que podemos experimentar diante de seus formuladores, não passa de sorvete quente. Essa íntima contradição certamente explica o fracasso do Partido de Ação, criado pelos liberais-socialistas italianos no final da Segunda Guerra, que obteve pouco mais de 1% dos votos nas eleições de 1946. Não me parece ter sido casual que a verdadeira força política a defender conseqüentemente o socialismo e a democracia na Itália tenha sido, enquanto existiu, o gramsciano — e, portanto, marxista — Partido Comunista Italiano. Estamos certamente diante de questões que demandam muito mais espaço do que o de uma simples resenha. Mas são questões decisivas para o futuro da esquerda e, provavelmente, da humanidade. Só nos resta agradecer a Walquiria Leão Rego ter usado de escrúpulo filológico e de imaginação política para repropô-las em seu belo livro.


Inclusão 05/07/2019