Os intelectuais na luta contra o fascismo

Álvaro Cunhal

Abril de 1964


Primeira Edição: Rumo à Vitória, in Obras Escolhidas, Edições «Avante!», Lisboa, t. III, 2010, pp. 171-173

Fonte: http://www.omilitante.pcp.pt/pt/326/alvaro_cunhal_centenario/817/%C3%81lvaro-Cunhal-a-arte-e-os-intelectuais.htm?tpl=142

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


«Ao lado do povo, os intelectuais estão contra o fascismo. Tudo quanto há de melhor na ciência, na literatura, na arte, nas profissões liberais, está pela democracia, a paz, o progresso social. A ditadura fascista não conseguiu nem ganhar, nem corromper, nem abafar a voz dos intelectuais portugueses. Nem a censura, nem a apreensão de livros, nem a liquidação de jornais e revistas, nem a proibição do trabalho científico, nem a fiscalização e a supervisão fascistas das associações culturais, nem o encerramento de muitas, puderam impedir a formação e desenvolvimento do poderoso movimento democrático da nossa intelligentsia.

«Como pode isto suceder num país em que há 40% de analfabetos, em que 70% dos habitantes nunca frequentaram uma escola? Num país em que a tiragem total dos jornais diários, quase todos dominados directamente pelos grupos monopolistas, não atinge 80 exemplares por 1000 habitantes e por dia?Em que as tiragens das obras literárias não ultrapassam em geral os 5000 exemplares? Em que cada 1000 habitantes têm menos de 100 postos de rádio e 5 de televisão? Em que, em média, cada português vai ao cinema menos de três vezes por ano e ao teatro uma vez em 10 anos? Em que a ditadura tira o pão, demite, força ao exílio, persegue, faz prender, os melhores cientistas, escritores e artistas?

«A atitude geral dos intelectuais portugueses contra a ditadura fascista é, por um lado, a manifestação do isolamento desta, da falta de uma base de massas, da sua política obscurantista; é, por outro lado, a manifestação da amplitude do movimento democrático, do facto que este ganhou todas as classes e camadas da população não monopolistas.

«A atitude geral dos intelectuais portugueses contra a ditadura fascista é uma luta corajosa e desassombrada. Os intelectuais antifascistas declaram-no abertamente, e na actividade profissional, no comportamento cívico, na vida artística, na acção política, tomam atitudes correspondentes a essa qualidade. Se fossem poucos, o fascismo tê-los-ia há muito eliminado. Mas eles são mais e são melhores e têm a apoiá-los as massas populares.

«Nas grandes batalhas políticas contra o fascismo, os intelectuais aparecem nas primeiras filas. Eles manifestam-se contra a política governamental. Eles protestam contra a repressão e os crimes das autoridades. Eles reclamam as liberdades democráticas. Eles defendem o direito à instrução e à cultura. E fazem-no tomando a responsabilidade da sua atitude, assinando corajosamente as suas opiniões e reclamações.

«E não só isso. Animados pelo amplo movimento democrático de opinião, encorajados pela resistência das massas populares contra o fascismo, conhecidos pelo povo e ligados ao povo, eles têm conseguido, no domínio da sua actividade própria, defender e dignificar a cultura portuguesa, apesar de trabalharem nas condições de uma ditadura fascista.

«Só a vitalidade e a amplitude do movimento democrático, só um movimento revolucionário com profundas raízes no povo, tornou possível que, em condições tão adversas, particularmente na literatura, se tenha criado, desenvolvido e ganhado uma expressão superior um grande movimento realista, profundamente ligado à criação popular e às aspirações populares. Apesar de amordaçada, de impedida duma expressão clara, de perseguida pela censura e pela polícia, a voz do proletariado, dos camponeses, da pequena burguesia radicalizada, por intermédio de artistas talentosos, eleva o conto, o romance e a poesia a um nível geral raras vezes atingido na história (aliás tão rica) da literatura portuguesa.

«Romancistas como Ferreira de Castro, Namora, Castro Soromenho, contistas como Torga, Domingos Monteiro, Manuel da Fonseca e Branquinho da Fonseca, dramaturgos como Rebelo e Santareno, críticos como Óscar Lopes e Dionísio, têm dado corajosa e esclarecida contribuição à luta contra o fascismo e à defesa da cultura. Citam-se apenas alguns nomes, entre os mais significativos, mas poderiam citar-se centenas de outros talentosos escritores. O mesmo em relação à poesia. São de tal forma dominantes as tendências democráticas na literatura que se pode afirmar sem qualquer sombra de exagero: a literatura portuguesa de hoje é a literatura enraizada no movimento popular antifascista.

«Na pintura e no desenho, na escultura e na música, embora de formas menos nítidas, um grande movimento progressivo domina o panorama nacional. Lopes-Graça, Lima de Freitas, Pomar, tantos e tantos outros são conhecidos e respeitados pelo povo, a cujas aspirações ligaram o seu trabalho criador.

«Mesmo em grande parte da literatura e arte influenciada pelo formalismo, nós encontramos (a par das deficiências de expressão) o reflexo tanto da obstinada resistência dos escritores, dos poetas, dos artistas a servirem o fascismo, como da ânsia de uma aproximação com o povo e a sua luta.

«Tal como na arte, também na ciência e na técnica os melhores valores estão com a democracia. Pelo seu alto valor como profissionais e pela sua corajosa luta contra o fascismo são bem conhecidos os nomes dos professores universitários demitidos, de investigadores, de médicos, de arquitectos, de engenheiros, para citar os quais seriam necessárias muitas linhas. Alguns dos melhores foram forçados a exilar-se para países distantes, onde prestigiam os cientistas portugueses. Valadares trabalha em Paris, Ruy Gomes ensina no Brasil, Aniceto Monteiro na Argentina.

«O grande movimento democrático dos intelectuais portugueses é um factor de importância primordial para o desenvolvimento geral do movimento antifascista até à vitória contra a ditadura e para a realização das tarefas que depois se colocarem ao povo português. As forças democráticas portuguesas têm já hoje os quadros necessários para dar um primeiro impulso ao desenvolvimento geral do País no Portugal democrático de amanhã.

«Tem-se assistido nos últimos tempos a uma pertinaz ofensiva policial contra escritores, actores, médicos, engenheiros, economistas. Essa ofensiva não fará senão reforçar o espírito combativo dos intelectuais e as suas ligações com o povo.»


Inclusão: 28/12/2019