Portugal: a liberdade tem cinco anos

Álvaro Cunhal

abril de 1979


Origem: entrevista para o jornal Voz Operária, do Brasil.

Fonte: Voz Operária nº 157 - Abril de 1979 - obtido no CEDEM da Unesp - Fundo Asmob

Transcrição: Lucas Pereira.

HTML: João Victor Bastos Batalha.

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A luta do povo português pela liberdade, pela democracia e pela justiça é algo que, além de nos interessar — como a tantos outros povos —, nos comove particularmente. Cinco anos depois das jornadas históricas de Abril de 1974, Voz Operária ouviu um dos mais dignos e legítimos representantes do povo português, e sem dúvida o mais autorizado a analisar a situação do ponto de vista dos trabalhadores, o secretário-geral do Partido Comunista Português, camarada Álvaro Cunhal.

V.O. - Camarada Cunhal, como você veria hoje os benefícios trazidos ao povo português pelo 25 de Abril de 1974?

Cunhal - O 25 de Abril mudou radicalmente a situação portuguesa. O povo português viveu 50 anos sob uma ditadura fascista; hoje vive em liberdade. Viveu submetido ao poder político de meia dúzia de grandes grupos monopolistas e de algumas centenas de latifundiários; hoje as empresas desses grupos continuam nacionalizadas, os grupos não se reconstituir e uma grande parte dos latifúndios continuam nas mãos dos trabalhadores, organizados em Unidades Coletivas de Produção (UCPs) e Cooperativas. Viveu os 13 últimos anos de ditadura mergulhado no crime de três guerras coloniais; hoje vive em paz e pode estabelecer relações de amizade fraternal com os povos outrora submetidos ao colonialismo português e constituindo hoje Estados independentes.

As forças reacionárias lançam grandes e violentas ofensivas contra as conquistas da Revolução. Existe um governo reacionário, que, desrespeitando a Constituição, as instituições e as leis, intensifica essa ofensiva. Mas o movimento operário, popular e democrático é poderoso. Confiamos em que o povo português conseguirá defender com êxito o regime democrático conquistado com a revolução.

V.O. - Sabemos que a forma assumida pela queda do fascismo em Portugal decorreu de uma série de contingenciamentos e foi resultante da ação conjugada de forças díspares. Mas gostaríamos de saber como o PCP vê hoje o que houve então e a evolução posterior deste processo.

Cunhal - As divisões no seio do Movimento das Forças Armadas e a aliança do Partido Socialista com as forças da direita contra as transformações das estruturas sócio-econômicas (designadamente contra a reforma agrária, as nacionalizações e o controle operário) conduziram a conflitos, confrontos e, finalmente, em Novembro de 1975, à derrota da Esquerda Militar. Depois disso, os sucessivos governos (a começar pelo Governo do PS, o partido mais votado nas eleições) tomaram como direção da sua atividade a liquidação das transformações revolucionárias alcançadas. Ainda não o conseguiram, mas a ofensiva continua.

Entretanto, com tal política, não resolvem um único dos grandes problemas nacionais e a situação econômica, financeira, social e política continua a agravar-se. Os interesses nacionais exigem uma viragem na política nacional, com a constituição de um governo democrático com uma política democrática.

V.O. - Como evoluiu a solidariedade internacional à luta do povo português nesses cinco anos, qual é o quadro atual e quais são as perspectivas?

Cunhal - O povo português recebeu numerosas provas de apoio e solidariedade de todas as partes do mundo, designadamente da URSS e outros países socialistas, de partidos irmãos, dos povos outrora submetidos ao colonialismo português e de suas vanguardas revolucionárias. Mas é também justo dizer que em momentos capitais talvez não tenha sido compreendida por todos a natureza e a importância européia e mundial da revolução portuguesa e não tenha sido prestada a solidariedade de que o povo português carecia.

V.O. - Como se manifestou - e se manifesta - a reação internacional contra as conquistas do 25 de Abril?

Cunhal - Pressões diplomáticas e militares, ingerências na vida interna, boicote econômico e financeiro, ajuda poderosa à reação interna. Se não tivesse sido a ação do imperialismo contra a revolução portuguesa, as forças reacionárias internas teriam sido derrotadas de uma vez para sempre.

As imposições do FMI ruinosas para a economia portuguesa, o projeto de integração no Mercado Comum com a exigência simultânea da restauração em Portugal do capitalismo monopolista e as pressões políticas e militares da OTAN, à qual Portugal pertence, são no momento presente três aspectos capitais da ingerência imperialista contra a nossa democracia e a nossa independência nacional.

V.O. - O que propõe o PCP para tirar Portugal da crise e qual a receptividade de suas propostas entre as massas e as forças e correntes políticas?

Cunhal - O PCP propõe uma política baseada no respeito rigoroso pela Constituição, pelas liberdades e outras conquistas da revolução (designadamente nacionalizações, reforma agrária e controle operário), pela independência nacional. Fazemos propostas concretas. Defendemos a mobilização dos recursos e energias internas, o aumento da produção nacional, a diminuição de importações dispensáveis, a contenção dos empréstimos externos. Defendemos a formação de um governo democrático apoiado na maioria de comunistas e socialistas que existe na Assembléia da República. Não sendo possível a formação de um tal governo, propomos eleições gerais antecipadas. As propostas do PCP têm cada vez mais um apoio mais largo no país, porque se torna cada vez mais evidente que uma solução para os problemas nacionais só com os trabalhadores e com os comunistas podem ser alcançadas.

V.O. - Como você sabe, a anistia geral e irrestrita é hoje uma reivindicação do povo brasileiro e uma palavra de ordem prioritária em nosso país. Como decorreu esse processo em Portugal, do ponto de vista político e jurídico-institucional?

Cunhal - Ao longo de 48 anos de ditadura fascista, nunca houve em Portugal uma verdadeira anistia. Entretanto, a luta pela libertação dos presos políticos, apoiada pela solidariedade internacional, conseguiu fazer libertar um elevado número de antifascistas presos. É uma luta que exige grande tenacidade, forte espírito unitário e firme confiança no resultado, mesmo quando as possibilidades parecem de todo fechar-se. Do coração desejo que o povo brasileiro, o mais breve possível, tenha êxito na sua luta pela anistia e consiga libertar os seus presos políticos. Em Portugal, a libertação geral dos presos políticos só com o derrubamento do fascismo foi alcançada. Do coração desejo que o povo brasileiro, o mais breve possível, alcance também a liberdade.

V.O. - Como você resumiria os problemas e as vantagens criados pela passagem à legalidade de um partido como o PCP, obrigado a décadas de clandestinidade?

Cunhal - Antes de mais, no caso do PCP, deve ter-se em conta que não se tratou de “passar” à legalidade por transformações políticas verificadas no país sem intervenção do Partido. No caso do PCP tratou-se da conquista da legalidade no processo duma revolução em que o PCP representou importante papel. Nessas condições, procuramos manter tudo quanto de positivo o Partido adquiriu na luta clandestina e mudar tudo quanto se não adaptava à nova situação. Na Direção conservamos o sólido e experimentado núcleo dirigente, mas ampliamo-lo e enriquecemo-lo rapidamente com quadros novos revelados e educados na exaltante experiência da própria revolução. Na política de quadros, tendo naturalmente em conta as provas dadas por cada militante, eliminaram-se as distinções entre “velhos” e “novos” militantes, entre os que vinham da clandestinidade e os que vieram depois. Na organização, adotamos métodos mais maleáveis de admissão, embora mantendo um alto grau de militância.

V.O. - Como vai a “saúde” do PCP, atualmente?

Cunhal - Magnífica. Agora e sempre. No VIII Congresso, em novembro de 1976, o Partido tinha 115 mil membros. No balanço de janeiro de 1978, 142.512 militantes. De então para cá, os efetivos continuaram a crescer. A influência de massas, o prestígio e a capacidade de mobilização do Partido aumentam também. Temos uma vida interna dinâmica e democrática de todo o nosso grande coletivo partidário. Existe uma ligação estreita e diária entre a Direção Central, os organismos intermédios e toda a base do Partido. A unidade é completa. E o fato de o ser ao longo dos anos de luta em condições extremamente complexas é o melhor atestado da boa saúde do PCP.