Contribuição para o Estudo da Questão Agrária

Álvaro Cunhal

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Expoentes da Ciência Apologética


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A par do grande número de especialistas que, tendo estudado com atenção a situação alimentar do povo português, concluem pela sua extrema gravidade, outros "especialistas" abordam o problema sem qualquer ideia de investigar e conhecer o que se passa, mas com o propósito antecipado de "provar" que os trabalhadores portugueses comem o suficiente e que tudo corre, portanto, às mil maravilhas.

É hábito destes publicistas começarem a "investigação" pelas conclusões e buscarem depois "fundamentos" para elas. Tal processo leva directamente à eliminação imediata dos factos contrários às ideias feitas e à aceitação daqueles que lhes são favoráveis. Repelem-se, então, como inexactos, os mais exactos testemunhos e reproduzem-se, como realidades, puras invenções e fantasias.

Quando quaisquer factos ou opiniões se ajustam às ideias feitas, estes "especialistas" proclamam a sua indiscutível veracidade; quando as desmentem, estes especialistas põem-nas de lado, declarando, por vezes, sem qualquer cerimónia, que o fazem por não se ajustarem às ideias feitas. Não faltam nesses "estudos" aparato técnico, números, quadros, citações, calão científico. Toda esta roupagem engalanada não tapa, porém, o débil esqueleto, os ocos, os ridículos, de uma argumentação feita a martelo.

Um dos mais significativos exemplos deste tipo de "investigação" e apreciação "científica" é-nos dado por um ilustre professor universitário.(45)

Antes de apresentar os resultados da sua investigação pessoal, S. Ex.a começa por manifestar muitas dúvidas quanto aos resultados dos inquéritos, monografias e estudos, que concluem pela existência da subalimentação. Não discute o critério seguido, não demonstra a inexactidão das conclusões; limita-se a falar nos "resultados inaceitáveis ou que suscitam ao menos reservas", a sublinhar que "é imensamente mais fácil criticar, apontar erros ou insuficiências do que construir", e a referir, muito catedraticamente, as "extremas complexidades e dificuldades desses assuntos"(46), que só capacidades como a de S. Ex.a podem citar com possibilidades de êxito. Começa então, com a sua refinadíssima cultura, o estudo da situação alimentar do povo português na actualidade... fazendo a "história das condições alimentares da população, desde os tempos mais remotos"(47). Tira eruditas conclusões acerca da alimentação dos homens que viveram no solo português muito antes de existir Portugal. Vem depois por aí fora, século atrás de século, vencendo facilmente, à sua moda, as "extremas complexidades e dificuldades desses assuntos".

Afirma um escritor do século XVIII que, em 1787, a cidade do Porto, com 63.505 habitantes, consumia cerca de 12.000 bois e 4.000 vitelas anualmente? S. Ex.a põe imediatamente de lado o testemunho, "ou teríamos de supor que o portuense no fim do século XVIII comia cinco ou seis vezes mais carne de vaca e de vitela do que o do meado do século XX"(48) - forma esta de argumentar que, com razão reforçada, poria fora do ringue o facto verdadeiro, indiscutível e atestado pelas estatísticas oficiais, de que, em 1906-1915 cada portuense comeu em média anual 28 quilos de carne bovina e, em 1945, apenas 12 quilos.

Depois da sua digressão, com razões sempre igualmente brilhantes, acerca da alimentação do povo português, desde antes de ter começado a existir até aos dias de hoje, S. Ex.a entra, afoitamente, na actualidade. Há ensaístas que dizem ser suficiente a alimentação do povo português? S. Ex.a considera isso "opiniões fundadas"(49) (sem, aliás, dizer porquê). Refere um autor défices calóricos "sem gravidade"? S. Ex.a sublinha estas duas palavras. Há outros que se referem a níveis insuficientes de alimentação? Chama-lhes muito justiceiramente "improváveis"(50) depois de os ter tachado de "trabalhos de nulo ou discutível valor"(51). E arruma desse modo o debate. Afirma, em conclusão, que "o valor energético da alimentação portuguesa por unidade de consumo é, sem dúvida, em média satisfatório"(52). E, como, nestes assuntos extremamente complexos, é necessário provar o que se diz, S. Ex.a assim o faz com novos argumentos irrespondíveis. Porque garante S. Ex.a que não há subalimentação? Pela formidabilíssima razão de que, se assim não fosse, "é de surpreender que a nossa população tenha podido sobreviver a esse regime, realizar tarefas enormes e até experimentar acréscimos consideráveis dos seus quantitativos demográficos". "A subalimentação - explica S. Ex.a - traduzir-se-ia, logicamente, em enfraquecimento de vitalidade germinal, em sinais vários de depauperamento orgânico, de decadência"(53).

De onde se conclui que o povo português come o suficiente desde antes de Afonso Henriques e muito especialmente na actualidade, pelas seguintes fundamentais e deliciosas razões: lª. - porque existe ainda; 2ª. - porque a população tem aumentado e conserva a "vitalidade germinal"; 3ª. - porque não se notam quaisquer sinais de depauperamento orgânico, como, por exemplo, a tuberculose ou o raquitismo.

E dessa maneira se vencem as "extremas complexidades e dificuldades destes assuntos", e assim se "prova" que os trabalhadores portugueses se alimentam satisfatoriamente.

Que não pode certo haver suspeita
Numa mostra tão clara e tão perfeita.

Outro exemplo deste género de "investigação científica" é-nos dado por outra autoridade(54). Para este impagável autor, o problema da carência alimentar reside na má administração e esbanjamento pelas donas de casa. Segundo ele, "a arte de gastar está atrasada" e "a de ganhar aperfeiçoou-se ao máximo"(55). A grande questão é que a dona de casa, o "anjo do lar", faz gastos imoderados, quando "poderia gastar mais progressiva e racionalmente"(56). De onde se conclui estar a solução das dificuldades alimentares na "educação" dos consumidores(57) e, em particular, dos tais "anjos do lar" que (o autor não diz, mas adivinha-se) despendem elevadíssimas quantias nas modistas de vestidos e de chapéus, nas perfumarias e confeitarias, em táxis e na canasta.

Entrando propriamente na análise do problema e na acção educativa, o autor fala em calorias, capitações e outras coisas. Quando os números não chegam ou são particularmente indiscretos, o autor mete-os na ordem com inultrapassável brilhantismo. Se, por exemplo, os números lhe acusam uma capitação de 9,49 quilos de carne (o que já é, aliás, superior à capitação indicada nas estatísticas oficiais) o autor, distribuindo, gratuita e generosamente, 6 quilos de carne por cabeça, acrescenta, por sua conta, que a capitação deve ser antes de 15,6 quilos, além de que se come mais fruta que na Inglaterra e Alemanha e que o consumo de hortaliças "deve atingir cifras descompassadas na província"(58). E assim o autor

Festeja a companhia lusitana
com banquetes, manjares desusados,
com frutas, aves, carnes e pescados.

E, desse modo, "prova" que, em Portugal, há "uma capitação alimentar anual que ultrapassa notavelmente as da China e da Inglaterra na sua classe inferior e que tende à capitação alemã e inglesa, na superior"(59).

Depois de tão categóricas demonstrações de tão categorizados autores, deve reconhecer-se que, se nem sempre os trabalhadores do campo comem fritadas de ovos com presunto, como nas Pupilas do Sr. Reitor, se comem mal, se passam fome, isso não sucede por não terem recursos para mais, por receberem salários baixos e serem vítimas do desemprego os assalariados; por viverem esmagados pela concorrência, pela usura, pelos impostos, pelas rendas, os pequenos agricultores; mas apenas por não saberem comprar, por não saberem escolher os alimentos mais convenientes e por as mães de família esbanjarem dinheiro em luxarias. Pensando-se assim, o melhoramento da alimentação do povo não é uma questão de aumento da produção agrícola, de aumento de salários, de desafogo do pequeno agricultor, mas uma questão de "educação" do povo. O que se impõe, no entender destes notáveis especialistas, é que o povo aprenda "a arte de gastar", porque quanto à de ganhar, como se sabe, já não tem para ele segredos. O que se impõe, no seu entender, é que o povo se guie nas suas refeições por umas tabelazinhas indicando o valor em calorias dos vários alimentos, procurando mais calorias com menos dinheiro, tal como muitos senhores e senhoras obesos e hipertensos procuram menos calorias mesmo à custa de mais dinhero.

É pena não serem os "estudos" destes "especialistas" divulgados amplamente entre os próprios interessados. Só por essa forma eles poderiam ser tidos como merecem. Leitores haveria que os lançariam ao fogo em gesto indignado e impiedoso. Mas também não faltariam outros de heróico humor, divertindo--se às gargalhadas dos lamentáveis e vãos esforços destes teorizadores.

A Sepultura da Vida

Há já bons anos, sob a direcção dos professores Lima Basto, já falecido, e Henrique de Barros, realizou-se um inquérito à habitação rural nas províncias ao norte do Douro. No dizer de Lima Basto, "todos os trabalhos apresentados procuram ser fotografias exactas do que é a habitação rural predominante"(60). Na verdade, este inquérito (que é pena não se tenha realizado no resto do País) fornece apesar das suas deficiências, fotografias bastante exactas do que são os lares dos trabalhadores do campo: assalariados e pequenos agricultores.

E não só isso. Muitos e muitos exemplos típicos são aí apresentados. Descrevem-se as casas, o seu "recheio", incluindo utensílios e roupas. Faz-se uma descrição sumária das famílias que nessas casas habitam, dos seus recursos e despesas. O "inquérito" fornece, portanto, não apenas uma informação acerca das habitações, mas uma informação acerca do pungente drama de miséria dos trabalhadores do Norte de Portugal.

De uma maneira geral, em nenhum dos casos referidos no "inquérito" se encontra uma só das condições fundamentais de uma habitação conveniente. Nem defesa do frio no Inverno, nem temperatura ambiente adequada, nem pureza e cubagem de ar, nem luz solar durante o dia, nem iluminação artificial nocturna bastante, nem espaço para se moverem as pessoas e em especial as crianças, nem divisões suficientes e quartos separados, nem latrinas, nem esgotos, nem água canalizada, nem limpeza, nem o mínimo, o verdadeiramente mínimo, indispensável de mobiliário, de roupas, de utensílios, E entre tantas e tão graves faltas não se deve também deixar de referir (apesar de estar implícito) a de um sítio onde as pessoas se possam banhar, apesar de altas individualidades que afirmam serem supérfluos e pecaminosos tais sítios nos lares dos trabalhadores(61).

Temos conhecimento directo de muitos e muitos outros lares semelhantes aos descritos no "inquérito" e de muitos e muitos outros que conseguem ultrapassar os aí descritos pela quase inconcebível miséria. Não há qualquer exagero em dizer-se que, na sua grande maioria, os trabalhadores rurais habitam pardieiros impróprios para habitação e os seus lares são verdadeiros lares de mendigos. Razão tinha um dos inquiridores para dizer, falando das povoações do Alto Minho, mas podendo, também, falar de muitas outras regiões, que "estes aglomerados populacionais oferecem o espectáculo de quase todas as condições de que os homens se rodeavam em tempos remotos"(62). E razão tinha um crítico do "inquérito" ao dizer que "casais ou pequenos aglomerados existem que preferível seria destruir completamente e procurar novo assento para reedificar"(63). E por estas habitações que roubam saúde e alegria, os trabalhadores têm ainda por cima, quando arrendadas, de pagar elevados preços.

Sejam, porém, alugadas, ou sejam elas propriedade dos moradores, as habitações rurais são, em geral, construções impróprias para nelas se viver.

"A construção que serve de abrigo à família - diz-se da casa de um assalariado do concelho de Mirandela com o raro privilégio de ter "trabalho assegurado durante todo o ano" - é uma antiga loja para porcos, conforme ainda atesta uma grande pia de pedra existente no meio do pavimento. À mudança do género dos habitantes não correspondeu qualquer outra que tendesse a torná-la mais confortável e higiénica; o pavimento continuou a ser a terra batida, as paredes não foram caiadas e, além da porta de entrada, baixa de mais para pessoas, nenhuma outra abertura se praticou; apenas houve o cuidado de, durante algumas semanas, não fechar a porta para conseguir a extinção dos maus cheiros." "Como única abertura para acesso, ventilação e iluminação existe a porta com 1,80 m de altura [...]. É de madeira e não tem postigo. O compartimento está toscamente dividido em dois por meio de uma divisória de tábuas não aparelhadas com cerca de 1,80 m de altura [...] Na primeira (das divisões resultantes) dormem os pais e a filha mais nova (de 2 meses); na segunda, destinada a cozinha e quarto de cama, dormem, num só leito, os quatro filhos restantes: a filha mais velha, de 16 anos, e três rapazes de 14, de 10 anos e de 20 meses. A casa não tem chaminé. O fumo escoa-se pelos intervalos das telhas da cobertura, que não tem forro [... ] As dejecções fazem-se e despejam-se no quintal em frente à casa ou na própria rua [...]. As galinhas do locatário dormem dentro da própria casa, num pau que serve de poleiro, aos pés da cama dos filhos [...]. O valor da casa deve orçar por 1400$00 [...]; o arrendatário paga 14$ mensais, o que se pode considerar uma exorbitância (12%). Pela descrição que sumariamente fica feita, se depreende que nunca houve o propósito de na casa abrigar seres humanos e só a muita necessidade poderia obrigar alguém a viver nas condições em que vive a família objecto deste inquérito."(64)

Não se julgue tratar-se de um caso isolado. Mostra-o outro inquérito feito por organismos governamentais, pelo qual se vê que numa zona do litoral do Minho, 584 casas num total de 1506 inventariadas, são habitações miseráveis, "verdadeiros antros que nem parecem habitações humanas", "casas cuja demolição se impõe"(65). Com umas características ou com outras, o comum das habitações, mesmo quando, ao contrário da atrás descrita, houve ao construí-las o propósito de nelas abrigar seres humanos, pouco excedem em conforto este cor-telho de porcos, lar de um assalariado, com a rara felicidade de ter "trabalho assegurado todo o ano".

No Minho interior, zona serrana, a defesa contra o frio, "a maior preocupação", procura-se assegurá-la "construindo a lareira no compartimento, em geral único, onde dormem todos os membros da família na maior promiscuidade e diminuindo o número de dimensões das aberturas. Tal processo cria, no interior das habitações, atmosfera imprópria, viciada e saturada de fumo. Se a regra nestas casas não fosse a telha vã, as condições de arejamento seriam nulas. Quanto à falta de iluminação, nada "a que a compense"(66).

Apesar do rigor do clima, o vento entra pelas rinchas, pelos espaços entre as pedras, pelas portas de madeira mal calafetadas. Num caso: "Em noites tempestuosas a família prefere dormir no compartimento que serve de cozinha a ir para o quarto de cama, onde o vento é tal que não possibilita manter acesa a candeia de azeite."(67) Noutro: com três carros de lenha anuais "cozinha-se, aquece-se a família e ilumina-se durante o Inverno, por economia e por impossibilidade de manter a candeia acesa por causa do vento que se infiltra pelas fendas da janela, das paredes e pelos intervalos das telhas"(68).

O chão é geralmente térreo. No Baixo Minho há muitas casas com chão de tábua, embora sejam frequentes os pavimentos de terra batida. Nas outras zonas estudadas, predomina o chão térreo. Quando as casas têm primeiro andar, naturalmente que aí o piso é de madeira, mas com frequência o estado das tábuas é de completa ruína. Na habitação de um rendeiro do concelho de Baião, o primeiro andar é, como geralmente sucede, sobre o pátio. Mas "o estado do sobrado, com fendas por onde "cabiam cães" (como observou o inquirido) de forma alguma isola o piso superior e cria circunstâncias semelhantes a uma coabitação do homem e animais"(69).

Os tectos são, geralmente, a própria cobertura de telha vã ou de colmo, sem qualquer chaminé. Isto agravado pelo frequente mau estado da cobertura, casos havendo em que esta "deixa passar livremente em alguns pontos a chuva torrencial que por vezes cai"(70). Isto sucede no Minho que, com 1.500 mm, 2.000 mm e mais de chuva anual, é das regiões da Europa onde mais chove. A situação noutras regiões abrangidas peio "inquérito" é sensivelmente igual.

As habitações têm número reduzido de janelas e, muitas vezes, estas são substituídas por postigos, ou pequenas aberturas... ou nada. Assim, como exemplo entre muitos, na casa de um pequeno proprietário do concelho de Melgaço, num compartimento de 9 metros quadrados "sem qualquer abertura para o exterior" dormem 4 pessoas(71). Mesmo nas frias zonas serranas, as janelas, quando existem, são geralmente desprovidas de vidraças e protegidas apenas por uma porta de madeira e as portas desprovidas de postigos. No Minho litoral, onde "as janelas apresentam usualmente vidraças", estas estão "na maioria dos casos completamente partidas"(72). Isto significa que de "Inverno, ou se passa frio, ou se vive às escuras"(73).

Triste situação esta em que os buracos do telhado, deixando entrar a água, o vento e a luz e deixando sair o fumo, depois de este enegrecer as casas e sufocar as pessoas, tapam as faltas de arejamento, de iluminação e de chaminés e parecem insinuar, com ironia, a falta de canalizações e de higiene. Quantos hinos não se cantam à amenidade do nosso clima! E em quantos lares não se treme de frio, de humidade, de desconforto ao longo dos Invernos rigorosos! Quantos hinos não se cantam ao belo sol do nosso país! E quantas casas rodeadas pela atmosfera soalhenta nunca vêem no interior um raio solar!

Raríssimas habitações têm um arremedo de latrina. As dejecções são feitas em pleno campo ou em estrumeiras situadas, ora diante da porta, ora no pátio ou estábulo por debaixo do primeiro andar habitado. Sucede mesmo as estrumeiras estarem dentro da habitação. O "inquérito" cita a casa de um trabalhador assoldado ao ano, em cuja cozinha existe, a um canto, uma coelheira, por baixo da qual existe uma estrumeira onde se despejam todas as dejecções(74).

Dentro das casas, as famílias amontoam-se, dormindo pais e filhos de qualquer idade num mesmo compartimento e, frequentemente, rapazes e moças numa mesma cama. Dizendo-se isto e acrescentan-do-se ser o contrário a excepção, o essencial está dito. Pode, contudo, ilustrar-se a afirmação com alguns exemplos. No Barroso, onde predominam as habitações com dois compartimentos (o "sobrado" e a "cozinha") "o sobrado é o dormitório colectivo da família. Aí estão as camas, as mais das vezes tarimbas de madeira onde dormem pai e mãe, filhos, genros, noras e avós. Não se vá supor que quaisquer tabiques existem a separar as camas ou tarimbas. Estas tarimbas, com um enxergão ou dois, são dormida de filhos sem distinção de sexos nem de idades"(75). Na habitação de um pequeno proprietário do concelho de Melgaço, dormem os pais e duas filhas "crescidas", em "duas camas encostadas"(76). Na habitação de um rendeiro do concelho de Arcos de Valdevez, dormem num só quarto, o chefe de família e três filhos numa cama (1,70 m X 1,10 m), e a mulher e duas filhas num tabuleiro de madeira (1,60 m X lm)(77). Na habitação de um rendeiro do concelho de Viana do Castelo "dormem em duas camas as sete pessoas que constituem a família", ou seja, o casal, um rapaz de 11 anos e 4 moças de 19, 16, 13 e 7 anos(78). Na habitação de um assalariado contratado ao ano do mesmo concelho, dormem num mesmo quarto, o casal e uma filha numa cama e três filhos noutra(79). Na habitação de um "parceiro cultivador" do concelho da Régua, dormem, num quarto "sem qualquer abertura para o exterior", numa cama três rapazes de 10, 8 e 6 anos e, noutra, três moças de 16, 13 e 4 anos(80). Nos casos em que há divisões interiores predominam os tabiques de madeira (em regra tábuas de caixote) ou simples trapos à laia de cortina, que não garantem senão um muito relativo isolamento. Por vezes, a situação é agravada pelo facto de viverem numa mesma casa "famílias diferentes". É demagogia oficial "favorecer a formação de lares independentes", porque "o nosso feitio individualista e independente não se compadece com o falanstério e a caserna colectivista que ferem o pudor e o recato da nossa vida familiar"(81). Vê-se que nos campos portugueses bem tristes são ainda esses "lares independentes" e bem pouco é o "pudor" e "recato" que em tais condições pode haver.

Na verdade, além das nocivas consequências para a saúde de uma tal situação, compreendem-se as constantes dificuldades e preocupações na vida sexual do casal ou casais e os complicados problemas, iniciações perigosas, precocidades doentias e tragédias que traz para as crianças.

Toda uma grande aldeia o pode testemunhar. Irmão e irmã, eram duas crianças ainda, com menos de 15 anos. Quando passavam pelas ruas com o seu filho ao colo, deixavam um resto de ditos, de lamentações e de protestos. Cabeças baixas, pareciam esmagados pela reprovação geral, pela dor e pelo espanto. Esta foi uma tragédia que veio a lume originada nas condições de "pudor" e "recato" dos "lares independentes" dos trabalhadores portugueses. Mas quantas e quantas desta natureza não são sufocadas com anos de lágrimas, com um compromisso irremediável da vida inteira, com dramas familiares e até com o suicídio ou com o crime?

Além das condições gerais de habitações acabadas de referir, o "inquérito" mostra como famílias que dão ao País vidas inteiras de trabalho, gerações atrás de gerações, carecem das coisas mais elementares.

Quanto à "mobília", uma ou duas camas ou tarimbas, uma mesa, uns bancos, mais raramente cadeiras, uns caixotes ou arcas - e é tudo. Ainda por cima "o estado de conservação destes móveis e sempre péssimo"(82). Não é raro nem sequer existir um tabuleiro para as crianças dormirem, como num caso citado em que "dois garotos de 14 e 6 anos e duas meninas de 12 e 9 anos dormem sobre uma porção de palha estendida no chão"(83). Quanto a utensílios e roupas de cama, a situação não é melhor. Na família de um assalariado, constituída por casal e 9 filhos, há ao todo, para as 11 pessoas, 4 colheres, 3 garfos, 1 faca, 3 malgas, 4 pratos de barro, 1 copo, 3 lençóis, 3 mantas e 2 fronhas(84). A família de um rendeiro constituída por casal e 5 filhos tem apenas 2 pratos, 3 malgas, nenhum copo, 2 colheres, 5 garfos, 4 lençóis (85). A família de um assalariado, casal e 5 filhos, tem 1 prato, 2 malgas, "4 lençóis em farrapos" e "4 retalhos de manta em farrapos"; e conta o inquiridor: "0 inquirido fez notar, com certo bom-humor [...] que para comer era necessário que uns esperassem pelos outros, mas, em geral, não era preciso esperar muito"(86). Noutra família, falando-se das 5 mantas que são toda a roupa de cama para um casal e 2 filhos adultos, diz-se: "E que mantas! Trapos remendados todos os dias para que não se desfaçam"(87).

Tal é a tremenda situação revelada pelo "inquérito à habitação rural" nas províncias do Norte. Compreende-se que os referidos ases da "ciência" apologética desmintam estes factos esmagadores, tachando-os de "inaceitáveis", de "improváveis", mesmo que não tenham para opor-lhes senão o caricato argumento da "vitalidade germinal" do povo.

Não há inquéritos tão completos como este em relação ao resto do País. Não deixa, porém, de haver estudos que mostram como, infelizmente, a situação não é melhor nas demais regiões.

Um "inquérito" sobre higiene rural, realizado em 1931, sob a direcção do director-geral de saúde, Dr. José Alberto de Faria(88), mostra que tal como no Minho e Trás-os-Montes, a telha vã, o chão térreo, as cortes de gado e pocilgas ou por baixo das habitações ou separadas por tabiques dentro da própria casa, a falta de divisões e a "promiscuidade", as casas sem janelas, as janelas sem vidros, a falta de ar e de luz são as características gerais das habitações dos trabalhadores do campo na Beira Alta como na Beira Baixa, na Beira Litoral como na Estremadura, no Alentejo como no Algarve. Este inquérito tem já dezenas de anos, mas conserva-se actual. Se nos últimos trinta anos a situação mudou, foi para pior.

Vários outros estudos, antigos ou recentes, apresentam o mesmo quadro, sempre o mesmo quadro, dos lares dos trabalhadores do campo. Diz-se num que, na Beira Baixa, a habitação é em geral miserável, exígua e suja, vivendo nela, numa promiscuidade que confrange, todos os membros de uma família e quantos animais domésticos possui(89).

A respeito da situação no Vale do Sado, escreve-se o seguinte: "O alojamento, construído pelo próprio rural, é qualquer coisa que o possa ilibar de pagar a renda. Dizemos qualquer coisa, porque não chega, muitas vezes, a ser casa, nem sequer simples cabana; é um abrigo tosco, que constrói com as suas próprias mãos, com material que não precise de comprar, e é a terra, ou o junco, ou latas e tábuas velhas, tudo enfim que se preste a armar uma pequena toca, que passará a servir para nela dormir toda a família"(90). Do "recheio" desses "lares independentes" fala o caso de uma família de 7 pessoas em que "todos os utensílios de esmalte são encontrados pelos garotos, que com esse fim revolvem a lama (lixo da cidade de Lisboa, bastante empregado como fertilizante na região) nas propriedades onde os pais trabalham"(91).

Noutro estudo sobre o pliocénico ao sul do Tejo, confirma-se que "nesta imensa planície surgem cabanas provisórias, onde seareiros ou trabalhadores miseravelmente se abrigam. Constituem um provisório que se vai tornando definitivo, pois aos proprietários não convém a construção de casas de telha, que influem, sem grande proveito (!), no montante das contribuições". E fala-se de seareiros habitando "verdadeiras palhotas de pretos" e diz-se que "é de ruína e de abandono, senão de desespero, o quadro oferecido pelas choupanas de mato, palha e lata"(92).

Noutro estudo respeitante ao Alentejo, o inquiridor concluiu que "cerca de 95% dos compartimen-tos (das famílias inquiridas) não têm nem ar nem luz suficientes" e que "não é frequente encontrar janelas na casa do trabalhador rural alentejano e, muito menos, janelas com vidros"(93). O soalho praticamente não existe; predomina o chão de terra batida e, mais raramente, o ladrilhado. Os tectos são de péssima telha. O aspecto das habitações é, porém, em regra muito limpo, devido em grande parte à existência de chaminés e ao hábito das caiações.

Até nas zonas de turismo, onde para sossego da alma e das digestões dos turistas é comum toma-rem-se medidas de melhoramento do aspecto das habitações rurais ou do seu afastamento, para onde não comovam as pessoas sensíveis - os miseráveis lares dos trabalhadores marcam a sua presença. Em plena estação balnear, um jornalista referia, de um e de outro lado da estrada de acesso, à entrada da Costa da Caparica, a existência de "tendas abarracadas onde vive gente que trabalha no campo"(94). E o jornalista falava na "condenação" dessas "inestéticas construções" pelo plano urbanístico... sem naturalmente dizer o destino das famílias que as habitavam. E para que dizê-lo? Pois não é sabido como na cidade ou no campo as habitações miseráveis abatidas por razões urbanísticas e "estéticas" ressurgem inevitavelmente noutro lado? Pois não é sabido que, tendo, por exemplo, sido apeadas ao longo da Avenida de Ceuta dezenas de casas velhas, elas ressurgiram sob a forma de centenas de barracas na encosta da Rua Maria Pia? E que, depois de bairros de lata destruídos, furnas tapadas, barracões desalojados, se em 1937 havia 10.000 barracas em Lisboa, outras 10 000 existem em 1952?(95)

Todas estas transcrições, propositadamente longas, porque assim ganham em poder demonstrativo, põem em realce os tristes lares dos trabalhadores da terra, sejam assalariados, sejam pequenos agricultores, todos confundidos no mesmo nível de inexce-dível miséria.

E se assim sucede, quando o governo tem a ousadia de afirmar que "o problema da habitação em Portugal tem sempre figurado entre as principais preocupações do governo"(96), que sucederia se tal preocupação não fosse principal...

Na inauguração de um bairro de "casas económicas", citando o dito beirão de que "a casa é a sepultura da vida", um orador terminou o seu discurso com um sentido e comovente voto: "seja-o por muitos e dilatados anos para os habitantes deste bairro acabado de inaugurar."(97). Se as raras casinhas novas não ousam prometer mais que uma "sepultura da vida", que triste sepultura não são os casebres, as choças, as tocas, dos nossos trabalhadores rurais?


Notas:

(45) A. A. Mendes Correia, "A Alimentação do Povo Português", Revista do Centro ãe Estudos Demográficos, n.° 6, 1949. (retornar ao texto)

(46) Idem, Ibidem, n.º 6, 1949, p. 99. (retornar ao texto)

(47) Idem, Ibidem, n.º 6, 1949, p. 99. (retornar ao texto)

(48) Idem, Ibidem, n.° 6, 1949, pp. 103, 104. (retornar ao texto)

(49) Idem, Ibidem, n.° 6, 1949, p. 105. (retornar ao texto)

(50) Idem, Ibidem, n.° 6, 1949, p. 105. (retornar ao texto)

(51) Idem, Ibidem, n.º 6, 1949, p. 99. (retornar ao texto)

(52) Idem, Ibidem, n.° 6, 1949, p. 105. (retornar ao texto)

(53) Idem, Ibidem, n." 6, 1949, p. 107. (retornar ao texto)

(54) Artur Aguedo de Oliveira, "O Problema do Consumo Alimentar Ascende ao Plano Mundial", Revista do CEE, n. 2, 1945. (retornar ao texto)

(55) Idem, Ibiãem, 1945, p. 16. (retornar ao texto)

(56) Idem, Ibidem, 1945, p. 17. (retornar ao texto)

(57) Idem, Ibidem, 1945, p. 21. (retornar ao texto)

(58) Idem, Ibidem, 1945, p. 29. (retornar ao texto)

(59) Idem, Ibidem, 1945, p. 31. (retornar ao texto)

(60) InquérUo à Habitação Rural, v. I, p. 26. (retornar ao texto)

(61) Arcebispo de Mitilene, numa recepção à Imprensa, Primeiro de Janeiro, 3 de Agosto de 1951. (retornar ao texto)

(62) Inquérito à Habitação Rural, p. 74. (retornar ao texto)

(63) F. Ramos da Costa, Inquérito à Habitação Rural, Crítica à Obra, Estudo e Soluções do Problema, p. 53. (retornar ao texto)

(64) António J. L. Martins, no Inquérito à Habitação Rural, pp. 304-306. (retornar ao texto)

(65) J. C. I., Aguçaãora, Estudo Econômico-Agrícola, !944, p. 102 e segs. (retornar ao texto)

(66) Inquérito à Habitação Rural, p. 76. (retornar ao texto)

(67) Ibid., p. 297. (retornar ao texto)

(68) Ibid., p. 331. (retornar ao texto)

(69) Ibid., p. 254. (retornar ao texto)

(70) Ibid., p. 160. (retornar ao texto)

(71) Ibid., p. 83. (retornar ao texto)

(72) Ibid., p. 142. (retornar ao texto)

(73) Ibid., p. 299. (retornar ao texto)

(74) Ibid., p. 174. (retornar ao texto)

(75) Flávio Martins Inquérito à Habitação Rural, pp. 357-359. (retornar ao texto)

(76) Idem, Ibidem, p. 83. (retornar ao texto)

(77) Idem, Ibidem, p. 110. (retornar ao texto)

(78 ) Idem, Ibidem, p. 147. (retornar ao texto)

(79) Idem, Ibidem, p. 160. (retornar ao texto)

(80) Idem, Ibidem, pp. 413-416. (retornar ao texto)

(81) Ministro do Interior, no II Congresso das Capitais realizado em Lisboa, Diário de Notícias de 15 de Outubro de 1950. (retornar ao texto)

(82) Inquérito à Habitação Rural, p. 143. (retornar ao texto)

(83) Ibid., p. 407. (retornar ao texto)

(84) Ibid., p. 127. (retornar ao texto)

(85) Ibid., pp. 148-149. (retornar ao texto)

(86) Ibid., p. 410. (retornar ao texto)

(87) Ibid., p. 359. (retornar ao texto)

(88) Edição da D. G. de Saúde do Ministério do Interior, 1935. (retornar ao texto)

(89) Teles de Vasconcelos, A Beira Transmontana. (retornar ao texto)

(90) Maria Porfina, Mão-de.Obra nu Orizicultura, p, 363. (retornar ao texto)

(91) Idem, Ibidem, p. 229. (retornar ao texto)

(92) E. Castro Caldas, Aspectos do Habitat Rural na Mancha Pliocénica ao sul do Tejo, J. C. L, Problemas de Colonização, v. 1, p. 45. (retornar ao texto)

(93) Carlos Silva, Habitação Rural, p. 96. (retornar ao texto)

(94) Diário Popular, 16 de Setembro de 1951. (retornar ao texto)

(95) Diário de Notícias, 14 de Maio de 1952. (retornar ao texto)

(96) Relatório que antecede os três decretos publicados em 7 de Abril de 1947 sobre casas de "renda económica". (retornar ao texto)

(97) Discurso do ministro das Corporações em Gouveia, Diário de Notícias de 26 de Fevereiro de 1951. (retornar ao texto)

Inclusão 24/07/2006