Contribuição para o Estudo da Questão Agrária

Álvaro Cunhal

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Capítulo 7 — O Segredo da Questão


capa

Apesar de todas as desvantagens que se acabam de expor e se conjugam para tornar inviável uma concorrência bem sucedida da pequena contra a grande exploração capitalista, a pequena produção vai sobrevivendo. Ela alcança, em alguns casos, elevados rendimentos unitários e aparece no mercado aguentando os preços da grande exploração, e apresentando mesmo por vezes preços mais baixos.

Como pode isto acontecer? «Com a maior produtividade do trabalho», respondem alguns. É, porém, bem de ver que, estando a pequena produção em inferioridade manifesta no referente a terra, a máquinas, a gado, a técnica, a dinheiro, a crédito, a impostos, a produtividade do trabalho é necessariamente inferior na pequena produção.

Mas não nos afastamos assim irremediavelmente de qualquer solução? Como explicar o mistério? Qual o «segredo» da questão?

O «segredo» é extremamente simples. A razão dessa possibilidade de competir, desses rendimentos, dessa resistência da pequena produção, vamos encontrá-la apenas no trabalho excessivo do pequeno produtor e da sua família e nas privações a que se submetem para poderem continuar com a sua economia «independente».

Ah! O campo não é um passatempo
Com bucolismo, rouxinóis, luar(1)

O sobretrabalho gratuito

Lénine considerava como «principais meios de luta» do pequeno agricultor «o trabalho estafante e a economia»(2). Os próprios economistas burgueses não ignoram esse facto, antes reconhecem geralmente o trabalho intenso na pequena produção como elemento fundamental do seu «êxito». Entretanto, ao sublinhar um especialista que a «agricultura intensiva chega a ser perdulária» no «emprego do trabalho»(3); ao dizer outro que na pequena exploração «o esforço humano multiplica-se sem correlativo apoio de factores materiais» e que aí tudo se consegue à custa de grande dispêndio em trabalho(4) — este reconhecimento não significa que tenham compreendido o significado económico profundo do facto que apontam. Nem têm uma ideia correcta da importância económica desse esforço dos pequenos produtores, nem vêm nele um índice da sua situação desvantajosa. Pelo contrário. Estes e outros economistas vêm nesse mesmo «esforço humano» nova «superioridade» da pequena produção. Considerando uns as «vantagens técnicas» do que chamam «rendimento mais elevado da mão-de-obra»(5), poetizando outros as qualidades dos pequenos lavradores que «à terra rendem culto de invulgar fidelidade e lhe prestam a grande força criadora que é o trabalho inteligente e produtivo»(6); todos em coro insistem na maior produtividade do trabalho na pequena produção.

Estas opiniões não são coisa nova. São, pelo contrário, opiniões típicas dos economistas burgueses, repetidas, glosadas, copiadas, num século inteiro de teimosia ideológica. Já no princípio do século, falando daqueles que «consideram a economia, a frugalidade, etc., como virtudes do camponês», Lénine desvendava

«a hipocrisia dos discursos que convertem em virtude a opressão social, tentando, por essa forma, perpetuá-la». Tais «virtudes», sublinhava Lénine, são o «sobretrabalho» e o «subconsumo», de que o capitalismo é responsável(7).

O grande erro destes economistas nesta matéria é confundir um dia de vida com um dia de trabalho e, consequentemente, intensidade e produtividade do trabalho. Como, num dia de vida, um pequeno produtor realiza mais do que um assalariado numa jornada de trabalho em iguais condições técnicas concluem ser o trabalho do primeiro mais produtivo. Não reparam no número de horas de trabalho socialmente necessárias para a reprodução da força de trabalho e como as horas suplementares no dia de trabalho do pequeno produtor são em muito maior número do que no dia de trabalho do assalariado. Não reparam na intensidade média do trabalho de um e de outro e como aquilo a que chamam «o maior gosto pelo trabalho», o «maior cuidado e oportunidade nos granjeios» (H. Barros) ou o trabalho «mais interessado, vigilante e diligente» (L. Basto) não é senão um desproporcionado desgaste de energias, um «desperdício de trabalho e das forças do agricultor», nas palavras de Lénine(8). Não reparam em como as tarefas muito superiores às próprias forças realizadas por mulheres e crianças transcendem a noção comezinha da jornada de trabalho. Ao reconhecerem haver na grande exploração capitalista uma superior «economia geral de exploração»(9), não reparam não ser isso outra coisa senão a maior produtividade do trabalho. Se reparassem nestes aspetos elementares do problema, quando fazem considerações teóricas, teriam de concluir que na pequena produção não existe «rendimento mais elevado de mão-de-obra», antes trabalho mais intenso e menos produtivo.

Nas «contas de cultura» das pequenas e grandes explorações, citadas em estudos e monografias, vemos ser geralmente superior o rendimento líquido por hectare e não ser raramente inferior o preço de custo na pequena exploração. Mas como é calculado o trabalho despendido? Apenas pelas jornadas de trabalho. Um dia de trabalho é sempre contado como um dia de trabalho, sem se atender a que há dias de trabalho mais longos e dias de trabalho mais curtos, a que uma maior intensidade do trabalho corresponde a um prolongamento da jornada de trabalho, a que se deveriam contar, também, as horas soltas de esforço realizado fora dos horários e a que as horas de trabalho roubadas ao descanso provocam um desgaste muito superior no organismo. Confundir um dia de vida com um dia de trabalho, dar igual valor a um dia de trabalho de um assalariado e ao trabalho realizado num dia pelo pequeno produtor conduz necessariamente a resultados fantasiosos.

A determinação da produtividade do trabalho e dos «rendimentos líquidos» não pode ser feita tendo apenas em conta o número de «jornadas de trabalho» na grande e na pequena exploração, atribuindo igual «preço» a umas e a outras. Seria essencial considerar a duração dessas jornadas de trabalho, a sua intensidade, as horas soltas, de dia e de noite, despendidas pelos pequenos agricultores no amanho da terra, no trato do gado e nos mais variados cuidados pela sua lavoura. Seria ainda essencial considerar as deslocações, o tempo gasto em ir ao mercado comprar ou vender, e as mil e uma formas de trabalho e ajuda das mulheres e das crianças. Nesta base, calcular-se-ão quantas horas de trabalho — não de trabalho individual, mas de trabalho social, isto é, de trabalho executado com «um grau médio de destreza e intensidade» — encerra, por exemplo, um quilo de trigo produzido na pequena exploração, e um quilo de trigo produzido na grande exploração capitalista. Não estamos certamente em erro ao dizer que na pequena exploração o número de horas de trabalho social (e até, em muitos casos, individual) encerrado num quilo de trigo é incomparavelmente superior. E se uma unidade do produto encerra na pequena exploração um maior número de horas de trabalho social, isso é o mesmo que dizer que nela é menor a produtividade do trabalho.

Assim se vê que o facto de um hectare de terra numa pequena exploração produzir, por exemplo, 10 quintais de trigo, e um hectare numa grande exploração apenas 6 quintais, não indica, conforme já se tem pretendido, uma maior produtividade de trabalho na pequena produção. Na pequena produção agrícola dá-se vulgarmente o caso (incompreensível para os economistas burgueses) de uma mais elevada produção unitária com mais escassos meios técnicos traduzir menor produtividade do trabalho.

O cálculo do valor da produção agrícola por pessoa ativa na agricultura e por hectare cultivado dá uma indicação significativa. O valor da produção agrícola por hectare cultivado é maior nos distritos de pequena propriedade do que nos de grande: nos de Aveiro, Porto, Vila Real e Viseu, orça pelos 2500 escudos por hectare cultivado; nos de Beja, Évora e Portalegre pelos 1500 escudos. Inversamente, o valor da produção agrícola por pessoa ativa na agricultura é maior nos distritos de grande propriedade: nos de Beja, Évora, Portalegre, orça por 10, 11 contos; nos de Aveiro, Porto, V. Castelo, V. Real e Viseu oscila entre 4 e 7 contos. Isto parece mostrar que, embora a cultura seja mais intensiva nas regiões de pequena propriedade, essa intensidade se deve em grande parte a mais horas de trabalho, que, entretanto, é aí menos produtivo. Sabido como é serem os terrenos e condições agro-climáticas nas citadas regiões de pequena propriedade mais favoráveis que nas citadas de grande, e sabido que os assalariados têm um horário de trabalho, ao contrário do que sucede com os pequenos produtores, é de concluir que nas regiões de grande propriedade o trabalho é mais produtivo, que os métodos de cultivo são mais rendosos.

Se a confusão entre intensidade e produtividade de trabalho não estivesse na base de todos os cálculos e confrontos dos economistas burgueses, seria surpreendente ver como os defensores da «teoria» dos acréscimos decrescentes e dos rendimentos lucrativos ousam defender a viabilidade e até as excelências da pequena produção agrícola. Ao fazê-lo, ignoram que a aplicação das suas teorias à pequena exploração familiar (calculando o trabalho realizado segundo a sua duração e intensidade efetivas) poria em toda a evidência que a pequena produção vive em «prejuízos» constantes. Isto é: que o excesso de força de trabalho familiar absorvido numa exploração (que eles nunca contam ao fazerem as contas) não seria economicamente viável se houvesse de ser «pago» ao preço corrente do mercado. Isto é apenas uma forma de dizer, pois o que tem preço não é o tempo de trabalho suplementar, mas o tempo de trabalho necessário à reprodução da força de trabalho. Mas com esta forma de dizer visa-se apenas tornar ainda mais clara a existência de um número de horas de trabalho que na pequena produção excedem o número de horas socialmente necessárias para a produção de uma unidade de qualquer produto.

E se a produtividade do trabalho é menor na pequena exploração e por consequência uma unidade do produto nela produzida encerra mais horas de trabalho e se, no entanto, os preços são nivelados no mercado, isto significa que o pequeno produtor não recebe, no preço, o correspondente tempo de trabalho individual gasto na exploração e que o grande produtor recebe no preço uma parte do tempo de trabalho gasto na pequena; isto significa que na pequena produção existe permanentemente um excedente de trabalho não pago. Como sublinhou Marx, o baixo preço dos produtos agrícolas das pequenas explorações resulta, não da produtividade do trabalho, mas da pobreza dos produtores, do facto de eles entregarem gratuitamente à sociedade o sobreproduto e até por vezes parte do correspondente ao trabalho necessário. Esse excedente, esse sobretrabalho, é assim «um presente gratuito» que os pequenos agricultores fazem à sociedade quando vendem os seus produtos aos preços gerais do mercado.

É aqui que reside toda a possibilidade de resistência da pequena produção, todo o mistério dos seus rendimentos unitários, toda a sua possibilidade de aguentar os preços do mercado. Por isso mesmo, defender as vantagens e a superioridade da pequena produção é erigir à categoria de única real «vantagem» essa prestação gratuita de trabalho pelo pequeno cultivador. Defender um «progresso» agrícola e um aumento da produção na base da pequena exploração familiar é defender o agravamento da trágica situação dos trabalhadores dos campos. Por muito que tais opiniões se cubram de tiradas sentimentais ou poéticas, este é o seu real carácter, que o pensem, ou não, os seus defensores.

Num caso de divisão de grandes propriedades para estabelecimento de pequenas explorações em regime de «parceria», um técnico sublinha «o aumento das receitas (do proprietário) em relação à exploração de conta própria»(10). Como foi isso possível? Em passagens dispersas o autor o diz. Numa:

«menos salários por unidade de superfície, embora empregue mais mão-de-obra familiar»(11). Noutra: «é incorporada na terra muita mão-de-obra (embora com menos salários por unidade de superfície) e na melhor oportunidade, visto o trabalho ser feito com gosto (sic), proveito próprio (re-sic) e sem limitações de horários»(12).

Não está aqui claramente implícito ser a mão-de-obra familiar na pequena produção paga a um preço inferior do da mão-de-obra assalariada? E ser o número de horas suplementares por trabalhador na pequenaprodução superior ao número de horas suplementares na grande? Não está aqui claramente implícito haver sobreproduto gratuito na pequena produção? Estar implícito, está. Mas o autor não o pensa assim. Para ele, trata-se apenas de «melhor rendimento de trabalho»(13). Como é possível uma tal afirmação? As próprias palavras do autor esclarecem os seus motivos. É que o objetivo não é o bem-estar ou a felicidade do pequeno produtor, mas «um gigantesco passo em frente»... dos rendimentos do grande proprietário. Pois não é verdade que este «deixa de pagar grande massa de salários nem sempre bem ganhos»(14)? E não é verdade, como já foi notado, haver «um aumento de receitas em relação à exploração de conta própria»(15)? Aí estão as excelências da produção familiar. Aí estão as razões por que os grandes proprietários, os seus porta-vozes e os seus técnicos se apresentam como defensores da pequena produção. Mas como podem eles enganar os mais cegos se se descuidam na declaração das suas simpatias? Eis como este autor começa o seu trabalho:

«Saúdo, nas minhas primeiras palavras, os bons lavradores de Portugal; são os melhores patriotas, os maiores amigos da sua terra e o mais seguro amparo da gente rural, nos bons como nos maus anos. A sua curiosidade e espírito progressivo fornecem frequentemente proveitosas lições ao próprio Estado, quer no campo de experimentação e investigação científica, quer no das reformas sociais, quer no da previdência e assistência aos necessitados.»(16)

Diz-me quem gabas, dir-te-ei quem serves.

Tal é a natureza, o significado e a direção dos ideais destes apóstolos do progresso agrícola assente na multiplicação das pequenas explorações. Eles defendem, afinal, a persistência e alargamento do trabalho gratuito prestado pelos pequenos produtores. Se dizem, por exemplo, que

«a capacidade de trabalho da família, calculada em função das unidades de trabalho dos diferentes membros, deve ser aproveitada o mais regularmente possível ao longo do ano, evitando ao máximo os períodos de inatividade, pois lembramos que todos estes salários (sic) gastos na exploração têm contrapartida na receita do empresário»(17);

ou se exaltam as virtudes da

«pequena exploração familiar» porque é «capaz, como nenhuma outra, de levar o trabalhador abnegadamente, mercê de um trabalho constante, a produzir e criar»(18);

ou se apontam como «vantagens sociais da empresa familiar» a «menor necessidade de vigiar os trabalhadores» e o não se pagar o trabalho não efetivado por más condições meteorológicas(19) — que estão fazendo senão defender abertamente o sobretrabalho que, ao contrário do que dizem, beneficia não o pequeno, mas o grande agricultor capitalista?

A questão torna-se perfeitamente clara para quem a queira compreender. Nas pequenas explorações não existe uma maior produtividade do trabalho, mas, pelo contrário, um trabalho muito menos produtivo e muito mais intenso e abundante do que na grande exploração capitalista. Nas pequenas explorações não há horários de trabalho, não se respeita sequer o sol a sol nem as magras horas de sono, nem, muitas vezes, os dias de descanso, não há horas de ferra e de desferra, não há sestas nem fumaças. Só ao preço do «esbanjamento excessivo das forças humanas» (como lhe chamou Marx)(20), só ao preço do trabalho brutal do agricultor e de toda a sua família, só ao preço do envelhecimento precoce das mulheres e do trabalho infantil, só ao preço de inenarráveis privações, o pequeno agricultor consegue competir com o grande e consegue ir sobrevivendo. Esta é a chave do problema, este o segredo da questão.

O trabalho da mulher

Já por várias vezes foram sublinhadas no decurso deste estudo as dificuldades em trabalhar com as estatísticas portuguesas. Umas vezes as classificações e categorias estatísticas são recolhidas com duvidoso critério. Outras vezes as mudanças de critério roubam a possibilidade de estudos comparativos de anos diversos. Uma e outra coisa sucedem em relação às «mulheres ativas» nos trabalhos agrícolas. Pelo censo de 1930, apuraram-se para o continente 702 600 mulheres no total de 1 699 383 indivíduos da «população agrícola ativa». Pelo censo de 1940, apuraram-se apenas 215 825 mulheres no total de 1 318 739 indivíduos. Vemos assim, no espaço de 10 anos, sumir-se nos sorvedouros estatísticos a brincadeira de meio milhão de mulheres. Qual a razão deste facto? A razão em si é muito simples: enquanto o censo de 1930 incluiu nas mulheres ativas na agricultura «as fêmeas casadas ocupando-se do seu lar, consideradas como auxiliares dos respetivos chefes», o censo de 1940 englobou-as na categoria geral de «domésticas». Quer dizer: o censo de 1930 incluiu entre a população trabalhando na agricultura mulheres que deviam ser excluídas; o censo de 1940 excluiu mulheres que deviam ser incluídas. Um e outro seguiram critérios de grande imprecisão.

Julgam alguns serem as inovações sinónimo de melhoria. Lénine citava o caso de um editor que, tendo comprado os direitos de publicação de um almanaque em cuja capa se exibia uma galinha chocando os seus ovos, achou por bem tornar a capa mais vistosa e o desenho mais sugestivo. A galinha foi substituída por um galo espaventoso — mas os ovos ficaram. O editor chamava-se Baldhorn. E Lénine, para definir a ação de corrigir, de inovar, de emendar para pior, criou uma palavra — baldhornizar. O censo de 1940 entendeu por bem modificar o critério das «mulheres activas na agricultura». À face deste novo critério, como se nos apresenta a situação nas pequenas explorações agrícolas? O censo indica para o continente o total de 187 215 «isolados», dos quais 161 991 homens. Isto indicaria que, para cada 7 homens ativos nas pequenas explorações familiares, apenas uma mulher trabalharia, o que é um completo absurdo. Poderia ter o censo incluído as mulheres ativas na agricultura na rubrica «pessoas de família», mas aí vemos um total de 157 871 indivíduos dos quais apenas 44 436 mulheres. Os orientadores do censo de 1940 preferiram subtrair todas essa mulheres à «população agrícola ativa» e englobá-las numa categoria geral de «domésticas» a que é atribuído o número de 2 103 859 mulheres! O censo de 1940, neste aspeto, inovou, emendou, corrigiu... mas para pior — báldhornizou.

O censo de 1950, insistindo nestes processos da baldhornização, veio juntar novas confusões e incongruências, invalidando quaisquer comparações. Na rubrica «mulheres ativas na agricultura», o total continental mantém-se sensivelmente idêntico ao de 1940, mas verifica-se uma autêntica sarabanda nos números distritais, diminuindo notavelmente em relação ao censo de 1940 nos distritos de pequena propriedade e aumentando nos de grande. Assim, nos distritos de Aveiro, Braga, Coimbra, Porto, Viana do Castelo e Viseu, considerados em conjunto, desaparecem 37 000 mulheres ativas na agricultura, e nos de Beja, Évora, Portalegre e Setúbal aparecem mais 32 000. Desta falta grave procura redimir-se o censo criando a nova categoria «camponesas», que define como «os recenseados do sexo feminino que se ocupavam das lidas domésticas e também trabalhavam na agricultura e na pecuária», mas que surpreendentemente não estão compreendidas nas «mulheres ativas na agricultura». Nesta nova categoria, sobem outra vez os números das mulheres nos distritos de pequena propriedade e descem nos de grande.

Estas diferenças, provocadas pela fragilidade e inconstância das classificações estatísticas, tornam bem frágil o estudo sobre elas assente e obrigam a rejeitar qualquer comparação entre os vários censos.

A tabela 27 mostra, por distritos, o número de mulheres ativas na agricultura segundo os censos de 1930, 1940 e 1950 (incluídas neste último as «camponesas») e as suas percentagens em relação ao total da população agrícola ativa.


TABELA 27
Mulheres activas na agricultura
  1930 1940 1950
  Número Percentagem Número Percentagem Número Percentagem
Aveiro
48 112
46,8
20 797
25,6
35 566
36,6
Beja
31 796
37,6
7 917
11,7
27 353
28,9
Braga
60 149
48,6
29 267
28,8
42 598
36,0
Bragança
26 941
39,8
5 385
10,4
14 506
23,3
Castelo Branco
32 967
41,5
6 117
9,7
17 298
23,3
Coimbra
49 827
42,7
13 481
15,5
35 066
32,1
Évora
25 144
38,1
3 315
7,3
17 014
26,3
Faro
33 027
39,4
2 696
4,6
18 542
22,8
Guarda
33 175
41,0
6 921
10,5
19 523
24,0
Leiria
36 327
38,5
7 443
9,6
22 561
23,6
Lisboa
31 501
33,4
3 974
5,2
15 942
16,3
Portalegre
22 526
37,7
3 870
8,7
15 475
25,6
Porto
50 582
40,9
16 227
18,6
33 042
30,7
Santarém
54 363
41,0
12 203
12,7
33 144
26,4
Setúbal
21159
36,8
4 496
11,4
14 608
25,8
V. do Castelo
43 248
49,8
33 207
42,8
45 574
49,9
Vila Real
37 435
40,6
13 732
17,9
25 011
27,2
Viseu
64 321
42,2
24 777
20,8
44 395
30,8
Continente
702 600
41,3
215 825
16,4
477 218
28,9

Como aí se vê, a disparidade entre os três censos é notável, constituindo esclarecedor retrato dos métodos estatísticos portugueses. Um facto, porém, salta à vista ao olharem-se as percentagens: segundo qualquer dos censos, é nos distritos de pequena propriedade que encontramos as mais elevadas percentagens; segundo qualquer deles, os três distritos em que as percentagens são mais elevadas são Viana do Castelo, Braga e Aveiro, destacando-se a distância o de Viana do Castelo, o mais característico distrito da pequena exploração agrícola, o distrito onde a área média dos prédios rústicos é menor, menor a percentagem de assalariados, maior a percentagem de explorações familiares.

A tabela 28 estabelece o confronto entre sete distritos da pequena propriedade e quatro da grande, indicando as percentagens de mulheres ativas na agricultura, de assalariados e de isolados (segundo o censo de 1950) e as áreas médias dos prédios rústicos.

TABELA 28
Mulheres ativas na agricultura nas regiões de grande e de pequena propriedade
  De
mulheres
activas
(%)
Área
dos
prédios
(ha)
Área
média
das
explora
ções
(ha)
Assalariados
(%)
Isolados
(%)
1. V. Castelo
49,9
0,3
4,6
36,1
51,5
2. Aveiro
36,6
0,3
4,4
47,1
35,8
3. Braga
36,0
0,4
4,9
53,4
26,4
4. Coimbra
32,1
0,3
5,2
59,1
30,1
5. Viseu
30,8
0,3
5,6
51,7
30,7
6. Porto
30,7
0,5
3,9
56,8
25,9
7. Beja
28,9
13
51
87,1
7,8
8. Évora
26,3
17
68
91,2
4,7
9. Setúbal
25,8
20
37
86,4
7,5
10. Portalegre
25,6
8
39
89,0
5,9

Vê-se que são mais elevadas as percentagens de mulheres ativas na agricultura nos distritos onde são mais baixas as percentagens de assalariados, mais elevadas as de isolados e menores as áreas médias dos prédios rústicos e das explorações agrícolas. E são mais baixas as percentagens de mulheres ativas na agricultura em distritos onde são mais elevadas as percentagens de assalariados, mais baixas as de isolados e maiores as áreas médias dos prédios rústicos e das explorações agrícolas.

Não se deve, entretanto, tomar esta afirmação como uma «lei» de aplicação geral, como significando que os números comprovam sempre a sua veracidade. Há variados fatores que, em muitos casos, determinam o contrário. Se em relação às grandes regiões agrícolas não oferece dúvida a sua justeza, desiludido ficaria quem procurasse semelhantes e infalíveis correspondências num estudo pormenorizado dentro de cada região. As divergências no pormenor não destroem, porém, a conclusão geral fundamental que as estatísticas autorizam: as pequenas explorações agrícolas exigem e absorvem mais trabalho das mulheres do que as grandes, ou seja, as mulheres e filhas dos pequenos produtores participam mais regular e intensamente nos trabalhos agrícolas que as mulheres e filhas dos assalariados rurais.

Ao trabalho feminino, assim como ao trabalho infantil, assim como ao seu próprio, vai o pequeno produtor buscar não «um mais elevado rendimento da mão-de-obra», mas um violento e até cruel gasto de energias sem o qual não poderia subsistir. Reconhece um técnico que «a proporção em que as mulheres se empregam na agricultura é um índice na relação inversa da posição económica da coletividade»(21). Reconhece outro que no Minho são reservados para as mulheres trabalhos «que, muitas vezes, exigem um esforço superior às suas possibilidades»(22). Reconhece outro que a «cooperação» das mulheres no trabalho agrícola «é mais vulgar no trabalho familiar que no assalariado»(23). Mas estes técnicos insistem, apesar disso, em ver o mal como virtude e em cantar os supostos encantos e vantagens do trabalho feminino na pequena produção. Falam nas «operações ligeiras e minuciosas em que a habilidade manual e a dedicação feminina servem melhor que as qualidades masculinas» e referem as «lavradoras que a tudo deitam mão, e pela sua robustez incansável e tenacidade sem par, deixam, muitas vezes, a perder de vista os mais vigorosos e diligentes varões»(24). As lavradoras estão, porém, infelizmente muito longe de ter a «robustez incansável» que lhes é atribuída. As condições de sofrimento físico em que muitos trabalhos são realizados, a falta de tratamento nas doenças, a falta de repouso na fadiga, a falta de cuidados na gravidez e depois do parto, os corpos arruinados e envelhecidos em plena juventude, os bebés doentes ceifados pela doença ou vítimas de desastres, a vida inteira passada num constante, violento e brutal labutar — nesses aspetos não fixam a atenção como deviam os cantores das virtudes do trabalho feminino na pequena exploração agrícola. O mal não é mostrar a eficiência, a possibilidade e a necessidade do trabalho da mulher nos campos. Este tem aberto diante de si largos horizontes. O mal é apresentar como ideal o trabalho da mulher tal como hoje é realizado na pequena produção, um trabalho excessivo, desumano e embrutecedor.

As exigências do trabalho feminino nas pequenas explorações agrícolas determinam que, nas regiões de pequena propriedade, a situação da mulher, não só no que respeita a excesso de trabalho como até no que respeita à instrução, seja pior do que nas regiões onde predominam as grandes explorações e o salariato. Em 1930, nos distritos de Braga e Viana do Castelo, em conjunto, 40% dos homens sabiam ler e nos de Portalegre, Évora e Beja apenas 29%; mas, enquanto nos primeiros dois distritos a percentagem das mulheres sabendo ler era de 19%, nos três últimos era de 20%. Nos primeiros dois distritos 36% das pessoas que sabiam ler eram mulheres; nos três últimos, 40%(25). Desde crianças, as jovens parece terem, em relação aos rapazes, uma situação pior nas regiões de pequena propriedade. Neste particular, o censo de 1950 apresenta dados esclarecedores; nos distritos de pequena propriedade é incomparavelmente superior o número de garotas dos 10 aos 19 anos trabalhando no campo e na lida da casa. Dos 12 aos 14 anos, representam 32 por mil da população agrícola ativa no distrito de Viana do Castelo; mais de 20 por mil nos distritos de Aveiro, Braga, Coimbra e Porto e de 15 a 20 por mil nos da Guarda, Leiria e Viseu, todos «de pequena propriedade». Não alcançam 10 por mil nos distritos alentejanos e de Setúbal, todos de grande propriedade. Dos 15 aos 19 anos, nos primeiros distritos apontados representam de 30 a 65 por mil, ao passo que em nenhum dos últimos alcançam 20 por mil. Isto reflete-se, necessariamente, na instrução das jovens. Em 1946-1947, de 55 concelhos estudados, em que predomina a grande propriedade, em 31 (ou seja, 56%) mais de 45% dos alunos matriculados nas escolas primárias eram moças e apenas em 3 elas representam menos de 40%. De 110 concelhos estudados, em que predominam as pequenas explorações, apenas em 12 (ou seja, 11%) o número de moças matriculadas nas escolas primárias excedia 45% e em nada menos de 25 (ou seja, 23%) não alcançava os 40%. Tomando em conjunto os distritos de Viana do Castelo, Braga e Coimbra, no total de 40 concelhos, só num a percentagem de jovens matriculadas excedia 45% e em 16 era inferior a 40%. Tomando em conjunto os distritos de Beja, Évora e Portalegre, no total de 42 concelhos, só num a percentagem era inferior a 40% e em 20 excedia 45%(26). Estes números explicam a frequência com que em famílias de trabalhadores nortenhos a mulher é analfabeta e o homem sabe ler e em famílias de trabalhadores alentejanos o homem é analfabeto e a mulher não.

Seria de interesse confrontar a situação das mulheres dos pequenos agricultores e dos assalariados no referente à conceção e aos partos. Mas os elementos conhecidos não autorizam um juízo seguro. No que respeita à assistência nos partos (de médico ou parteira), os números indicam uma pior situação nos distritos de pequena propriedade. Em 1947, enquanto nos distritos de Viana do Castelo e Braga a percentagem de partos sem assistência passou de 90%; no de Vila Real, de 80%; nos de Aveiro, Bragança, Coimbra, Guarda, Leiria e Viseu, de 70%; no Alentejo as percentagens foram muito inferiores: 61% no distrito de Évora, menos de 60% nos de Portalegre e Setúbal, menos de 50% no de Beja(27). Entretanto, estes números devem ser considerados com muita reserva: por um lado as desproporções entre os vários concelhos são as maiores possíveis, encontrando-se, dentro de um mesmo distrito, concelhos com menos de 1% e outros concelhos com mais de 95% de partos sem assistência; por outro lado encontramos contraditoriamente as mais elevadas percentagens de óbitos por doenças da gravidez e do parto nos distritos onde são mais baixas as percentagens de partos sem assistência. A questão necessita de estudo mais rigoroso.

As maiores exigências de trabalho feminino nas pequenas explorações refletem-se, necessariamente, nos cuidados da mulher na própria casa. Apesar das terríveis dificuldades que, com o desemprego periódico, batem à porta dos assalariados alentejanos, o arranjo nos seus lares é em geral muito superior ao dos lares de pequenos agricultores na generalidade das regiões de pequena propriedade. Isso indica que aí é mais demorada e atenta a presença da mulher em casa, enquanto nas pequenas explorações a mulher é mais absorventemente ocupada pelos trabalhos agrícolas.

As mulheres dos pequenos agricultores fazem o possível e o impossível para cumprir as múltiplas tarefas que lhes estão confiadas: labutar no campo, tratar dos filhos, fazer a comida, lavar e coser roupa, etc. Mas a pequena exploração agrícola é imperiosa na exigência de trabalho. Somando-se aos afazeres domésticos, os trabalhos agrícolas, violentos, excessivos, constantes, não permitindo um momento de repouso, tornam a vida das mulheres dos pequenos agricultores um longo e heroico martírio. Este martírio não poderá jamais ser dispensado pela pequena produção agrícola na economia capitalista. Ele é condição indispensável para que a pequena produção possa viver.

O trabalho infantil

Um homem, que na vida e ante a morte soube ser homem, dedicou um romance que escreveu — uma pérola da literatura portuguesa contemporânea — «aos filhos dos homens que nunca foram meninos»(28). Assim dedicou o seu livro a grande parte, talvez à maioria, das crianças portuguesas. Na verdade, desde muito tenra idade, começam as crianças a ajudar os seus na luta contra a miséria. Fazer recados, tomar conta dos irmãos mais novos, apascentar gado, executar os chamados «serviços leves» tantas vezes estafantes — são trabalhos atribuídos às crianças, mal começam a balbuciar.

Não se trata, evidentemente, de um problema de orientação errada ou de incompreensão dos pais acerca do que é bom e do que é mau para seus filhos. Trata-se, tão-somente, da instigação da necessidade. Se os pais obrigam os filhos a trabalhar desde tenra idade, se lhes batem por fugirem para a brincadeira, é porque o trabalho infantil é indispensável à manutenção da família. E, se pensam ser boa orientação assim os educar, se pensam ser de tenra idade que as crianças assim se fazem homens, isso não é mais que um exemplo de como a moral e as ideologias refletem a base material onde assentam.

O trabalho infantil é geral nos campos portugueses. Numa altura em que a escola, o exercício são, o divertimento, o brinquedo, deviam ser as ocupações dominantes, as crianças sofrem a violência de trabalhos muito superiores às suas forças, uns pelo próprio vigor muscular que exigem, outros pelas horas prolongadas que ocupam. Em muitos casos, as crianças não são enviadas à escola porque falta a roupa, o calçado, o dinheiro para material escolar, os recursos para levarem uma merenda. Mas, a estas fortes razões, ajunta-se uma outra e ainda mais imperiosa particularmente na pequena exploração agrícola: a necessidade do seu trabalho. Por isso, com frequência, «quando os filhos alcançam a idade escolar, são logo utilizados nos trabalhos leves da exploração»(29), não chegando a pôr um pé na escola. Por isso, também as crianças são retiradas da escola antes de terem completado a sua instrução elementar e esquecem dentro em breve o pouco que aprenderam. Nas pequenas explorações agrícolas, logo que as crianças têm o mínimo de tino para fazerem o que lhes mandam, o seu trabalho é indispensável, seja nas explorações próprias, seja, no caso das famílias semiproletarizadas, ganhando uns tostões nas alheias. As crianças acompanham, ombro a ombro, os seus familiares nos mais variados trabalhos, ou vendendo a sua força de trabalho, ou mourejando nas pequenas courelas, ou até emigrando nos ranchos. Em quatro ranchos trabalhando na região do Sado, estudados num inquérito direto já citado(30), num total de 483 trabalhadores, na sua maioria de famílias de pequenos agricultores, havia 70 crianças de menos de 15 anos, além de 177 jovens dos 16 aos 20 anos. Não é este um caso acidental, mas apenas um exemplo entre tantos outros. Seja como jornaleiros, seja na exploração dos próprios pais, as crianças, e especialmente os filhos dos pequenos agricultores, representam uma importante fração das classes trabalhadoras dos campos portugueses.

A tabela 29, mostrando, segundo o censo de 1940, o número de crianças dos 10 aos 14 anos «ativas» na agricultura nos vários distritos, e a sua percentagem em relação ao total da população agrícola ativa, revela como a quota do trabalho infantil, sendo importante em todo o País, é mais elevada nas regiões onde predominam as pequenas explorações agrícolas.

TABELA 29
Crianças trabalhando na agricultura(31)
Distritos População
agrícola
activa
Crianças Percentagem
Aveiro
81 289
5143
6,3
Beja
69 005
2 982
4,3
Braga
101 699
9 562
9,4
Bragança
51 548
2 244
4,4
Castelo Branco
63 339
2 676
4,2
Coimbra
86 837
4 192
4,8
Évora
45 595
2 406
5,3
Faro
59 201
1970
3,3
Guarda
66 220
2 729
4,1
Leiria
77 277
3 988
5,2
Lisboa
76 577
2 862
3,7
Portalegre
44 551
2 220
5,0
Porto
87 086
6 664
7,7
Santarém
95 764
5 285
5,5
Setúbal
39 500
2 451
6,2
Viana do Castelo
77 557
5 385
6,9
Vila Real
76 662
4 745
6,1
Viseu
119 032
7 866
6,6
Continente
1 318 739
75 370
5,7

As percentagens indicadas na tabela 29, embora muito elevadas, estão ainda longe de corresponder à realidade. Não só as estatísticas não registam muitas crianças que trabalham na agricultura ou serviços subsidiários, como não se pode considerar, para efeito de muitos trabalhos agrícolas, a infância terminada aos 14 anos. Além dessas 75 000 crianças, de menos de 14 anos, que as estatísticas apresentam como «ativos na agricultura» no continente, há um número elevadíssimo de crianças trabalhadoras com menos de 10 anos a que as estatísticas não fazem referência e cerca de 170 000 jovens trabalhadores dos 15 aos 19 anos. Vê-se que não só de certeza mais de um quinto dos que trabalham nos campos têm menos de 20 anos de idade como também o terrível peso do trabalho infantil na nossa agricultura. A quota efetiva das crianças trabalhando na agricultura excede em muito, em muitíssimo, os 6% indicados na tabela 29.

Quanto à distribuição geográfica de crianças ativas na agricultura, as percentagens estão diminuídas nas regiões de pequena propriedade em relação àquelas onde predominam as grandes explorações. Dos 10 aos 14 anos é idade em que as crianças começam trabalhando a jornal. Antes dos 10 anos, só nuns ou noutros casos isso acontece. Quer dizer: se as estatísticas acusassem, também, o número de crianças de menos de 10 anos ativas na agricultura, as percentagens subiriam mais nas regiões de «pequena propriedade» do que nas regiões de grande. Apesar, porém, desta deficiência e apesar, também, de alguns casos discordantes, vê-se que são, em geral, mais elevadas as percentagens de crianças trabalhadoras nos distritos onde predominam as pequenas explorações (tabela 30).

Os números mais significativos da tabela 30 são as elevadíssimas percentagens no Noroeste (Braga, Porto e Viana do Castelo), pois sendo a mais típica grande região do predomínio da pequena exploração agrícola, essas percentagens comprovam o abuso do trabalho infantil nas pequenas explorações.

Tal como sucede em relação às mulheres, desiludido ficaria, também, quem aqui procurasse esquematicamente, concelho por concelho, correspondências absolutas entre as mais elevadas percentagens de crianças trabalhando na agricultura, as mais elevadas de isolados e as mais baixas de assalariados. Mas sem quaisquer esquematismos, deve admitir-se que os números indicam um mais intenso trabalho infantil onde predominam as pequenas explorações e especialmente as «explorações familiares».

TABELA 30
Crianças trabalhadoras agrícolas nas regiões de grande e de pequena propriedade
  Crianças
activas
(%)
Area dos
prédios
(ha)
Área média
das
explorações
(ha)
Assalariados
(%)
Isolados
(%)
1. Braga
9,4
0,4
4,9
53,4
26,4
2. Porto
7,7
0,5
3,9
56,8
25,9
3. V. do Castelo
6,9
0,3
4,6
36,1
51,5
4. Viseu
6,6
0,3
5,6
51,7
30,7
5. Aveiro
6,3
0,3
4,4
47,1
35,8
6. Setúbal
6,2
20
37
86,4
7,5
7. Setúbal
5,3
17
68
91,2
4,7
8. Portalegre
5,0
8
39
89,0
5,9
9. Beja
4,3
13
51
87,1
7,8

Sendo geral o trabalho infantil, a criança, nas pequenas explorações, torna-se mais cedo economicamente vantajosa do que nas famílias dos assalariados. A infância dos filhos dos pequenos agricultores é incomparavelmente mais sobrecarregada de trabalho do que a dos filhos dos assalariados. Estes últimos, enquanto não chegam à idade de poder ganhar salário, limitam-se a fazer recados ou cuidar do lume e dos irmãos mais novos, tarefas estas tantas vezes ilustradas por trágicos desastres. Os primeiros têm desde pitorrinhos a solicitá-los «aquilo que é seu». A pequena exploração sorve energias sem conta, porque só energias sem conta podem suprir o atraso técnico e a baixa produtividade do trabalho. Dado que os pequenos agricultores só à força de trabalho podem sobreviver, não se podem permitir dispensar o trabalho dos seus filhos. Para a pequena exploração agrícola, crianças significam mão-de-obra.

Talvez que neste facto resida a verdadeira explicação da existência de famílias mais numerosas e de mais elevada natalidade nas regiões onde predominam as pequenas explorações. Em 1946-1948, enquanto a taxa de natalidade foi superior a 32 no distrito de Braga e ficou compreendida entre 25 a 29 nos de Viana do Castelo, Porto, Vila Real, Bragança, Aveiro, Viseu e Guarda, não passou de 22 nos distritos alentejanos(32). Para o autor de cujo artigo tiramos estes números «o ambiente psicológico ditando a conduta dos costumes (sic), sobrepuja em importância todas as outras causas» destas diferenças(33). É porém evidente que esta frase nada diz. Há, também, quem julgue ser fator da «limitação voluntária dos nascimentos» a intenção de «não dividir demasiado o património, especialmente a terra, entre os pequenos proprietários rurais», ou seja, «não aumentar demasiadamente o número de partilhantes». Estas afirmações estão, porém, em manifesta contradição com a realidade portuguesa, pois não só a natalidade portuguesa é mais alta nas regiões de pequena propriedade como, na baixa geral da natalidade, a baixa é menos acentuada nessas regiões. Tendo havido importante redução da natalidade de 1925-1927 para 1946-1948, a percentagem de redução foi muito menor nos distritos alentejanos (onde ultrapassou 30%) do que nos distritos de Aveiro, Braga, Porto, Viana do Castelo, Vila Real e Viseu (onde não alcançou 20%)(34). O pequeno proprietário verá com apreensões a partilha das suas courelas por um grande número de filhos. Mas a pequena lavoura, para conseguir manter-se, exige braços, dos homens, das mulheres, dos velhos (que só completamente inválidos alcançam ter um repouso há muito merecido), das crianças. Talvez que aqui, e não na indefinida e indefinível «conduta dos costumes» ou na desmentida explicação pelo receio de muitos partilhantes, se encontre uma das chaves destas diferenças e destes movimentos da natalidade.

Raros economistas portugueses se têm preocupado com o problema do trabalho infantil nos campos. Entre esses raros, é justo salientar o Prof. Henrique de Barros, por ser ele, talvez, o primeiro a estudar o problema de forma mais sistemática, servindo-se de alguns dos escassos números que as estatísticas fornecem.

Henrique de Barros salienta justamente que «as máximas percentagens (de pessoas de 10 a 14 anos) em relação ao total da população agrícola ativa aparecem no Noroeste (Minho e Douro Litoral), seguindo-se-lhe a Beira Alta e Beira Litoral, tudo regiões de pequena exploração». Salienta, também, justamente que «as pequenas empresas não podem dispensar o trabalho infantil»(35). Mas que conclui daqui? A condenação da pequena «empresa familiar» na economia capitalista? A sua inferioridade manifesta em relação à grande empresa? A necessidade de superar essa forma de organização de exploração agrícola que só à custa de sobretrabalho, no qual se conta muito trabalho infantil, pode sobreviver? Não, Henrique de Barros não pode chegar a tais conclusões.

Muitas vezes neste estudo tem sido citado este autor, as mais delas para se manifestar a discordância dos seus pareceres. A razão por que isto sucede é o reconhecimento implícito do maior dos seus méritos. Num ambiente de incultura geral, de desinteresse pelos problemas económicos, de dificuldades da mais variada natureza, este técnico tem estudado e incitado outros a estudar, tem escrito e incitado outros a escrever, e tem ousado defender opiniões. E assim sucede que, ao estudarem-se muitos problemas económicos relativos à agricultura, no vazio geral da bibliografia portuguesa, se encontrem os estudos ou simples apreciações de Henrique de Barros. Entretanto, este mérito não oculta os deméritos.

Henrique de Barros diz adotar «um critério superior» e «independente». Numa sociedade dividida em classes não pode, porém, existir «superioridade» e «independência» de critério. A imparcialidade é sempre uma parcialidade de classe. Quem procurar, na Economia Agrária de Henrique de Barros, os princípios gerais de economia política (aliás, expostos sem poupar espaço), verifica como o «imparcial» professor adota, em relação a todos os problemas fundamentais sem exceção (o valor, o capital, a mais-valia, a própria questão agrária, sua especialidade)(36) os conceitos típicos da burguesia exploradora, conceitos que visam a justificar e a perpetuar uma situação económica que H. de Barros afirma, aliás, desejar modificada. Diz o nosso povo que «de boas intenções o inferno cheio está». Atribuindo imaginariamente um juízo a Deus, a sabedoria popular indica qual deve ser o juízo dos homens.

Nada, pois, de estranhar que H. de Barros, depois de reconhecer que «as empresas não podem dispensar o trabalho infantil», depois de reconhecer serem as percentagens de crianças que trabalham na agricultura mais elevadas nas regiões onde predominam as pequenas explorações, insiste em defender a «empresa familiar» como forma ideal de exploração agrícola. Quanto ao trabalho infantil, o ilustre professor espraia-se em considerações acerca das suas vantagens — uma para a preparação profissional, outras para o robustecimento físico e moral — e, opondo-se à sua proibição «de modo absoluto, indiscriminado», entende que a solução consiste em «definir com precisão os trabalhos rurais próprios para as crianças e aqueles que se devem considerar impróprios» e «regulamentar estas atividades consentidas»...(37)

É evidente que, não podendo as pequenas explorações dispensar o trabalho infantil, conforme reconhece Henrique de Barros, quaisquer «regulamentações» seriam papéis com o único valor de adormecer ou afagar os corações sensíveis. O trabalho infantil nas pequenas explorações não é questão que possa ser resolvida por «regulamentações» ou «decretos» da sociedade burguesa. Defender as excelências da «pequena exploração familiar» é defender as excelências do trabalho infantil, com todas as suas consequências nocivas e dolorosas. No capitalismo, a pequena exploração familiar é sinónimo de sobretrabalho gratuito, dos homens, das mulheres, das crianças. Só assim consegue viver e nunca conseguirá viver de outra forma. Na economia capitalista, a pequena «exploração familiar» (sejam quais forem as «regulamentações») implicará sempre, enquanto existir, essa amarga tragédia dos «filhos dos homens que nunca foram meninos».

Estou-me lembrando de um moço que conheci. Tinha ele 11 anos e era o filho mais velho, num rancho de seis, de um pequeno proprietário. Trabalhava desde madrugada escura ao lado do pai, acompanhando-o muitas vezes a cavar, embora com enxada mais leve. Quando o tempo o exigia, entravam noite dentro com o trabalho. Ao ouvir na escuridão e no silêncio geral os brados do metal ferindo as pedras e o baque surdo das enxadas rasgando a terra, quem iria imaginar que ali estava uma criança desde madrugada alta? O moço era inteligente, resoluto e tinha um tremendo desejo de progredir. Alguém se ofereceu para lhe ensinar a ler, e ele nunca faltou a uma lição, nem mesmo quando ia trabalhar a uma courela distante. Quando isso acontecia, deixava de jantar e reduzia o sono a meia dúzia de horas. O pai, às vezes, sorria, dizendo, com leve ar de censura, que tratavam seu filho como se fosse um homem. A verdade é que não o tratavam como se ele o fosse: criança embora, ele o era de facto. Quantas e quantas crianças tão heroicas e capazes como esta não são aniquiladas e embrutecidas pela pequena «empresa familiar»? Quantos pequenos portugueses e portuguesas, sangue do sangue do nosso povo, não são sacrificados às exigências de sobretrabalho da pequena exploração, forma única de manter as famílias, de competir com a grande e arrastar a agonia uns anos mais?

De um outro petiz me estou lembrando. Eu morava na margem de uma aldeia e estava lavando os dentes ao ar livre. Um garoto que apascentava ovelhas, chegou-se de olhos bem abertos e, vencendo a própria timidez, acabou por perguntar se aquilo «era um livro». Depois de uns dedos de conversa, não tive dúvidas de que se referia à escova de dentes e não estava troçando. Na sua vida nunca tinha visto nem livro nem escova. E, por falarem dos livros como de coisas maravilhosas, julgara reconhecer um nesse outro objeto estranho. Era português, tinha 7 anos e não era nada tolo.

O cansaço, o sofrimento, a ausência de meninice, o embrutecimento das crianças, eis mais um preço pago pelas famílias de pequenos agricultores para conseguirem subsistir.

Privações familiares

Comparações de miséria com miséria com facilidade induzem em erro. Aos olhos daquele que não come, o que come uma magra sopa é homem bem alimentado. Aos olhos do descalço, quem tem sapatos rotos faz figura de bem calçado. Aos olhos de quem habita toca de terra e lata, o cortelho arruinado parece confortável habitação. Mas quem não tenha a visão deformada pela miséria, não pode considerar animadora a situação do que come a magra sopa, tem os sapatos rotos e habita o cortelho arruinado. Entretanto, em face dos grandes contrastes dentro da miséria, é isso que fazem com frequência técnicos inquiridores da vida do nosso povo. Fazendo-o, põem afinal em relevo a pavorosa situação geral. Falar-se em desafogo quando se come sopa de pão três vezes ao dia, quando não se tem mobília nem utensílios domésticos, se é analfabeto, nada se gasta com instrução e divertimentos, as pessoas calçam e vestem mal; falar-se em «boa» ou «regular» aparência de casebres impróprios para habitação humana; falar-se em «bom recheio» em relação a alguns tarecos insuficientes; falar-se em «pé-de-meia» quando, roubando-se ao estômago o indispensável, se «economizam» uns tostões sorvidos adiante por despesas de há muito adiadas — que é isto, senão o índice da extrema miséria geral?

Vê-se como os confrontos levam facilmente a deformadas e deformadoras visões otimistas e como se torna difícil tratar à parte os menos e os mais miseráveis. Já neste estudo falámos a respeito da situação geral dos trabalhadores dos campos, tratando, em conjunto, a dos pequenos produtores e a dos assalariados. Mostrámos, então, como é próxima a situação de uns e de outros, no referente a privações da mais variada espécie. Mas, ao abordarmos agora o problema da pequena produção, ao ajuntarmos ao sobretrabalho já referido as privações familiares como fator da sua possibilidade de persistir dentro da economia capitalista, não podemos deixar de fazer um confronto.

Se a situação dos trabalhadores do campo no seu conjunto é geralmente miserável, pode, sem receio, afirmar-se que se distinguem nesse conjunto os pequenos produtores pelas suas maiores privações. «Eles pensam mais no bolso do que no estômago» — observou Lénine(38). Para conseguirem vender os produtos aos preços do mercado, para conseguirem, com a baixa produtividade do seu trabalho, aguentar a concorrência da grande exploração, para conseguirem subsistir, as famílias de pequenos agricultores, além do excesso de esforço dos homens, mulheres e crianças, têm de reduzir o seu consumo a um nível inferior ao dos assalariados.

Já em 1899, numa obra apreciada por Lénine, Kautsky (que então era ainda marxista) afirmava que

«o assalariado agrícola se encontra em melhor situação do que o pequeno camponês».

E Lénine insistia em que

«o pequeno camponês reduz o consumo relativamente ao grande e ao médio em proporção considerável e não se alimenta nem se veste melhor do que aquele que vive de jornada»(39).

Com o aumento das dificuldades da pequena produção geradas pelo desenvolvimento do capitalismo, tal diferença não deixa de acentuar-se.

Existe, é certo, uma categoria de assalariados rurais cuja situação consegue ser pior que a dos pequenos agricultores. É a do «peão auxiliar», ou do «criado» daqueles pequenos agricultores que alcançam subir um degrau para a classe capitalista. A sua situação atinge, geralmente, um nível de miséria próximo da dos mendigos ou vagabundos. Dispersos, esmagados pelas dificuldades, não integrados ainda na classe social a que pertencem, são vítimas da mais cruel exploração. Deitam mão a todos os trabalhos, os mais penosos e mal pagos. Quando «permanentes» dormem em palheiros ou junto com os animais, comem umas sopas, vestem uns trapos, são sobrecarregados de trabalho, para que não há horários nem limites. Se se considerassem estes trabalhadores como representantes típicos do salariato das empresas capitalistas, ter-se-ia de concluir pela superior situação dos pequenos agricultores e até por vezes pela sua mais ampla visão das coisas. A este erro não fogem infelizmente alguns autores progressistas, mostrando não compreender que o «peão auxiliar» é apenas o primeiro passo do parto capitalista pela pequena produção. A pequena produção com o «peão auxiliar» mantém ainda muitas características de economia mercantil simples, e o «peão auxiliar» não ganha num salto as características do proletariado rural, trabalhando nas empresas capitalistas evoluídas.

Excluída esta categoria muito especial de proletários, pode afirmar-se serem as privações dos pequenos agricultores superiores em regra às dos assalariados. Tal verdade é reconhecida por quantos têm estudado o problema.

«É raro — diz-se num estudo relativo ao Noroeste — que uma família de caseiro de terras ou mesmo de pequeno proprietário [...] retire produtos em valor correspondente aos dos salários que ganhariam se trabalhassem por conta de outrem, recebendo salário.»(40)

Os pequenos rendeiros de grandes propriedades arrendadas em pequenas parcelas — diz-se noutro estudo —

«muitas vezes, nem sequer conseguem a remuneração do seu trabalho à base do salário normal da região»(41). «Por vezes — diz-se noutro estudo — o pequeno proprietário-empresário, que acode a todo o trabalho com os seus braços e os da família, feitas bem as contas, não chega a tirar a jornada de um trabalhador.»(42) «São muitos os casos — insiste-se na mesma obra — em que o rendeiro, ao pagar a renda, não consegue tirar salários razoáveis do seu trabalho como operário e do da família.»(43)

Em casos «infelizmente muito vulgares no nosso país» - reconhece-se noutra obra - a receita média do pequeno agricultor «é inferior ao salário corrente» e «casos há em que, depois de paga a renda, as receitas líquidas restantes, divididas pelo número anual de dias de trabalho, equivalem a salário muito inferior ao usual na região»(44). Um pequeno agricultor, trabalhando «por sua conta» — insiste-se — «aceita para si e para os seus um nível de vida e presta e faz prestar aos seus trabalhos que patrão algum conseguiria impor-lhes»(45).

«Ainda há pouco — declarou-se num alto organismo do Estado — no inquérito que se fez para o fomento agrícola, se verificou que em terras do Minho há famílias de pretensos proprietários cujos membros vivem com um escudo por dia.»(46).

Apesar de predominar no Alentejo a grande propriedade — diz-se ainda noutro estudo —

«e de, portanto, ser muito reduzido o número de proprietários e enorme o de assalariados», «o nível de vida dos rurais é melhor que o verificado nas regiões continentais nortenhas»(47).

Se repararmos em que isto é unanimemente afirmado por economistas e não economistas que não têm em conta para os seus cálculos a maior intensidade e o mais elevado número de horas de trabalho na pequena exploração, mais claro é de ver como, neste confronto entre misérias, se revela pior a situação dos pequenos agricultores. Apesar das terríveis dificuldades dos trabalhadores assalariados nas regiões onde predominam as grandes explorações agrícolas, a situação da generalidade dos pequenos agricultores, salvo os períodos de desemprego dos primeiros, consegue ser mais dificultosa: tanto no referente à alimentação, como à habitação, como a vestuário e calçado.

Ilustração esclarecedora é dada por um caso citado num estudo sobre o Norte do País. Um assalariado, tendo arrendado 3 ha e trabalhado neles um ano com toda a família (mulher, duas jovens de 14 e 17 anos e um rapazinho de 11)

«desistiu de explorar a terra e resolveu ganhar com a mulher e filhos os salários com que toda a vida viveu e espera continuar a viver menos sobrecarregado de trabalho do que durante o ano em que, pela exploração da terra por sua conta, pretendeu melhorar a situação económica»(48).

Mas porque os outros não fazem o mesmo? — pergunta-se. Este pôde fazê-lo, porque era um proletário, acidentalmente e à experiência pequeno cultivador. Não o podem fazer, não o desejam, não o querem, os pequenos cultivadores. Preferem uma vida pior, desde que conservem a sua «independência».

Não vamos descer à minúcia deste confronto triste entre o nível de vida dos pequenos agricultores e dos assalariados. Atrás ficou o panorama geral. Apenas se junta ligeiro comentário a afirmação muito frequente e enganadora.

Diz-se que o pequeno agricultor das regiões de pequena propriedade tem ao menos assegurados a sua broa e o seu caldo. E essa é aí, na verdade, a alimentação quase exclusiva de grande número de pequenos agricultores, pois coincidem em Portugal grandes regiões de pequena propriedade com grandes regiões de milho. Tem interesse deter um pouco a atenção nesse caldo e nessa broa.

Quanto ao caldo: por iniciativa do Prof. Lima Basto, o engenheiro agrónomo Valente de Almeida, sob a direcção do Prof. Boaventura de Azevedo, fez a análise do célebre caldo verde. Não se trata é certo de um caldo verde familiar, mas comprado a dez tostões antes de 1935. A diferença não deve, porém, ser grande. Eis como Lima Basto concretizou os resultados:

«Nesse pseudo-caldo há 97,23% de água e apenas 0,51% de proteína e 0,23% de gordura»; «cada litro fornece apenas 82,1 calorias»(49).

Seriam necessários mais de 40 litros de caldo diários para obter o mínimo de calorias essenciais à manutenção da vida de um trabalhador do campo.

Quanto à broa: a força do hábito é tal que muita gente considera a broa mais grosseira um saboroso pão. Muitos economistas que comem trigo lamentam mesmo a substituição do pão de milho pelo de trigo. A broa é na verdade um belo pão. Mas há broa e broa. Há broa feita com farinha de milho e, melhor ainda, lotada com trigo, e há uma espécie de argamassa bafienta (onde, com frequência, aparece palha) fabricada e vendida em muitas regiões do País, imprópria para a alimentação humana. Há, ainda, a broa como um entre múltiplos alimentos - e nesse caso, se é bem fabricada, nada a dizer - e a broa como alimento fundamental, por vezes quase exclusivo, acompanhada apenas pelo tal caldo verde com os seus 97% de água. Então tal alimentação torna-se fator de perturbações e de doenças, particularmente nas crianças. Disso fala a mortalidade infantil e em especial o facto de se encontrarem no Minho, Douro Litoral e nas regiões montanhosas do interior as mais elevadas percentagens de óbitos por diarreia e enterites. E disso falam, também, os números de doentes hospitalizados por pelagra, já que não falam os daqueles muitos que não são hospitalizados. No quinquénio 1945-1949, num total de 2500 doentes entrados nos hospitais do continente atacados de pelagra, nada menos de 2122, ou seja, 85%, eram dos distritos de Braga, Porto e Viana do Castelo. Se a estes três distritos acrescentarmos os de Aveiro, Bragança, Coimbra e Vila Real, os 7 distritos abrangem 93% dos doentes atacados de pelagra hospitalizados(50).

Num «estudo» já citado, afirmava um professor universitário:

«Constata-se na história de todos os tempos que os períodos de prosperidade coincidem sempre com a existência de um maior número de pequenos proprietários rurais.»(51)

Sem olharmos aos trabalhos em que se meteria quem se desse ao encargo de provar esta afirmação, sem olharmos também a que nela se considera a História sem considerar a evolução das sociedades, e atendo-nos apenas à economia capitalista, pode bem dizer-se que só a prosperidade das grandes empresas coincide com a existência das pequenas. Na economia capitalista, a pequena produção facilita a prosperidade da grande sem que conheça ela própria o cheiro da prosperidade. Trabalho e mais trabalho, privações e mais privações, tal é a vida das famílias de pequenos cultivadores, inevitável e imodificável na economia capitalista.

A insistência nas desvantagens da pequena produção e na superioridade da grande, a conclusão de que a pequena produção só pode subsistir através dos grandes trabalhos e sofrimentos do pequeno agricultor, a afirmação de que o nível de vida dos pequenos agricultores é inferior ao dos assalariados rurais, não significa, conforme Lénine sublinhou(52), que «defendamos» a expropriação dos pequenos agricultores. Significa, sim, que acusamos o capitalismo da miséria dos pequenos agricultores, que afirmamos a inevitabilidade da completa ruína destes como consequência do desenvolvimento do capitalismo, e que chamamos os pequenos agricultores aos ideais do comunismo, único a poder resolver as suas dificuldades.


Notas de rodapé:

(1) Cesário Verde, Nós. (retornar ao texto)

(2) Lénine, A Questão Agrária e os «Críticos» de Marx, cap. VII. (retornar ao texto)

(3) H. de Barros, Economia Agrária, v. II, p. 42. (retornar ao texto)

(4) E. Castro Caldas, Formas de Exploração, p. 145. (retornar ao texto)

(5) H. de Barros, Economia Agrária, v. I, p. 391. (retornar ao texto)

(6) E. Castro Caldas, no Inquérito à Habitação Rural, v. I, p. 212. (retornar ao texto)

(7) Lénine, A Questão Agrária e os «Críticos» de Marx, cap. IX. (retornar ao texto)

(8) Lénine, A Questão Agrá/ria e os «Críticos» de Marx, cap. VI. (retornar ao texto)

(9) E. A. Lima Basto, Industrializarão da Actividade Agrícola. (retornar ao texto)

(10) J. Rebelo Vaz Pinto, A Colonização do Pliocénico, J. C. I., Problemas de Colonização, p. 81. (retornar ao texto)

(11) Idem, ibidem, p. 81. (retornar ao texto)

(12) Idem, ibidem, p. 84. (retornar ao texto)

(13) Idem, Ibidem, p. 82. (retornar ao texto)

(14) Idem, ibidem, p. 85. (retornar ao texto)

(15) Idem, ibidem, p. 81. (retornar ao texto)

(16) Idem, ibidem, p. 73. (retornar ao texto)

(17) Mário Pereira, A Empresa Agrícola Familiar no Pliocénico ao sul do Tejo, J. C. I., Problemas de Colonização, v. I, p. 67. (retornar ao texto)

(18) E. Castro Caldas, no Inquérito à Habitação Rural, I, p. 206. (retornar ao texto)

(19) H. de Barros, Economia Agrária, v. I, p. 388. (retornar ao texto)

(20) Marx, O Capital, 1. III, cap. XLVII, 5. (retornar ao texto)

(21) E. A. Lima Basto, Inquérito Económico Agrícola, v. IV, p. 13. (retornar ao texto)

(22) E. Castro Caldas, no Inquérito à Habitação Rural, v. I, p. 102. (retornar ao texto)

(23) H. de Barros, Economia Agrária, v. I, p. 162. (retornar ao texto)

(24) Idem, ibidem. (retornar ao texto)

(25) Calculado na base do Censo de 1930. (retornar ao texto)

(26) Calculado na base de elementos da Estatística da Educação, 1946-1947. (retornar ao texto)

(27) Calculado na base de elementos do Anuário Demográfico, 1947. (retornar ao texto)

(28) Soeiro Pereira Gomes, Esteiros. (retornar ao texto)

(29) J. C. I., Aguçadoura, Estudo Económico - Agrícola, p. 112. (retornar ao texto)

(30) Maria Porfina das Neves, Subsídios para o Estudo da Mão-de-Obra na Orizicultura. (retornar ao texto)

(31) Números absolutos do censo de 1940. Crianças dos 10 aos 14 anos. O censo de 1950 deixou de considerar as crianças trabalhadoras de menos de 12 anos e inscreveu, como não activas, «a cargo do chefe de família», muitas crianças activas nas regiões de pequena propriedade. (retornar ao texto)

(32) A. de Almeida Garrett, «Os Problemas da Natalidade», Revista do Centro de Estudos Demográficos, n.° 6, 1949, p. 61. (retornar ao texto)

(33) Idem, ibidem, n.° 6, 1949, p. 69. (retornar ao texto)

(34) Idem, ibidem, n.° 6, 1969, p. 61. (retornar ao texto)

(35) H. de Barros, Economia Agrária, v. I, p. 167. (retornar ao texto)

(36) Ver cap. 6, «A Questão a Resolver». (retornar ao texto)

(37) H. de Barros, Economia Agrária, v. I, pp. 167, 168, 170. (retornar ao texto)

(38) Lénine, A Questão Agrária e os «Críticos» de Marx, cap. VII. (retornar ao texto)

(39) Idem, ibidem. (retornar ao texto)

(40) Inquérito à Freguesia de St.° Tirso, p. 133. (retornar ao texto)

(41) E. Castro Caldas, Formas de Exploração, p. 146. (retornar ao texto)

(42) E. A. Lima Basto, Alguns Aspectos, Inquérito Económico-Agrícola, v. IV, p. 96. (retornar ao texto)

(43) Idem, ibidem. (retornar ao texto)

(44) H. de Barros, Economia Agrária, v. I, p. 193. (retornar ao texto)

(45) Idem, ibidem, v. I, p. 398. (retornar ao texto)

(46) Manuel Basto na Assembleia Nacional, Diário das Sessões de 24 de Janeiro de 1952, p. 261. (retornar ao texto)

(47) J. C. I., Reconhecimento dos Baldios do Continente, v. I, p. 256. (retornar ao texto)

(48) Inquérito à Habitação Rural, exemplo n.° 20, p. 310. (retornar ao texto)

(49) E. A. Lima Basto, Níveis de Vida e Custo de Vida, p. 42. (retornar ao texto)

(50) Na base de elementos do Anuário Estatístico. (retornar ao texto)

(51) A. Lino Neto, A Indústria dos Lacticínios e a Questão Agrária, pp. 11-12. (retornar ao texto)

(52) Lénine, O Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia, cap. II, XII. (retornar ao texto)

Inclusão 06/03/2013