Americanismo e revolução russa: formas históricas e revolução passiva

Edmundo Fernandes Dias

Março de 1999


Primeira Edição: revista Universidade e Sociedade - Universidade e Sociedade, Brasilia-DF, N.°13, Mar./1999

Fonte: Blog Esquerda Online - https://blog.esquerdaonline.com/?p=8161

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


Na sua revolução clássica, a burguesia foi levada, pela ação de uma direção político-intelectual jacobina, muito além das suas reivindicações classistas: varreu do mapa as instituições feudais e preparou o advento de uma cidadania e de uma institucionalidade adequadas à expansão capitalista – de forma progressiva – criando, como disse Marx, um mundo à sua imagem. Nos momentos posteriores, após a revolução francesa, em todos os processos de transformação da ordem no sentido capitalista, os burgueses não puderam aliar-se mais às classes subalternas. A presença destas últimas, na cena histórica, foi simbolizada tanto na política, na filosofia quanto na historiografia como o Terror. Assim, as novas adequações necessárias à constituição da ordem capitalista fizeram-se, sob direção reacionária, via acordos com as velhas classes dominantes e radicalmente contra as classes subaternas. Foram as chamadas “revolução pelo alto” ou via prussiana. A nova ordenação jurídico-econômica foi instaurada, desde logo, como elemento repressivo aberto. Estamos, pois, no terreno clássico da revolução passiva. Mesmo em Estados liberais, a luta dos subalternos levou a que, necessariamente, se repensasse a institucionalidade burguesa, mesmo levando-se em consideração seus estreitos limites.

O século vinte conheceu, desde o seu início, a tentativa exitosa – com o contraponto do movimento revolucionário de 17 – de integrar as classes trabalhadoras à ordem do capitalismo. Esta é uma das condições fundamentais da renovada expansividade do capital. Do americanismo às chamadas novas formas de gestão (toyotismo, acumulação flexível, etc.), vive-se a tentativa – necessária – do capitalismo de impor medidas de contratendência ao desenvolvimento do seu antagonismo básico com as classes trabalhadoras. Para além da limitação do direito ao antagonismo, tratou-se permanentemente de capturar os saberes e desejos dos trabalhadores. Em suma tudo passou pela castração da subjetividade das classes subalternas. O que se tentou negar foi a própria possibilidade da existência, como classe, dos trabalhadores.

A guerra mundial e a revolução de outubro atualizam a crise capitalista e a sua necessidade de reestruturação. Pensar as relações internacionais – e as relações claristas no interior de cada país – como uma continuidade dos traços constitutivos do capitalismo passa a ser um absurdo. E não estamos falando apenas das alterações impostas pelo imperialismo. A Revolução Russa – com todas as suas limitações – implica uma nova qualidade da cena. Não é mais possível pensar a cidadania como algo permanentemente em expansão. O horizonte ideológico da belle époque só é possível com a agudização da exploração colonial e da subalternidade crescente de um sem número de países formalmente independentes.

Examinar a relação entre política e economia depois da Guerra e da Revolução russa é pensar o nexo entre americanismo e revolução passiva. As resistências das classes subalternas buscam impor limites à ação capitalista. É necessário redimensionar as formas da extração da mais-valia, da obtenção do consenso nos processos produtivos, eliminando toda e qualquer presunção de autonomia dos trabalhadores na produção, por isso mesmo o americanismo foi a figura dominante no século XX. A revolução passiva implicou a redefinição das formas de estruturação do capitalismo (da noção de cidadania ao modo de realizar a produção e do modo de vida) e correspondeu à necessidade de impor um conjunto de medidas de contratendência à queda da taxa de lucros e de tentar neutralizar os antagonismos no interior do conjunto do bloco capitalista.

Foi no interior da própria sociedade capitalista que esse antagonismo se expressou e viabilizou o projeto de uma subjetividade histórica alternativa. Para tal, foi necessária a “existência de forças produtivas tendentes ao desenvolvimento e à expansão, movimento consciente nas massas proletárias dirigido a substanciar com o poder econômico o poder político, vontade nas massas proletárias de introduzir na fábrica a ordem proletária, de fazer da fábrica a célula do novo Estado, e de construir o novo Estado como reflexo das novas relações industriais no sistema de fábrica”.(1) Processo que expressava uma dupla virtualidade: vitória do capital ou do trabalho.

Até 17, o antagonismo dos trabalhadores não assumiu a forma estatal. A Revolução russa colocou-se no campo da materialização desse antagonismo e apresenta-se ao conjunto do planeta como possibilidade real e não mais como utopia. Produto desse antagonismo em escala universal a revolução russa, diante da impossibilidade de expansão do processo revolucionário na Europa – e, em especial, nos países capitalistas avançados – acaba por refluir e “nacionalizar-se”, isto é, perde sua abrangência no plano material. Restou, porém, sua imensa capacidade de iluminação ideológica.

Entre os vários problemas colocados pela construção da revolução socialista, um dos mais importantes foi a forma da construção da nova classe trabalhadora.(2) O antigo proletariado restrito às grandes cidades russas foi, de um modo ou de outro, praticamente eliminado: pelas tarefas assumidas no processo revolucionário, pela sua dispersão no imenso território a ser governado, pela morte na luta face à imensa guerra civil, aos contra-revolucionários. De todo modo, surge um novo proletariado industrial, processo que envolveu o conjunto das classes subalternas. Esse processo foi decisivo: nos países capitalistas, ele foi realizado em pelo menos três séculos, e, na URSS,  levará menos de uma década. Da sua resolução, entre outras coisas, resultou uma modificação vital: o da correlação de forças no interior da aliança operário-camponesa.

Essa construção realizou-se sob forte inspiração taylorista. Isso foi problemático em especial se se ignora a materialidade classista do processo de trabalho e das formas de gestão vinculadas a este. Nunca é demais lembrar que, apesar dos claros ensinamentos de Marx sobre a técnica capitalista, a maior parte dos revolucionários que se segue (aí incluindo Lenin)(3) acabou por considerar a técnica como neutra, ao aplicar na construção revolucionária as formas de gestão e as técnicas produtivas vividas nos países capitalistas mais avançados.

A revolução russa implicou na tentativa da implementação de uma nova hegemonia; um novo conformismo – no sentido gramsciano – teve que ser criado. Todo modo de produção cria, para a sua existência, as condições de elaboração do seu trabalhador e do seu cidadão. São, na realidade, elementos que se traduzem no cotidiano da materialidade e expressam o modo de vida, isto é, os hábitos, a maneira de agir, pensar, viver, que dão automaticidade ao comportamento dos homens. Implicam em uma subjetividade e uma objetividade. São, em suma, a tradução das ideologias vividas nesta ou naquela sociedade na sua imensa e radical contraditoriedade. O processo revolucionário é, pois, o choque das subjetividades materializadas,

trata-se da luta entre ‘dois conformismos’, isto é, de uma luta de hegemonia, de crise da sociedade civil. Os velhos dirigentes intelectuais e morais da Sociedade sentem o chão faltar sob os pés, percebem que suas ‘prédicas’ se tornaram precisamente ‘prédicas’, isto é coisas estranhas à realidade, forma pura sem conteúdo (…): donde o seu desespero e as suas tendências reacionárias e conservadoras: dado que as formas particulares de civilização, de cultura, de moralidade que eles representaram se decompõem, eles gritam contra a morte de toda civilização, de toda cultura, de toda moralidade e demandam medidas repressivas do Estado ou se constituem em grupos de resistências afastados do processo histórico real, aumentando em tal modo a duração da crise, dado que a ultrapassagem de um modo de viver e de pensar não pode verificar-se sem crise. Os representantes da nova ordem em geral, por outro lado, por ódio ‘racionalista’ ao velho, difundem utopias e planos cerebrinos. Qual o ponto de referência para o movo mundo em gestação? O mundo da produção, o trabalho. O utilitarismo máximo deve ser a base de toda análise dos institutos morais e intelectuais a criar e dos princípios à defender: a vida coletiva e individual deve ser organizada para o rendimento máximo do aparelho produtivo. O desenvolvimento das forças produtivas sobre novas bases e a instauração da nova estrutura sanearão as contradições que não podem faltar e tendo criado um novo ‘conformismo’ de base, permitirão novas possibilidades de autodisciplina, isto é, de liberdade mesmo individual.“(4)

O processo revolucionário russo foi, para Gramsci, a última revolução do século XIX. Ela foi marcada pela distinção morfológica de Ocidente e Oriente. Esta distinção, freqüentemente substancializada por um sem número de críticos, refere-se às diferentes formas dos processos revolucionários em relação às combinações muito diversas dos nexos entre política e economia nas duas áreas e não a tradução mecânica de formas preferenciais de fazer política; sequer a negação abstrata da possibilidade revolucionária no Ocidente. Assim, a simples oposição formal entre as estratégias de “guerra de posição” e “guerra de movimento” reduz e dogmatiza o campo da política e da teoria. Ao negar a priori a “guerra de posição” colocam-se as classes subalternas no puro terreno do adversário. No seu campo minado.

No seu processo histórico de realização a revolução russa, vivendo o seu momento de hegemonia, teve que construir seu conformismo e seu homo œconomicus. E vai implementar, contraditoriamente, uma gestão e uma produção em moldes taylor-fordistas. Estava colocada em cheque a própria possibilidade da sua realização como nova civilidade.

Um dos problemas fundamentais é que o taylorismo não era neutro e tratava de construir uma nova classe trabalhadora para o Capital. À quebra das organizações sindicais, forçada pela coerção, pelos métodos policiais, o taylorismo acrescentou e impôs a absorção de uma nova subjetividade. Essa combinação exigia uma modificação fundamental: os trabalhadores deveriam abrir mão do controle que ainda possuíam sobre a produção e passar a executar o trabalho a partir da objetividade do capital. Objetividade centrada na eliminação das porosidades do sistema e na reconstrução das lógicas operativas. O americanismo (fordismo + taylorismo) veio não apenas para quebrar essa resistência, mas para ser o laboratório das novas experiências de subsunção real do trabalho ao capital.

Ford introduziu um maior controle ideológico sobre o Trabalho. Da sexualidade à composição da família, passando pelo patriotismo e a religião, o novo trabalhador passou a ser um mero servidor da produção capitalista. A família deixou de ser o elemento socializador básico, função que passou à fábrica. As formas familiares, os tempos e os gestos, a sexualidade, a convivência disciplinada, tudo isso passou a ter uma grande automaticidade. Algumas das idéias caras ao neoliberalismo têm aqui sua origem: entre outras a possibilidade do sindicato empresa acoplado com a prática da Família Ford. Assim Trabalho e Vida Pessoal se imbricam fortemente tentando engolfar o conjunto da personalidade do trabalhador. A subordinação é, agora, quase total. Introduz-se, neste processo, tanto a coerção brutal quanto o prêmio (o “five dollars day”). O Taylor-fordismo é, a um só tempo, um conjunto de técnicas de gestão e de produção e um modo de vida, criou-se o american way of life(5)  mais que propaganda ele é condição do domínio do capital, uma ideologia constituidora do real. Para Gramsci o americanismo apresentava-se como processo de diferenciação em relação aos Estados regidos pelo imperialismo. Taylor e Ford buscam alterar o padrão societal. Repensa-se não apenas as práticas fabris mas, e principalmente, suas condições de existência.

Aqui está colocada uma novidade radical. Enquanto Gramsci visualizou o americanismo como momento de ofensividade do capital, como tendente a ampliar a expropriação da principal força produtiva (o trabalhador), os teóricos da III Internacional viam, ao final da década de vinte, apenas, um período de estabilização relativa do capitalismo.

A forma americana exigia, desde logo, uma composição demográfica racional, a não existência de “classes numerosas sem uma função essencial no mundo produtivo, (…) classes absolutamente parasitárias”(6) A existência dessas classes, criadas por séculos de lutas, representa, na Europa e, em particular na Itália, uma “camada de chumbo”, um enorme contingente populacional cuja função era basicamente política. A sua inexistência na América tornou, assim,

“relativamente fácil racionalizar a produção e o trabalho, combinando habilmente a força (destruição do sindicalismo operário de base territorial) com a persuasão (altos salários, benefícios sociais diversos, propaganda ideológica e política habilíssimas) (…). A hegemonia nasce da fábrica e não tem necessidade para exercer-se senão de uma quantidade mínima de profissionais intermediários da política e da ideologia”.(7)

A expressão a “hegemonia nasce da fábrica” não é uma referência pertinente apenas ao americanismo. Pelo contrário, ela revela com toda clareza o projeto do L’Ordine Nuovo e dos Comissários de Fábrica turineses. Aí se travou uma imensa luta, na qual a classe operária italiana demonstrou empiricamente a possibilidade da construção de um novo projeto civilizatório: a democracia operária, a cidadania dos trabalhadores. Essa expressão indica, por outro lado, o projeto da construção de uma nova classe operária. Não se trata de, simplesmente, impor uma disciplina absolutamente “de fora para dentro”, mas de construir as condições reais e concretas da socialização das forças produtivas.

Vale a pena acentuar que nem sempre a “hegemonia nasce da fábrica”. Isso ocorre de, pelo menos, duas maneiras: quando a força de trabalho é incorporada ao projeto capitalista ou como veremos abaixo, pela possibilidade da construção da sociedade socialista. No campo do capitalismo, ela pode realizar-se por incorporação ativa (convencimento ativo, em especial pela impregnação da nova racionalidade) ou passiva (neutralização das organizações proletárias). A “hegemonia nasce da fábrica”, quando há adequação entre racionalidade estatal e racionalidade econômica: esta última se faz horizonte de classe, fazendo-se identificar como patamar civilizatório. Logo se faz necessária apenas “uma quantidade mínima de profissionais intermediários da política e da ideologia.”(8) A hegemonia não é apenas um projeto político, mas é o campo do possível, do pensável, do praticável. Ela ocorre quando as produções/práticas se pensam na produção/racionalidade material, quando ela é campo de articulação do saber/fazer/sentir/agir.

O americanismo – o projeto de hegemonia burguês – foi, então, a criação de “um novo tipo humano, correspondente ao novo tipo de trabalho e de processo produtivo”(9), de uma nova “fase da adaptação psico-física à nova estrutura industrial”(10). Essa adaptação, viabilizada por uma composição demográfica racional, combinou consenso e repressão. Materializou um novo modo de vida. Aparecia mesmo como

“a forma deste tipo de sociedade racionalizada, em que a ‘estrutura’ domina mais imediatamente as superestruturas, e estas são ‘racionalizadas’ (simplificadas e diminuídas de número)”.(11)

Falamos de criação de um novo nexo psico-físico, de um novo tipo de trabalhador. Fabricar o novo trabalhador supõe a criação de um novo homem, isto é, a destruição ativa de uma personalidade histórica. Para tal, exigia-se

“uma luta contínua contra o elemento ‘animalidade’ do homem, um processo freqüentemente doloroso e sangrento, de subjugação dos instintos (naturais, isto é, animalescos e primitivos) a cada vez novas, mais complexas e rígidas normas e hábitos de ordem, de exatidão, de precisão que tornam possíveis as formas cada vez mais complexas de vida coletiva que são a conseqüência necessária do desenvolvimento do industrialismo”(12).

Na produção carcerária, Gramsci irá elaborar, de forma absolutamente original, a crítica do americanismo e como esta forma de reestruturação capitalista impactará sobre a revolução russa.

A gestação de uma nova classe trabalhadora e de uma nova cultura, foi, sem dúvida alguma, um processo violento.(13) Gramsci acentua essa dolorosa adaptação ao criticar a política de militarização do trabalho – defendida por Trotsky(14) e aceita pela direção bolchevique:

Este fracasso indicava cIaramente as dificuldades da implementação da nova ordem produtiva, compreendida aí, sempre e sempre, a institucionalidade socialista necessária a essa transformação. Era necessário redefinir habilidades e práticas:

“a vida na indústria exige um tirocínio geral, um processo de adaptação psico-físico a determinadas condições de trabalho, de nutrição, de habitação, de costumes, etc., que não é algo inato, ‘natural’, mas demanda ser adquirido, (…) a baixa natalidade urbana demanda um gasto contínuo e relevante para o tirocínio dos continuamente novos urbanizados, e traz consigo uma contínua mudança da composição sócio-política da cidade, colocando continuamente sobre novas bases o problema da hegemonia.”(15)

Tudo isso levava à necessidade de racionalizar o modo de viver para racionalizar a produção:

O interesse de Leo Davidovich sobre o americanismo; seus artigos, suas pesquisas sobre o ‘byt’(16) e sobre a literatura, estas atividades eram menos desconexas entre si do que poderia parecer., porque os novos métodos de trabalho são indissolúveis de um determinado modo de viver, pensar e sentir a vida: não se podem obter sucessos neste campo sem obter resultados tangíveis no outro.”(17)

Aqui, o debate sobre as formas de gestão da produção soviética foram decisivos. Os enfrentamentos entre os diversos participantes da revolução russa implicou a rápida eliminação dos sovietes. O problema tal qual vivido pelas direções bolcheviques era o da produção de uma classe operária moderna, capaz de atender as necessidades do período revolucionário. A introdução dessa modernidade industrial tinha porém um limite: sua implementação negava a possibilidade histórica de construir o novo trabalhador socialista.

Racionalizar a relação corpo/mente, redefinir a sexualidade, disciplinar o gasto das energias físicas e mentais fora do espaço fabril para preservá-las em função de realização do trabalho, ampliar para a sociedade o campo da disciplina da fábrica. Atenção! Trata-se aqui de uma diferença fundamental:

“Na América, a racionalização do trabalho e o proibicionismo estão conectados indubitavelmente: as pesquisas dos industriais sobre a vida íntima dos operários, os serviços de inspeção criados por algumas empresas para controlar a ‘moralidade’ dos operários são necessidades do novo método de trabalho. Quem risse dessas tentativas (ainda se falidas) e visse nisso apenas uma manifestação hipócrita de ‘puritanismo’, se negaria toda possibilidade de compreender a importância, o significado e o alcance objetivo do fenômeno americano, que é mesmo o maior esforço coletivo verificado até agora para criar com rapidez inaudita e com uma consciência de finalidade jamais vista na história, um novo tipo de trabalhador e de homem.(18)

Essa mesma necessidade de construção do homem socialista, do novo homo œconomicus, vale dizer do novo conformismo, requer e exige uma das características fundamentais – segundo Gramsci do biennio rosso(19) – do partido bolchevique e de seus militantes:

“impedir que o problema imediato, de hoje, a resolver, se dilate até ocupar toda a consciência, e se torne a única preocupação; se torne frenesi espasmódico que erga barreiras intransponíveis a ulteriores possibilidades de realização.”(20)

Racionalizar o modo de viver e a relação corpo-mente, redefinir habilidades, práticas e a sexualidade é, em suma, uma transformação muito mais complexa do que se poderia supor. A simples “urbanização” de uma população implicou esforços inauditos como a compreensão de todo o imenso mundo de valores e significações urbanas, que teve que ser apreendido com fulminante rapidez. Tiveram que se alterar os próprios ritmos biológicos. As esferas de lealdade e solidariedade secularmente construídas foram pulverizadas. As cabeças dessas pessoas vivem permanente um redemoinho. Em grande parte, radicam aqui os problemas dos bolcheviques em relação aos camponeses, problemas resolvidos militar e burocraticamente pela burocracia estalinista (ver o processo de coletivização dos campos).

Criação e generalização do novo homem, do homem-massa, do homem-coletivo, viver e atuar com novas dimensões, quando as antigas ainda estão fortemente enraizadas, este é, em suma, o desafio ao qual esses novos trabalhadores foram submetidos e do qual não poderiam escapar. É a construção de uma nova personalidade, radicalmente distinta da anterior. Pense-se em toda a imensa transformação ideológica necessária para o camponês transformar-se em operário no curtíssimo prazo de uma ou duas décadas ou até menos. Na ruptura com os “milenares” hábitos de vida, encontrou-se boa parte das dificuldades da construção da nova civilização, que, obviamente, não seria resolvida por métodos puramente coercitivos: problema obviamente inexistente em grande escala para o americanismo.

O americanismo – esse complexo conjunto de redefinições – implicava, portanto, a construção de um trabalhador em que predominem “as atitudes maquinais e automáticas”(21). É preciso despedaçar

“o velho nexo psico-físico do trabalho profissional qualificado, que exigia uma certa participação ativa da inteligência, da fantasia, da iniciativa do trabalhador, e reduzir as operações produtivas apenas ao aspecto físico maquinal”(22).

Isto é, dissociar cada vez mais política e economia, o que cristaliza a relação de subalternidade das classes trabalhadoras. Já a construção do novo homem soviético pressupunha, pelo contrário, construir uma unidade indissolúvel entre política e economia, um homem por inteiro e não fragmentos de humanidade. Fazer a revolução significa criar uma nova sociedade, de modo que se fazia necessário um processo pedagógico de tipo hegemônico e não meramente dominante em termos ideológicos.

Regulação do instinto sexual e fortalecimento da família não são posturas moralizantes ou hipócritas,

“a verdade é que não pode desenvolver-se o novo tipo de homem requerido pela racionalização da produção e do trabalho, até que o instinto sexual não esteja regulado de acordo, não tenha sido também ele racionalizado”(23).

A estabilidade operária (familiar, sexual, etc.) passa a ser condição essencial de eficácia no trabalho. O “desregramento” sexual e o alcoolismo interessam basicamente como condição de racionalização da produção e não apenas do ponto de vista moral.(24)

“As iniciativas ‘puritanas’ têm apenas a finalidade de conservar, fora do trabalho, um certo equilíbrio psico-físico que impeça o colapso fisiológico do trabalhador, espremido pelo novo método de produção. Esse novo equilíbrio não pode ser senão puramente exterior e mecânico, mas pode tornar-se interior se ele for proposto pelo próprio trabalhador e não imposto de fora, com uma nova forma de sociedade, com meios apropriados e originais.”(25) Daqui parte a reflexão gramsciana da necessidade dessa transformação ser interiorizada e não imposta.

Gramsci dá-nos uma pequena amostra do que acabaria por ser o modelo do novo homem necessário: “uma síntese daqueles… que vêm hipostasiados como caracteres nacionais: o engenheiro americano, o filósofo alemão, o político francês, recriando, por assim dizer, o homem italiano do Renascimento, o tipo moderno de Leonardo da Vinci tornado homem-massa ou homem-coletivo, mantendo, contudo, as suas fortes personalidade e originalidade individuais. Uma coisa à toa como se vê”(26).

Mas ao invés disso, na medida em que o taylorismo foi uma das tônicas da reestruturação produtiva no espaço soviético, acabou-se por não ver concretizada a proposta dessa nova civilização. O estacanovismo, forma russa do americanismo, acabou por tornar possível um trabalhador coletivo que não colocava a questão da liberdade e da socialização das forças produtivas. O novo homem acabou por ser apenas o homem de ferro. O patriotismo aqui foi representado pelo estalinismo contrafação do marxismo e do internacionalismo. Estes últimos foram reduzidos à uma nacionalização do processo revolucionário que se vê esterilizado pelo socialismo em um só país.

A coerção sobre o trabalhador é, assim, anti-socialismo em estado puro, em especial, porque o socialismo é uma nova civilização que requer a adesão consciente. Veremos adiante a questão do centralismo tal como colocada por Gramsci, que é decisiva neste contexto. Deveria ter-se buscado a construção de uma nova socialização que rompesse com as antigas formas e que tem que ser, de agora em diante, centralizada pela estrutura produtiva. Era necessário

ter um operariado estável, um complexo confiável permanentemente, porque mesmo o complexo humano (o trabalhador coletivo) (…) é uma máquina que não deve ser freqüentemente desmontada e renovada nas suas partes individuais sem perdas ingentes”(27).

A afirmação feita por Gramsci, segundo a qual esse novo equilíbrio para ser eficiente tem que ser vivido como interioridade, “proposto pelo próprio trabalhador e não imposto de fora”, demonstra a necessidade da introjeção da hegemonia: o atuar segundo normas conformes a esse ambiente produtivo. Essa interioridade é o índice da hegemonia em processo. Do ponto de vista do capitalismo, o american way of life foi a forma que assumiu esse novo modo de ser, necessário ao novo ambiente produtivo o da elevação do trabalhador ao máximo de mecanicidade, diante da qual a humanidade e a espiritualidade do trabalhador, existente ainda no período do artesanato, devem ceder: “precisamente contra este ‘humanismo’ luta o novo industrialismo”(28). O trabalhador tem que ser desqualificado ao máximo, tornado desnecessário, intercambiável. Do ponto de vista socialista, este foi um dos limites máximos para sua realização como projeto. Aqui, claramente, diferenciam-se o americanismo daquele que deveria ser o projeto de construção de uma nova classe trabalhadora soviética.

Ao mesmo tempo em que se esterilizava o impulso revolucionário soviético, construía-se a possibilidade da reestruturação nazi-fascista e, por outro lado, a forma do New Deal, reestruturação feita sob a égide do liberalismo. Seja na forma da ditadura fascista, seja na forma liberal, o processo de reestruturação capitalista avançava para fazer face à grande crise capitalista. O pós-guerra vai dar cidadania às formas do estado assistencial. Ainda uma vez, observa-se a incorporação do antagonismo operário e camponês e sua crescente integração à ordem do Capital. Sob a forma de um estatuto que garantia direitos sociais, as massas subalternas consentiram em não antagonizar o capitalismo de forma radical.

Esse gentlemen agreement atuou, também, no plano político, no sentido de impedir a possibilidade de ruptura da ordem. Os partidos social-democratas e as organizações sindicais apareceram como os grandes parceiros neste processo, transformando a possibilidade de luta em capacidade administrativa. Os trabalhadores, pela ação das suas direções transformaram-se em gerentes desse processo.

No plano da teoria, as análises realizadas pelo partido russo (em nome da Internacional) transformaram os acontecimentos do pós-guerra em uma “estabilização relativa do capitalismo”, quando, de fato, se dava um brutal processo de reestruturação capitalista. Assim, a um só tempo, essas teorias desconheciam o movimento real dos seus antagonistas e, embora tenham conseguido afirmar a existência de um estado pós-capitalista, não construíram uma sociedade socialista. Nem democracia operária, nem socialização das forças produtivas: o socialismo esterilizou-se sob o domínio da burocracia estalinista.

O pós-guerra vai dar cidadania às formas do estado assistencial. Ainda uma vez, observa-se a incorporação do antagonismo operário e camponês e sua crescente integração à ordem do Capital.

Novamente, o antagonismo manifestou-se no plano universal: insubordinação operária, lutas coloniais, pela democracia, das minorias, etc. Os anos sessenta demonstram que a integração passiva à ordem não funcionava mais tranqüilamente. E, pelas próprias contradições capitalistas, o movimento de acumulação detinha-se. A palavra de ordem burguesa passou a ser então uma combinação de eliminação de direitos sociais e supressão – ainda uma vez – do saber e da subjetividade dos trabalhadores. Tudo isso foi marcado, objetivamente, pelo fetiche da técnica (a “terceira revolução tecnológica”). Os regimes ditos socialistas também participaram desse fetiche, colocando a ciência (e não mais o trabalho vivo) como força produtiva fundamental, como ante-sala do socialismo.

O mundo capitalista assiste à nova barbárie. A negação objetiva do direito ao antagonismo em nome das novas formas de produzir e de dirigir – a política e a economia – é apresentada como o limite da possibilidade de resolução dos graves problemas sociais. Assiste-se ao crescente predomínio dos executivos sobre os Parlamentos, do governo dos técnicos e especialistas sobre a vontade das classes. Aliás essa representação de governo dos técnicos era a característica básica da forma fascista.

As organizações dos trabalhadores – sindicais e políticas – passam a aceitar o fetiche da tecnologia e a idéia da modernidade capitalista. A flexibilização capitalista tem aqui seu ponto de ancoragem fundamental: a flexibilização das práticas e dos discursos das classes subalternas. O antagonismo é visto como elemento de destruição da sociedade.

Em obra recente, Maria Amélia Pagotto salienta, com justeza, que “ao identificarmos o caráter mistificador dos principais paradigmas que vêm orientando as transformações dos processos produtivos, podemos encontrar elementos importantes sobre as novas formas de difusão da direção intelectual que as classes dominantes pretendem impor ao conjunto da sociedade, a partir da reorganização dos processos produtivos e da busca por meios capazes de reverter a correlação de forças anteriormente estabelecida”(29).

Coloca-se, assim, como fundamental a reconstrução dos projetos políticos dos subalternos, de dar capacidade hegemônica às forças produtivas fundamentais. Construir o projeto passa sobretudo pela desconstrução do pesado fardo ideológico capitalista. A crítica do fetichismo é condição de liberdade. A organização democrática das classes trabalhadoras é a grande possibilidade histórica de emancipação da barbárie. A palavra de ordem “socialismo ou barbárie” é, hoje, da mais absoluta atualidade.



 

 

<**Revolução Passiva e Modo de Vida: ensaios sobre as classes subalternas, capitalismo e hegemonia (São Paulo, Sundermann, 2013)

 

 


Notas de rodapé:

(1) Antonio Gramsci, Due RivoluzioniL’Ordine Nuovo, 3-7-1920, L’Ordine Nuovo (ON), p. 571. (retornar ao texto)

(2) Por limites de espaço e tempo não abordaremos aqui dois pontos fundamentais para a análise da passivização da experiência soviética: a questão da democracia (no interior da sociedade e do partido) e a questão da vulgarização dos debates teóricos levados a efeitos nesse processo e sua esterilização. (retornar ao texto)

(3) Sobre isso ver, entre outras, a obra de Robert Linhardt, Lenin, os camponeses, Taylor, Editora Marco Zero, Rio de Janeiro, 1983. (retornar ao texto)

(4) Quaderni del Carcere (QC), 862-863, Maquiavel, a Política e o Estado Moderno (MPEM), p. 170. (retornar ao texto)

(5) Faz-se necessário desenvolver e trabalhar o conceito de modo de vida que atualiza e dá historicidade aos conceitos de modo de produção e de formação econômico-social. O conceito de modo de vida está em estado prático nas análises de Gramsci e Trotsky sobre a constituição seja do americanismo, seja da nascente sociedade soviética. (retornar ao texto)

(6) QC 2141, MPE 377. (retornar ao texto)

(7) QC 2145-6, MPE 381-2). (retornar ao texto)

(8) idem. (retornar ao texto)

(9) QC 2146, MPE 382. (retornar ao texto)

(10)  idem. (retornar ao texto)

(11) idem. Grifo nosso. (retornar ao texto)

(12) QC 2060-1, MPE 393. (retornar ao texto)

(13) “Até agora todas as mutações do modo de ser e de viver ocorreram por coerções brutais, isto é, através do domínio de um grupo social sobre todas as forças produtivas da sociedade: a seleção ou ‘educação’ do homem adaptado aos novos tipos de civilização, isto é, às novas formas de produção e de trabalho, ocorreu com o emprego de brutalidades inauditas, lançando no inferno das subclasses os débeis e os refratários, eliminando-os do todo. A cada advento de novos tipos de civilização, ou no curso do processo de desenvolvimento, existiram crises.” (QC 2161, MPE 393) (retornar ao texto)

(14) Sobre esse ponto é exemplar a fala de Trotsky ao III Congresso dos Sindicatos de toda a Rússia (abril de 1920): “Expliquem-nos os oradores mencheviques que significa trabalho livre, não obrigatório. Conhecemos o trabalho escravo, o trabalho servil, o trabalho obrigatório arregimentado nos artesanatos medievais, e o trabalho dos assalariados livres que a burguesia chama trabalho livre. Agora encaminhamo-nos para o tipo de trabalho socialmente regulamentado sobre a base de um plano econômico, obrigatório para todo o país, para cada trabalhador. Esta é a base do socialismo… A militarização do trabalho, neste sentido funamental de que lhes falei, é o método básico e indispensável para a organização de nossas forças laborais…Se nossa nova forma de organização do trabalho tivesse como resultado uma diminuição da produtividade, então, ipso facto, estaríamos encaminhando para o desastre… Mas, é certo que o trabalho obrigatório é sempre improdutivo?… Este é o mais mesquinho e miserável preconceito liberal: a servidão também era produtiva. Sua produtividade era superior à do trabalho escravo, e, na medida, em que a servidão e a autoridade do senhor feudal garantiam a segurança das populações… e do trabalho camponês, nessa medida era uma forma progressista de trabalho. O trabalho servil obrigatório não foi o resultado da má vontade dos senhores feudais. Foi um fenômeno progressista… Toda a história da humanidade é a história de sua educação para o trabalho, para a mais alta produtividade do trabalho. Esta não é de modo algum uma tarefa simples, pois o homem é preguiçoso e tem direito a sê-lo… Mesmo o trabalho assalariado livre não foi produtivo no começo… chegou a sê-lo gradualmente depois de um processo de educação social. Métodos de todos os tipos foram utilizados para essa educação. A burguesia, primeiro, expulsou os camponeses para os caminhos e apoderou-se de suas terras. Quando o camponês se negou a trabalhar nas fábricas, a burguesia os marcou com ferro em brasa, os enforcou ou os fuzilou e assim o adestrou pela força para a manufatura… Nossa tarefa consiste em educar a classe operária sobre princípios socialistas. Quais são nossos métodos para tal finalidade?
Não são muito distintos daqueles que a burguesia utilizou, mas são muito mais honrados, mais diretos e francos, não corrompidos pela mendicância e a fraude. A burguesia tinha que fingir que seu sistema de trabalho era livre e enganou os ingênuos sobre a produtividade deste trabalho. Nós sabemos que todo trabalho é trabalho socialmente obrigatório. O homem deve trabalhar para não morrer. O homem não quer trabalhar. Mas a organização social o empurra e o acicata nesta direção. A nova ordem socialista difere da burguesa porque, entre nós, o trabalho se realiza em benefício da sociedade, e portanto não necessitamos receitas sacerdotais, eclesiásticas, liberais ou mencheviques para aumentar a energia do trabalho do proletariado… A primeira maneira de disciplinar e organizar o trabalho é fazendo com que o plano econômico fique claro para as mais amplas massas dos trabalhadores… ” (3. Vserossiiskii Syezd Profsoyuzov, pp. 87, 96), citado por Isaac Deutscher, Los sindicatos soviéticos, pp. 52-53, Ediciones Era, México, 1971. (retornar ao texto)

(15) QC 2149, MPE 391. (retornar ao texto)

(16) Byt, em russo, “modo de viver”. (retornar ao texto)

(17) QC 2164, MPE 396. (retornar ao texto)

(18) QC 2164-5, idem. Grifo nosso. (retornar ao texto)

(19) Referimo-nos aos anos de 1919-1920 e à experiência dos conselhos operários. (retornar ao texto)

(20)  I massimalisti russiIl Grido del Popolo (GP), 28-7-1917, La Cità futura (CF), p. 265. (retornar ao texto)

(21) QC 2165, MPE 397. (retornar ao texto)

(22)  idem. (retornar ao texto)

(23) QC 2150, MPE 392. (retornar ao texto)

(24) “Este complexo de compressões e coerções diretas e indiretas exercida sobre a massa obter indubitavelmente resultados e surgir uma nova forma de união sexual da qual a monogamia e a estabilidade relativa parecem dever ser o traço característico e  fundamental” (QC 2167-8, MPE 399). (retornar ao texto)

(25) QC 2165-6, MPE 397. (retornar ao texto)

(26) Carta a Giulia Schucht, 1-8-1932. Forsi rimarrai lontana, p. 654. Nesta carta a sua companheira Gramsci, critica os métodos educativos que apressavam a formação profissional deixando pouco espaço para a fantasia infantil. Não só pela escolarização formal mas também pelo próprio uso e/ou confecção de brinquedos infantis, se faz avançar uma dada concepção de mundo. (retornar ao texto)

(27) idem. (retornar ao texto)

(28) idem. (retornar ao texto)

(29) Maria Amélia Ferracciú Pagotto – Mito e realidade na automação bancária, dissertação de Mestrado em Sociologia (área de Trabalho e Sindicalismo), IFCH-Unicamp, mimeo, outubro de 1996, p. 17. (retornar ao texto)

Inclusão: 03/05/2020