O Estado e a Revolução: sobre o livro de Lênin do mesmo nome

Luigi Fabbri

1920


Primeira Edição: A publicação original do artigo terá sido, provavelmente, em italiano no jornal «Volontá»de Ancona, aquando da primeira publicação em Itália, em 1920, de «O Estado e a Revolução» de Lênin.

Fonte: https://ithanarquista.wordpress.com/2020/08/22/luigi-fabbri-o-estado-e-a-revolucao-sobre-o-livro-de-lenin-do-mesmo-nome/

Traduzido do espanhol ao português por: João Black, à partir da brochura «La Crisis del Anarquismo», http://www.bfscollezionidigitali.org/oggetti/19843-la-crisis-del-anarquismo-luigi-fabbri/#/ publicada em 1921 em Buenos Aires.

HTML: Fernando Araújo.


Foi recentemente publicado pelo «Avanti!» um livro de Lênin, escrito após a revolução, que pelo título prometia ser um tratado que esgotasse a questão das relações entre a revolução e o Estado. Mas, confessamos ter experimentado uma forte desilusão.

A personalidade de Lênin ficará gravada na história com caracteres de fogo. Só estes três anos, desde que ele e o seu partido se instalaram no poder, num país de trezentos milhões de habitantes, bastariam para testemunhar a poderosa energia moral e material deste homem que um dia figurará junto dos nomes mais célebres da história.

Mas onde parece que os seus apologistas até agora erraram na exaltação do seu mestre é quando no-lo apresentam como um “grande teórico do socialismo”. A menos que se faça alusão às obras anteriores publicadas apenas em russo e não traduzidas ainda para o italiano ou o francês, tudo o que dele se publicou até aqui demonstra em Lênin um forte polemista, que sabe manejar os textos do marxismo para os fazer dizer tudo o que lhe agrada, um escritor sem papas na língua, hábil na argumentação como na invectiva; mas sem ideias próprias, sem uma visão genial de conjunto, e árido, sem aquele fogo interior que fazem sempre vivos os escritos de Marx, de Mazzini, de Bakunin. Também a sua cultura histórica e sociológica (pelo menos no que temos lido até aqui) parece vasta e profunda, certamente, mas só no que concerne ao marxismo. Tudo o mais parece que não existe para ele.

Alguns quiseram ver nele um continuador de Marx. Que erro! De Marx ele não tem mais que os aspetos menos simpáticos, o exclusivismo feroz, o despeito por quem quer que não pense como ele, a aspereza de linguagem, a tendência a vencer o adversário com a ironia e o sarcasmo, a intolerância a toda a oposição. Como homem de ação, ou melhor, como guia e chefe de homens de ação, Lênin é certamente uma personalidade que não tem igual na história do socialismo; e mesmo Marx não lhe poderá ser comparado, já que foi muito mais homem de pensamento do que ação. Mas como teórico, não acrescenta propriamente nada a Marx, de cujos textos é simplesmente um exegeta, um comentador, um intérprete — quando não é um sofisticador.

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Esta convicção foi-nos reforçada pela leitura do último livro, «O Estado e a Revolução», sobre o qual nos lançámos com avidez, já que nos prometia tratar do problema que mais nos interessa: se efetivamente o Estado pode ser um instrumento da revolução, ou se é antes um obstáculo, um embaraço, uma armadilha contínua para o seu desenvolvimento, que é preciso combater continuamente, procurando destruí-la e diminuir-lhe o poder com uma constante e ardente oposição.

Ao invés encontramos no livro somente um tratado para “uso interno” do partido socialista. Lênin demonstra-lhes, ou procura demonstrar, que o sistema da ditadura está em harmonia com a doutrina marxista, e nada mais. Parece que, absolutamente, não lhe assalta a dúvida de que se possa ser socialista sem ser marxista e que a revolução não pode ser adaptada, sem ser mutilada, ao leito de Procusto de uma determinada escola doutrinal e unilateral.

A demonstração de Lênin não nos persuade nem sequer do ponto de vista do marxismo. Apesar de certas expressões, empregues mais para dar força à anunciação do seu pensamento do que para serem entendidas no seu significado literal, Karl Marx concebia para a revolução um processo democrático-operário, não ditatorial. Isto é, queria um governo socialista democrático, que usasse o punho de ferro, certamente, contra a burguesia, mas que deixasse ao proletariado e às várias forças e correntes socialistas essas liberdades que se costumam chamar democráticas (de voto, de imprensa, de reunião, de associação, de autonomias locais, etc.) na medida em que se baseiam na prevalência das maiorias através do sistema das representações.

Nós, anarquistas, somos contrários também a este sistema, na medida em que também não reconhecemos às maiorias o direito de oprimir as minorias; na medida em que cremos ilusórias e incompletas as liberdades prometidas pelo sistema representativo. Neste sentido somos anti-democráticos. Mas pela mesma razão, e ainda com maior hostilidade, somos adversários da ditadura, que nos negaria até as poucas e ilusórias liberdades do sistema representativo, que dá à minoria, ou aliás, a poucos homens, o direito de oprimir, de governar à força, as maiorias; se não queremos que as maiorias oprimam as minorias, tanto menos podemos querer que estas oprimam aquelas.

Mais ainda, se efetivamente o sistema da ditadura proletária estivesse conforme aos “textos sagrados” marxistas, ficaria sempre por demonstrar que uma tal orientação rigidamente estatal fosse a mais apropriada para aproximar a revolução, enquanto propaganda; e, na realização prática, para desenvolver a revolução de tal modo que tire o proletariado da escravidão econômica e política, da servidão estatal e proprietária. Em vão procuramos tal demonstração no último livro de Lênin, «O Estado e a Revolução».

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O livro de Lênin é sobretudo uma polêmica com os social-democratas e com os reformistas. Por isso dizíamos que era ao invés um escrito para uso interno do partido socialista. Há uma abundância enorme de citações de Marx e de Engels — para dizer a verdade mais de Engels que de Marx —, tanto que se lhe fossem tiradas as muitas páginas de reprodução, todo o livro se reduziria a um opúsculo bastante modesto.

Naturalmente, não podemos senão subscrever toda a primeira parte do livro, em que é posta à luz toda a hipocrisia burguesa e democrática, segundo a qual o Estado seria o representante dos interesses de todos os cidadãos, enquanto na realidade é uma arma da classe dominante para a exploração das classes oprimidas. Mas depois Lênin cai no erro marxista (ou melhor, engelsiano) segundo o qual o proletariado, apoderando-se da autoridade estatal e transformando os meios de produção em propriedade do Estado, consegue fazer desaparecer o próprio Estado. Se o Estado se tornar também proprietário, teremos o capitalismo de Estado, não o socialismo, e muito menos a abolição do Estado ou a anarquia!

Curioso sistema seria, para abolir um organismo, o de multiplicar as suas funções, e dar-lhe novos meios de poder!

Com o Estado proprietário todos os proletários se tornariam assalariados do Estado, em vez de assalariados dos capitalistas privados. O Estado seria o explorador, ou seja, o monte infinito dos altos e baixos governantes, e toda a burocracia em todos os seus graus hierárquicos, viria a constituir a nova classe dominante e exploradora. Parece que algo semelhante se está a constituir na Rússia, pelo menos nas grandes cidades e na área da grande indústria.

Eis aqui o grande erro marxista no que concerne ao Estado: concebê-lo como simples efeito da divisão de classes, quando é também uma causa. O Estado não apenas é um servente do capitalismo, que reforça o privilégio econômico da burguesia, etc., mas é ele próprio uma fonte de privilégios, constitui uma classe ou casta de privilegiados, alimenta a classe dominante fornecendo-lhe sempre novos elementos; e tanto mais assim seria se, além da força política, tivesse também a força econômica, vale dizer, toda a riqueza social, enquanto único proprietário.

Lênin diz que a ditadura será «o proletariado organizado como classe dominante». Mas isto é uma contradição nos termos! Se o proletariado se tornou classe dominante, já não é proletariado, já não é não-possuidor. Significa que se tornou o patrão. Ademais, se há classe dominante, significa que existem classes dominadas; isto é, classes que permaneceram ou se tornaram proletárias. A divisão de classes continuaria subsistindo. E a única explicação deste enigma é que a classe dominante será constituída por uma minoria do proletariado, que terá desapossado e subjugado a atual minoria burguesa, dominando politicamente e explorando economicamente ao mesmo tempo toda a restante população, isto é, as velhas classes despossuídas e a maioria dos proletários que continuarão como tais e permanecerão em sujeição.

Se este tremendo erro se realizasse, mais uma vez a humanidade teria sangrado em vão. Ela não teria feito mais do que virar-se ao contrário no seu leito de dor e injustiça!

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Mikhail Bakunin previa há quarenta e cinco anos atrás estas consequências da aplicação do marxismo: o governo dos grupos operários e industriais mais progressistas, das grandes cidades, em prejuízo e detrimento das maiorias trabalhadoras dos campos, dos pequenos centros, dos ofícios qualificados, etc.

Lênin, sob a guia de Marx e Engels, apela ao exemplo das revoluções francesas de 1848 e 1871. Mas é justamente da experiência dessas revoluções que nasceu o anarquismo como concepção libertária da revolução, na medida em que todos os teóricos revolucionários que viram de perto essas duas revoluções constataram o dano da orientação estatal ou ditatorial da revolução. O próprio Marx é citado sem razão a tal propósito, já que ao escrever sobre a Comuna de Paris ele não exalta de modo nenhum o centralismo (como pretende Lênin) mas precisamente o sistema das autonomias comunais.

Lênin fala de contínuo sobre a destruição do mecanismo estatal, mas ele quer destruir o mecanismo estatal burguês para o substituir por outro tão burocrático e entorpecedor, o do partido comunista. Ao invés ganharão apenas aqueles que constituírem o pessoal do novo Estado, da nova burocracia. Vem-me à mente, a tal propósito, a antiga fábula do cavalo chagado e coberto de moscas, que recusava a ajuda de quem lhas queria tirar, «porque — dizia — estas que tenho em cima já estão cheias, enquanto que sem elas virão outras mais famélicas e vorazes».

Este preconceito centralista de Lênin revela-se também numa advertência que ele faz aos anarquistas, «porque não querem uma administração». Quem disse a Lênin que os anarquistas não querem administração, não o sabemos. Mas o seu erro decorre do facto de ele não ver como possível uma administração sem concentração burocrática, sem autoridade, isto é, sem Estado; e já que os anarquistas não querem autoridade, Estado e concentração, ele crê que não querem administração. Mas é uma extravagância. Na realidade a melhor administração, como a melhor organização, a verdadeiramente merecedora desse nome, é a menos centralizada e menos autoritária possível.

Quando Lênin diz, citando Engels, que quer chegar à eliminação do Estado, enuncia uma pia intenção sem resultados práticos, já que a via por ele escolhida conduz, ao invés, ao reforço da instituição estatal, passada simplesmente do domínio de uma classe para o de outra em vias de formação.

Numa publicação anarquista não se pode deixar passar em silêncio o que neste livro Lênin diz dos anarquistas e do anarquismo.

Algo foi assinalado mais acima. Mas não devemos dissimular o esforço que Lênin faz para ser justo com os anarquistas, talvez porque sabe por experiência como lhe pode ser valioso o seu concurso. Nem sempre o consegue, como por exemplo quando diz que os anarquistas não deram nenhuma contribuição às questões concretas sobre a necessidade de destruir o mecanismo estatal e o modo de o substituir. Toda a literatura anarquista é justamente a demonstração do contrário!

Mas Lênin rende aos anarquistas esta justiça, cerca de trinta anos depois, de reconhecer que o libelo de Plekhanov «Anarquismo e Socialismo» — que constitui, junto com um diminuto opúsculo de Deville, o único tratado de caráter socialista sobre o tema — é uma péssima coisa.

Segundo Lênin, Plekhanov tratou o tema «evitando o que nele havia de mais atual e politicamente essencial: a conduta da revolução face ao Estado». No folheto de Plekhanov, junto a uma parte histórico-literária bastante provida de material sobre as ideias de Stirner, Proudhon e outros (sempre segundo Lênin), há uma parte de «considerações filistinas e vulgares pretendendo demonstrar que um anarquista dificilmente se pode distinguir de um bandido». Este modo como Plekhanov tratou os anarquistas na sua polêmica, Lênin atribui-o à sua política oportunista, que queria em política «cavalgar sobre os estribos da burguesia».

Mas se Lênin reconhece que a habitual crítica do anarquismo, feita pelos social-democratas do tipo de Plekhanov, recorre a trivialidades pequeno-burguesas, os seus argumentos não são mais conclusivos, já que também ele toma em mira um anarquismo da sua especial fabricação que não existe na realidade. Repete as críticas de Engels aos proudhonianos, atribui aos anarquistas a ilusão de poder abolir o Estado de hoje para amanhã, sem nenhuma ideia sobre o que deve substituí-lo no seio do proletariado, etc.

Mas para demonstrar como Lênin não compreendeu inteiramente o que efetivamente querem e como pretendem operar os anarquistas, seria necessário escrever outro tanto, pelo menos de quanto escrevemos até aqui. O que faremos noutra ocasião… se tivermos tempo.


Inclusão: 24/11/2020s