Os Condenados da Terra

Frantz Fanon


3. Desventuras da consciência nacional


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Que o combate anticolonialista não se inscreve de repente numa perspectiva nacionalista é o que a história nos ensina. Durante muito tempo o colonizado dirige os seus esforços até à supressão de certas injustiças: trabalho forçado, sanções corporais, desigualdade nos salários, limitação dos direitos políticos, etc.... Este combate pela democracia contra a opressão do homem vai progressivamente sair da confusão neo-liberal universalista para desembocar, às vezes laboriosamente, na reivindicação nacional. Mas a falta de preparação das elites, a ausência de ligação orgânica entre elas e as massas, a sua preguiça e, deve dizer-se, a cobardia no momento decisivo da luta, vão dar origem a trágicas desventuras.

A consciência nacional, em vez de ser a cristalização coordenada das aspirações mais íntimas da totalidade do povo, em vez de ser o produto imediato mais palpável da mobilização popular, não será em todo o caso senão uma forma sem conteúdo, frágil, grosseira. As falhas que se descobrem nela explicam amplamente a facilidade com a qual, nos jovens países independentes, se passa da nação à etnia, do estado à tribo. São essas fendas que explicam os retrocessos, tão penosos e prejudiciais para o desenvolvimento e unidade nacionais. Veremos como essas debilidades e os perigos graves que encerram são o resultado histórico da incapacidade da burguesia nacional dos países subdesenvolvidos para racionalizar a prática popular, isto é, descobrir a sua razão.

A debilidade clássica, quase congénita, da consciência nacional dos países subdesenvolvidos não é apenas a consequência da mutilação do homem colonizado pelo regime colonial. É também o resultado da preguiça da burguesia nacional, da sua limitação, da formação profundamente cosmopolita do seu espírito.

A burguesia nacional, que toma o poder no fim do regime colonial, é uma burguesia subdesenvolvida. O seu poder económico é quase nulo e, em todo o caso, sem semelhança com o da burguesia metropolitana que pretende substituir. No seu narcisismo voluntarista, a burguesia nacional convenceu-se fàcilmente de que podia substituir com vantagem a burguesia metropolitana. Mas a independência que a coloca literalmente contra a parede vai desencadear nela reacções catastróficas e vai obrigá-la a lançar angustiosas chamadas à antiga metrópole. Os quadros universitários e os comerciantes que constituem a fracção mais esclarecida do novo estado caracterizam-se, com efeito, pelo seu escasso número, a sua concentração na capital, o tipo das suas actividades: negócios, explorações agrícolas, profissões liberais. No seio desta burguesia nacional não existem industriais nem financeiros. A burguesia nacional dos países subdesenvolvidos não se orienta pela produção, pelos inventos, pela construção, pelo trabalho. Canaliza-se inteiramente para as actividades do tipo intermédio. Estar no circuito, nas combinações, parece ser a sua profunda vocação. A burguesia nacional tem uma psicologia de homem de negócios não de capitães de indústria. E é verdade que a avidez dos colonos e o sistema de embargo estabelecido pelo colonialismo não lhe permitirão escolher.

No sistema colonial, uma burguesia que acumula capital é impossível. Mas, precisamente, parece que a vocação histórica de uma burguesia nacional autêntica num país subdesenvolvido é negar-se como burguesia, negar-se enquanto instrumento do capital e escravizar-se absolutamente ao capital revolucionário que constitui o povo.

Num país subdesenvolvido, uma burguesia nacional autêntica deve converter em dever imperioso a traição da vocação a que estava destinada, ir à escola do povo, quer dizer, pôr à disposição do povo o capital intelectual e técnico que extraiu da sua passagem pelas universidades coloniais. Veremos como, desgraçadamente, a burguesia nacional se desvia com frequência desse caminho heróico e positivo, fecundo e justo para empreender, com a alma tranquila, o caminho terrível, por ser antinacional, de uma burguesia clássica, de uma burguesia burguesa, vazia, estúpida, cinicamente burguesa.

O objectivo dos partidos nacionalistas a partir de certa época é, já o temos visto, estritamente nacional. Mobilizam o povo em redor da palavra de ordem de independência e, quanto ao resto, esperam pelo futuro. Quando se interrogam esses partidos sobre o programa económico do estado que defendem, sobre o regime que se propõem instaurar, mostram-se incapazes de responder porque precisamente ignoram em absoluto tudo o que se refere à economia do seu próprio país.

Esta economia desenvolveu-se sempre à margem desses partidos. Dos recursos actuais e potenciais do solo e do subsolo do seu país têm apenas um conhecimento livresco e aproximado. Não podem, pois, falar disso a não ser num plano abstracto e geral. Depois da independência, esta burguesia subdesenvolvida, numèricamente reduzida, sem capitais, que recusa a forma revolucionária, vai estagnar-se lamentavelmente. Não pode dar livre curso ao seu génio que, um pouco por alto, podia afirmar ter sido coartado pelo domínio colonial. A precaridade dos seus meios e a escassez dos seus quadros, reduzem-na durante anos a uma economia de tipo artesanal. Na sua perspectiva inevitàvelmente muito limitada, uma economia nacional é uma economia baseada no que se chamam os produtos locais. Pronunciar-se-ão grandes discursos sobre o artesanato. Na impossibilidade em que se encontra de montar fábricas mais rentáveis para o país e para si mesma, a burguesia rodeará o artesanato de uma ternura chauvinista que coincide com a nova dignidade nacional e, além disso, procurará obter substanciais lucros. Esse culto em volta dos produtos locais, essa impossibilidade de criar novas direcções, manifestar-se-ão igualmente pelo afundamento da burguesia nacional na produção agrícola característica do período colonial.

A economia nacional do período de independência não é reorientada. Preocupa-se sempre com a colheita do amendoim, do cacau, da azeitona. Nenhuma modificação se introduz tão-pouco na elaboração dos principais produtos. Nenhuma indústria se instala no país. Continua-se a exportar as matérias-primas, continua-se no plano de pequenos agricultores da Europa, de especialistas em produtos brutos.

Não obstante, a burguesia nacional não deixa de exigir a nacionalização da economia e dos sectores comerciais. É que, para ela, nacionalizar não significa pôr a totalidade de economia ao serviço da nação, satisfazer todas as necessidades da nação. Para ela, nacionalizar não significa ordenar o estado em função de relações sociais novas, cuja eclosão se deve facilitar. Nacionalização significa exactamente para essa burguesia, transferir para os autóctones os privilégios herdados da fase colonial.

Como a burguesia não possui meios materiais nem meios intelectuais suficientes (engenheiros, técnicos), limitará as suas pretensões ao manejo dos escritórios e das casas comerciais ocupadas antes pelos colonos. A burguesia nacional ocupa o lugar da antiga população europeia: médicos, advogados, comerciantes, representantes, agentes gerais, agentes aduaneiros. Deseja ocupar, pela dignidade do país e da sua própria segurança, todos esses postos. De futuro, exigirá que as grandes companhias estrangeiras recorram a ela, quer para se manterem no país ou penetrarem nele. A burguesia nacional descobre a missão histórica de servir de intermediária. Como se vê, não se trata de uma vocação de transformar a nação, mas, prosaicamente, servir de correia de transmissão a um capitalismo disfarçado e que se cobre agora com a máscara neo-colonialista. A burguesia nacional vai com- prazer-se, sem complexos e com muita dignidade, com o papel de agente de negócios da burguesia ocidental. Esse papel lucrativo, essa função de pequeno financeiro, essa estreiteza de visão, essa ausência de ambição, simbolizam a incapacidade da burguesia nacional para cumprir o seu papel histórico de burguesia. O aspecto dinâmico e pioneiro, o aspecto de inventor e descobridor de mundos que se encontra em toda a burguesia nacional, está aqui lamentavelmente ausente. No seio da burguesia nacional dos países coloniais domina o espírito de possuidor. É que no plano psicológico essa burguesia identifica-se com a burguesia ocidental, cujos ensinamentos assimilou. Segue a burguesia ocidental no seu aspecto negativo e decadente, sem superar as primeiras etapas de exploração e invenção que são, em todo o caso, um mérito dessa burguesia ocidental. No princípio, a burguesia nacional dos países coloniais identifica-se com a burguesia ocidental nos seus fins. Não se deve acreditar que ela destrói as fases. Na realidade, começa pelo fim. Já está na velhice sem conhecer a petulância, a intrepidez, o voluntarismo da juventude e a adolescência.

No seu aspecto decadente, a burguesia nacional será consideràvelmente ajudada pelas burguesias ocidentais que se apresentam como turistas enamorados do exotismo, da caça, dos casinos. A burguesia nacional organiza centros de repouso e de recreio, curas de prazer para a burguesia ocidental. Esta actividade será designada por turismo e assimilar-se-á por circunstância a uma indústria nacional. Se se quer uma prova desta eventual transformação dos elementos da burguesia ex-colonial em organizadores de festas para a burguesia ocidental, vale a pena evocar o que se passou na América Latina. Os casinos de Havana, do México, as praias do Rio, as jovens brasileiras ou mexicanas, as mestiças de treze anos, Acapulco, Copacabana, são as cicatrizes da atitude dessa burguesia nacional. Como não possui ideias, como está fechada em si mesma, isolada do povo, minada por uma incapacidade congénita para pensar na totalidade dos problemas em função da totalidade da nação, a burguesia nacional assumirá o papel de gerente das empresas ocidentais e converterá o seu país, pràticamente, num lupanar da Europa.

Uma vez mais deve ter-se presente nos nossos olhos o espectáculo lamentável de certas repúblicas da América Latina. Por detrás da cortina, os homens de negócios dos Estados Unidos, os grandes banqueiros, os tecnocratas, desembarcam «nos trópricos» e durante oito ou dez dias entregam-se à doce depravação que lhes oferecem as suas «reservas».

O comportamento dos proprietários rurais nacionais identifica-se com o da burguesia das cidades. Os grandes agricultores exigiram, desde a proclamação da independência, a nacionalização das propriedades agrícolas. Com ajuda de múltiplas combinações, conseguiram apoderar-se das herdades pertencentes antes aos colonos; reforçando assim o seu domínio sobre a região. Mas não tratam de renovar a agricultura, de a intensificar ou de a integrar dentro de uma economia realmente nacional.

Na realidade, os proprietários agrícolas exigirão dos poderes públicos que centupliquem a seu favor as facilidades e os privilégios de que beneficiavam antes os colonos estrangeiros. A exploração dos operários agrícolas será reforçada e legitimada. Manipulando dois ou três «slogans», estes novos colonos vão exigir dos trabalhadores agrícolas um trabalho enorme, em nome, bem entendido, do esforço nacional. Não haverá modernização da agricultura, não haverá plano de desenvolvimento, não haverá iniciativas, porque as iniciativas, que implicam um mínimo de riscos, causam pânico nesses meios e desorientam a burguesia rural vacilante, prudente, que submerge cada vez mais nos circuitos criados pelo colonialismo. Nessas regiões, as iniciativas devem-se ao governo. É o governo quem as ordena, as alimenta, as financia. A burguesia agrícola nega-se a correr o mais pequeno risco. É contrária ao azar, à aventura. Não quer trabalhar sobre a areia. Exige solidez, rapidez. Os benefícios que embolsa, enormes se se tem em conta o ingresso nacional, não são novamente investidos. Uma economia avarenta domina a psicologia desses proprietários rurais. Algumas vezes, sobretudo nos anos que se seguem à independência, a burguesia não vacila em confiar aos bancos estrangeiros os benefícios que obtém no território nacional. Por outro lado, importantes somas são utilizadas em gastos de aparato militar, em automóveis, em mansões, caracterizados pelos economistas como típicos da burguesia subdesenvolvida.

Temos dito que a burguesia colonizada que chega ao poder, emprega a sua agressividade de classe para monopolizar os postos conquistados antes pelos estrangeiros. Imediatamente após a independência, com efeito, esbarra com os bandos humanos do colonialismo: advogados, comerciantes, proprietários rurais, médicos, funcionários superiores. Vai combater implacàvelmente essa gente «que insulta a dignidade nacional». Condena enèrgicamente as ideias de nacionalização e de africanização dos quadros. Na verdade, a sua atitude tinge-se cada vez mais de racismo. Brutalmente, coloca ao governo um problema claro: necessitamos desses postos. E não descansam, claro, enquanto os não ocupam na sua totalidade.

Por seu lado, o proletariado das cidades, a massa de desempregados, os pequenos artesãos, a que costuma chamar-se pequenos ofícios, unem-se a essa atitude nacionalista, mas deve fazer-se-lhes justiça: não fazem mais do que decalcar a sua atitude da atitude burguesa. Se a burguesia nacional entra em competição com os europeus, os artesõos e os pequenos ofícios, desencadeiam a luta contra os africanos não nacionais. Na Costa do Marfim, são os motins propriamente racistas contra os daomeanos ou os naturais de Volta. Os daomeanos e os volteanos que ocupavam importantes sectores no pequeno negócio são objecto, logo após a independência, de manifestações de hostilidade por parte dos indígenas da Costa do Marfim. Do nacionalismo passamos ao ultra-nacionalismo, ao chauvinismo, ao racismo. Exige-se a retirada desses estrangeiros, queimam-se as suas tendas, destroem-se os seus postos, lincham-se e, efectivamente, o governo da Costa do Marfim incita-os a sair para satisfazer, desse modo, os nacionais. No Senegal, são as manifestações anti-sudanesas que fazem Mamadou Dia afirmar:

«Na verdade, o povo senegalês não adoptou a mística do Mali, senão por apego aos seus dirigentes. A sua adesão ao Mali não tem outro valor que o de um acto de fé na política desses últimos. O território senegalês não estava menos vivo, tanto mais que a presença sudanesa em Dacar se manifestava com evidente indiscrição para o fazer esquecer. É este facto que explica, longe de manifestar lamentações, que o fim da Federação haja sido acolhido pelas massas populares como um alívio e que em nenhuma parte se tenha manifestado um opinião tendente a mantê-la»(1)

Enquanto certas camadas do povo senegalês aproveitam a ocasião que lhes oferecem os seus próprios dirigentes para se desembaraçarem dos sudaneses que os incomodavam, seja no sector comercial ou no da administração, os congoleses, que assistiam sem acreditar à retirada em massa dos belgas, decidem fazer pressão sobre os senegaleses instalados em Leopoldville e em Elizabethville para que abandonem o território.

Como se vê, o mecanismo é idêntico nos dois tipos de fenómenos. Se os europeus limitam a voracidade dos intelectuais e da burguesia dos negócios da jovem nação, para a massa popular das cidades a competição está representada principalmente pelos africanos de uma nação diferente. Na Costa do Marfim são os daomeanos, em Gana, os nigerianos, no Senegal, os sudaneses.

Quando a exigência de negrificação ou arabização dos quadros apresentada pela burguesia não procede de uma empresa autêntica de nacionalização, mas que corresponde simplesmente ao desejo de confiar à burguesia o poder conquistado até então pelo estrangeiro, as massas colocam ao seu nível a mesma reivindicação, mas restringindo aos limites territoriais a noção de negro ou de árabe. Entre as afirmações vibrantes sobre a unidade do continente e esse comportamento inspirado às massas pelos quadros, podem descrever-se muitas atitudes. Assistimos a um vaivém permanente entre a unidade africana, que se desvanece cada vez mais, e o regresso desesperante ao chauvinismo mais odioso, mais arisco.

«Pelo lado senegalês, os dirigentes que foram os principais teóricos da unificação africana e que, por mais de uma vez, sacrificaram as suas organizações políticas locais e as suas posições pessoais a esta ideia, têm de boa fé, claro, inegáveis responsabilidades. O seu erro, o nosso erro, foi, sob pretexto de lutar contra a balcanização, não tomar em consideração esse facto pré-colonial que é o territorialismo. O nosso erro foi o de não haver prestado suficiente atenção nas nossas análises a esse fenómeno, fruto do colonialismo, mas também facto sociológico que uma teoria sobre a unidade, por mais louvável e simpática que seja, não pode abolir. Deixámo-mos seduzir pela miragem da elaboração mais satisfatória para o espírito e, tomando o nosso ideal como uma realidade, acreditámos que bastava condenar o territorialismo e o seu produto natural, o micro-nacionalismo, para os suprimir e assegurar o êxito da nosso quimérica empresa»(2).

Do chauvinismo senegalês ao tribalismo ouolof(3), a distância não é muito grande. E, na verdade, onde quer que a burguesia nacional pelo seu comportamento mesquinho e a imprecisão das suas posições doutrinais não haja podido conseguir esclarecer a totalidade do povo, colocar os problemas principalmente em função do povo, onde quer que essa burguesia nacional se mostre incapaz de alargar suficientemente a sua visão do mundo, assistimos a um refluxo até às posições tribalistas; assistimos, irados, ao triunfo exacerbado das distinções raciais. Como a única palavra de ordem da burguesia é a deve substituir os estrangeiros e em todos os sectores fazer justiça e tomar os seus lugares, os outros nacionais, menos elevados — motoristas de táxi, vendedores de doçarias, engraxadores—, exigirão do mesmo modo que os daomeanos saiam do país ou, indo mais longe, que os Foulbés ou Peuhls(4) regressem à selva ou às montanhas.

Nesta perspectiva deve interpretar-se o facto de que, nos jovens países independentes, triunfa aqui e além o federalismo. O domínio colonial privilegiou, como se sabe, certas regiões. A economia da colónia não está integrada na totalidade da nação. Ela está sempre disposta em relações de complementaridade com as diferentes metrópoles. O colonialismo não explora sempre a totalidade do país. Contenta-se com alguns recursos naturais que extrai e exporta para as indústrias metropolitanas, permitindo assim uma relativa riqueza por sectores, enquanto o resto da colónia continua, sem aprofundar outros meios, o seu subdesenvolvimento e a sua miséria.

Depois da independência, os nacionais que habitam nas regiões prósperas tomam consciência da sua sorte e por um reflexo visceral e primário negam-se a alimentar o resto dos nacionais. As regiões ricas em amendoim, cacau, diamantes, destacam-se perante o panorama vazio que constitui a outra parte da nação. Os nacionais dessas regiões observam com ódio os outros, descobrindo neles a inveja, o apetite, os impulsos homicidas. As velhas rivalidades anticoloniais, os velhos ódios interraciais ressuscitam. Os balubas negam-se a alimentar os luluas. Catanga denomina-se estado independente e Albert Kalondji faz-se coroar rei do Kasai do Sul.

A unidade africana, fórmula vaga a que os homens e mulheres de África se haviam ligado emocionalmente e cujo valor funcional consistia em fazer terrível pressão sobre o colonialismo, revela o seu verdadeiro rosto e desmembra-se em regionalismos dentro de uma mesma realidade nacional, A burguesia nacional, como pensa apenas nos seus interesses imediatos, como não vê para lá do seu nariz, mostra-se incapaz de realizar a simples unidade nacional, incapaz de edificar a nação sobre bases sólidas e fecundas. A frente nacional, que havia feito retroceder o colonialismo, desintegra-se e consome a sua derrota.

Esta luta implacável que livra as raças e as tribos, esta preocupação agressiva para ocupar os postos que caíram livres com a partida do estrangeiro, vão dar origem igualmente a competições religiosas. No campo e na selva, as pequenas seitas, as religiões locais, os cultos muçulmanos voltam a possuir vitalidade e reiniciarão o ciclo das excomunhões. Nas grandes cidades, ao nível dos quadros administrativos, assistiremos ao confronto entre as duas grandes religiões reveladas: islamismo e catolicismo.

O colonialismo, que estremeceu frente ao aparecimento da unidade africana, recupera as suas dimensões e trata agora de quebrar essa vontade, utilizando todas as debilidades do movimento. O colonialismo mobilizará os povos africanos, revelando-lhes a existência de rivalidades «espirituais». No Senegal, é o periódico Afrique Nouvelle que cada semana destilará o ódio do Islão e dos Árabes. Os libaneses, que possuem na costa ocidental a maioria do pequeno comércio, são indicados à vingança nacional. Os missionários recordam oportunamente às massas que grandes impérios negros, muito antes da chegada do colonialismo europeu, foram destruídos pela invasão árabe. Não teme mesmo em afirmar que foi a ocupação árabe que preparou o caminho do colonialismo europeu; fala-se do imperialismo árabe e denuncia-se o imperialismo cultural do Islão. Os muçulmanos são afastados geralmente dos postos de chefia. Noutras regiões, produz-se o fenómeno inverso e os indígenas cristalizados são assinalados como inimigos objectivos e conscientes da independência nacional.

O colonialismo utiliza sem vergonha todos os seus cordéis, certo de colocar uns contra os outros africanos que ontem se haviam ligado a ele. A noite de S. Bartolomeu ressuscita em certos espíritos e o colonialismo escarnece quando escuta as magníficas declarações sobre a unidade africana. Dentro de uma mesma nação, a religião divide o povo e estabelece a discórdia entre ele e as comunidades espirituais mantidas e fortalecidas pelo colonialismo e pelos seus instrumentos. Fenómenos totalmente inesperados irrompem aqui e além. Nos países com predomínio católico ou protestante, as minorias muçulmanas demonstram uma devoção desusada. As festas islâmicas são estimuladas, a religião muçulmana defende-se do absolutismo violento da religião católica. Alguns sacerdotes afirmam, então, que se esses indivíduos não estão contentes, podem retirar-se para o Cairo. Algumas vezes, o protestantismo norte-americano transporta para o território africano os seus prejuízos anticatólicos e fomenta rivalidades tribais através da religião.

No plano continental, esta tensão religiosa pode revestir a forma do racismo mais vulgar. Divide-se a África numa parte branca e numa parte negra. Os termos de substituição: África do Sul ou ao norte do Saara, não conseguem dissimular esse racismo latente. Aqui, afirma-se que a África Branca tem uma tradição cultural milenária, que é mediterrânica, prolonga a Europa, participa na cultura greco-latina. Concebe-se a África Negra com uma região inerte, brutal, não civilizada... selvagem. Ali, escutam-se todo o dia reflexões odiosas sobre a violação de mulheres, sobre a poligamia, sobre o suposto desprezo dos árabes pelo sexo feminino. Todas estas reflexões recordam pela sua agressividade as que se atribuem tão frequentemente ao colono. A burguesia nacional de cada uma dessas duas grandes regiões, que assinalaram as raízes mais apodrecidas do pensamento colonialista, substitui os europeus e estabelece no continente uma filosofia racista terrivelmente prejudicial para o futuro de África. Pela sua preguiça e pelo seu mimetismo, favorece a implantação e o fortalecimento do racismo que caracterizava a fase colonial. Não causa surpresa, pois, num país que se diz africano, escutar reflexões racistas e comprovar a existência de compartimentos paternalistas que deixam a amarga impressão de que se encontra em Paris, em Bruxelas ou em Londres.

Em certas regiões de África os balidos paternalistas a respeito dos negros, a idade obscena tomada da cultura ocidental de que o negro é impermeável à lógica e às ciências, reinam em toda a sua nudez. Algumas vezes mesmo tem a ocasião de comprovar-se que as minorias negras se encontram confinadas numa semi-escravidão que justifica essa espécie de circunspecção, de desconfiança, que os países da África Negra sentem pelos países da África Branca. Não é estranho que um cidadão da África Negra, ao visitar uma grande cidade da África Branca, oiça as crianças chamarem-lhe «preto» ou ser tratado como «pretito» pelos funcionários.

Não, infelizmente não é raro que os estudantes da África Negra, inscritos nos colégios ao norte do Saara, escutem perguntas dos seus companheiros do colégio sobre se existem casas no seu país, se conhecem a electricidade, se na sua família praticam a antropofagia. Não, desgraçadamente não é raro que em algumas regiões no norte do Saara, africanos procedentes de países situados ao sul do Saara se encontrem com indivíduos que lhes pedem para «os levar a qualquer lado onde existam negras». Igualmente, em certos estados da África Negra, parlamentares e ministros afirmam sèriamente que o perigo não está numa nova ocupação do seu país pelo colonialismo, mas na eventual invasão «dos árabes vândalos, vindos do Norte».

Como se vê, as limitações da burguesia não se manifestam somente no plano económico. Depois de chegar ao poder em nome de um nacionalismo mesquinho, em nome da raça, a burguesia, apesar das formosas declarações formais inteiramente desprovidas de sentido, manejando com absoluta irresponsabilidade frases saídas directamente dos tratados de moral ou de filosofia política da Europa, darão prova da sua incapacidade para fazer triunfar um reduzido catecismo humanista. A burguesia, quando é forte, quando dispõe o mundo em função do seu poder, não vacila em afirmar ideias democráticas com pretensão universalista. A burguesia ocidental, ainda que fundamentalmente racista, consegue quase sempre disfarçar esse racismo multiplicando os matizes, o que lhe permite conservar intacta a sua proclamação da eminente dignidade humana.

A burguesia ocidental levantou suficientes barreiras e pontes para não temer realmente a competição daqueles a quem explora e despreza. O racismo burguês ocidental a respeito do negro e do bicot é um racismo de desprezo; é um racismo que minimiza. Mas a ideologia burguesa, que proclama uma igualdade essencial entre os homens, desembaraça-se para permanecer em regra consigo mesma, convidando os sub-homens a humanizarem-se através do tipo de humanidade ocidental que ela incarna.

O racismo da jovem burguesia nacional é um racismo defensivo, um racismo baseado no medo. Não difere essencialmente do vulgar tribalismo, quer dizer, das rivalidades entre çofs ou seitas. É compreensível que os observadores internacionais perspicazes não tenham levado a sério as grandes fanfarronices sobre a unidade africana. É que o número de fendas perceptíveis é de tal ordem que se pressente claramente terem de resolver-se todas estas contradições, antes de soar a hora dessa unidade.

Os povos africanos descobriram recentemente e decidiram, em nome do continente, ponderar de forma radical sobre o regime colonial. Mas as burguesias nacionalistas que se apressam, região após região, a entabular a sua própria luta e a criar um sistema nacional de exploração, multiplicam os obstáculos para a realização dessa «utopia». As burguesias nacionais, perfeitamente conscientes dos seus objectivos, estão decididas a fechar o caminho a essa unidade, a esse esforço coordenado de duzentos milhões de homens para vencer ao mesmo tempo a ignorância, a fome, a desumanidade. Por isso é necessário saber que a unidade africana não pode fazer-se senão sob o impulso e a direcção dos povos, quer dizer, desprezando os interesses da burguesia.

No plano interno e no marco institucional, a burguesia nacional demonstrará igualmente a sua incapacidade. Em certo número de países subdesenvolvidos, o jogo parlamentar é fundamentalmente falsificado. Econòmicamente impotente, sem poder criar relações sociais coerentes, fundadas no princípio do seu domínio como classe, a burguesia escolhe a solução que lhe parece mais fácil, a do partido único. Não possui, todavia, essa boa consciência e essa tranquilidade que apenas o poder económico e o domínio do sistema estatal poderiam conferir-lhe. Não cria um estado que tranquilize o cidadão, mas um que, pelo contrário, o inquieta.

O estado que, pela sua robustez e ao mesmo tempo pela sua discrição, deveria dar confiança, desarmar, adormecer, impõe-se ao contrário espectacularmente, exibe-se, maltrata, molesta, fazendo ver ao cidadão que está em perigo permanente. O partido único é a forma moderna da ditadura burguesa sem máscara, sem escrúpulos, cínica.

Esta ditadura, claro, não vai muito longe. Não deixa de segregar a sua própria contradição. Como a burguesia não tem os meios económicos para assegurar o seu domínio e distribuir algumas migalhas por todo o país; como, além disso, está ocupada em encher ràpidamente os bolsos, mas também o mais prosaicamente, o país submerge-se cada vez mais no marasmo. E para esconder esse marasmo, para disfarçar essa regressão, para se tranquilizar e apresentar motivos de orgulho, não resta à burguesia outro recurso senão construir na capital grandiosos edifícios, fazer o que se chama despesas de prestígio.

A burguesia nacional volta as costas cada vez mais ao interior, às realidades do país baldio e olha para a antiga metrópole, para os capitalistas estrangeiros que procuram os seus serviços. Como não divide os seus benefícios com o povo e não lhe permite aproveitar as prebendas que lhe outorgam as grandes companhias estrangeiras, descobrirá a necessidade de um dirigente popular ao qual caberá o duplo papel de estabilizar o regime e perpetuar o domínio da burguesia. A ditadura burguesa dos países subdesenvolvidos obtém a sua solidez da existência de um dirigente. Nos países evoluídos, como se sabe, a ditadura burguesa é o produto do poder económico da burguesia. Nos países subdesenvolvidos, pelo contrário, o «leader» representa a força moral ao abrigo da qual a burguesia fraca e desprotegida da jovem nação resolve enriquecer.

O povo que, durante anos, o viu e ouviu falar, que de longe, numa espécie de sonho, seguiu as relações do dirigente com a potência colonial, outorga espontaneamente a sua confiança a esse patriota. Antes da independência, o dirigente incarnava em geral as aspirações do povo: independência, liberdades políticas, dignidade nacional. Mas, após a independência, longe de incarnar concretamente as necessidades do povo, longe de se converter no promotor da verdadeira dignidade do povo, o dirigente vai revelar a sua função particular: ser o presidente principal da sociedade de usufrutuários impacientes por disfrutar, que constitui a burguesia nacional.

Apesar da sua frequente honestidade e das suas sinceras declarações, o dirigente é objectivamente o defensor encarniçado dos interesses, agora conjugados, da burguesia nacional e das antigas companhias coloniais. A sua honestidade, que era um puro estado de alma, desvanece-se progressivamente. O contacto com as massas é tão irreal que o dirigente chega a convencer-se de que querem atentar contra a sua autoridade e porem em dúvida os serviços que prestou à pátria. O dirigente julga duramente a ingratidão das massas e situa-se cada dia um pouco mais resolutamente no campo dos exploradores. Transforma-se, então, com conhecimento de causa, em cúmplice da nova burguesia que mergulha na corrupção e no prazer.

Os circuitos económicos do jovem estado submergem irreversivelmente na estrutura neocolonialista. A economia nacional, antes protegida, é agora literalmente dirigida. O orçamento alimenta-se de empréstimos e doações. Cada trimestre, os mesmos chefes de estado ou as delegações governamentais dirigem-se às antigas metrópoles ou a outros países, à caça de capitais.

A antiga potência colonial multiplica as exigências, acumula concessões e garantias, tomando cada vez menos precauções para disfarçar a sujeição em que mantém o poder nacional. O povo estagna lamentavelmente numa miséria insuportável e pouco a pouco perde consciência da traição inqualificável dos seus dirigentes. Essa consciência é tanto mais aguda quanto mais a burguesia é incapaz de se constituir em classe. A distribuição das riquezas que organiza não se distingue em sectores múltiplos, não é escalonada, não se hierarquiza por meios tons. A nova casta torna-se insultosa e revoltante, dado que a imensa maioria, as nove décimas partes da população, continuam a morrer de fome. O enriquecimento escandaloso, rápido, implacável dessa classe, faz acompanhar-se pelo despertar decisivo do povo, de uma tomada de consciência prometedora de violências futuras. A casta burguesa, essa parte da nação que soma à sua ganância a totalidade das riquezas do país, por uma espécie de lógica vai formular sobre os outros negros ou os outros árabes juízos pejorativos que recordam bastante a doutrina racista dos antigos representantes da potência colonial. É ao mesmo tempo a miséria do povo, o enriquecimento desordenado da casta burguesa, o seu desprezo pelo resto da nação o que vai endurecer as ideias e as atitudes.

Mas as ameaças que estalam vão provocar o fortalecimento da autoridade e a aparição da ditadura. O dirigente, que tem atrás de si uma vida de militante e de patriota dedicado, ao caucionar a actividade dessa casta e fechar os olhos perante a sua insolência, perante a mediocridade e a imoralidade arreigadas desses burgueses, actua como anteparo entre o povo e a burguesia rapinante. Contribui para refrear a tomada de consciência do povo. Ajuda a casta, esconde ao povo as suas manobras e converte-se assim no artesão mais zeloso da obra de mistificação e de embrutecimento das massas. Cada vez que fala ao povo recorda a sua vida, que foi com frequência heróica, os combates que conduziu em nome do povo, fazendo assim acreditar às massas que devem continuar a ter confiança. Abundam os exemplos de patriotas africanos que introduziram na luta política precavida dos seus maiores um estilo decisivo de carácter nacionalista. Esses homens vieram da selva. Diziam, com grande escândalo do dominador e grande vergonha dos nacionais da capital, que vinham dessa selva e que falavam em nome dos negros. Esses homens, que cantaram a raça, assumiram todo o passado, a degeneração e a antropofagia, encontram-se agora à cabeça de uma equipa que volta as costas à selva e proclama que a vocação do seu povo é seguir, seguir ainda e sempre os outros.

O dirigente apazigua o povo. Anos depois da independência, incapaz de convidar o povo para uma obra concreta, incapaz de abrir realmente o futuro do povo, de lançar o povo pelo caminho da formação da nação, por consequência da sua própria construção, vemos como o dirigente ressuscita a história da independência, recorda a união sagrada da luta de libertação. O dirigente, como se nega a romper com a burguesia nacionalista, solicita ao povo que retroceda até ao passado e se embriague com a epopeia que o conduziu à independência. O dirigente — objectivamente — detém o povo e dedica-se a expulsá-lo da História ou a impedir que penetre nela. Durante a luta de libertação, o dirigente despertava o povo e prometia-lhe uma marcha heróica e radical. Agora, multiplica os esforços para o adormecer e três ou quatro vezes por ano pede-lhe que se recorde da época colonial e aprecie o imenso caminho percorrido.

Mas, deve dizer-se, as massas mostram uma incapacidade total para apreciar o caminho percorrido. O camponês que continua a arranhar a terra, o desempregado que não deixa de o ser, não conseguem convencer-se, apesar das festas e das bandeiras novas, de que alguma coisa mudou realmente para as suas vidas. A burguesia no poder pode intensificar as manifestações, mas as massas não se deixam iludir. As massas têm fome e os comissários de polícia, agora africanos, não lhes merecem muita confiança. As massas começam a enfadar-se, a desviar-se, a desinteressar-se por essa nação que não lhes reserva nenhum lugar.

De tempos a tempos, sem dúvida, o «leader» mobiliza-se, fala pela rádio, faz uma visita para apaziguar, acalmar, mistificar. O dirigente é mais necessário quando não tem partido. Existiu durante o período da luta pela independência um partido que o dirigente actual dirigiu. Mas, lamentàvelmente, o partido dispersou-se a partir dessa altura. Agora, apenas subsiste formalmente, nominalmente, pelo seu emblema e pela sua divisa. O partido orgânico, que devia facilitar a livre circulação de um pensamento elaborado com as necessidades reais das massas, transformou-se num sindicato de interesses individuais. Depois da independência, o partido não ajuda já o povo a formular as suas reivindicações, a atingir maior consciência das suas necessidades a assentar melhor o seu poder. O partido, actualmente, tem como missão fazer chegar ao povo as instruções que emanam de cima. Já não existe esse vaivém fecundo da base até cima e de cima até à base que funda e garante a democracia num partido. Pelo contrário, o partido constituiu-se um anteparo entre as massas e a direcção. Já não existe a vida de partido. As células criadas durante a fase colonial encontram-se agora num estado de desmobilização total.

O militante destrói o seu freio. É então que se compreende a justeza das posições assumidas por certos militantes durante a luta de libertação. Na verdade, no momento do combate, vários militantes pediram aos organismos dirigentes a elaboração de uma doutrina, a precisão dos objectivos, a formulação de um programa. Mas, com o pretexto de salvaguardar a unidade nacional, os dirigentes negaram-se categoricamente a abordar essa tarefa. A doutrina, repetia-se, é a união nacional contra o colonialismo. E andava-se para a frente, levando como arma um impetuoso lema convertido em doutrina, limitando-se toda a actividade ideológica a uma série de variantes sobre o direito dos povos a disporem de si mesmos, arrastados pelo vento da história que irreversivelmente fará desaparecer o colonialismo. Quando os militantes pediam que se analisasse um pouco mais em que consistia o vento da história, os dirigentes opunham-lhes a esperança, a descolonização necessária e inevitável, etc....

Depois da independência, o partido submerge-se numa letargia espectacular. Já não se mobilizam os militantes, a não ser para as manifestações chamadas populares, as conferências internacionais, as festas da independência, i Os quadros locais do partido são designados para os postos administrativos, o partido converte-se em administração, os militantes entram na ordem e recebem o insignificativo título de cidadãos.

Agora que cumpriu a sua missão histórica, que era levar a burguesia ao poder, são convidados com firmeza a retirarem-se para que a burguesia possa cumprir tranquilamente a sua própria missão. No fim de alguns anos, a desintegração do partido manifesta-se e qualquer observador, mesmo superficial, pode dar conta de que o antigo partido, agora esquelético, serve apenas para imobilizar o povo. O partido, que durante o combate atraiu para si toda a nação, decompõe-se. Os intelectuais que em vésperas da independência se tinham filiado no partido confirmam com o seu comportamento actual que essa filiação não teve outro fim senão participar na distribuição do bolo da independência. O partido converte-se em meio de êxito individual.

Não obstante, existe dentro do novo regime uma desigualdade no enriquecimento e no monopólio. Alguns comem «a dois carrinhos» e mostram-se brilhantes especialistas em oportunismo. Os privilégios multiplicam-se, triunfa a corrupção, os costumes corrompem-se. Os corvos são agora muito numerosos e vorazes, dada a magreza do espólio nacional. O partido, verdadeiro instrumento do poder nas mãos da burguesia, fortalece o aparelho do estado e determina o enquadramento do povo, da sua imobilização. O partido auxilia o poder para deter o povo. É cada vez mais um instrumento de coerção e nitidamente antidemocrático. O partido é objectivamente, e às vezes subjectivamente, o cúmplice da burguesia mercantil. Mesmo que escamoteie a burguesia nacional na sua fase de construção para se entregar ao prazer, no plano institucional salva a etapa parlamentar e escolhe uma ditadura de tipo nacional-socialista. Agora que sabemos que essa caricatura de fascismo triunfou durante meio século na América Latina é o resultado dialéctico do estado semicolonial da fase de independência.

Nesses países pobres, subdesenvolvidos, onde a maior riqueza, regra geral, se coloca ao lado da maior miséria, o exército e a polícia são os pilares do regime. Um exército e uma polícia que — outra regra que deve recordar-se — estão aconselhados por peritos estrangeiros. A força dessa polícia, o poder desse exército, são proporcionais ao marasmo em que se submerge o resto da nação. A burguesia nacional vende-se cada vez mais abertamente às grandes companhias estrangeiras. À base de prebendas, o estrangeiro obtém concessões, os escândalos multiplicam-se, os ministros enriquecem, as suas mulheres convertem-se em «cocottes», os deputados manobram e até o agente de polícia ou o agente aduaneiro participa nessa grande caravana da corrupção.

A oposição torna-se mais agressiva e o povo compreende por meias palavras a sua propaganda. A hostilidade a respeito da burguesia é evidente. A jovem burguesia, que parece afectada de senilidade precoce, não toma em conta os conselhos que se lhe prodigalizam e mostra-se incapaz de compreender que lhe convém velar, ainda que seja igualmente, a sua exploração.

O periódico muito cristão La Semaine Africaine, de Brazzaville, escreveu, dirigindo-se aos príncipes do regime:

«Homens situados nos mais altos postos e vossas esposas, estais agora enriquecidos com o vosso conforto, talvez com a vossa instrução, com a vossa formosa casa, com as vossas relações, com as múltiplas missões que vos são outorgadas e vos abrem novos horizontes. Mas toda a vossa riqueza constrói uma carapaça que impede de ver a miséria que vos rodeia. Tende cuidado.»

Esta chamada de atenção de La Semaine Africaine, dirigida aos colaboradores de M. Youlou, não tem, como se pode adivinhar, nada de revolucionário. O que La Semaine Africaine quer dizer aos exploradores do povo congolês é que Deus castigará a sua conduta:

«Se não existe lugar no vosso coração para aqueles que estão abaixo de vós, não haverá lugar para vós na casa de Deus.»

É claro que a burguesia nacional não se inquieta com tais acusações. Enraizada na Europa, está firmemente resolvida a aproveitar a situação. Os enormes benefícios que obtém da exploração do povo são exportados para o estrangeiro. A nova burguesia nacional desconfia mais depressa do regime que instaurou do que das companhias estrangeiras. Nega-se a investir no território nacional e comporta-se cara a cara com o estado que a protege e a alimenta com uma ingratidão notável, que vale a pena assinalar. Nos mercados europeus adquire valores bolseiros estrangeiros e vai passar o fim de semana a Paris ou a Hamburgo. Pelo seu comportamento, a burguesia nacional de certos países subdesenvolvidos recorda aos membros de um gang que, depois de cada ataque, escondam a sua parte dos outros participantes e preparem com prudência a retirada. Este comportamento revela que, mais ou menos conscientemente, a burguesia nacional julga-se derrotada a longo prazo. Adivinha que essa situação não durará indefinidamente mas quer aproveitá-la ao máximo. No entanto, tal exploração e tal desconfiança a respeito do estado desencadeiam inevitàvelmente o descontentamento das massas. Nessas condições, o regime endurece. Então, o exército converte-se no sustentáculo indispensável de uma repressão sistematizada. À falta de um parlamento, é o exército que se torna árbitro. Mas, cedo ou tarde, descobrirá a sua importância e fará pesar sobre o governo o risco sempre presente de um pronunciamento.

Como se vê, a burguesia nacional de alguns países subdesenvolvidos não aprendeu nada nos livros. Se houvesse observado bem os países da América Latina, teria identificado, sem dúvida, os perigos que a espreitavam. Chegamos, pois, à conclusão de que esta micro-burguesia, que faz tanto barulho, está condenada ao esmagamento. Nos países subdesenvolvidos, a fase burguesa é impossível. Haverá, bem entendido, uma ditadura policial, uma casta de usufrutuários, mas a criação de uma sociedade burguesa está destinada ao fracasso. O grupo de usufrutuários agaloados, que fazem os seus levantamentos sobre os fundos de um país miserável, será mais tarde ou mais cedo um feixe de palha nas mãos do exército habilmente manejado por peritos estrangeiros. Assim, a antiga metrópole pratica a administração indirecta através dos burgueses a quem alimenta e de um exército nacional formado pelos seus peritos que procuram suster, imobilizar e aterrorizar o povo.

Estas observações que temos feito sobre a burguesia nacional conduzem-nos a uma conclusão que não deveria surpreender-nos. Nos países subdesenvolvidos, a burguesia não deve encontrar condições para a sua existência e desenvolvimento. Por outras palavras, o esforço conjugado das massas enquadradas num partido e dos intelectuais perfeitamente conscientes e guiados por princípios revolucionários, deve fechar o caminho a essa burguesia prejudicial e inútil.

A questão teórica que se coloca desde há cinquenta anos, quando se aborda a história dos países subdesenvolvidos, é a de saber se deve passar-se por cima ou não da fase burguesa, se deve resolver-se no plano da acção revolucionária e não mediante um raciocínio. A etapa burguesa nos países subdesenvolvidos não se justificaria, senão na medida em que a burguesia nacional fosse suficientemente poderosa, económica e tècnicamente, como para edificar uma sociedade burguesa, criar as condições de desenvolvimento de um importante proletariado, industrializar a agricultura, enfim, uma autêntica cultura nacional.

Uma burguesia tal como se desenvolveu na Europa, pôde elaborar, fortalecendo o seu próprio poder, uma ideologia. Esta burguesia dinâmica, instruída, laica, realizou plenamente a sua empresa de acumulação do capital e deu à nação um mínimo de prosperidade. Nos países subdesenvolvidos, temos visto que não existe uma verdadeira burguesia, mas sim uma espécie de pequena casta com os dentes afiados, ávida e voraz, dominada pelo espírito usurário, que se contenta com os dividendos assegurados pela antiga potência colonial. Esta burguesia caricatural é incapaz de possuir grandes ideias, de ter inventiva. Recorda-se do que leu nos manuais ocidentais e imperceptivelmente transforma-se, não já em réplica da Europa, mas na sua caricatura.

A luta contra a burguesia dos países subdesenvolvidos está longe de ser uma posição teórica. Não se trata de decifrar a condenação pronunciada contra ela pelo juízo da História. Não se deve combater a burguesia nacional nos países subdesenvolvidos porque ameaça refrear o desenvolvimento global e harmónico da nação. Deve opor-se resolutamente a ela porque, literalmente, não serve para nada. Essa burguesia, medíocre nos seus ganhos, nas suas realizações, no seu pensamento, procura disfarçar essa mediocridade através de construções de prestígio no plano individual, pelos cromados dos automóveis norte-americanos, férias na Riviera, fins de semana nos centros nocturnos plenos de néon.

Esta burguesia, que se desvia cada vez mais do povo, em geral não chega sequer a arrancar concessões espectaculares ao Ocidente: investimentos interessantes para a economia do país, criação de algumas indústrias. Pelo contrário, as fábricas de montagem multiplicam-se, consagrando desse modo o padrão neocolonialista em que se debate a economia nacional. Não se deve dizer, pois, que a burguesia nacional atrasa a evolução do país, lhe faz perder o tempo ou que ameaça conduzir a nação por becos sem saída. Na verdade, a fase burguesa na história dos países subdesenvolvidos é uma etapa inútil. Quando essa casta for aniquilada, devorada pelas suas próprias contradições, advertir-se-á que não sucedeu nada desde a independência, que é necessário recomeçar tudo, se deve partir de zero. A reconversão não se realizará ao nível das estruturas criadas pela burguesia durante o seu reinado, porque essa casta não fez outra coisa senão recolher intacta a herança da economia, do pensamento e das instituições coloniais.

É tanto mais fácil neutralizar esta classe burguesa dado que ela é, como temos visto, numérica, intelectual e economicamente débil. Nos territórios colonizados, a casta burguesa, depois da independência, obtém a sua força principalmente dos acordos contraídos com a antiga potência colonial. A burguesia nacional terá maiores oportunidades de substituir o opressor colonialista se lhe tiver dado a oportunidade de entabular negociações com a ex-potência colonial. Mas profundas contradições agitam as fileiras dessa burguesia, o que dá ao observador atento uma impressão de instabilidade. Não existe, no entanto, homonogeidade de classe. Muitos intelectuais, por exemplo, condenam esse regime baseado no domínio de uns quantos. Nos países subdesenvolvidos, existem intelectuais, funcionários, elites sinceras, que sentem necessidade de uma planificação da economia, da expulsão dos usufrutuários, de uma proibição rigorosa da mistificação.

Esses homens lutam, cada vez mais, para a participação maciça do povo na gestão dos assuntos públicos.

Nos países subdesenvolvidos que obtêm a independência, existe quase sempre um pequeno número de intelectuais honestos, sem ideias políticas muito precisas que, instintivamente, desconfiam dessa correria aos postos e às prebendas, sintomática da fase posterior à independência nos países colonizados. A situação particular desses homens (apoios de família numerosa) ou a sua história (experiências difíceis, formação moral rigorosa) explica esse desprezo tão evidente pelos manobreiros e pelos usufrutuários. É preciso saber utilizar esses homens no combate decisivo que se quer empreender para uma orientação sadia da nação. Fechar o caminho à burguesia nacional, a degradação dos costumes, o bloqueio do país pela corrupção, significa que podem evitar-se as contingências dramáticas posteriores à independência, as desventuras da unidade nacional, a degradação dos costumes, a miséria do país através da corrupção, a regressão económica e, a curto prazo, um regime antidemocrático fundado na força e na intimidação. Mas é também escolher o único meio de avançar.

O que atrasa a decisão e torna tímidos os elementos profundamente democráticos e progressistas da jovem nação é a aparente solidez da burguesia. Nos países sub-desenvolvidos recém-independentes, no seio das cidades construídas pelo colonialismo, fervilha a totalidade dos quadros. A falta de análise da população global induz os observadores a acreditar na existência de uma burguesia poderosa e perfeitamente organizada. Na verdade, agora o sabemos, não existe burguesia nos países subdesenvolvidos. O que cria a burguesia não é o espírito, o gosto ou as maneiras. Não são sequer as esperanças. A burguesia é antes de mais o produto directo de realidades económicas objectivas.

Mas, nas colónias, a realidade económica é uma realidade burguesa estrangeira. Através dos seus representantes, é a burguesia metropolitana a que está presente nas cidades coloniais. A burguesia nas colónias é, antes da independência, uma burguesia ocidental, verdadeira sucursal da burguesia metropolitana e que obtém a sua legitimidade, a sua força, a sua estabilidade, dessa burguesia metropolitana. Durante o período de agitação que precede a independência, elementos intelectuais e comerciantes indígenas, no seio dessa burguesia importada, procuram identificar-se com ela. Existe entre os intelectuais e os comerciantes indígenas uma vontade permanente de identificação com os representantes burgueses da metrópole.

Esta burguesia que adoptou sem reservas e com entusiasmo os mecanismos de pensamento característicos da metrópole, que alienou maravilhosamente o seu próprio pensamento e fundou a sua consciência em bases tipicamente estranhas, vai aperceber-se, com a garganta seca, de que lhe falta o essencial que faz uma burguesia, isto é, o dinheiro. A burguesia dos países subdesenvolvidos é uma burguesia em espírito. Não é o seu poder económico nem o dinamismo dos seus quadros, nem a envergadura das suas concepções, que lhe asseguram a sua qualidade de burguesia. Também é em princípio e durante muito tempo uma burguesia de funcionários. São os postos que ocupam na nova administração nacional que lhe darão serenidade e solidez. Se o poder lhe deixa tempo e possibilidades, essa burguesia chegará a acumular pequenos aforros que fortalecerão o seu domínio. Mas mostrar-se-á sempre incapaz de dar origem a uma autêntica sociedade burguesa com todas as consequências económicas e industriais que ela supõe.

A burguesia nacional orienta-se desde o princípio para actividades de tipo intermediário. A base do seu poder reside no seu sentido do comércio e do pequeno negócio, na sua aptidão para suportar as incumbências. Não é o seu dinheiro que funciona, mas o seu sentido dos negócios. Não investe, não pode realizar essa acumulação do capital necessária para a eclosão e o desenvolvimento de uma autêntica burguesia. Neste ritmo, seriam precisos séculos para criar um embrião de industrialização. Em todo o caso, tropeçará na oposição implacável da antiga metrópole que, no quadro dos convénios neocolonialistas, tomou todas as suas precauções.

Se o poder quer tirar o país da estagnação e conduzi-lo a grandes passos para o desenvolvimento e progresso tem, em primeiro lugar, de nacionalizar o sector terciário. A burguesia que quer fazer triunfar o espírito de lucro e de prazer, as suas atitudes depreciativas com a massa e o aspecto escandaloso do proveito — do roubo, deveria dizer-se — investe maciçamente, com efeito, neste sector. O domínio terciário outrora dominado pelos colonos será usurpado pela jovem burguesia nacional. Numa economia colonial o sector terciário é de longe o mais importante. Se quer progredir alguém deve resolver, nas primeiras horas, nacionalizar este sector. Mas é claro que essa nacionalização não deve revestir-se do aspecto de um rígido estatismo. Não se trata de situar à cabeça dos serviços cidadãos não formados politicamente. Cada vez que este procedimento seja adoptado compreende-se que o poder contribuiu, com efeito, para o triunfo de uma ditadura de funcionários formados pela antiga metrópole que se mostravam ràpidamente incapazes de pensar na nação como um todo. Esses funcionários começam muito depressa a sabotar a economia nacional, a deslocar os organismos e a corrupção, a prevaricação, o desvio das reservas, o mercado negro instala-se. Nacionalizar o sector terciário é organizar democràticamente as cooperativas, interessando as massas na gestão dos assuntos públicos. Tudo isto, como se vê, não se pode realizar sem politizar o povo. Antes, advertia-se a necessidade de clarificar de uma vez por todas um problema capital. Hoje, de facto, o princípio de uma politização das massas é geralmente sustentado nos países subdesenvolvidos. Mas não parece assimilar-se autênticamente essa fundamental tarefa. Quando se afirma a necessidade de politizar o povo, decide-se exprimir ao mesmo tempo que se quer o apoio do povo e para o povo. Não deve ser uma linguagem destinada a camuflar uma direcção burguesa. Os governos burgueses dos países capitalistas superaram desde há muito tempo essa fase infantil do poder. Friamente, governam com a ajuda das suas leis, do seu poder económico e da sua polícia. Não estão obrigados, agora que o seu poder está sòlidamente estabelecido, a perder o seu tempo com atitudes demagógicas. Governam no seu próprio interesse e têm a coragem que lhes dá o seu poder. Eles criaram uma legitimidade e confiam no seu direito.

A casta burguesa dos países há pouco independentes não possuem, todavia, o cinismo nem a serenidade fundados sobre o poder das velhas burguesias. Daí certa preocupação para dissimular as suas convicções profundas, para enganar, numa palavra, para se mostrar popular. A politização das massas não é a mobilização três ou quatro vezes por ano de dezenas ou centenas de milhares de homens e mulheres. Esses motins, essas assembleias espectaculares, assemelham-se com a velha táctica anterior à independência, quando se exibiam as próprias forças para se provar a si próprios e aos outros que tinham o apoio popular. A politização das massas propõe-se não infantilizar as massas mas torná-las adultas.

Isto conduz-nos a determinar o papel do partido político num país subdesenvolvido. Temos visto nas páginas anteriores como com muita frequência alguns espíritos simplistas, pertencentes aliás à burguesia nascente, não deixam de repetir que num país subdesenvolvido a direcção dos assuntos por um poder forte, uma ditadura, é uma necessidade. Nesta perspectiva, encarrega-se o partido de uma missão de vigilância das massas. O partido intensifica a administração e a polícia e controla as massas, não para assegurar a sua participação real nos assuntos da nação, mas para lhes recordar a cada passo que o poder espera a sua obediência e disciplina. Esta ditadura que se pensa apoiada pela história, que se julga indispensável depois da independência, simboliza na realidade a decisão da classe burguesa de dirigir o país subdesenvolvido com a ajuda do povo e depois contra ele. A transformação progressiva do partido num serviço de informações é o indício de que o poder se encontra cada vez mais na defensiva. A massa informe do povo é concebida como a forma cega que é preciso controlar constantemente, seja pela mistificação seja pelo medo que lhe inspiram as forças da polícia. O partido serve de barómetro, de serviço de informações. Transforma-se o militante em delator. Confiam-se-lhes missões punitivas nas aldeias. Os embriões de partidos de oposição são liquidados com paus e pedras. Os candidatos da oposição vêem as suas casas incendiadas. A polícia multiplica as provocações. Nessas condições, bem entendido, o partido é único e 99,99 por cento dos votos correspondem ao candidato governamental. Devemos dizer que em África certo número de governos comporta-se de acordo com este modelo. Todos os partidos de oposição, aliás, geralmente progressistas, que favoreciam uma maior influência das massas na gestão dos assuntos públicos, que desejavam pôr termo à burguesia desprezível e mercantil, foram condenados ao silêncio e à clandestinidade pela força dos golpes e da prisão.

O partido político em muitas regiões africanas agora independentes conhece uma inflacção terrivelmente grave. Perante um membro do partido, o povo cala-se, torna-se «carneiro» e manifesta alguns elogios ao governo e ao dirigente. Mas na rua, pela noite, no sossego da aldeia, no café ou junto do rio, deve ouvir-se essa amarga decepção do povo, essa desesperança, mas também essa raiva contida. O partido, em vez de favorecer a expressão das queixas populares, em vez de fixar como missão fundamental a livre circulação das ideias do povo para a direcção, forma um anteparo e impede. Os dirigentes do partido comportam-se como vulgares ajudantes e recordam constantemente ao povo que «é preciso guardar silêncio nas fileiras». Esse partido que afirmava ser o servidor do povo, que pretendia favorecer o desenvolvimento do povo, desde que o poder colonial lhe entregou o país, apressa-se em conduzir outra vez o povo para a caverna. No plano da unidade nacional, o partido multiplicara igualmente os seus erros. É assim que o partido chamado nacional procede como um partido racial. É uma verdadeira tribo constituída em partido. Este partido que se proclama voluntariamente nacional, que afirma falar em nome de todo o povo, organiza às vezes, aberta e secretamente, uma autêntica ditadura racial. Presenciamos não já uma ditadura burguesa, mas uma ditadura tribal. Os ministros, os chefes de gabinete, os embaixadores, os prefeitos, são escolhidos na tribo do dirigente, algumas vezes mesmo directamente na sua família. Esses regimes de tipo familiar parecem restabelecer as velhas leis da endogamia(5), sentem não a cólera mas a vergonha perante tanta tolice, tanta impostura, tanta miséria intelectual e espiritual. Esses chefes de governo são os verdadeiros traidores da África, porque a vendem ao mais terrível dos seus inimigos: a ignorância. Essa tribalização do poder provoca sem dúvida o espírito regionalista, o separatismo. As tendências descentralizadoras surgem e triunfam, a nação desintegra-se, desmembra-se. O dirigente que gritava «Unidade africana» e que pensava na sua pequena família, desperta um belo dia com cinco tribos que também querem ter os seus embaixadores e os seus ministros; e sempre irresponsável, sempre inconsciente, sempre miserável, ele denuncia «a traição».

Temos assinalado repetidas vezes o papel nefasto do dirigente. É que o partido, em algumas regiões, está organizado como um gang onde o indivíduo mais duro assumirá a direcção. Fala-se do descendente desse «leader», da sua força e não se vacila em afirmar, num tom cúmplice e ligeiramente admirativo, que faz estremecer os seus mais próximos colaboradores. Para evitar esses múltiplos escolhos, é necessário lutar tenazmente para que o partido não se converta nunca num instrumento dócil nas mãos de um «leader». «Leader», do verbo inglês que significa conduzir. O condutor do povo já não existe. Os povos não são rebanhos e não têm necessidade de ser conduzidos. Se o «leader» me conduz, quero que ele saiba, ao mesmo tempo, que eu o conduzo. A nação não deve ser um assunto dirigido por um manitu(6). Assim se compreende o pânico que se apodera das esferas dirigentes cada vez que um dos seus «leaders» se encontra doente.

A questão que os aflige é o problema da sucessão. Que acontecerá ao país se o «leader» desaparece? As esferas dirigentes que abdicaram perante o dirigente, irresponsáveis, inconscientes, preocupadas essencialmente pela boa vida que levam, os cocktails organizados, as viagens pagas e a produtividade das combinações, descobrem depressa o vazio espiritual no coração da nação.

Um país que quer responder realmente às questões que lhe coloca a História, que quer desenvolver as suas cidades e o cérebro dos seus habitantes, deve possuir um verdadeiro partido. O partido não é um instrumento nas mãos do governo. Pelo contrário, o partido é um instrumento nas mãos do povo. É este que determina a política que o governo aplica. O partido não é, não deve ser nunca a simples repartição política onde se encontram . bem instalados todos os membros do governo e os grandes dignitários do regime. O departamento político, com muita frequência por desgraça, constitui todo o partido e os seus membros residem permanentemente na capital. Num país subdesenvolvido, os membros dirigentes do partido têm de fugir da capital como da peste. Devem residir, com excepção de alguns, nas regiões rurais. Deve evitar centralizá-lo todo na grande cidade. Nenhuma recusa de ' tipo administrativo pode legitimar essa efervescência de uma capital já superpovoada e superdesenvolvida em relação com as restantes nove partes do território. O partido deve ser descentralizado até ao extremo. É o único meio de activar as regiões mortas que, todavia, não despertam para a vida.

Pràticamente, haverá pelos menos um membro do partido político em cada região e evitar-se-á nomeá-lo chefe regional. Não terá nas suas mãos o poder administrativo. O membro do partido regional não deve ocupar o mais alto cargo no sistema administrativo regional. Não deve fazer parte, obrigatoriamente, do poder. Para o povo, o partido não é a autoridade mas o organismo através do qual exerce a sua autoridade e a sua vontade como povo. Quanto menor for a confusão e a dualidade de poderes, melhor desempenhará o partido o seu papel de guia e constituirá para o povo a garantia decisiva. Se o partido se confunde com o poder, ser militante do partido equivale a tomar o caminho mais curto para atingir fins egoístas, para obter um posto na administração, para subir de posto, mudar de escalão, fazer carreira.

Num país subdesenvolvido, a criação de direcções regionais dinâmicas detém o processo de macrocefalia das cidades. A criação, desde os primeiros dias da independência, de direcções regionais numa região com plena competência para a despertar, fazê-la viver, acelerar a tomada de consciência dos cidadãos, é uma necessidade a que não poderia escapar um país desejoso de progredir. Aliás, em redor do «leader», amontoam-se os responsáveis do partido e os dignitários do regime. As administrações engrossam-se, não porque se desenvolvam e se diferenciem, mas porque novos elementos e novos militantes esperam um lugar para se infiltrarem na engrenagem. E o sonho de qualquer cidadão é chegar à capital, obter a sua parte do queijo. As localidades são abandonadas, as massas não enquadradas, não educadas, não defendidas, afastam-se de uma terra mal trabalhada e dirigem-se para a periferia das cidades, engrossando desmesuradamente o lumpen-proletariat.

A hora de uma nova crise nacional não está longe. Pensemos, pelo contrário, que o interior do país deveria ser privilegiado. Em última instância, não haveria nenhum inconveniente em que o governo tivesse a sua sede fora da capital. É necessário desconsagrar a capital e mostrar às massas deserdadas que é para elas que se quer trabalhar. Em certo sentido, foi o que o governo brasileiro procurou fazer em Brasília. A altivez do Rio de Janeiro era um insulto para o povo brasileiro. Mas, desgraçadamente, Brasília é uma nova capital tão monstruosa como a primeira. O único interesse dessa realização é que, hoje, existe já uma estrada através da selva. Não, nenhum motivo sério pode opor-se à eleição doutra capital, à deslocação do governo para uma das regiões mais desfavorecidas. A capital dos países subdesenvolvidos é uma noção comercial herdada do período colonial. Mas nos países subdesenvolvidos, teremos de intensificar os contactos com as massas rurais. Teremos de fazer uma política nacional, quer dizer, antes de mais uma política para as massas. Não se deve perder nunca o contacto com o povo que lutou pela sua independência e pelo melhoramento concreto da sua existência.

Os funcionários e os técnicos indígenas não devem perder-se nos diagramas e estatísticas, mas no coração do povo. Não devem eriçar-se cada vez que se trata de uma deslocação para «o interior». Já não devem dar importância às jovens esposas dos países subdesenvolvidos que ameaçam os seus maridos com o divórcio se não conseguem evitar a nomeação para um posto rural. Por isso, o departamento político do partido deve defender as regiões deserdadas, e a vida da capital, vida fictícia, superficial, sobreposta à realidade nacional como um corpo estranho, deve ocupar menor lugar na vida da nação, que é fundamental e sagrada.

Num país subdesenvolvido, o partido deve organizar-se de tal maneira que não se contente apenas em manter contacto com as massas. O partido deve ser a expressão directa das massas. O partido não é uma administração encarregada de transmitir as ordens do governo. É o porta-voz enérgico e o defensor incorruptível das massas. Para chegar a esta concepção do partido, é necessário sobretudo desembaraçar-se da ideia muito ocidental, muito burguesa e, portanto, muito depreciativa, de que as massas são incapazes de se dirigirem. A experiência prova, na verdade, que as massas compreendem perfeitamente os problemas mais complicados. Um dos maiores serviços que a revolução argelina prestou aos intelectuais argelinos foi permitir-lhes o contacto com o povo, permitir-lhes contemplar a extrema e inefável miséria do povo e, ao mesmo tempo, assistir ao despertar da sua inteligência, aos progressos da sua consciência. O povo argelino, essa massa de esfomeados e analfabetos, esses homens e mulheres submersos durante séculos na obscuridade mais terrível, resistiram contra os tanques e os aviões, contra as bombas incendiárias e os serviços psicológicos, mas principalmente contra a corrupção e a lavagem do cérebro, contra os traidores e os exércitos «nacionais» do general Bellounis. Esse povo resistiu apesar dos débeis, dos vacilantes, dos aprendizes de ditadores. Este povo resistiu porque durante sete anos a sua luta lhe abriu perspectivas, cuja existência não suspeitava. Hoje, algumas armarias trabalham em pleno djebel(7) vários metros abaixo da terra, os tribunais do povo funcionam em todos os níveis, as comissões locais de planificação organizam o desmembramento das grandes propriedades, elaboram a Argélia de amanhã. Um homem isolado pode mostrar-se rebelde na compreensão de qualquer problema, mas o grupo, a aldeia, compreende-o ràpidamente. É verdade que, se se tem o cuidado de empregar uma linguagem apenas compreensível para os licenciados em direito ou em ciências económicas, provar-se-á com facilidade que as massas devem ser dirigidas. Mas se se fala numa linguagem clara, se se não está obcecado pela vontade perversa de confundir as cartas, de se desembaraçar do povo, então se perceberá que as massas compreendem tudo, captam todas as astúcias. Recorrer a uma linguagem técnica significa que se quer considerar as massas como profanas. Essa linguagem dissimula mal o desejo dos conferencistas de enganar o povo, de o deixar de fora. A empresa de obscurantismo da linguagem é uma máscara por detrás da qual se perfila uma mais ampla empresa de espoliação. Pretende-se ao mesmo tempo arrebatar ao povo os seus bens e a sua soberania. Tudo se pode explicar ao povo em condições, para que ele compreenda realmente. E se se pensa que não se necessita dele, que pelo contrário ameaça romper a boa marcha das múltiplas sociedades privadas e de responsabilidade limitada, cujo fim é tornar o povo ainda mais miserável, o problema, então, está truncado.

Se se pensa que pode dirigir-se perfeitamente um país sem que o povo meta o nariz, se se pensa que o povo com a sua presença perturba o jogo, seja porque o atrasa ou porque pela sua natural inconsciência o sabote, não deve haver nenhuma dúvida: é necessário afastar o povo. Ora acontece que o povo, quando é convidado para a direcção do país, não atrasa mas acelera o movimento. Nós, os argelinos, temos tido, no decurso da guerra, a oportunidade e a sorte de apalpar as coisas. Em certas regiões rurais, os responsáveis político-militares da revolução enfrentaram, com efeito, situações que exigiram soluções radicais. Abordaremos algumas dessas situações.

No decurso dos anos de 1956-1957, o colonialismo francês proibiu certas zonas, e a circulação das pessoas nessas regiões estava estritamente regulamentada. Os camponeses não tinham, pois, a possibilidade de se dirigirem à cidade para renovar as suas provisões. Os merceeiros somaram grandes lucros durante esse período. O chá, o café, o açúcar, o tabaco e o sal alcançaram preços exorbitantes. O mercado negro triunfava com singular insolência. Os camponeses que não podiam pagar em dinheiro, hipotecavam as suas colheitas, as suas terras ou desfaziam em pedaços o património familiar e, numa segunda fase, já trabalhavam por conta do merceeiro. Os comissários políticos, quando tomaram consciência desse perigo, reagiram de forma imediata. Assim, restituiu-se um sistema racional de abastecimento: o merceeiro que vai à cidade está obrigado a fazer as suas compras nos armazéns de donos nacionalistas, que lhe passam uma factura com a indicação dos preços das mercadorias. Quando o retalhista chega ao aduar deve apresentar-se antes de mais ao comissário político, que controla a factura, fixa a margem dos lucros e determina o preço de venda. Os preços estabelecidos são anunciados na tenda e um membro do aduar, uma espécie de inspector, está presente para informar o fellah sobre os preços por que devem ser vendidos os produtos. Mas o retalhista descobre ràpidamente uma forma de lucro e, após três ou quatro dias, declara que se esgotaram as suas existências. À socapa, ele retoma o seu negócio e continua a venda no mercado negro. A reacção da autoridade político- -militar foi radical. Formularam-se importantes sanções; as multas recolhidas e pagas no cofre da aldeia serviram para obras sociais ou de interesse colectivo. Algumas vezes, foi decidido encerrar durante algum tempo o comércio. E, em caso de reincidência, os fundos do comércio eram imediatamente embargados e elegia-se um comité de gestão para administrar, entregando ao ex-proprietário uma mensalidade.

A partir destas experiências, explicou-se ao povo o funcionamento das grandes leis económicas baseando-se em casos concretos. A acumulação do capital deixou de ser uma teoria para se converter num comportamento muito real e presente. O povo compreendeu como a partir do comércio se pode enriquecer e valorizar esse comércio. Apenas, então, os camponeses contarão como esse merceeiro os servia e quais as taxas de usura; outros recordarão como foram expulsos das suas terras e como deixaram de ser donos para passarem a ser criados. À medida que o povo compreende melhor, faz-se mais vigilante, mais consciente de que tudo depende dele e de que a sua salvação reside na sua coesão, no conhecimento dos seus interesses e na identificação dos seus inimigos. O povo compreende que a riqueza não é o fruto do trabalho, mas o resultado de um roubo organizado e protegido. Os ricos deixam de ser homens respeitáveis, tornam-se bestas carnívoras, chacais e corvos que chafurdam no sangue do povo. Noutra perspectiva, os comissários políticos decidiram que já ninguém trabalha para ninguém. A terra é de quem a trabalha. É um princípio que se converteu em lei fundamental da revolução argelina. Os proprietários que ocupavam trabalhadores agrícolas foram obrigados a dar participação aos seus antigos trabalhadores.

Verificou-se, então, que o rendimento por hectare triplicava, apesar dos assaltos numerosos dos franceses, dos bombardeios aéreos e da dificuldade de aquisição de adubos. Os fellahs que, no momento da colheita, podiam apreciar e pesar os produtos obtidos, compreenderam esse fenómeno. Descobriram fàcilmente que o trabalho não é uma simples noção, que a escravidão não permite o trabalho, que o trabalho supõe a liberdade, a responsabilidade e a consciência.

Nessas regiões onde pudemos realizar experiências edificantes, onde assistimos à construção do homem pela instituição revolucionária, os camponeses compreenderam muito claramente o princípio que estabelece que se trabalha com mais gosto quando se compromete mais lucidamente no esforço. Pode-se fazer entender às massas que o trabalho não é um dispêndio de energias, nem o funcionamento de certos músculos, mas que se trabalha mais com o cérebro e com o coração do que com os músculos e o suor. Igualmente, nessas regiões libertadas e ao mesmo tempo excluídas do antigo circuito comercial, houve necessidade de modificar a produção, dirigida antes sòmente para as cidades e para exportação. Estabeleceu-se uma produção de consumo para o povo e para as unidades do exército de libertação nacional. Quadruplicou-se a produção de lentilhas e organizou-se o fabrico de carvão. Os legumes e o carvão dirigiam-se das regiões do norte para o sul através das montanhas, enquanto as zonas do sul enviavam carne para o norte. Foi a F. L. N. que formou essa coordenação e implantou o sistema de comunicações. Não tínhamos técnicos nem planificadores vindos das grandes escolas ocidentais. Mas nessas regiões libertadas, a ração diária alcançava a cifra até então desconhecida de 3.200 calorias. O povo não se contentou em triunfar desse modo. Ele colocou problemas teóricos. Por exemplo: por que não viam certas regiões uma laranja antes da guerra de libertação, quando anualmente se expediam milhares de toneladas para o estrangeiro? Por que eram as uvas desconhecidas para um grande número de argelinos, quando milhões de cachos faziam as delícias dos povos europeus? O povo possui agora uma noção mais exacta do que lhe pertence. O povo argelino sabe agora que é o proprietário exclusivo do solo e do subsolo do seu país. E se alguns não compreendem a decisão da F. L. N. de não tolerar nenhuma violação dessa propriedade e a sua feroz vontade de recusar qualquer transacção por uma questão de princípios, uns e outros fariam bem em recordar que o povo argelino é hoje um povo adulto, responsável, consciente. Em resumo, o povo argelino é um povo dono de si próprio.

Se temos utilizado o exemplo argelino para esclarecer os nossos pontos de vista, não é para enaltecer o nosso povo, mas simplesmente para mostrar a importância que teve a sua luta até chegar a uma verdadeira tomada de consciência. É, claro que outros povos chegaram a outros resultados por vias diferentes. Na Argélia, agora o sabemos melhor, a prova de força era inevitável, mas outras regiões conduziram os seus povos aos mesmos resultados através da luta política e do trabalho de consciencialização realizado pelo partido. Na Argélia, compreendemos que as massas estão à altura dos problemas que as preocupam. Num país-subdesenvolvido, a experiência demonstra que o importante não é que trezentas pessoas concebam e realizem, mas que todos, ainda que o tempo dispendido se torne no dobro ou no triplo, compreendam e realizem. Na verdade, o tempo perdido em explicar, o tempo «perdido» em humanizar o trabalhador, será recuperado na execução. As gentes devem saber para onde vão e por que razões. O político não deve ignorar que o futuro permanecerá fechado enquanto a consciência do povo for rudimentar, primária, opaca. Nós, políticos africanos, devemos ter ideias muito claras sobre a situação do nosso povo. Mas essa lucidez deve ser profundamente dialéctica. O despertar de todo o povo não se fará de uma só vez, a sua dedicação radical à obra de edificação nacional será linear, primeiro porque as vias de comunicação e os meios de transmissão estão pouco desenvolvidos e depois porque a temporalidade deve deixar de ser a do instante ou a da próxima colheita para se converter na do mundo; porque, por fim, o desânimo instalado muito profundamente no cérebro pelo domínio colonial encontra-se sempre à flor da pele. Mas não devemos ignorar que a vitória sobre os laços de menor resistência, heranças do domínio material e espiritual do país, é uma necessidade que nenhum governo poderia dissipar. Vejamos o exemplo do trabalho no regime colonial. O colono não deixou nunca de afirmar que o indígena é vagaroso. Agora, em alguns países independentes, ouvimos os quadros repetir essa acusação. Na verdade, o colono queria que o escravo fosse entusiasta. Queria, por uma espécie de mistificação que constitui a mais sublime alienação, persuadir o escravo de que a terra que trabalha lhe pertence, que as minas onde perde a sua saúde são sua propriedade. O colono esquecia que ia enriquecendo com a agonia do escravo. Praticamente, o colono dizia ao colonizado: «Mata-te, mas que eu enriqueça». Agora, devemos proceder de outra maneira. Não devemos dizer ao povo: «Mata-te, mas que o país se enriqueça.» Se desejamos aumentar o produto nacional, diminuir a importação de certos produtos inúteis ou nocivos, aumentar a produção agrícola e lutar contra o analfabetismo, temos de explicar. É necessário que o povo compreenda a importância do que está em jogo. A causa pública deve ser a causa do público. Desemboca-se, pois, na necessidade de multiplicar as células de base. Com muita frequência, é verdade, instalam-se no cume e sempre na capital organismos nacionais: a União das Mulheres, a União dos Jovens, os sindicatos, etc.... Faz falta uma base, células que dão precisamente o conteúdo e o dinamismo. As massas devem poder reunir-se, discutir, propor, receber instruções. Os cidadãos devem ter a possibilidade de falar, de se expressarem, de inventar. A reunião da célula, a reunião do comité, é um acto litúrgico. É uma oportunidade soberba que o homem tem para ouvir e dizer. Em cada reunião, o cérebro multiplica as suas vias de associação, descobre-se um panorama cada vez mais humanizado.

A grande proporção de jovens nos países subdesenvolvidos coloca ao governo problemas específicos que é necessário abordar com lucidez. A juventude urbana inactiva e frequentemente analfabeta, entrega-se a todo o género de experiências dissolventes. À juventude subdesenvolvida oferecem-se quase sempre as distracções dos países industrializados. Normalmente, com efeito, existe homogeneidade entre o nível mental e material dos membros de uma sociedade e os prazeres de que beneficia essa sociedade. Mas, nos países subdesenvolvidos, a juventude dispõe de distracções pensadas para os países capitalistas: romances policiais, máquinas caça-níqueis, fotografias obscenas, literatura pornográfica, filmes proibidos aos menores de dezasseis anos, e sobretudo, o álcool.... No Ocidente, o agregado familiar, a escolaridade, o nível de vida relativamente elevado das massas trabalhadoras, servem de barreira à acção nefasta destas distracções. Mas num país africano, onde o desenvolvimento mental é diferente, onde o choque violento dos mundos quebrou consideràvelmente as velhas tradições e deslocou o universo da percepção, a afectividade do jovem africano, a sua sensibilidade, estão à mercê das diferentes agressões contidas na cultura ocidental. A família mostra-se a cada passo incapaz de opor a essas violências a estabilidade e a homogeneidade.

Neste campo, o governo deve servir de filtro e de medianeiro. Os comissários encarregados da juventude nos países subdesenvolvidos cometem frequentemente erros. Concebem o seu papel à maneira dos comissários encarregados da juventude nos países já evoluídos. Falam de fortalecer a alma, de desenvolver o corpo, de facilitar a prática de qualidades desportivas. Em nossa opinião, devem cuidar desta concepção. A juventude de um país subdesenvolvido é habitualmente uma juventude preguiçosa. Primeiro, deve dar-se-lhe ocupação. Por isso, o comissário para a juventude deve depender institucionalmente do ministério do trabalho. Este ministério, que é uma necessidade num país subdesenvolvido, funciona em estreita colaboração com o ministério de planificação, outra necessidade num país subdesenvolvido. A juventude africana não se deve dirigir aos estádios, mas ao campo e às escolas. O estádio não é esse sítio de exibição instalado nas cidades, mas um espaço no meio das terras que se cultivam, que se trabalha e se oferece à nação. A concepção capitalista do desporto é fundamentalmente diferente da que deveria existir num país subdesenvolvido. O político africano não se deve preocupar em formar desportistas, mas homens conscientes que, aliás, sejam desportistas. Se o desporto não se integra na vida nacional, isto é, na construção nacional, se se formam desportistas nacionais e não homens conscientes, depressa se verificará a ambição do desporto pelo profissionalismo e pelo comércio. O desporto não deve ser um jogo, uma distracção para brindar a burguesia das cidades. A tarefa mais importante é compreender a todo o momento aquilo que se passa no país. Não devemos cultivar o excepcional, procurar o herói, outra forma de «leader». É necessário elevar o povo, consciencializá-lo, enriquecê-lo, dis- tingui-lo, humanizá-lo.

Voltamos a cair na obsessão que gostaríamos ver compartilhada por todos os políticos africanos, a necessidade de esclarecer o esforço popular, de iluminar o trabalho, de o desembaraçar da sua opacidade histórica. Ser responsável num país subdesenvolvido é saber que tudo descansa em definitivo na educação das massas, na elevação do pensamento, no que costuma chamar-se, um pouco apressadamente, a politização.

Acredita-se, com frequência e com criminosa leviandade, que politizar as massas é dirigir-lhes episodicamente um grande discurso político. Pensa-se que basta o «leader» ou um dirigente falar em tom doutoral das grandes coisas da actualidade para cumprir esse imperioso dever de politização das massas. Mas politizar é abrir o espírito, despertar o espírito, dar luz ao espírito. É, como dizia Césaire: «inventar almas». Politizar as massas não é, não pode ser, fazer apenas um discurso político. É contribuir com todas as forças para a compreensão das massas de que tudo depende delas, que se nós estagnamos é por sua culpa e se avançamos também é por elas, que não" há demiurgo, que não há qualquer homem ilustre responsável por tudo, que o demiurgo é o povo e que as mãos mágicas são unicamente as mãos do povo. Para realizar essas coisas, para as incarnar verdadeiramente, é necessário descentralizar em extremo. A circulação do alto à base e da base ao alto deve ser um princípio rígido, não por preocupação de formalismo, mas porque simplesmente o respeito desse princípio é a garantia da salvação. É da base que sobem as forças que dinamizam o alto e lhe permitem dialècticamente dar um novo passo mais adiante. Também neste caso os argelinos compreenderam ràpidamente estas coisas porque nenhum membro colocado no alto teve a possibilidade de se revestir de qualquer missão de salvação. É a base que se estabelece na Argélia e essa base não ignora que sem o seu combate quotidiano, heróico e difícil, o alto não se suportaria. Como sabe também que sem o alto e sem uma direcção a base se dispersaria na incoerência e na anarquia. O alto tira o seu valor e a sua solidez da existência do povo no combate. Literalmente, é o povo que se entrega livremente ao alto e não este que tolera o povo.

As massas devem saber que o governo e o partido estão ao seu serviço. Um povo digno, isto é, consciente da sua dignidade, é um povo que não esquece nunca essas evidências. Durante a ocupação colonial, disse-se ao povo que era necessário dar a sua vida pelo triunfo da dignidade. Mas os povos africanos compreenderam depressa que a sua dignidade não era somente impugnada pelo ocupante. Os povos africanos compreenderam seguidamente que havia uma equivalência absoluta entre a dignidade e a soberania. Na verdade, um povo digno e livre é um povo soberano. Um povo digno é um povo responsável. E de nada serve «demonstrar» que os povos africanos são infantis ou débeis. Um governo e um partido têm o povo que merecem. E, num prazo mais ou menos longo, também o povo tem o governo que merece.

A experiência concreta em certas regiões comprova estas posições. No decurso de reuniões, acontece por vezes que alguns militantes, para resolverem os problemas difíceis, referem-se à fórmula: «não existe mais do que...» Nesta redução voluntarista, onde culminam perigosamente espontaneidade, sincretismo simplificador, falta de elaboração intelectual, triunfa-se com frequência. Cada vez que encontramos esta abdicação da responsabilidade num militante não basta dizer-lhe que está equivocado. É necessário fazê-lo responsável, convidá-lo a chegar ao fim do seu raciocínio e fazer-lhe compreender o carácter atroz, inumano e estéril desse «não existe mais do que...»

Ninguém possui a verdade, nem o militante nem o dirigente. A procura da verdade nas situações locais é assunto colectivo. Alguns têm uma experiência mais rica, elaboram mais ràpidamente o seu pensamento, puderam estabelecer no passado um maior número de associações mentais. Mas devem evitar sufocar o povo, porque o êxito da decisão adoptada depende da participação coordenada e consciente de todo o povo. Ninguém pode retirar o seu alfinete do jogo. Todos serão mortos ou torturados e no quadro da nação independente todos terão fome e participarão do marasmo. O combate colectivo supõe uma responsabilidade colectiva na base e uma responsabilidade directiva no alto. Sim, é preciso comprometer todo o mundo no combate pela comum salvação. Não existem mãos puras, não há inocentes, não há espectadores. Fazemos todos por meter as mãos nos pântanos do nosso solo e no vazio tremendo dos nossos cérebros. Todo o espectador é um cobarde ou um traidor.

O dever de uma direcção é ter as massas com ela. Ora, a adesão supõe a consciência, a compreensão da missão a cumprir, uma intelectualização ainda que seja embrionária. Não se deve enfeitiçar o povo, não é preciso dispensá-lo na emoção e na confusão. Apenas os países subdesenvolvidos dirigidos por elites revolucionárias saídas do povo podem permitir, hoje, o acesso das massas ao cenário da história. Mas, uma vez mais, devemos opor-nos vigorosa e definitivamente ao ressurgimento de uma burguesia nacional, de uma classe de privilegiados. Politizar as massas é tomar presente a nação inteira em cada cidadão. É fazer da experiência da nação a experiência de cada cidadão. Como o recordou muito oportunamente o presidente Sekou Touré na sua mensagem ao Segundo Congresso de Escritores Africanos:

«No campo do pensamento, o homem pode pretender ser o cérebro do mundo, mas no plano da vida concreta, onde qualquer intervenção afecta o ser físico e espiritual, o mundo é sempre o cérebro do homem, porque é nesse nível que te encontram a totalização das potências e unidades pensantes, as forças dinâmicas do desenvolvimento e do aperfeiçoamento, é ali onde se opera a fusão das energias «onde se inscreve em definitivo a soma dos valores intelectuais do homem.»

A experiência individual, por ser nacional, maillon da existência nacional, deixa de ser individual, limitada, restrita e pode desembocar na verdade da nação e do mundo. Do mesmo modo que na fase de luta cada combatente tinha a nação ao alcance das mãos, na fase da construção nacional cada cidadão deve continuar, na acção de todos os dias, associado à totalidade da nação, incarnando a verdade constantemente dialéctica da nação, propugnando aqui e agora pelo triunfo do homem total. Se a construção de uma ponte não enriquece a consciência dos que nela trabalham, vale mais que não He construa a ponte, que os cidadãos continuem a atravessar o rio a nado ou em barcaças. A ponte não deve cair de um pára-quedas, não deve ser imposta por um deus ex machina no panorama social, mas deve surgir, pelo contrário, dos músculos e do cérebro dos cidadãos. E, bem entendido, farão falta talvez engenheiros e arquitectos estrangeiros, mas os responsáveis locais do partido devem estar presentes para que a técnica se infiltre no deserto cerebral do cidadão, para que a ponte, nos seus pormenores e no seu conjunto, seja desejada, concebida e assumida. É preciso que o cidadão se aproprie da ponte. Apenas, nessa altura, tudo é possível.

Um governo que se proclama nacional deve assumir a totalidade da nação e nos países subdesenvolvidos a juventude representa um dos sectores mais importantes. Deve, pois, elevar-se e esclarecer-se a consciência dos jovens. É essa juventude que encontramos no exército nacional. Se o trabalho de explicação se fez ao nível dos jovens, se a União Nacional da Juventude cumpriu a sua tarefa de integrar a juventude na nação, poderão evitar-se, então, os erros que hipotecaram e minaram o futuro das repúblicas da América Latina. O exército não é nunca uma escola de guerra, mas uma escola de civismo, uma escola política. O soldado de uma nação adulta não é um mercenário, mas um cidadão que defende a nação através das armas. Por isso, é fundamental que o soldado saiba que está ao serviço de um país e não de um oficial, por mais prestigioso que este seja. Deve aproveitar-se o serviço nacional, civil e militar, para elevar o nível da consciência nacional, para destribalizar e unificar. Num país subdesenvolvido deve fazer-se, o mais ràpidamente possível, por mobilizar homens e mulheres. O país subdesenvolvido deve abster-se de perpetuar as tradições feudais que consagram a prioridade do elemento masculino sobre o elemento feminino. As mulheres receberão um lugar idêntico ao dos homens, não apenas nos artigos da constituição política, mas na vida quotidiana, na fábrica, na escola, nas assembleias. Se nos países ocidentais se aquartelam os militares, isso não quer dizer que seja sempre a melhor fórmula. Não é indispensável militarizar os recrutas. O serviço pode ser civil ou militar e de todas as maneiras é recomendável que cada cidadão capaz e apto possa ingressar, em qualquer momento, numa unidade de combate e defender as conquistas nacionais e sociais.

As grandes obras de interesse colectivo deverão ser executadas pelos soldados. É um meio prodigioso para activar as regiões inertes, para dar a conhecer a um maior número de cidadãos as realidades do país. Deve evitar-se que a conversão do exército num corpo autónomo que cedo ou tarde, ocioso e sem missão, se dedicará a «fazer política» e a ameaçar o poder. Os generais de salão, à força do frequentarem as antecâmaras do poder, sonham com os pronunciamientos. O único meio de o evitar é politizar o exército, quer dizer, nacionalizá-lo. Igualmente, é urgente multiplicar as milícias. No caso de guerra, é a nação inteira que combate e trabalha. Não deve haver soldados do ofício e o número de oficiais de carreira deve reduzir-se ao mínimo. Primeiro, porque com muita frequência os oficiais são escolhidos entre os quadros universitários que poderiam ser muito mais úteis noutro lado: um engenheiro é mil vezes mais indispensável à nação que um oficial. Depois, porque deve evitar-se a cristalização do um espírito de classe. Temos visto nas páginas anteriores que o nacionalismo, esse canto magnífico que sublevou as massas contra o opressor, se desintegra após a independência. O nacionalismo não é uma doutrina política, não é um programa. Se se quer poupar realmente no país esse retrocesso, essas interrupções, essas falhas, deve passar-se rapidamente da consciência nacional à consciência política e social. A nação não existe em nenhum lado, se não é um programa elaborado por uma direcção revolucionária e recolhido lucidamente e com entusiasmo pelas massas. Deve situar-se constantemente o esforço nacional no quadro geral dos países subdesenvolvidos. A frente da fome e a obscuridade, a frente da miséria e a consciência embrionária devem estar presente no espírito e nos músculos dos homens e das mulheres. O trabalho das massas, a sua vontade de vencer as calamidades que as excluiram da história do pensamento humano durante séculos, devem fundar-se sobre todos os povos subdesenvolvidos. As notícias que interessam aos povos do Terceiro Mundo não são as que se referem ao matrimónio do rei Balduíno ou aos escândalos da burguesia italiana. O que queremos saber são as experiências dos argentinos ou dos birmaneses no quadro da luta contra o analfabetismo ou contra as tendências ditatoriais dos dirigentes. Estes são elementos que nos fortalecem, nos instruem e decuplicam a nossa eficácia. Como se vê, um governo que queira de facto libertar política e socialmente o povo, necessita de um programa. Programa económico, mas também doutrina sobre a distribuição das riquezas e sobre as relações sociais. Na verdade, faz falta uma concepção do homem, uma concepção do futuro da humanidade. O que quer dizer que nenhuma fórmula demagógica, nenhum cumplicidade com o antigo ocupante, substitui qualquer programa. Os povos, em princípio inconscientes, mas cada vez mais lúcidos, exigirão vigorosamente esse programa. Os povos africanos, os povos subdesenvolvidos — ao contrário do que possa acreditar-se— edificam com rapidez a sua consciência política e social. O que pode ser grave é que com muita frequência chegam a essa consciência social antes do período nacional. Assim é possível encontrar nos países subdesenvolvidos a exigência violenta de uma justiça social que, paradoxalmente, está aliada a um tribalismo talvez primitivo. Os povos subdesenvolvidos têm um comportamento de gente esfomeada. O que significa que os dias de quem se diverte em África estão rigorosamente contados. Queremos afirmar com isto que o seu poder não poderia prolongar-se por mais tempo. Uma burguesia que dá às massas o único alimento do nacionalismo, fracassa na sua missão e enreda-se necessàriamente numa sucessão de desventuras. O nacionalismo, se não se toma explícito, se não se enriquece e se aprofunda, se não se transforma ràpidamente em consciência política e social, em humanismo, conduz a um beco sem saída. A direcção burguesa dos países subdesenvolvidos limita a consciência nacional num formalismo esterilizante. Apenas a dedicação maciça dos homens e mulheres em tarefas inteligentes e fecundas dá conteúdo e densidade a esta consciência. Se não for assim, a bandeira e o palácio do governo deixam de ser símbolos da nação. A nação alheia-se desses sítios iluminados e fictícios e refugia-se no campo, onde se reveste de vida e dinamismo. A expressão viva da nação é a consciência dinâmica de todo o povo. É a prática coerente e inteligente de homens e mulheres. A construção colectiva de um destino supõe uma responsabilidade à altura da história. De outro modo, é a anarquia, a repressão, o aparecimento de partidos tribalizados, do federalismo, etc. O governo nacional, se quer ser nacional, deve governar pelo povo e para o povo, pelos deserdados e para os deserdados. Nenhum «leader», qualquer que seja o seu valor, pode substituir a vontade popular, e o governo nacional deve, antes de se preocupar com o prestígio internacional, devolver a dignidade a cada cidadão, povoar os cérebros, encher os olhos de coisas humanas, desenvolver um panorama verdadeiramente humano, habitado por homens conscientes e soberanos.


Notas de rodapé:

(1) Mamadou Dia, «Nations africaínes et solvdaritè mondiale», PUP, pág. 140. (retornar ao texto)

(2) Mamadou Dia, obra cit. (retornar ao texto)

(3) Povo de raça negra fixado principalmente no Senegal. (N. do T.) (retornar ao texto)

(4) Povo africano de origem berbere ou etíope que está hoje fixado, sobretudo, na Guiné e no Mali. (N. do T.) (retornar ao texto)

(5) Fecundação realizada entre gâmetas que estão separar dos, mas que tiveram origem comum (no mesmo invólucro celular). (N. do T.) (retornar ao texto)

(6) Personagem poderosa e divina dos selvagens da América do Norte. (N. do T.) (retornar ao texto)

(7) Palavra árabe que significa montanha. (N. do T.) (retornar ao texto)

Inclusão 20/04/2014