Em Defesa da Revolução Africana

Frantz Fanon


Quarta parte: A caminho da libertação da África
Os intelectuais e os democratas franceses perante a Revolução Argelina(1)


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Um dos primeiros deveres dos intelectuais, reunidos na ocorrência sob a designação de intelligentsia, e dos elementos democráticos dos países colonialistas é apoiar sem reservas a reivindicação nacional dos povos colonizados. Esta conduta fundamenta-se em dados teóricos muito importantes: defesa de uma ideia de homem, contestada no Ocidente, recusa de participar institucionalmente na degradação e na negação de certos valores, comunidade de interesses entre as classes trabalhadoras do país conquistador e o conjunto da população do país conquistado e dominado e, finalmente, preocupação de impor ao respectivo governo o respeito pelo direito dos povos a disporem de si próprios.

Este apoio e esta solidariedade resumem-se, antes do período da luta armada, à realização de alguns meetings anuais e à votação de moções. Algumas vezes, na sequência de uma repressão subitamente muito feroz, sinal precursor de uma repressão mais sistematizada, mais global (no caso da Argélia, as eleições de Naegelen e a conspiração de 1950-1951), aparecem campanhas de imprensa, declarações, avisos e apelos.

É preciso assinalar que nenhuma tentativa de explicação é dada ao nível do conjunto da população do país colonialista. Porque não tem influência sobre o povo, sobre o país, a esquerda democrática, fechada em si mesma, convence-se, ao longo de artigos ou estudos, de que Bandoeng enterrou o colonialismo. Ora é o povo real, os camponeses e os operários, que é preciso informar. Incapaz de explicar, de comentar, à escala de milhões de operários e de camponeses do povo colonialista, as realidades do drama que começa, a esquerda encontra-se reduzida ao papel de Cassandra. Anuncia os cataclismos, mas a falta de preparação da opinião pública faz com que essas profecias, inexplicáveis no período pré-insurrecional, sejam assimiladas à cumplicidade no momento da explosão.

Uma ineficácia dolorosa

Assim, no caso particular da Argélia, depois da fase aguda pré-insurrecional (1952-1953), quando começa o período (sabotagens, atentados) da fase armada, vamos encontrar-nos perante uma esquerda desamparada e paradoxalmente apanhada desprevenida.

Os elementos democráticos e os intelectuais franceses conhecem os dados do problema. Por tê-los visto de muito perto e tê-los estudado durante muito tempo, conhecem a sua complexidade, profundidade e tensão. Mas todo o saber se revela vão, porque incomensurável relativamente às ideias simples que correm entre o povo.

Atulhada por este saber inutilizável, a esquerda beneficia de um estatuto de adivinho. Durante muito tempo repetirá aos governantes: “estavam prevenidos, tudo isto acontece por vossa culpa”.

Nessa fase efervescente de alinhamento de forças e de organização da luta armada do povo colonizado, assiste-se a uma quase comunicação entre o povo revoltado e os elementos democráticos. É que, muitas vezes, os intelectuais e os democratas conheceram pessoalmente os atuais chefes da luta armada. Instala-se, pois, entre eles uma espécie de cumplicidade aparente. Mas muito rapidamente essa pseudo-solidariedade ativa será varrida pelos acontecimentos. Com efeito, no decurso do segundo período, caracterizado por escaramuças, emboscadas e atentados, a culpabilidade tão generosamente lançada sobre os responsáveis oficiais tende a deslocar-se. A repressão aprofunda-se, organiza-se, torna-se mais subtil. As câmaras de tortura aparecem. Em todo o território nacional argelino são assassinados dezenas e centenas de patriotas.

O povo concreto, os homens e as mulheres, as crianças e os velhos do país colonizado apercebem-se facilmente de que existir no sentido biológico da palavra e existir enquanto povo soberano coincidem. A única saída possível, a única via de salvação para este povo, é responder tão energicamente quanto possível à empresa de genocídio conduzida contra ele.

A resposta torna-se cada vez mais absoluta.

O nacionalismo e a “barbárie”

É aqui que se situa um duplo fenómeno. Em primeiro lugar, uma propaganda ultra-chauvinista, nacionalista, patriótica, que mobiliza os elementos racistas implícitos da consciência coletiva do povo colonialista, traz um novo elemento. A partir de então torna-se evidente que já não é possível apoiar o colonizado sem do mesmo modo se opor à via nacional. A luta contra o colonialismo torna-se luta contra a nação. A guerra de reconquista é assumida pelo conjunto do país colonialista, e os argumentos anticolonialistas perdem a sua eficácia, tornam-se teorias abstratas e chegam mesmo a desaparecer da literatura democrática.

No caso da Argélia, foi a partir de Março de 1956, com a chamada do contingente, que a nação francesa tomou nas suas mãos a guerra de reconquista colonial. As manifestações de incorporados foram nessa altura os últimos sintomas de uma guerra considerada impopular a nível doutrinal.

A partir de 1956, a guerra da Argélia é aceite pela nação. A França quer a guerra, dirão explicitamente Guy Mollet e Bourgès-Maunoury; e o povo parisiense, a 14 de Julho de 1957, expressará aos paraquedistas torcionários de Massu o grande reconhecimento da pátria. Os liberais abandonam a luta nesta fase. A acusação de traição que ameaça os adversários da guerra da Argélia torna-se uma arma poderosa nas mãos do Governo Francês. Assim pudemos ver no princípio do ano de 1957 um grande número de democratas calar-se ou ser ceifado pela vaga “vingadora” e elaborar um patriotismo elementar mal estruturado, dominado pelo racismo, violento, totalitário, em suma, fascista.

O Governo Francês encontrará o seu segundo argumento naquilo a que se chama terrorismo. As bombas em Argel serão exploradas pelo serviço de propaganda. Crianças feridas, inocentes, que não se chamam Bourgeaud ou que não correspondem à clássica definição do “feroz colonialista”, põem aos democratas franceses problemas inesperados. A esquerda está abalada: Sakamody reforçará este recuo. Dez civis franceses são mortos numa emboscada e toda a esquerda francesa, num sobressalto unânime, brada: já não continuaremos convosco. A propaganda orquestra-se, insinua-se nos espíritos e desmantela as convicções já largamente abaladas. O conceito de barbárie aparece e fica assente que a França combate a barbárie na Argélia.

Uma grande parte dos intelectuais, a quase totalidade dessa esquerda democrática, desaba e impõe ao povo argelino as suas condições: condenem Sakamody e as bombas e nós mantemos o nosso apoio amigo.

Na madrugada do quarto ano da guerra de libertação nacional, face à nação francesa e face às bombas da Rue Michelet, a esquerda francesa torna-se cada vez mais ausente.

Alguns refugiaram-se no silêncio, outros escolheram certos temas que, episodicamente, reaparecem. A guerra da Argélia deve cessar porque fica cara (a guerra da Argélia torna-se de novo impopular porque custa, simplesmente, 1.200 bilhões de francos), isola a França, ou permite a sua substituição pelos Anglo-Saxões ou pelos Russos ou por Nasser etc.

Em França, sabe-se cada vez menos por que é que a guerra da Argélia deve acabar. Esquece-se cada vez mais que a França, na Argélia, espezinha a soberania popular, injuria o direito dos povos de dispor de si próprios, assassina milhares de homens e mulheres.

A guerra da Argélia tende a tornar-se, em França, no seio da esquerda, uma doença do sistema francês como a instabilidade ministerial; as guerras coloniais: um tique da França, uma parte do panorama nacional, um pormenor habitual.

II

Desde 1956, os intelectuais e os democratas franceses dirigem-se periodicamente a FLN. A maior parte das vezes, trata-se quer de conselhos políticos, quer de críticas a respeito de certa fisionomia da guerra de libertação. Esta atitude da intelligentsia francesa não deve ser interpretada como a consequência de uma solidariedade interna com o povo argelino. Esses conselhos e essas críticas explicam-se pelo desejo dificilmente reprimido de guiar, de orientar até o movimento de Libertação do oprimido.

Assim se compreende a oscilação constante dos democratas franceses entre uma hostilidade manifesta ou latente e a aspiração totalmente irreal de militar “ativamente até ao fim”. Semelhante confusão indica a falta de preparação para os problemas concretos e a não inserção dos democratas franceses no plano da vida política interna francesa.

Ao longo desta linha de oscilação, os democratas franceses, a margem da luta ou manifestando a vontade de a observar do interior, e mesmo de participar nela na qualidade de censores, de conselheiros, incapazes ou recusando-se a escolher um terreno preciso ou a lutar no interior do dispositivo francês, ameaçam e praticam a chantagem.

A pseudo justificação desta atitude é que, para ter uma influência sobre a opinião francesa, é preciso condenar certos fatos, rejeitar as excrecências inesperadas, manter a distância perante os “excessos”. Nesses momentos de crise, de confrontação, pede-se à FLN que oriente a violência e que a torne seletiva.

O mito da Argélia Francesa

A este nível, a reflexão permite-nos descobrir uma particularidade importante do facto colonial argelino. No interior de uma nação é clássico e banal identificar duas forças antagónicas: a classe operária e o capitalismo burguês. No país colonial esta distinção revela-se totalmente inadequada. O que define a situação colonial é bem mais o caráter indiferenciado que a dominação estrangeira apresenta. A situação colonial é em primeiro lugar uma conquista militar continuada e reforçada por uma administração civil e policial. Na Argélia, como em qualquer colónia, o opressor estrangeiro opõe-se ao autóctone como limite da sua dignidade, e define-se como contestação irredutível da existência nacional.

O estatuto do estrangeiro, do conquistador, do Francês na Argélia, é um estatuto de opressor. O Francês na Argélia não pode ser neutro ou inocente. Qualquer francês na Argélia oprime, despreza, domina. A esquerda francesa, que não pode fícar indiferente e impermeável aos seus próprios fantasmas, adota na Argélia, no período que antecede a guerra de libertação, posições paradoxais.

Que é o colonialismo?

Os democratas franceses, ao decidirem chamar colonialismo ao que nunca deixou de ser conquista e ocupação militar, simplificaram deliberadamente os fatos. O termo “colonialismo”, criado pelo opressor, é demasiado afetivo, demasiado emocional. É situar um problema nacional num plano psicológico. Por isso, no espirito destes democratas, o contrário de colonialismo não é de modo nenhum o reconhecimento do direito dos povos de dispor de si próprios, mas a necessidade à escala individual de comportamentos menos racistas, mais abertos, mais liberais.

O colonialismo não é um tipo de relações individuais, mas a conquista de um território nacional e a opressão de um povo; é tudo. Não é um certo comportamento humano ou uma modalidade de relações entre indivíduos. Atualmente, todo o francês na Argélia é um soldado inimigo. Enquanto a Argélia não ser independente, é preciso aceitar esta consequência lógica. Lacoste compreendeu ao “mobilizar à superfície” os franceses e francesas que vivem na Argélia.

No termo desta análise, apercebemo-nos de que, em vez de acusar a Frente de Libertação Nacional por algumas das suas ações urbanas, se deveria, pelo contrário, apreciar os esforços que ela impõe ao povo.

Foi por não terem entendido que o colonialismo é apenas uma dominação militar que os democratas franceses se encontram hoje no limite do paradoxo.

Vítimas do mito da Argélia Francesa, os partidos de esquerda criam no território argelino secções argelinas dos partidos políticos franceses. As palavras de ordem, os programas, os modos de luta, são idênticos aos da “metrópole”. Uma posição doutrinal, até há pouco incontestada, justificou esta atitude. Dizia-se que num pais colonial há entre o povo colonizado e a classe operária do país colonialista uma comunidade de interesses. A história das guerras de libertação levadas a cabo por povos colonizados é a história da não verificação desta tese.

O colonialismo não é Borgeaud

O povo argelino mostra-se refratário à imagística simplista que quer que o colonialista seja um tipo particular de homem facilmente reconhecível. Foi assim que se adiantou que nem todos os franceses na Argélia são colonialistas, ou que se estabeleceram graus no colonialismo. Ora, nem Borgeaud nem De Sérigny caracterizam totalmente o colonialismo francês na Argélia. O colonialismo francês, a opressão francesa na Argélia, formam um conjunto coerente que não requer forçosamente a existência de Borgeaud. A dominação francesa é a totalidade das forças que se opõem à existência da nação argelina, e para o Argelino, concretamente, Blachette não é mais “colonialista” do que um agente da polícia, um guarda florestal ou um professor primário.

O Argelino sente globalmente o colonialismo francês, não por simplismo ou xenofobia, mas porque, realmente, todo o francês na Argélia mantém com o Argelino relações baseadas na força. Evocar casos particulares de franceses anormalmente gentis para com argelinos não modifica a natureza das relações entre um grupo estrangeiro que açambarcou os atributos da soberania nacional e o povo que se encontra privado do exercício do Poder. Nenhuma relação pessoal pode contradizer este dado fundamental: a nação francesa, por intermédio dos seus representantes, opõe-se à existência da nação argelina.

Nas colónias de enquadramento, o povo colonialista é representado por soldados, polícias e técnicos. O povo colonialista pode, nestas condições, refugiar-se na ignorância dos fatos e declarar-se inocente quanto à colonização. Nas colónias de povoamento esta fuga de si próprio torna-se impossível. Porque, segundo a célebre fórmula de um chefe de Estado francês, “não existe um só francês que não tenha um primo na Argélia”, toda a nação francesa está comprometida no crime contra um povo e é hoje cúmplice dos assassínios e das torturas que caracterizam a guerra da Argélia.

O autêntico democrata francês não deve estar contra Borgeaud ou contra Blachette, deve, sim, evitar escolher arbitrariamente alguns bodes expiatórios que não podem exprimir os cento e trinta anos de opressão colonialista. O democrata francês deve julgar e condenar o conjunto da colonização reconduzida à sua categoria de opressão militar e policial. É preciso que se convença de que todo o francês na Argélia reage como Borgeaud. Não existem, na Argélia, franceses cuja própria existência não seja justificada por essa dominação.

Porque não pode adotar esta atitude por falta de coragem ou erro de análise, o democrata francês refere-se constantemente à abstrações — o colonialismo em geral está a morrer, o colonialismo é desumano, a França deve manter-se fiel à sua história, esquecendo assim singularmente que o colonialismo constitui uma parte importante da história francesa.

O colonialismo é a organização da dominação de uma naçào após a conquista militar. A guerra de libertação não é um pedido de reformas, mas o esforço grandioso de um povo, a quem mumificaram, para reencontrar o seu génio, para retomar em suas próprias mãos a sua história e instalar-se como soberano.

Alguns franceses, no âmbito da OTAN, recusam-se a servir sob as ordens do general alemão Speidel, mas aceitam bater-se contra o povo argelino. Ora, em todo o rigor, a fidelidade ao espírito de resistência francesa exigiria que todo o francês a quem repugna servir às ordens de Speidel, coerente consigo mesmo, recusasse combater às ordens de Massu ou Salan.

III

Evidentemente, os governantes franceses têm razão quando pretendem que o problema argelino abala as próprias bases da República. Desde há alguns anos, o mito da Argélia Francesa foi submetido a uma rude prova, e na consciência francesa instalou-se uma dose de incerteza quanto à verdade desta tese.

Puderam registrar-se à escala internacional repercussões desta natureza. Todavia tais progressos não resolveram totalmente o problema da mistificação gerada por dezenas de anos de ensino mentiroso e de falsificação histórica sistematizada.

O preço da mistificação

Quando se analisam de perto as relações colonialistas que existiram entre a Argélia e a França, apercebemo-nos de que o território argelino, pelas próprias características da sua conquista, representou sempre para a França um prolongamento mais ou menos real. Em momento algum a França expressou nos mesmos termos o seu direito de propriedade sobre a África Negra ou sobre qualquer outra parcela do “Império Francês”. Foi possível decretar que a África Negra era terra francesa, mas nunca foi decidido que a África Negra fosse a França.

O direito da França em África referia-se sobretudo a um direito de propriedade, enquanto na Argélia desde o princípio que se afirmavam relações de identidade. Vimos que os democratas franceses, salvo raras exceções, adaptaram a sua atitude a esta ótica. Os partidos políticos franceses não esconderam a necessidade em que se encontravam de obedecer a esta mistificação. Laurent Casanova, num discurso aos estudantes comunistas proferido a 17 de Março de 1957 em Paris, respondendo às críticas que lhe eram dirigidas pela juventude comunista acerca da atitude do Partido Comunista Francês perante o problema argelino, justificava-se pedindo-lhes que tivessem em conta “a atitude espontânea das massas populares francesas face à questão”.

Porque durante cento e trinta anos a consciência nacional francesa se elaborou a partir de um princípio básico simples: a Argélia é a França, choca-se, hoje, no momento em que uma grande parte do povo francês se dá racionalmente conta de que o seu interesse vai no sentido do fim da guerra e do reconhecimento de um Estado argelino independente, com reações instintivas, passionais, anti-históricas.

Nunca o princípio que pretende que ninguém escraviza impunemente foi tão totalmente verdadeiro. Depois de ter domesticado o povo argelino durante mais de um século, a França encontra-se prisioneira da sua conquista e incapaz de se separar dela, de definir novas relações, de tomar novas orientações.

Um regateio odioso

Aliás, o grande erro seria considerar o problema resolvido com estas considerações psicológicas. Os confrontos com os representantes da esquerda francesa trazem ao de cima preocupações muito mais complexas. Assim, do ponto de vista preciso do futuro da Argélia independente, encontramo-nos perante duas exigências contraditórias, que, aliás, correspondem, numa escala mais elevada, à concepção maniqueísta do bem e do mal que há já alguns anos divide o Mundo.

A esquerda não comunista assegura-nos o seu apoio, promete-nos as suas intervenções, mas exige-nos a garantia de que a Argélia jamais se afundará no bloco comunista ou no bloco dito neutralista. O anticolonialismo destes democratas não é, pois, incondicional e sem reservas, mas supõe uma opção política precisa. Certamente que não lhes faltam argumentos. Trocar o colonialismo francês pelo “colonialismo” vermelho ou nasseriano parece-lhes uma operação negativa, porque, afirmam, na hora atual dos grandes conjuntos, é obrigatório um alinhamento, e os seus conselhos são bem claros: é preciso escolher o bloco ocidental.

Esta esquerda não comunista é geralmente reticente quando lhe explicamos que, de momento, o povo argelino pretende libertar-se do jugo colonialista francês. Recusando manter-se estritamente no plano da descolonização e da libertação nacional, a esquerda francesa não comunista conjura-nos a que conjuguemos os dois esforços: recusa do colonialismo francês e do comunismo soviético-neutralista.

Põe-se o mesmo problema, segundo um dinamismo inverso, com a esquerda francesa comunista. O Partido Comunista Francês, diz, não pode apoiar senão certos movimentos de libertação nacional, pois, que interesse teria para nós, comunistas franceses, a irrupção do imperialismo americano na Argélia? Também aqui nos pedem garantias, querem arrancar-nos promessas. Exigem condições.

Compreende-se que tais dificuldades incomodem a ação anticolonialista da esquerda francesa. É que a Argélia ainda não independente é já objeto de lutas de influência à escala internacional. Para quem é que a Argélia se vai então libertar? O povo argelino, desde há três anos, não deixa de repetir que se propõe libertar-se por sua própria conta, que o que é importante para ele é em primeiro lugar reconquistar a sua soberania, assegurar a sua autoridade, realizar a sua humanização, a sua liberdade económica e política; mas estas evidências não parecem ser aceites.

O povo argelino sofre terrivelmente com o seu nascimento para a independência e já lhe regateiam, com uma agressividade invulgar, a mais pequena parcela de apoio. É assim que não é raro ouvirmos certos franceses democratas dizerem-nos: ajudem-nos a ajudar-vos. O que significa claramente: dígam-nos um pouco para onde pensam dirigir-se depois.

Esta intimação, que se situa sempre à escala individual entre franceses e argelinos, representa certamente um dos aspectos mais dolorosos da luta pela independência. Alguns democratas franceses chocam-se por vezes com a sinceridade do combatente argelino. É que o caráter total da guerra que conduzimos repercute-se na maneira não menos radical de vivermos as relações individuais. E temos de confessar que não suportamos ver certos franceses, que tínhamos considerado amigos, comportarem-se connosco como negociantes e fazerem esta espécie de chantagem odiosa que é solidariedade associada a restrições fundamentais dos nossos objetivos.

Um desacordo fundamental

Se compararmos a atitude da esquerda francesa relativamente aos objetivos da nossa luta, vemos que nenhuma fração admite a eventualidade de uma libertação nacional real.

A esquerda não comunista concede que o estatuto colonial tem de desaparecer. Mas entre a liquidação do regime colonial reportada na ocorrência a um regime preferencial, com luta de castas no interior de um conjunto — e o reconhecimento de uma nação argelina, independente da França, essa esquerda interpôs uma multidão de etapes, de subetapes, de soluções originais, de compromissos.

É claro que para esta parte da esquerda o fim da guerra da Argélia deve implicar uma espécie de federalismo interno e de União Francesa renovada. O nosso desacordo com essa opinião francesa não é, pois, nem de ordem psicológica, nem de ordem tática, como alguns pretendem. Os radicais de esquerda, os socialistas minoritários e os MRP de esquerda não aceitaram a ideia de uma independência argelina. Assim as posições do género: estamos de acordo quanto ao fundo, mas não quanto aos métodos, são radicalmente falsas.

A esquerda comunista, por sua vez, ao mesmo tempo que proclama a necessária evolução dos países coloniais para a independência, exige a manutenção de laços particulares com a França. Estas posições manifestam claramente que mesmo os partidos ditos extremistas consideram que a França tem direitos na Argélia e que o levantar da dominação não deve obrigatoriamente ser acompanhado do desaparecimento de todos os laços. Esta disposição de espírito é apresentada sob as formas de um paternalismo tecnocrático, de uma chantagem com a regressão.

Sem laços com a França, auguram-nos, o que farão? Precisam de técnicos, de divisas, de máquinas... Até o quadro catastrófico de uma Argélia comida pelo deserto, infestada de pântanos e devastada pelas doenças é mobilizado para nos fazer refletir.

Os colonialistas, na sua propaganda, dizem ao povo francês: a França não pode viver sem a Argélia.

Os anticolonialistas franceses dizem aos Argelinos: a Argélia não pode viver sem a França.

Os democratas franceses nem sempre se apercebem do caráter colonialista, ou, para empregar um conceito novo, neocolonialista, da sua atitude.

A exigência de laços particulares com a França corresponde ao desejo de manter intactas estruturas coloniais. Trata-se aqui de uma espécie de terrorismo necessário a partir do qual se decide que nada de válido na Argélia poderia ser concebido ou realizado à margem da França. Com efeito, a reclamação de laços particulares com a França reconduz-se à vontade de manter eternamente a Argélia num estádio de Estado menor e protegido. Mas é também garantir certas formas de exploração do povo argelino. É incontestavelmente dar provas de uma grave incompreensão das perspectivas revolucionárias da luta nacional.

Será demasiado tarde?

É preciso que os democratas franceses superem as contradições que esterilizam as suas posições, se quiserem efetuar uma autêntica democratização com os colonialistas. Será na medida em que a opinião democrática francesa não puser reticências que a sua ação poderá ser eficaz e decisiva.

Porque a esquerda obedece inconscientemente ao mito da Argélia francesa, a sua ação contenta-se com visar uma Argélia onde reinasse mais justiça e liberdade, ou, na melhor das hipóteses, uma Argélia governada menos diretamente pela França. O chauvinismo passional da opinião francesa sobre a questão argelina pressiona esta esquerda, inspira-lhe uma prudência excessiva, abala os seus princípios e coloca-a numa situação paradoxal e rapidamente estéril.

O povo argelino pensa que a esquerda francesa não fez tudo o que devia no âmbito da guerra da Argélia. Para nós, nào se trata de acusar os democratas franceses, mas de chamar a sua atenção para certas atitudes que nos parecem opostas aos princípios do anticolonialismo.

Talvez não seja inútil lembrar a atitude da Internacional Socialista perante esta questão. Ninguém ignora que em 1956 a delegação francesa conduzida por Pineau foi condenada e que Bevan em 1957, quando do congresso socialista de Toulouse, exprimiu publicamente a sua decepção e a sua cólera perante o racismo e o colonialismo da SFIO.

Desde 1954, o povo argelino luta pela independência nacional. Trata-se de um território conquistado há mais de um século que exprime a sua vontade de se constituir em nação soberana. A esquerda francesa deve apoiar sem reserva este esforço. Nem a presença de uma minoria europeia, nem Sakamody podem ou devem enfraquecer a determinação de uma esquerda autêntica. Vimos que a propaganda de Lacoste não cessa de afirmar que a França, na Argélia, combate a barbárie. A esquerda deve mostrar-se impermeável a esta campanha e exigir o fim da guerra e o reconhecimento da independência da Argélia.

Vimos, porém, que alguns democratas utilizam o raciocínio seguinte: se querem que a nossa ajuda continue, condenem estes ou aqueles atos. Assim, a luta de um povo pela sua independência deve ser diáfana se quiser beneficiar do apoio dos democratas.

Paradoxalmente, reencontra-se aqui a atitude de Guy Mollet, que, para continuar a sua guerra, designa uma comissão de salvaguarda com a missão de apontar “excessos”, isolando espetacularmente os maus soldados do bom e justo e fecundo exército francês.

As tarefas da esquerda francesa

A FLN dirige-se a toda a esquerda francesa e pede-lhe neste quarto ano de guerra que se comprometa concretamente no combate pela paz na Argélia.

Em momento algum pode estar em questão para os democratas franceses juntarem-se às nossas fileiras ou traírem o seu país. Sem renegar a sua nação, a esquerda francesa deve lutar para que o governo do seu país respeite os valores que se chamam: direito dos povos de dispor de si próprios, reconhecimento da vontade nacional, liquidação do colonialismo, relações recíprocas e enriquecedoras entre povos livres.

A FLN dirige-se à esquerda francesa, aos democratas franceses, e pede-lhes que encorajem qualquer greve levada a cabo pelo povo francês contra a subida do custo de vida, os novos impostos, a restrição das liberdades democráticas em França, consequências diretas da guerra da Argélia.

A FLN pede à esquerda francesa que reforce a sua ação de informação e continue a explicar às massas francesas as características da luta do povo argelino, os princípios que a animam, os objetivos da Revolução.

A FLN saúda os franceses que tiveram a coragem de se recusar a pegar em armas contra o povo argelino e que estão atualmente na prisão.

Estes exemplos devem multiplicar-se, a fim de que seja claro para toda a gente, e em primeiro lugar para o Governo Francês, que o povo francês recusa esta guerra que é feita em seu nome contra o direito dos povos, pela continuação da opressão, contra o primado da liberdade.

continua>>>


Notas de rodapé:

(1) Esta serie de três artigos foi publicada cm El Moudjahid, de 1, 15 e 30 de Dezembro de 1957. (retornar ao texto)

Inclusão 05/07/2018