Em Defesa da Revolução Africana

Frantz Fanon


Quarta parte: A caminho da libertação da África
Descolonização e independência(1)


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Há mais de três anos que a França “se aguenta” na Argélia. Aguenta-se da maneira mais obstinada, mais exacerbada, a ponto de a memória de Clemenceau nunca ter sido, nas horas desastrosas de 1940, tantas vezes evocada.

A França falhou na Tunísia e em Marrocos, mas agarrou-se ao território argelino. Por razões diversas, o leque da opinião pública francesa, com raras exceções, honrou o exército, reivindicou a guerra da Argélia, preveniu os diferentes governos contra abandonos inaceitáveis na Argélia.

A despeito do cansaço que, episodicamente, se apodera das esferas políticas francesas a seguir aos quartos de hora infinitamente adiados de Lacoste, apesar de uma crise orçamental cada vez mais alarmante, apesar da explosão, à volta da guerra da Argélia, da quase totalidade dos partidos políticos, podemos admirar-nos de que, passados três anos, nenhuma força coerente e eficaz tenha aparecido para impor a paz aos colonialistas franceses.

Não deixaram de nos censurar a nossa diplomacia de arestas vivas. Lembram-nos de que Ho Chi Minh, nas horas mais trágicas da guerra da Indochina nunca deixou de distinguir entre o colonialismo e o povo francês. Até os exemplos do Presidente Bourguiba e dos irmãos do Istiqlal são evocados para nos levar à conciliação.

Ora, é preciso não esquecer, visto que falam da Indochina, que foi a decisão de expedir para lá o contingente que provocou a queda do governo Laniel, a coligação das forças de esquerda e o encontro de Genebra.

É verdade que houve Dien Bien Phu. Mas o último livro de Laniel e as declarações estrondosas de antigos generais da Indochina sustentam que, apesar de Dien Bien Phu, se os “líquidacionistas” não tivessem traído a nação — compreenda-se: não se tivessem oposto ao envio do contingente —, a Indochina poderia ter sido salva.

O que é necessário di2er é que com a guerra da Argélia apareceram três fenómenos absolutamente novos nas lutas de libertação nacional.

Reivindicação e não súplica

E, em primeiro lugar, nunca a FLN apelou para a generosidade, para a magnanimidade ou para a gentileza do colonizador. O colonizado adquire numa mutação vertiginosa uma qualidade nova, elaborada no e pelo combate. A linguagem utilizada pela FLN, desde os primeiros dias da Revolução, é uma linguagem responsável. Os apelos às forças democráticas francesas não são redigidos em termos ambíguos, num tom mais ou menos infantil. Dizemos à esquerda francesa: sejam lógicos convosco próprios — ajudem-nos, apoiem a causa da Revolução Argelina. A preocupação constante da FLN de desembaraçar as relações colonizado-colonizador, povo argelino-povo francês, do confusionismo tradicional pôs os elementos democráticos franceses numa situação fora do habitual. Incita-se a sua ação a que se encarne, menos numa atmosfera de simpatia difusa, do que no rigor doutrinal de um anticolonialismo autêntico. Semelhante delimitação de fronteiras poderia, segundo um exame superficial, ser confundida com a rigidez. É por isso que não é raro ouvirmos os democratas franceses retorquirem-nos: se continuam assim, retiramos o nosso apoio. Semelhante posição demonstra que a ação dos democratas é desprovida de qualquer valor revolucionário e doutrinal, porque se alimenta precisamente nas fontes ambivalentes da bondade para com o oprimido ou do desejo de fazer qualquer coisa, de ser útil, etc.

Censuraram à FLN não saber falar aos Franceses, não ter suficientemente em conta as suas pequenas fraquezas e o seu narcisismo. Não há dúvida de que isso é verdade. Mas essas censuras indicam que o objetivo da FLN não foi bem compreendido. A FLN não pretende realizar uma descolonização da Argélia ou um abrandamento das estruturas opressivas.

O que a FLN reclama é a independência da Argélia. Uma independência que permita ao povo argelino tomar totalmente o seu destino nas mãos.

Este objetivo, esta estratégia, comandam a nossa tática, o nosso método, e explicam o próprio andamento da nossa luta.

O colonialismo é fundamentalmente indesculpável.

A Revolução Argelina provocou um escândalo no desenrolar das lutas de libertação nacional. Em geral, o colonialismo, no momento em que a história e a vontade nacional o negam, consegue manter-se como verdade e valor. Não é verdade que seja uma boa coisa a França ter feito da Argélia o que ela é atualmente.

O porto de Mers El Kebir e o aeródromo para aviões de jato de Bouparic não nos consolarão nunca da grande miséria intelectual, moral e material do nosso povo.

O colonialismo francês não será legitimado pelo povo argelino. Nenhum empreendimento espetacular nos fará esquecer o racismo legal, a analfabetismo, o servilismo suscitado e alimentado no mais profundo da consciência do nosso povo.

É por isso que nas nossas declarações não se fala nunca de adaptação ou de abrandamento, mas sim de restituição. É verdade que sempre censuraram à FLN esta constante referência à nação argelina anterior a Bugeaud. É que, ao insistir nesta realidade nacional, ao fazer da Revolução de 1 de Novembro de 1954 uma fase da resistência popular começada com Abd El Kader, retiramos ao colonialismo francês a sua legitimidade, a sua pretensa inserção na realidade argelina. Em vez de integrar o colonialismo, concebido como nascimento de um mundo novo, na história argelina, fizemos dele um acidente infeliz, execrável, cujo único significado é ter retardado de maneira indesculpável a evolução coerente da sociedade e da nação argelinas.

A “Nação em formação”, “a Argélia nova”, “o caso único na história”, todas essas expressões mistificadoras foram varridas pela posição da FLN e nada subsistiu em pleno dia a não ser o combate heroico de todo um povo contra a opressão secular.

Entre a ruptura com o passado argelino, que teria como consequência a instalação de uma colonização renovada mas continuada, e a fidelidade à nação transitoriamente escravizada, o povo argelino escolheu.

Não há uma entidade nova nascida do colonialismo. O povo argelino não aceitou que se transformasse a ocupação em colaboração. Os Franceses na Argélia não coabitaram com o povo argelino. Pouco ou muito, dominaram. É por isso que era preciso fazer sentir desde o início, ao povo francês, o alcance das nossas reivindicações.

A FLN não jogou com as palavras. Disse que o seu objetivo era a independência, que nenhuma concessão poderia ser feita quanto a este objetivo. A FLN disse aos Franceses que era preciso negociar com o povo argelino, restituir-lhe o seu país, todo o seu país.

Desde o início, a FLN definiu o seu programa: pôr termo a ocupação francesa, dar as terras aos argelinos, fazer uma política de democracia social em que o homem e a mulher têm igual direito ã cultura, ao bem-estar material e à dignidade.

É um indivíduo liberto que empreende a construção da cidade

Esta atitude devia ter rapidamente importantes repercussões na consciência do Argelino.

Todas as estruturas embrutecedoras e infantilizantes que habitualmente infestam as relações entre o colonizado e o colonizador foram brutalmente liquidadas. Enquanto o colonizado o mais das vezes não tem outra escolha senão entre a retração do seu ser e a tentativa furiosa de identificação com o colonizador, o Argelino trouxe à existência uma personalidade nova, positiva, eficiente, cuja riqueza se alimenta menos na prova de força que assume do que na sua certeza de encarnar um momento decisivo da consciência nacional.

O combatente argelino não está unicamente contra os pára-quedistas torcionários. Enfrenta constantemente problemas de edificação, de construção, de invenção da cidade. É por isso que, na Argélia, o colonialismo perdeu irreversivelmente a jogada. À escala de cada wilaya estabelecem-se planos cadastrais, estudam-se projetos de construção escolar, empreendem-se reconversões económicas.

O Argelino constrói, organiza, legisla, planifica. Dai a sua segurança, a sua linguagem firme e resoluta, a coesão enérgica das suas posições.

Compreende-se por que é que os porta-vozes da FLN são geralmente descritos como intransigentes. Não é o tom que indispõe, mas sim o conteúdo das nossas reivindicações.

Muitos povos colonizados exigiram o fim do colonialismo, mas raramente como o povo argelino.

Esta recusa de soluções evolutivas, este desprezo pelas “etapes” que travam a torrente revolucionária e destroem no povo essa vontade inabalável de tomar imediatamente tudo nas mãos para que tudo mude, constituem a característica fundamental da luta do povo argelino.

E El Moudjahid, que expõe esta posição, a defende e a faz triunfar, introduz um dado novo no clássico diálogo entre o dominado e o opressor. A libertação do indivíduo não se segue à libertação nacional. Uma autêntica libertação nacional não existe senão na medida expressa em que o indivíduo encetou irreversivelmente a sua libertação. Não é possível ganhar distância relativamente ao colonialismo sem ao mesmo tempo a ganhar também relativamente à ideia que o colonizado faz de si próprio através do filtro da cultura colonialista.

Tal revolução à escala da consciência nacional e da consciência individual deveria ser analisada. Ela permite compreender a derrota e o medo do colonialismo francês na Argélia.

A Revolução Argelina introduz um novo estilo nas lutas de libertação nacional

Há um terceiro fenómeno ainda não identificável mas que, atmosfericamente, subverte as relações de todos os colonizados com a França. O processo de libertação dos povos coloniais é certamente inelutável. Mas a forma dada à luta do povo argelino é tal, na sua violência e na sua totalidade, que influencia decisivamente as futuras lutas das outras colónias.

O povo argelino experimenta concretamente a interdependência dos fenómenos históricos. Dizer que a derrocada localizada do colonialismo aumenta a sua desagregação enquanto sistema já não é a explicação de um princípio abstrato apenas perceptível pelas camadas intelectuais.

Todo o povo argelino sabe que, depois da Argélia, será a vez de a África Negra travar o seu combate. E não é verdade que desde já a França é forçada a inventar novas fórmulas, a votar a lei-padrão para depois a ultrapassar, encaminhando-se não obstante para o reconhecimento da soberania nacional da África Negra?

Decerto, homens políticos africanos, prisioneiros dos Franceses, tentam seguir a curva irresistível da reivindicação nacional.

Até agora, puderam adotar com suficiente rapidez as diferentes posições dos seus povos. Mas mais cedo ou mais tarde dar-se-á o divórcio. Ser-lhes-á então necessário ser declaradamente “traidores” ou abandonar as miragens da obra colonizadora.

O povo argelino sabe que os povos da África Negra acompanham com simpatia e entusiasmo a sua luta contra o colonialismo francês. O povo argelino não ignora que todo o golpe desferido contra a opressão francesa na Argélia desmantela o poder colonialista.

Cada emboscada montada, cada guarnição cercada e destruída, cada avião abatido, semeia o pânico no dispositivo colonial francês e reforça a consciência nacional africana, malgaxe ou antilhana.

Os povos oprimidos sabem hoje que a libertação nacional se inscreve no desenvolvimento histórico, mas sabem também que esta libertação deve necessariamente ser obra do povo oprimido.

São os povos coloniais que devem libertar-se da dominação colonialista.

A verdadeira libertação não é essa pseudo-independência em que os ministros de responsabilidade limitada acompanham uma economia dominada pelo pacto colonial.

A libertação é a condenação à morte do sistema colonial, desde a preeminência da língua do opressor e a “departamentalização” até à união aduaneira que mantém na realidade o antigo colonizado nas malhas da cultura, da moda e das imagens do colonialista.

O povo argelino empreendeu essa condenação à morte com tenacidade e fervor.

Não esperamos que este colonialismo se suicide. Está na sua lógica defender-se encarniçadamente. Aliás, é a tomada de consciência da sua impossibilidade de sobreviver que determinará a sua liquidação enquanto estilo de contacto com os outros povos. O povo colonialista não se curará do seu racismo e da sua doença espiritual se não aceitar realmente considerar a antiga possessão como uma nação absolutamente independente. Toda a evocação de “laços antigos” ou de “comunidades” irreais é uma mentira e um ardil.

O povo argelino prova quase desde há quatro anos que essa mentira e esse ardil já não estão à altura da sua verdade e da sua vontade.

continua>>>


Notas de rodapé:

(1) El Moudjahid, n.° 22, de 16 de Abril de 1958. (retornar ao texto)

Inclusão 09/07/2018