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O século XX, à escala mundial, não terá sido apenas a era das descobertas atómicas e das explorações interplanetárias. A segunda transformação desta época é incontestavelmente a conquista pelos povos das terras que lhes pertencem.
Sacudidos pela reivindicação nacional de regiões imensas, os colonialistas tiveram de afrouxar o seu cerco. Todavia, este fenómeno de libertação, de triunfo das independências nacionais, de recuo do colonialismo, não se apresenta de uma maneira única. Cada antiga colónia tem uma maneira determinada de atingir a independência. Cada novo Estado soberano encontra-se na prática perante a obrigação de manter com o antigo opressor relações definidas e preferenciais.
Os partidos que travam a luta contra a opressão colonialista, numa certa fase do combate, decidem taticamente aceitar uma parcela de independência com a firme intenção de voltar a lançar o povo no âmbito da estratégia fundamental da evacuação total do território e da efetiva tomada em mãos de todos os recursos nacionais. Este estilo clássico, e várias vezes encarnado, é hoje conhecido. Pelo contrário, existe toda uma dialética oposta que, ao que parece, não reteve suficientemente a atenção.
Há algumas décadas, os governantes colonialistas podiam indefinidamente expor as preocupações altamente civilizadoras dos seus países. As concessões, as expropriações, a exploração dos trabalhadores e a grande miséria dos povos eram tradicionalmente escamoteadas e negadas. Depois, no momento de se retirarem desse território, os colonialistas viram-se na obrigação de tirar a máscara. Nas negociações sobre a independência, tratava-se em primeiro lugar dos interesses económicos: bancos, zona monetária, autorização de pesquisas, concessões de exploração, inviolabilidade das propriedades roubadas aos camponeses aquando da conquista, etc. De obra civilizadora, evangélica ou cultural ninguém falava já. A hora era de coisas sérias e não de futilidades. Tais atitudes deviam servir para esclarecer a consciência dos homens em luta noutras regiões do Mundo,
Os verdadeiros direitos do ocupante foram então perfeitamente identificados. Minoria vinda da metrópole, missões universitárias, assistência técnica, amizade afirmada e reafirmada, passaram a segundo plano. Com toda a evidência, o importante passavam a ser os direitos reais que o ocupante entendia arrancar ao povo, como preço de um bocado de independência.
A aceitação de uma soberania nominal e a recusa absoluta de uma independência real, eis a reação tipo das nações colonialistas relativamente às suas antigas colónias. O neocolonialismo está impregnado de algumas ideias que, ao mesmo tempo que fazem a sua força, preparam a sua necessária decadência.
No decurso da luta de libertação, as coisas não são claras na consciência do povo que se bate. Simultaneamente recusa da inexistência política, da miséria, do analfabetismo, do complexo de inferioridade sabiamente destilado pela opressão, o seu combate é durante muito tempo indiferenciado. O neocolonialismo vai tirar proveito dessa indeterminação. Armado de uma benevolência revolucionária e espetacular, vai reconhecer tudo à antiga colónia. Mas, ao fazer isto, arranca-lhe uma dependência económica que se torna programa de ajuda e assistência.
Vimos que na maior parte das vezes esta tentativa triunfa. A originalidade desta fase é ser necessariamente curta. O povo precisa de pouco tempo para se aperceber de que nada de fundamental mudou. Passadas as horas de efusão e de entusiasmo diante do espetáculo da bandeira nacional flutuando ao vento, o povo reencontrou a dimensão primeira da sua exigência: pão, vestuário, um abrigo.
O neocolonialismo, porque se propõe prestar justiça a dignidade humana em geral, dirige-se essencialmente à burguesia e aos intelectuais do país colonial.
Hoje, os povos já não sentem o ventre em paz quando o país colonial reconheceu o valor das suas elites. Os povos querem que tudo mude realmente e imediatamente. É por isso que a luta recomeça com uma violência irrecusável.
Nesta segunda fase, o ocupante eriça-se e ataca com todas as forças. O que foi arrancado pelos bombardeamentos é reconvertido em resultados de livres negociações. O antigo ocupante intervém, ciente dos seus deveres, e instala novamente a sua guerra num país independente.
Todas as antigas colónias, da Indonésia ao Egito, passando pelo Panamá, que quiseram denunciar os acordos arrancados pela força, acharam-se na obrigação de suportar uma nova guerra e algumas vezes tiveram de ver a sua soberania de novo atingida e amputada.
Os famosos direitos do ocupante, a chantagem com um passado de vida comum, a persistência de um pacto colonial rejuvenescido, são as bases permanentes de um ataque conduzido contra a soberania nacional.
A preocupação de manter a antiga colónia sob o jugo da opressão económica não é, evidentemente, sadismo. Não é por maldade ou má vontade que tal atitude é adotada. Ê que a gestão pelos povos coloniais das suas riquezas nacionais compromete o equilíbrio económico do antigo ocupante. A reconversão da economia colonial, as indústrias de transformação de matérias-primas provenientes dos territórios subdesenvolvidos, o desaparecimento do pacto colonial, a concorrência com os capitais estrangeiros, constituem um perigo de morte para o imperialismo.
Para as nações como a Inglaterra e a França, interfere a importante questão das zonas de influência. Unânimes na sua decisão de quebrar a reivindicação nacional dos povos coloniais, estes países travam uma luta gigantesca pelo açambarcamento dos mercados mundiais. As batalhas económicas entre a França, a Inglaterra e os Estados Unidos, no Médio Oriente, no Extremo Oriente e agora em África, dão a medida da voracidade e da bestialidade imperialistas. E não é exagerado dizer que estas batalhas são a causa direta das estratégias que, ainda hoje, abalam os Estados recém-independentes. Em circunstâncias excepcionais, as zonas de influência da libra esterlina, do dólar ou do franco convertem-se e tornam-se, por um golpe de prestidigitação, o mundo ocidental. Hoje, no Líbano e no Iraque, a crer em Malraux, é o homo occidentalis que se encontra em perigo.
O petróleo iraquiano levantou todas as proibições e atualizou os verdadeiros problemas. Temos presentes as intervenções violentas das forças armadas americanas no arquipélago das Antilhas ou na América Latina, sempre que as ditaduras apoiadas pela política americana estiveram em perigo. Os marines que hoje desembarcam em Beirute são irmãos dos que, episodicamente, vão restabelecer “a ordem” no Haiti, na Costa Rica e no Panamá. É que os Estados Unidos acham que as duas Américas constituem um mundo regido pela doutrina de Monroe, cuja aplicação está confiada às forças americanas. O artigo único dessa doutrina estipula que a América pertence aos Americanos, quer dizer, ao Departamento de Estado.
Tendo-se revelado insuficientes os seus escoadouros, a América devia fatalmente virar-se para outras regiões, na ocorrência, o Extremo Oriente, o Médio Oriente e a África. Concorrência de aves de rapina; as suas criações são: doutrina Eisenhower contra a Inglaterra no Médio Oriente; apoio a Ngo Din Diem contra a França na Indochina; Comissão de Auxílio Económico à África, anunciada pela viagem presidencial de Nixon, contra a França, Inglaterra e Bélgica.
Cada luta de libertação deve ter em conta as zonas de influência.
Esta estratégia competitiva das nações ocidentais entra, por outro lado, no quadro mais vasto da política dos dois blocos que faz pesar sobre o Mundo, de há dez anos a esta parte, uma ameaça precisa de desintegração atómica. E não é decerto um acaso que, por detrás de cada reivindicação nacional de um povo colonial, se pretenda descobrir, de maneira quase estereotipada, a mão ou os olhos de Moscovo. É que cada dificuldade posta à supremacia do Ocidente numa parcela do Mundo é um atentado concreto ao seu poderio económico, à extensão das suas bases estratégicas militares, e uma limitação do seu potencial.
Cada contestação dos direitos do Ocidente sobre um país colonial é ao mesmo tempo vivida como enfraquecimento do mundo ocidental e reforço do mundo comunista.
Hoje, uma ilha como Chipre, que quase não tem recursos próprios e que tem uma população de apenas meio milhão de homens, é objeto de rivalidades violentas. E até a OTAN, essa organização encarregada de travar a invasão soviética, se sente em perigo pelos problemas levantados em torno da ilha de Chipre.
A tomada de posição de alguns países recém-independentes decididos a permanecer fora da política dos blocos, introduziu uma dimensão original no equilíbrio de forças no Mundo Política ditas de neutralismo positivo, de não dependência, de não alinhamento, terceira força, os países subdesenvolvidos que despertam de um longo sono de escravatura e de opressão acharam que era seu dever permanecer fora de toda a preocupação belicista, para se consagrarem ao desenvolvimento económico, ao recuo da fome, à promoção do homem.
E, na verdade, o que os ocidentais não compreenderam é que se cria hoje um novo humanismo, uma nova teoria do homem que tem a sua raiz no homem e que não quer outra coisa senão o triunfo não igualado desse homem. É fácil tratar o Presidente Nehru de indeciso porque recusa atrelar-se ao imperialismo ocidental, os Presidentes Nasser ou Sukarno de violentos quando nacionalizam as suas companhias ou reivindicam as parcelas de seus territórios ainda sob dominação estrangeira. O que não se vê é que os 350 milhões de hindus, que conheceram a fome do imperialismo inglês, reclamam atualmente o pão, a paz e o bem-estar. É que os felás egípcios ou os boys indonésios, que permitiam aos escritores ocidentais fazerem obra exótica, exigem tomar o seu destino nas mãos e recusam representar o papel de panorama inerte a que estavam condenados.
E tocamos aqui num problema psicológico que certamente não é fundamental, mas que entra também na constituição da dialética que atualmente se desenvolve. Sistema económico de referência, portanto de opressão, o Ocidente faz-se valer também da sua superioridade humanista. “O modelo” ocidental encontra-se atingido na sua essência e na sua finalidade.
Os Amarelos, os Árabes e os Negros, hoje, querem dizer os seus projetos, querem afirmar os seus valores, querem definir as suas relações com o Mundo. A negação do amenismo político está ligada à recusa do amenismo económico e do amenismo cultural. Já não é verdade que a promoção dos valores passe pelo crivo do Ocidente. Não é verdade que precisemos constantemente de ir a reboque, de seguir, de depender, de quem quer que seja. Todos os países coloniais que hoje estão em luta devem saber que a independência política que arrancarem ao inimigo contra a manutenção de uma dependência económica não passa de um logro, que a segunda fase de libertação total é necessária porque exigida pelas massas populares, que essa segunda fase, porque capital, deve ser dura e levada a cabo com aridez, que, enfim, nesse estádio de luta é necessário ter em conta a estratégia mundial dos blocos, pois o Ocidente confronta-se simultaneamente com um duplo problema: o perigo comunista e o aparecimento de um terceiro bloco neutralista, representado essencialmente pelos países subdesenvolvidos.
O futuro de cada homem tem atualmente relações de estreita dependência com o resto do universo. É por isso que os povos coloniais devem redobrar de vigilância e de vigor. É este o preço do aparecimento de um novo humanismo. Os lobos não devem voltar a encontrar o cordeiro isolado. É necessário travar o imperialismo em todas as suas tentativas de reforço. Os povos querem-no, o processo histórico exige-o.
Notas de rodapé:
(1) El Moudjahid, nº 27, de 22 de julho de 1958. (retornar ao texto)
Inclusão | 15/07/2018 |