Em Defesa da Revolução Africana

Frantz Fanon


Quarta parte: A caminho da libertação da África
Consequências de um plebiscito em África(1)


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Classicamente, o sucesso do plebiscito assegura às autoridades responsáveis pelo golpe de Estado um período mais ou menos longo de usufruto do Poder. O exercício da autoridade tornado possível pelo plebiscito, para ser válido e para recompensar os autores do putsch, deve poder permitir-lhes que obtenham o máximo de vantagens durante o maior tempo possível e numa relativa tranquilidade.

A ação conjugada dos colonialistas franceses, dos fascistas, com a sua vanguarda pretoriana em Argel, e das forças reacionárias em França pôde impor as arbitragens do general De Gaulle.

Os preparativos da conspiração

As forças fascistas desta conspiração propunham-se utilizar o nome do general De Gaulle para porem de pé organizações capazes de tomar o poder efetivo, permanecendo a possibilidade de se desembaraçarem a seguir do General-Presidente.

Nestes últimos três meses, em França e na Argélia, principalmente, assistiu-se, em torno do núcleo de base dos facciosos de 13 de Maio, a uma cristalização de todas as correntes racistas, ultra-chauvinistas, fascistas, que existem em França.

Assistiu-se igualmente à colonização do aparelho de Estado pelos membros dessas milícias.

Anunciaram-se de modo intempestivo as medidas, também elas clássicas, que se seguem sempre a um plebiscito: chamada à ordem dos partidários do abandono e, sobretudo, proscrição legal dos grupos da oposição.

As forças colonialistas, que caucionaram com a sua autoridade e apoiaram totalmente a experiência fascista, estavam aterrorizadas com a possibilidade de qualquer processo de descolonização. Depois das experiências da Tunísia e de Marrocos e da experiência, muito mais traumatizante, da Indochina, os meios colonialistas tinham jurado não mais tolerar novos abandonos. Por isso, esses meios colonialistas uniram-se com entusiasmo às fileiras fascistas, gritando: “Argélia francesa”, “Não ao abandono”.

Ao mesmo tempo, os “vendilhões do império”, tipo Mendès-France, Edgar Faure, eram acusados de traição.

Os meios colonialistas uniram-se ao general De Gaulle porque, a seus olhos, ele era capaz de conservar a Argélia para a França, de manter intacto o Império Francês e talvez, se houvesse ocasião disso, de reconquistar os territórios perdidos.

Por sua vez, os reacionários que responderam ao apelo fascista estavam sobretudo animados do desejo das forças gratuitas pagas pelo Estado, cujos interesses iam no mesmo sentido que os seus, para consolidar a sua autoridade em França e paralisar a ação e as esperanças da classe operária francesa.

A vitória...

Logo a seguir ao 28 de Setembro, os responsáveis pelo golpe de Estado podiam, pois, declarar-se satisfeitos. Nos territórios “do Ultramar”, 98% dos habitantes das colónias tinham respondido “sim” ao general De Gaulle e à França. No território francês, 80% dos nacionais, compreendendo os seus interesses e abandonando a tutela dos “partidos do estrangeiro”, tinham aderido massivamente à carta proposta por De Gaulle.

Uma semana após o referendo, uma semana após este sucesso colossal, maciço, miraculoso, a empresa fascista começa a vacilar. A guerra da Argélia, em torno da qual se organizou o referendo que permitiu, pela sua exploração, o sucesso grandioso que a imprensa assinalou, limita pelo simples fato de existir, pelo seu caráter e duração, o valor desse plebiscito. Logo a seguir ao 28 de Setembro, embaraçados com os seus 98% de votos, o general De Gaulle e os seus sequazes já não sabem onde dar com a cabeça, É que, dia após dia, aparecem novos dados que variam o alcance dos “sim”.

...e a ruína

Na África Ocidental, Mokhtar Ould Daddah, Presidente do Conselho da Mauritânia, território que votou em 93% “sim”, declarou a 1 de Outubro:

“Julgo que a atual Assembleia Territorial deverá demitir-se para permitir a eleição, em Janeiro, de uma nova Assembleia à qual o Conselho de Governo atual apresentará a sua demissão. O novo Governo e a nova Assembleia optariam pelo estatuto de Estado membro da comunidade e elaborariam a constituição local que será submetida ao povo da Mauritânia por via dc referendo.”

E Ould Daddah acrescentou:

“Na devida altura, sairemos da comunidade dos povos livres, prevista no título 12, sem por isso romper os laços com a França e com os listados da Comunidade, e concluiremos com ela os acordos de associação previstos no título 13.”

No Daomé, onde a percentagem de votos aflora os 98%, Apithy, Presidente do Conselho de Governo, acaba de anunciar a necessidade que os líderes políticos da África Negra têm de se consultar para adotarem uma atitude comum perante a França. Tornando preciso na sua perspectiva o sentido do “sim” daomeano, Apithy acrescentou:

“Pela livre escolha das massas e pela livre vontade dos eleitos, nascerá amanhã na comunidade o Estado Daomeano. Plenamente autónomo, esse Estado poderia preparar, na paz e nas amizades conservadas com os outros povos africanos, assim como com a metrópole, o seu acesso ao desenvolvimento económico e social que lhe permitirá um dia tornar-se um Estado associado independente”.

No Senegal, onde a adesão ao “sim” foi de 97%, a oposição sindicalista e as formações de juventude continuam a fazer pressão sobre Senghor e Lamine Gueye. Já em Cotonou, Senghor, que parece não querer libertar-se da confusão que reina no seu espírito, tinha sido obrigado a ligar-se à independência da África Negra. Ao realizar uma aliança tática com o seu adversário Lamine Gueye, conseguiu enganar as massas africanas levando-as a votar “sim”. Ora, a seguir ao sucesso do plebiscito, Senghor fica encurralado e tem de dar ao voto do Senegal uma significação precisa. “É um sim”, diz ele, “à independência africana na unidade reencontrada.”

É evidente que Senghor tentará ainda iludir as massas senegalesas, mas as suas possibilidades de ação veem-se limitadas umas a seguir às outras. A recente declaração de Mamadou Dia, Presidente do Conselho de Governo do Senegal, é significativa:

“Estamos”, diz ele, “essencialmente preocupados com preparar a nossa independência.”

No Níger, o governo conseguiu fazer fracassar a política nacionalista de Djibo Bakary. Apercebemo-nos de que a Nigéria é o primeiro território africano, depois da Guiné, com o maior número de sufrágios negativos. Com a ajuda dos colonialistas e dos administradores, o governo conseguiu assegurar o sucesso da consulta eleitoral de 28 de Setembro, mas é claro que as massas nigerianas vão exercer nas semanas seguintes uma ação decisiva para exigir que se tenham em consideração as suas reivindicações nacionais. É evidente que, o menos que os outros territórios da África Ocidental, incluindo a fiel Costa do Marfim, podem fazer é escolherem o estatuto de Estado autónomo associado à França.

Houphouët-Boigny talvez tente defender a sua teoria do federalismo integral, mas é duvidoso que possa atingir os seus fins. Apesar de De Gaulle, apesar do 13 de Maio, apesar do referendo, a África Ocidental vai federar-se em Estados autónomos para, num segundo tempo, estudar com os representantes franceses as modalidades de cooperação com a antiga metrópole.

Na África Equatorial, as coisas são muito mais claras.

No Gabão, os meios colonialistas foram abalados pela importância dos “não”: várias dezenas de milhares.

A força política da oposição é tão grande no Gabão que Léon M’Ba, Presidente do Conselho de Governo, ao deixar Libreville a 3 de Outubro para entabular discussões em Paris com o Governo Francês, anunciava a sua decisão de criar um Estado gabonês. Mas o que é muito mais importante é a notícia recente da constituição de uma missão do Grande Conselho da África Equatorial, encarregada de estudar a criação de um Estado único na África Central. Rivierez, Presidente da Assembleia Territorial de Oubangui-Chari, iniciou consultas com os representantes do Tchad, do Médio Congo e do Gabão para erguer o Estado, a nacionalidade, e preparar as relações entre os outros territórios da África e da França. A velha lei--padrão, cuja função era retalhar a África, junta-se, nos museus da História, às outras tentativas feitas pelo colonialismo para se manter.

Em Madagáscar, onde o amenista Tsiranana não receou comentar o “sim” malgaxe como um “não” a Moscovo, o colonialismo não é mais feliz. Tsiranana, o Sid-Cara de Madagáscar, numa declaração feita a seguir ao referendo, admite que os Malgaxes vão finalmente assistir à materialização da República Malgaxe.

Nas Antilhas, houve quem ficasse admirado com a percentagem dos “sim” obtidos graças à posição dc Aimé Césaire. Será hoje possível a independência das Antilhas Francesas? Foi esta a pergunta que se pôs a Césaire. Podia responder afirmativamente, escolher a independência das Antilhas e solicitar a entrada na Federação das Caraíbas. Terá calculado acertadamente que essa federação em vias de nascer não estava suficientemente estruturada e dependia ainda demasiado estreitamente da coroa britânica? O que é certo é que nas Antilhas, como em qualquer outro lado, nenhum líder pode ter ilusões sobre o valor da sua pessoa nem sobre o amor que as massas lhe dispensarão mal se determine a vontade de independência nacional do seu país.

O caso da Guiné

Para dar início à libertação da África Negra era preciso uma coisa: que, pelo menos, um território dissesse não à Constituição do general De Gaulle. A Guiné, conduzida por Sekou Touré, tornou-se independente.

A existência de uma Guiné independente desequilibra profunda e irreversivelmente o regime colonial francês na África Negra. Possuindo fronteiras comuns com o Senegal, com o Sudão e com a Costa do Marfim, a Guiné vai cristalizar à sua volta todas as potencialidades nacionalistas que existem na África Negra. Sustentou-se que os outros líderes políticos africanos tinham rejeitado o “não” com medo das represálias económicas do Governo Francês. Contudo, ninguém ignora a fragilidade de tais argumentos. Os homens políticos como Houphouët-Boigny e o padre Fulbert Youlou, que militaram a favor dos “sim”, são, na realidade, contrarrevolucionários, inimigos da independência nacional da África.

Atualmente, a República Guineense, reconhecida por um número cada vez maior de nações, sustentada pelos patriotas africanos de todos os territórios, reforça a sua autoridade e afasta do seu caminho todo o medo e todo o temor. Os outros dirigentes da África Negra, os mesmos que anunciavam catástrofes na Guiné, combinam entre si e descobrem que o jugo do colonialismo na África Negra há muito que saltou. Desfazem-se a exclusividade obrigatória do frente-a-frente com o colono e a violência com que era vivida a dominação francesa.

A União Soviética acaba de reconhecer a República Guineense, e os Estados africanos, a pedido da Tunísia, acabam de propor a Sekou Touré o envio de uma missão encarregada de estudar as necessidades materiais e técnicas da jovem república.

Ilustrando esta solidariedade africana forjada na luta contra o colonialismo, o Governo Provisório da República Guineense concretiza as linhas diretrizes que inspiram a nossa ação e prefigura os laços de estreita colaboração que devem existir entre os novos Estados independentes da África.

Os homens da África Negra, porque a Guiné independente existe, poderão muito rapidamente comparar a sua sorte à dos seus irmãos de ontem, escravizados pelo colonialismo francês.

Houphouët-Boigny não descansou enquanto não convenceu os povos africanos de que o estatuto de indígena era o mais desejável. De que sem a proteção da mãe-pátria francesa os negros da África Negra seriam abandonados.

É da Guiné, ponta de lança da liberdade, que irão partir todas as vagas que hão de aniquilar a dominação francesa na África Negra.

O referendo em França

Os observadores estrangeiros ficaram geralmente impressionados pela percentagem de votos obtidos pelo general De Gaulle. As previsões mais otimistas iam de 65 % a 70%. Ora o referendo foi aceite em França a 80%. Diagnosticou-se sem demora um afastamento dos Franceses relativamente às formações políticas de esquerda.

Contudo, uma análise do escrutínio permite chegar a outras conclusões. Para 17.600.000 “sim”, há 4.600.000 “não”. Uma diferença de 13 milhões de votos dá, assim, a medida do prestigio presidencial. Os comunistas acusam um recuo muito nítido, avaliado em um terço. Além disso, os lideres políticos de esquerda, Badiou, Mendés-France, Bourgés-Maunoury, que militaram pela recusa da Constituição, seriam os grandes vencidos desta confrontação eleitoral. Parece, pois, que se assistiu com o referendo a uma hibernação das perspectivas democráticas em França.

Ora, as declarações de homens políticos como Defferre alteram a homogeneidade dos resultados. Milhões de franceses e de francesas votaram “sim” para que a guerra da Argélia acabe. Outros, para que o império permaneça intacto. Vimos que o referendo nos territórios coloniais encetara irreversivelmente a libertação dos povos oprimidos, e a última declaração do general De Gaulle em Constantine é um autêntico reacender da guerra. Depois dc ter prometido o perdão aos “rebeldes”, o Presidente do Conselho francês, na boa tradição desses colegas da defunta IV República, anuncia o progresso social e económico.

Tomando o Poder para implantar a paz na Argélia, De Gaulle provoca a extensão do conflito à França. Desde 24 de Agosto, as bases económicas e estratégicas francesas são sabotadas pelos grupos de ação da FLN. Guerra na Argélia, guerra em França, o colonialismo, o seu corpo expedicionário e as suas bases de apoio estão sob os golpes da Revolução Argelina. A paz na Argélia e a paz em França dependem hoje do reconhecimento pela França da independência da Argélia.

De Gaulle derrotado pelo povo argelino

Podemos legitimamente perguntar quais as causas desta deterioração da situação na África Negra. Como é que um sucesso tão colossal como o obtido no referendo pode transformar-se tão rapidamente em ruína e em derrota do colonialismo?

Se não nos referirmos constantemente à luta do povo argelino, arriscamo-nos a não compreender precisamente a evolução das relações entre as colónias e a dominação francesa.

Porque se mostraram incapazes de vencer o Exército

Nacional Argelino, as forças colonialistas viram-se despojadas de todo o prestígio e desapareceu definitivamente o temor que inspiravam aos povos colonizados. A guerra que o povo argelino está a travar desde há quatro anos preparou o desmoronamento francês na África. Doravante, está aberto o caminho a todos os países ocupados pelo colonialismo francês,

O povo argelino, fiel ao seu juramento de extirpar todo o vestígio de dominação francesa na África, prossegue o combate.

Antes de 15 de Novembro, o general De Gaulle ver-se-á na obrigação de reconhecer na África Negra Estados autónomos.

Ao mesmo tempo, promete aos Argelinos lugares de funcionários.

A miséria política, o paradoxo lógico continuam. Mas são sinais da desorientação, da cegueira histórica, portanto, da derrota.

continua>>>


Notas de rodapé:

(1) El Moudjahid, n.° 30, de 10 de Outubro de 1958. (retornar ao texto)

Inclusão 17/07/2018