Em Defesa da Revolução Africana

Frantz Fanon


Quarta parte: A caminho da libertação da África

Accra: a África afirma a sua unidade e define a sua estratégia(1)


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Em 1884, as nações ocidentais reunidas em Berlim decidiram partilhar entre si o continente africano e fundaram legalmente o regime colonial.

Depois, a evolução das relações de força no Mundo, o aparecimento de novas potências, obrigaram as nações ocidentais a recuar e a retirar-se de muitas das suas possessões.

Depois da Ásia, a África

A Ásia está agora liberta do colonialismo e territórios como a China, marcados até então, segundo parece, por uma espécie de miséria absoluta, criam como que uma nova civilização, esta autêntica, que diz respeito ao homem e que infalivelmente o toma como fim.

Resta que o continente africano está ainda amplamente ocupado pelas potências coloniais e, depois de Bandung, depois da conferência afro-asiática do Cairo, eis que os povos africanos se reúnem em Accra, capital do Ghana independente, para lançar as bases, na perspectiva longínqua dos Estados Unidos da África, de uma tática e de uma estratégia de combate.

Uma solidariedade “biológica”

As organizações políticas e sindicais do continente africano encontraram-se em Accra; a sua ideologia comum: vontade nacional contra a dominação estrangeira; a sua tática: enfraquecer os colonizadores uns após outros; a sua estratégia: fazer malograr as manobras e as tentativas de camuflagem do opressor.

O que mais impressionou o observador em Accra foi a existência ao nível mais espontâneo de uma solidariedade orgânica, biológica até. Mas, para além dessa espécie de comunhão afetiva, havia deveras a preocupação de afirmar uma identidade de objetivos e também a vontade de utilizar todos os meios existentes para expulsar o colonialismo do continente africano.

Estes homens e estas mulheres tinham-se reunido ao mesmo tempo para expor a natureza do colonialismo a que estavam submetidos, para estudar o tipo de luta possível, para articular as suas ofensivas, finalmente para fazer pressão, território após território, sobre colonialismos idênticos.

Foi por isso que se estabeleceram muito rapidamente, para além das comissões, constato entre países sob tutela, entre colónias de povoamento do tipo África do Sul, Quénia, Argélia, entre Estados na comunidade representada essencialmente pelas Áfricas ditas francesas.

Os Estados independentes da África tiveram em Accra uma recepção entusiástica. Foram estes Estados que, em Abril de 1958, haviam julgado indispensável esta reunião de Accra para acelerar a libertação do continente africano.

A RAU, a Tunísia, o Ghana, a Etiópia, etc., tinham insistido em apresentar como delegados no Congresso homens e mulheres que eram o testemunho do apoio incondicional destes Estados aos diversos povos em luta.

A jovem República Guineense, representada por três dos seus ministros, foi aclamada com entusiasmo pelo Congresso.

Violência e não-violência: o fim e os meios

No decurso desta Conferência debateram-se vários problemas.

Os dois mais importantes parecem ter sido o da não-violência e o da colaboração com a ex-nação dominadora.

É evidente que os problemas se ligam. O fim do regime colonial realizado segundo formas pacíficas e tornado possível pela compreensão do colonialista poderia em certas circunstâncias desembocar numa colaboração renovada das duas nações. Ora, a história mostra que nenhuma nação colonialista aceita retirar-se sem que todas as suas possibilidades de manutenção se tenham esgotado.

Levantar o problema de uma descolonização não violenta é menos postular uma súbita humanidade do colonialista do que acreditar na pressão suficiente da nova relação de forças à escala internacional.

É claro, por exemplo, que a França encetou um processo de descolonização na África Negra.

Esta inovação sem violência foi tornada possível devido aos fracassos sucessivos do colonialismo francês nos outros territórios. Contudo, os representantes das nações africanas sob dominação francesa presentes em Accra denunciaram com lucidez as manobras do imperialismo francês.

As armadilhas do neocolonialismo

Os congressistas condenaram sem reserva os africanos que, para se manterem nos seus lugares, não recearam mobilizar a policia para falsificar as eleições no último referendo e para envolver os seus territórios numa associação com a França que exclui durante longos anos a via da independência. Os poucos delegados vindos para representar estes governos fantoches da África francesa viram-se mais ou menos expulsos das comissões.

Em contrapartida, os representantes dos Camarões, à cabeça dos quais se encontrava o Dr. Félix Moumié, foram calorosamente aplaudidos no decurso da ultima sessão da ONU. Outros territórios arrancaram a sua independência a prazo: os Camarões, o Tanganica, a Somália.

Um 1960, cerca de 60 milhões de africanos serão de novo independentes.

Além disso, o Governo Belga, alarmado com os sobressaltos que agitam a África e com o endurecimento dos movimentos nacionalistas do Congo Belga, acaba de reconhecer oficialmente a vocação nacional do Congo Belga e propõe-se apresentar no mês de Janeiro um programa por etapes para a independência de 20 milhões de congoleses.

Não fica excluída a tentativa dos colonialistas belgas de mais uma vez retardar este prazo; é preciso confiar 11a capacidade das massas congolesas para impor a curto prazo a República Democrática do Congo.

Se a Bélgica, a Inglaterra com a Nigéria e o Tanganica, a França com a Guiné, recuaram, Portugal desenvolve, pelo contrário, o regime policial nas suas possessões. Os delegados de Angola foram recebidos com emoção e exprimiu-se uma imensa cólera ao ouvirem-se as medidas discriminatórias e inumanas usadas pelas autoridades portuguesas. É evidente, Angola, a África do Sul e a Argélia são as cidadelas do colonialismo e provavelmente os territórios onde o povoamento europeu se defende com maior encarniçamento e ferocidade.

A propósito destes casos, é preciso assinalar que a União Sul-Africana tenta anexar a Basutolândia, a Suazilância e fazer a junção com as Rodésias, outras colónias de povoamento.

Esta colonização depois da colonização é certamente um dos fenómenos mais notáveis deste período de libertação do continente.

A legião africana

Nas colónias de povoamento do tipo Quénia, Argélia, África do Sul, fez-se unanimidade: só a luta armada provocará a derrota da nação ocupante. E a legião africana, cujo princípio foi adotado em Accra, é a resposta concreta dos povos africanos à vontade de dominação colonial dos Europeus.

Ao decidirem a criação em todos os territórios de um corpo de voluntários, os povos africanos entendem manifestar claramente a sua solidariedade com os outros povos, exprimindo assim que a libertação nacional está ligada à libertação do continente.

Os povos em luta, hoje convencidos de que os seus irmãos africanos partilham o seu combate e de que estão prontos a intervir diretamente ao primeiro apelo dos seus organismos dirigentes, veem o futuro com mais serenidade e otimismo.

Nos comícios populares organizados no Ghana, na Etiópia, na Nigéria, centenas de homens fizeram juramento de correr em socorro dos seus irmãos argelinos ou sul-americanos desde que estes manifestem tal desejo.

A África tem de ser livre, disse o Dr. N’Krumah no seu discurso inaugural, nada temos a perder senão as nossas cadeias e temos a conquistar um continente imenso. Em Accra, os Africanos juraram-se fidelidade e assistência. Nenhuma aliança será rejeitada, e o futuro do colonialismo nunca foi tão sombrio como depois da Conferência de Accra.

continua>>>


Notas de rodapé:

(1) El Moudjahid, n.º 34, de 24 de Dezembro de 1958. (retornar ao texto)

Inclusão 24/07/2018