Em Defesa da Revolução Africana

Frantz Fanon


Quinta parte: Unidade Africana
Esta África futura


capa

[No final do ano de 1958, os coronéis das wilayas do ELN fizeram uma reunião em Nord-Constantinois. Nessa ocasião verificaram o perigo de um aniquilamento progressivo da luta armada no interior, dado o dispositivo que o inimigo pôs a funcionar (zonas interditas, campos de reagrupamento tendentes a isolar o ELN da população).

Decidiu-se enviar a Tunis o coronel Amirouche (coronel da Wilaya III) para explicar a situação ao GPRA e definir os meios que permitiriam reabastecer o interior de armas, munições e finanças.

O coronel Amirouche não chegou a Tunis, pois foi morto pelo inimigo durante a viagem na região de Bou-Saãda, em Março de 1959.

Para enfrentar esta situação o CNRA decidiu na sua reunião do Outono dc 1959 a criação do Estado-Maior.

Visto que o exército francês reforçara o seu dispositivo nas fronteiras (linha Challe), tornava-se difícil reabastecer o interior através do Marrocos e da Tunísia.

Em Março de 1960, Fanon era enviado para Accra. Durante a sua estada na África Ocidental pôde verificar que existia uma possibilidade de reforçar a situação no interior a partir da fronteira sul, isto é, a fronteira do Mali. Neste sentido estabeleceu também contacto com os responsáveis do Mali e comunicou as suas sugestões aos dirigentes argelinos, que decidiram a criação de uma terceira base no Sul do Saara para o encaminhamento das armas destinadas às Wilayas I e V.

As notas que se seguem foram escritas por Fanon no decurso da missão de reconhecimento e de instalação desta base, no Verão de 1960.

A este diário de viagem acrescentam-se algumas indicações técnicas sob a forma de notas apressadas e incompletas em que Fanon estuda as diferentes soluções suscetíveis de serem adotadas no plano estritamente operacional.]

Pôr a África em movimento, colaborar na sua organização, no seu reagrupamento, segundo princípios revolucionários. Participar no movimento ordenado de um continente, foi esse, em última análise, o trabalho que escolhi. A primeira base de partida, o primeiro alicerce, era representado pela Guiné. Depois, o Mali, decidido a tudo, ardente e brutal, coerente e singularmente acerado, prolongava a ponta de lança e abria preciosas perspectivas. A leste, Lumumba caminhava penosamente. O Congo, que constituía a segunda praia de desembarque das ideias revolucionárias, encontrava-se preso nas malhas de contradições estéreis. Era preciso continuar a esperar antes de investir eficazmente contra as cidadelas colonialistas que se chamam Angola, Moçambique, Quénia e União Sul-Africana.

No entanto, tudo estava no seu lugar. E eis que o sistema de defesa colonialista, embora discordante, reanimava os velhos particularismos e pulverizava a lava libertadora. De momento, era necessário aguentar no Congo e avançar a oeste. Para nós, argelinos, a situação era clara. Mas o terreno permanecia difícil, muito difícil. Tínhamos de provar, a partir do oeste, através de manifestações concretas, que o continente era uno. Que por detrás das opções gerais dos dirigentes era possível determinar os pontos precisos em que os povos, os homens e as mulheres, podiam encontrar-se, ombrear, construir em comum. O espectro do Ocidente — as cores europeias estavam presentes e ativas em toda a parte. As zonas francesa, inglesa, espanhola, portuguesa, continuavam vivas. Oxford opunha-se à Sorbonne, Lisboa a Bruxelas, os patrões ingleses aos patrões portugueses, a libra ao franco, a Igreja Católica ao Protestantismo ou ao Islamismo, E, para além de tudo isso, os Estados Unidos a intrometerem-se em todo o lado, dólares à cabeça, com Armstrong como arauto e com os diplomatas negros americanos, as bolsas, ou emissários da voz da América... E não esqueçamos a Alemanha trabalhadora, Israel desbravando o deserto...

Trabalho difícil. Felizmente, em cada canto há braços que nos acenam, vozes que nos respondem e mãos que nos agarram. A coisa vai.

O ruído rápido e tranquilizante das cidades libertadas que rompem as suas amarras e avançam grandiloquentes, mas de modo nenhum grandiosas, esses antigos militantes hoje definitivamente aprovados em todos os seus exames, que se sentam... e se recordam, mas o Sol ainda vai muito alto no céu e, se escutarmos com o ouvido colado ao solo vermelho, ouvimos muito nitidamente ruídos de cadeias enferrujadas, murmúrios de infelicidade, e deixamoa cair nos ombros, tão presente está sempre a carne ferida neste meio-dia abrasador. A África de todos os dias, oh! não a dos poetas, não a que adormece, mas a que não deixa dormir, porque o povo está impaciente por fazer, atuar, dizer. O povo que diz: quero construir-me como povo, quero edificar, amar, respeitar, criar. Este povo que chora quando dizia: venho de um pais onde as mulheres não têm filhos e os filhos náo têm mães, e que canta: a Argélia, pais irmão, país que clama, país que espera.

Era pois a África, esta África que tínhamos de lançar no sulco continental, na direção continental. Esta África que tínhamos de orientar, mobilizar, lançar na ofensiva. Esta África futura.

O Oeste. Conakry, Bamako. Duas cidades mortas à superfície, mas por baixo, a temperatura é insuportável para os que calculam, que manobram, que se instalam. Em Conakry e em Bamako homens e mulheres modelam a África, forjam-na com amor e entusiasmo.

Moumié. A 3o de Setembro encontramo-nos no aeródromo de Accra. Ele ia a Genebra por causa de entrevistas muito importantes. Dentro de três meses, dizia-me, assistiremos a um refluxo em massa do colonialismo nos Camarões.

Em Tripoli, o nevoeiro não permitia qualquer aterragem e durante três horas o avião sobrevoou o aeródromo. A todo o custo, o piloto queria aterrar. A torre de controle recusava a autorização solicitada, mas o piloto, corajoso e inconsciente, tinha decidido pousar as suas dezenas de milhares de toneladas. “Estes tipos brincam com a vida das pessoas”, disse-me Félix.

Era verdade. Mas não estamos nós a brincar também com a nossa? Que era essa intrepidez do piloto comparada com as nossas vidas perpetuamente em suspenso? Hoje, Félix morreu. Em Roma, quinze dias depois, devíamos voltar a encontrar-nos. Ele não apareceu. Seu pai aguardava-nos em Accra, mas viu-me chegar sozinho e nessa altura apoderou-se do seu rosto uma grande tristeza.

Dois dias depois, ficamos a saber por um telegrama que Félix se encontrava hospitalizado. Depois, que se suspeitava de envenenamento. Kingué, vice-presidente do UPC, e Marthe Moumié decidiram partir para Genebra. Alguns dias depois recebíamos a notícia: Félix Moumié morrera.

Nem sequer sentimos esta morte. Um assassinato, mas sem sangue. Não houve nem rajadas de metralhadora, nem bombas. Envenenamento com tálio. Não faz sentido. Tálio! Como descobrir esta causa? Uma morte abstrata que atinge o homem mais concreto, mais vivo, mais impetuoso. O tom de Félix era constantemente elevado. Agressivo, violento, colérico, apaixonado pelo seu país, cheio de ódio pelos covardes e intriguistas. Austero, duro, incorruptível. Essência revolucionária em sessenta quilos de músculos e ossos.

À noite, fomos reconfortar os camaradas dos Camarões. O pai, de rosto burilado, impassível, inexpressivo, ouvia-me falar-lhe do filho. E, progressivamente, o pai dava lugar ao militante. Sim, dizia, o programa é claro. É preciso cumprir o programa. O pai de Moumié, nesse instante, fazia-me lembrar esses pais da Argélia que ouvem numa espécie de estupefação o relato da morte dos filhos. Que de quando em quando interrogam, pedem uma explicação e depois voltam a cair nessa inércia de comunhão que parece levá-los para onde, pensam eles, os filhos se dirigiram.

Todavia, a ação aí está. Amanhã, o mais rápido possível, será preciso fazer guerra ao inimigo, não lhe dar tréguas, pisá-lo, cortar-lhe a respiração.

Partamos. A nossa missão: abrir a frente sul. Fazer sair armas e munições de Bamako. Sublevar a população do Saara, infiltrarmo-nos até aos altos planaltos argelinos. Depois de ter levado a Argélia aos quatro cantos da África, voltar a subir com toda a África para a Argélia africana, para o Norte, para Argel, cidade continental. Eis o que eu queria: grandes linhas, grandes canais de navegação através do deserto. Forçar o deserto, negá-lo, juntar a África, criar o continente. Que do Mali penetrem no nosso território malis, senegaleses, guineenses, habitantes da Costa do Marfim e do Ghana. E os da Nigéria, do Togo. Que todos subam as encostas do deserto e se lancem contra o bastião colonialista. Tomar o absurdo e o impossível a contrapelo e lançar um continente ao assalto dos últimos baluartes da potência colonial.

Somos oito: um comando; o Exército, as transmissões, os comissários políticos, o corpo sanitário. Cada um dos pares deve prospectar, segundo a sua própria disciplina, as possibilidades de trabalho. Atuar rapidamente. O tempo urge. O inimigo continua a ser tenaz. Na realidade, não acredita na derrota militar. Mas eu nunca a senti tão possível, tão ao alcance. Basta caminhar, carregar. Nem sequer se trata de estratégia. Temos hostes mobilizadas e furiosas, apaixonadas pela nossa luta, ardentes no trabalho. Temos a África connosco. Mas quem se preocupa com isso? Um continente vai pôr-se em movimento e a Europa está langorosamente adormecida. Há quinze anos, era a Ásia que se revolvia. Então, divertiam-se. Agora, a Europa e os Estados Unidos eriçam-se. Os 650 milhões de chineses, tranquilos possuidores de um segredo imenso, constroem, por si sós, um mundo. Parto de um mundo.

Chawki. Um homem curioso. Comandante do ELN, originário de Souf. Pequeno, seco, olhos implacáveis, como geralmente são os dos velhos guerrilheiros. Há muito que identifico a antiguidade de um guerrilheiro pelo brilho dos seus olhos. Esses olhos não enganam. Dizem abertamente que assistiram a coisas duras: repressões, torturas, canhonadas, perseguições, eliminações... Lê-se nesses olhos uma espécie de altivez, de dureza quase mortífera. E também de inintimidação. Com homens assim depressa nos habituamos a estar atentos. Podemos dizer-lhes tudo, mas têm de sentir e tocar a Revolução nas palavras pronunciadas. Muito difícil enganá-los, contorná-los, desorientá-los.

De momento, Chawki e eu partilhamos o mesmo leito. As nossas discussões prolongam-se pela noite dentro e fico perpetuamente encantado perante a sua inteligência e a lucidez dos seus pensamentos. Diplomado pela Universidade Islâmica da Zitouna, na Tunísia, quis entrar em contacto com a civilização ocidental. Instalou-se em Argel para ali aprender francês, ver, julgar, discriminar. Mas a atmosfera de Argel com os colonos cheios de desprezo, a sua completa ignorância da língua francesa, o hermetismo do meio europeu, decidem-no a ir para França. Durante dois anos vive em Paris, introduz-se nos círculos europeus, assedia as bibliotecas e devora centenas de livros.

Por fim, volta a Argélia e propõe-se valorizar as terras do pai. 1954. Pega na espingarda de caça e junta-se aos irmãos. Conhece o Saara às mil maravilhas. Essa imensidão desértica e inumana reveste-se de pormenores infindáveis quando fala dela. Recantos hospitaleiros, vias perigosas, regiões mortais, direções de penetração, o Saara é um verdadeiro mundo onde Chawki se movimenta com uma temeridade e uma perspicácia de grande estratego. Os Franceses nem sequer suspeitam das partidas que este homem se prepara para lhes pregar.

É preciso dizer que a nossa missão ia terminando nas salas de interrogatório da Argélia. Em Accra, o empregado da Ghana Airways, Mensa, que exige por cada marcação algumas dezenas de milhares de francos, confirmara-nos o trajeto Monrovia-Conakry. Ora, no aeródromo liberiano informaram-nos de que o avião estava cheio e tínhamos de esperar pelo dia seguinte para chegar a Conakry num avião da Air France. Os empregados foram anormalmente atenciosos connosco e propuseram-nos que fosse a Companhia a pagar todas as despesas da estada. Esta solicitude exemplar, a nacionalidade francesa de vários empregados e o comportamento de vivandeira de uma francesa solícita e o mais possível embaladora levaram-nos a mudar de caminho. Decidimos deixar Monrovia por estrada e entrar na Guiné à noite por N’Zérékoré.

Até ao último minuto, os empregados estavam persuadidos de que apanharíamos o avião, que nesse dia tinha duas horas de atraso.

A segunda agência francesa tinha-se encarregado do assunto. Ao deixar Robertsfield, o avião, em vez de se dirigir para Freetown, arrepiou caminho e aterrou em Abidjan, onde foi revistado pelas forças francesas.

É claro que o Governo da Costa do Marfim tem uma responsabilidade de primeiro plano neste caso. Tal operação não poderia ter-se desenrolado sem a sua cumplicidade ou pelo menos sem a sua condescendência. Houphouët-Boigny, que alguns tentam ilibar, continua a representar no sistema colonial francês um papel de primeiro plano, e os povos africanos ganhariam em isolá-lo e em precipitar a sua queda. Houphouët-Boigny é objetivamente o freio mais consciente da evolução e da libertação da África. Enfim, a agência francesa deve ter-se arrependido. Semelhante operação só compensa quando tem êxito. Nestas condições, o malogro público revela métodos de banditismo que arriscam provocar uma certa relutância até naqueles que tinham aceitado fechar os olhos.

Espero, em todo o caso, que os serviços franceses nos tenham perdido o rasto.

Eis-nos em Bamako, capital do Mali. Modibo Keita, sempre militante, compreende imediatamente. Não há necessidade de grandes discursos. As nossas sessões de trabalho avançam depressa. Muito rapidamente os irmãos das transmissões discutem com ele e decidem instalar em Kayes um serviço de escuta. Penso que até 5 de Dezembro começará a funcionar. Por agora, estamos alojados no centro de abrigo do quartel de Bamako. Alerta de combate todos os dias, N’Krumah chega no dia 21 em visita oficial.

Em Bamako, o elemento francês continua a ser importante. Livrarias, farmácias, casas comerciais, pertencem na sua maioria aos colonos franceses. Aqui e ali cruzamo-nos com um comandante, dois sargentos... Ontem, domingo, dia 20, um adjunto francês ao serviço do Exército mali, vindo de Segou com uma companhia, chegou ao centro de abrigo. Apresentou-se muito delicadamente e apertou-nos a mão. Queria saber se podíamos arranjar-lhe uma cama. Nestas ocasiões, é preciso um pouco de humor. Em todo o caso, mandamos entrar de serviço uma sentinela a partir das 20 horas. De vez em quando veículos guiados por europeus andam à volta da villa. Este recanto não é muito seguro. Felizmente, as coisas precipitam-se. Terça-feira, 22, às 5 da manhã, partimos para Gao. A estrada Bamako-Tombuctu está intransitável.

De Bamako atingimos Segou, onde Jouanelle nos acolhe. Metemos gasolina e chegamos a San. Depois a Mopti. Em Mopti, um contratempo. À saída da cidade: uma barreira de polícias, e as sentinelas exigem-nos os passaportes. Discussões penosas, pois apesar do papel do ministro do Interior, os polícias querem saber as nossas identidades. Finalmente, chega o chefe de posto e é forçoso que me apresente. Mas parece que estamos em presença de um homem que procura tirar informações. Pretende saber a natureza da missão e a qualidade dos meus companheiros.

Então irrito-me e peço-lhe que me retenha e me prenda por me ter recusado a mostrar os papéis. Colocado nesta situação, compreende que fez asneira e deixa-nos partir prometendo-nos sigilo absoluto.

A estrada Mopti-Douentza está uma porcaria. Prosseguimos através de uma floresta adivinhando os rastos de uma viatura que lá deve ter passado há seis meses. Semelhante exploração em plena noite é muito penosa e perdemo-nos por mais de uma vez. Finalmente, às 2 da manhã chegamos. Ninguém na aldeia. O comandante está ausente e a mulher manda-nos para o acampamento... que está fechado. Uns na viatura, outros noutro lado, conseguimos, apesar de tudo, descansar um pouco. Às 7 horas, partida para Gao, via Hombori. Às 21 horas, batemos à porta do comandante. Dez minutos depois estamos em pleno trabalho. A coisa corre bem e os Malis estão absolutamente decididos a ajudar-nos na criação desta terceira frente. Falou-se entretanto da odisseia Leclerc. A que estamos a preparar, se o Governo Francês não o perceber a tempo, transformará o episódio Leclerc numa excursão banal. Em Gao, encontramos uma documentação completa deixada pelos serviços secretos franceses sobre os confins argelino-marroquinos. Todos os nomes de argelinos que lá vivem estão mencionados. Está também mencionada à margem a sua maior ou menor adesão às ideias nacionalistas. Encontramos facilmente em negativo a ossatura de uma célula de trabalho e de passagem. Obrigado, comandante Cardaire.

Depois de dois dias em Gao, dirigimo-nos a Aguerhoc. O comandante de Gao manda-nos largar as nossas roupas peuhls e oferece a cada um de nós um bom uniforme de goumier com uma Mas 36 e 20 cartuchos. Aliás, teremos ocasião de matar uma abetarda e várias corças.

Em Aguerhoc encontramos, pelas 23 horas, o chefe da subdivisão de Kidal, que está acompanhado pelo chefe de posto de Tessalit. Apresentação. Trinta minutos depois discutimos estratégia, terreno, passagem...

É emocionante viver estes instantes. Foi preciso que estes dois responsáveis soubessem quem éramos para que toda uma imensa cumplicidade, até aqui latente, se exprimisse. Dão-nos tudo o que queremos. Queremos ver de perto a fronteira, Tessalit, Bouressa em frente de Tir, Zaouaten, onde os franceses, apressados, constroem um aeródromo...? De acordo.

E eis que partimos por uma estrada de cerca de 1.000 km.

Esta parte do Sazra não é de modo nenhum monótona, Mesmo lá no alto, o céu muda constantemente. Há poucos dias assistimos um pôr do Sol que tornava violeta o trajo do céu. Hoíe é um vermelho muito duro que limita o olhar. Aguerhoc, Tessalit, Bouressa. Em Tessalit atravessamos o acampamento militar francês. Um militar francês em tronco nu faz-nos sinais amistosos. Os braços cair-lhe-iam se lhe fosse dado adivinhar quem se esconde por detrás destes uniformes de goumíer.

Em Bouressa estabelecemos contacto com um grupo nómada mali. Ficamos a conhecer cada vez mais pormenores sobre as forças francesas. Bordj le Prieur, Tir Zaouaten, Bidon V.

E, além disso, Tamanrasset, onde, por amostras, conseguimos ter uma ideia bastante exata dos efetivos franceses. Os guias que encontramos em Bouressa têm ar de sérios e decididos. Teremos de os utilizar prioritariamente.

Em Kidal consulto alguns livros de história do Sudão. Revejo, com a intensidade que as circunstâncias e os lugares impõem, os velhos impérios do Ghana, do Mali, de Gao, e a impressionante odisseia das tropas marroquinas com o famoso Djouder. Nem tudo é simples. Eis que a Argélia em guerra vem solicitar a ajuda do Mali. Ora, durante esse tempo, Marrocos exige a Mauritânia e uma parte do Mali... E ainda uma parte da Argélia.

Eis que nos preparamos para revolver de alto a baixo, em torno de um campo de batalha, onde será necessário muito rigor e sangue-frio, esta região saariana trabalhada por tantas influências e onde os oficiais franceses não se cansam dc criar focos de dissidência. Algumas reflexões recolhidas aqui e ali, sempre muito vigorosas quando se trata do Islão e da raça, exibem uma prudência redobrada.

O colonialismo e seus derivados não constituem, a bem dizer, os inimigos atuais da África. A curto prazo, este continente será libertado. Pela minha parte, quanto mais penetro nas culturas e nos círculos políticos, mais se me impõe a certeza de que o grande perigo que ameaça a África é a ausência de ideologia. A velha Europa andou a penar durante séculos antes de perfazer a unidade nacional dos Estados. E mesmo que lhe fosse possível pôr um ponto final, quantas guerras ainda! Com o triunfo do socialismo na Europa oriental assiste-se a um desaparecimento espetacular das velhas rivalidades, das tradicionais reivindicações territoriais. Este foco de guerras e de assassinatos políticos que a Bulgária, a Hungria, a Estónia, a Eslováquia, a Albânia, representavam deu lugar a um mundo coerente cujo objetivo é a edificação da sociedade socialista.

Pelo contrário, em África, os países que se tornam independentes são tão instáveis como as suas novas burguesias ou os seus príncipes renovados. Depois de alguns passos hesitantes na arena internacional, as burguesias nacionais, não sentindo já a ameaça da potência colonial tradicional, descobrem de súbito grandes apetites. E, como não têm ainda prática política, entendem conduzi-los como um negócio. Prebendas, ameaças, ou mesmo, literalmente, despojamento da vítima. Tudo isto é, evidentemente, lamentável, porque os pequenos Estados não têm outro remédio senão suplicar à antiga metrópole que fique um pouco mais. Igualmente, nesses pseudo-Estados imperialistas, uma política militarista a todo o transe provoca a diminuição dos investimentos públicos em países em parte ainda medievais. Os operários descontentes sofrem uma repressão tão implacável como a dos períodos coloniais. Sindicatos e partidos políticos da oposição estão confinados a uma quase clandestinidade. O povo, que dera tudo nas horas difíceis da luta de libertação nacional, interroga-se, de mãos e barriga vazias, sobre o grau de realidade da sua vitória.

Há quase três anos que tento libertar a nebulosa ideia da unidade africana dos marasmos subjetivistas, ou mesmo abertamente fantasmáticos, da maioria dos seus partidários. A unidade africana é um princípio a partir do qual nos propomos construir os Estados Unidos da África, sem passar pela fase nacional chauvinista burguesa com o seu cortejo de guerras e de lutos.

Para se chegar a esta unidade, todas as combinações são possíveis.

Alguns países, como a Guiné, o Ghana, o Mali e talvez amanhã a Argélia, põem em primeiro plano a ação política. Outros, como a Libéria e a Nigéria, insistem na cooperação económica. A RAU, por seu lado, insistiria mais no plano cultural. Tudo é possível e tanto uns como os outros deveriam evitar desacreditar ou denunciar os que vêem essa unidade, essa aproximação dos Estados africanos, de uma maneira diferente da sua. O que é preciso evitar é a tensão ghano-senega- lesa, a tensão somalo-etíope, marroco-mauritaniana, congolo- -congolesa... Na realidade, os Estados colonizados que se tornaram independentes pela via política parecem não ter outras preocupações além de descobrir um verdadeiro campo de batalha com ferimentos e destruições. No entanto, é claro que esta explicação psicológica, que se reporta a uma hipotética necessidade de desrecalcamento da agressividade, não nos satisfaz. Mais uma vez temos de recorrer aos esquemas marxistas. As burguesias triunfantes são as mais impetuosas, as mais empreendedoras, as mais anexionistas que há (não foi por acaso que a burguesia francesa de 1789 pôs a Europa a ferro e fogo).

Indicações técnicas

1.° Passagens para caminhões: difícil de realizar de imediato. É necessário preparar a coisa. Contactar o motorista. Depois, estudar o processo. Estudar os depósitos. Isto exigirá, se quisermos rodear-nos do mínimo de cuidado e assegurar o máximo de êxito, pelo menos três meses de preparação a partir do início real da aplicação do projeto.

2.º O problema é saber o que se quer:

  1. Ou alimentar forças já existentes no Saara;
  2. Ou alimentar as wilayas 1 e V e os restos da VI;
  3. Ou criar literalmente uma série de linhas de ataque perpendiculares ao Atlas Telliano que eventualmente encontrariam e trabalhariam conjuntamente com as wilayas já existentes. Evidentemente, pode-se replicar que estas soluções não são exclusivas e que as três opções podem caber num mesmo programa. De qualquer maneira, é necessário que uma destas três possibilidades tenha prioridade, mesmo que o conjunto da operação saariana inclua as três.

Pessoalmente inclino-me para o ponto c. Como realizá-lo?

Antes de mais, trazer para a fronteira o máximo de material. Nos próximos dois meses: 10.000 espingardas; 4.000 P.M.; 1.500 F.M.; 600 metralhadoras; 300 a 400 lança-foguetes.

As minas e as granadas não diretamente utilizáveis no Saara deveriam ser reservadas para o abastecimento das wilayas do Norte.

Que fazer com estas armas, quer dizer, como realizar a ação?

Vejo o problema segundo duas direções:

A direção horizontal é a direção de implantação, enquanto a vertical é a de penetração.

Uns quarenta elementos conhecedores do Saara e excelentes militantes poderiam ser nomeados chefes de comando.

Estes comandos evoluiriam em grupos de 10. Cada comando poderia comportar à partida 20 a 25 membros, ficando a cargo dos chefes fazer subír rapidamente o número para 100, mesmo 150. O recrutamento, a princípio, seria feito localmente. Não só elementos argelinos que vivem no Mali, mas também elementos tuaregues malis. Isto pode ser feito num mês e meio. A partir de hoje até 15 de Janeiro podemos armar e introduzir na Argélia 500 a 800 homens armados.

A primeira vaga é de politicização, de mobilização. Deverá evitar-se a escaramuça e deixar passar as ocasiões de ferir o inimigo, mesmo que o êxito esteja garantido. O seu papel é despertar as populações, sossegá-las quanto ao futuro, mostrar o armamento do ELN, libertá-las psicologicamente e mentalmente da influência do inimigo.

Em cada tribo importante que se encontre o comando deve recrutar cerca de 3 a 4 novos membros e deixar 5 ou 4 dos seus membros de origem. Porque:

  1. Os novos recrutas conhecem o terreno em frente e servem a principio de traço de união, de intérpretes políticos junto das tribos do Norte;
  2. Os membros do comando que ficam preparam os diferentes canais de ligação que acolherão as vagas seguintes.

Teríamos, pois, o esquema seguinte:

grafico

Ao mesmo tempo, colunas de abastecimento passariam na 1ª base.

A 2.ª base enviaria para a 1.ª base colunas de abastecimento. À 3.ª base para a 2.ª... e assim sucessivamente. Só quando as bases avançadas tiverem recebido 3 ou 4 remessas de abastecimento é que se poderá pôr a questão do desencadeamento das operações.

Aliás, nessa altura, os contactos com os caminheiros e talvez uma situação melhor no Fezzan permitir-nos-ão alimentar regularmente os grupos do ELN.

Cada grupo de 25 teria o seguinte armamento:

Os grupos partiriam com dois dias de intervalo. Seria preciso prever um posto de rádio:

À partida, para a base 0, que se encontraria em D;

Para a 4-a base, que se encontraria em J;

Para a 9-a base, que se encontraria em A; e dois ou três postos ao longo da fronteira.

Estes postos fronteiriços terão horas de comunicação com o Estado-Maior Norte e com cada um dos postos das bases 0, 4.ª e 9.ª

continua>>>


Inclusão 28/07/2018