Em torno da insurreição de 1917 e dos seis primeiros meses do poder bolchevista

Ruy Fausto
(com agradecimento a Cícero Araujo)(1)

Dezembro de 2010


Fonte: Revista Fevereiro nº 2 dez/2010 e nº 3 jun/2011 - https://www.revistafevereiro.com/

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


1ª parte

Introdução

A história da insurreição de outubro de 1917, e dos primeiros tempos do poder bolchevista, foi, desde sempre, mais ou menos mitificada. A versão leninista, ela mesma já bastante enganosa, deu lugar, à medida que Stálin começava a sua carreira vitoriosa, a uma versão falsificada, e depois fantasiosa, no estilo das produções ideológicas do stalinismo. Com a contestação krushevista e depois gorbatcheviana de Stálin, apesar dos limites e dos interregnos de recuo, liberouse de certo modo a antiga versão leninista, menos fantasiosamente falsificadora, mas de qualquer modo pouco objetiva. A atividade crítica da historiografia antileninista (liberal e socialista nãoleninista), que data pelo menos dos anos 30, e já tem portanto, uns oitenta anos de existência, foi muito salutar. Não, entretanto, sem ter dado respostas às vezes unilaterais, às vezes simplificadoras, no seu afã de desconstruir a versão oficial. Não entrarei aqui no detalhe da historiografia sobre a insurreição de outubro (digase de passagem, na discussão dessas leituras, a versão tomada como tradicional é a que questiona as teses bolchevistas, e a que as tenta, mais ou menos reabilitálas, é chamada de “revisionista”; mas esse ponto – não, claro, a própria discussão – remete a um problema de terminologia).

O presente texto é uma versão muito reduzida de um trabalho de mais fôlego. O balanço crítico que comecei a elaborar tomou dimensões incompatíveis com uma publicação em revista. Na impossibilidade de publicar aqui o texto completo, apresento uma discussão das questões essenciais, deixando de lado uma parte da sua fundamentação “empírica” (as aspas remetem ao fato de que utilizei principalmente, mas não só, é verdade – já que há fontes primárias traduzidas(2) – fontes secundárias). De qualquer modo, espero ter fornecido o essencial das referências que fundamentam as teses aqui apresentadas. Mais do que isto, além do que já fornece o corpo do artigo, decidi interpolar no texto, na forma de quatro excursos, cujos temas são indicados, um material (em geral) narrativo relativamente amplo.(3) É que a história dos anos 19178 na Rússia é, apesar das aparências, muito mal conhecida e, como já disse, obscurecida por mitos persistentes. A acrescentar que os detalhes e a microhistória têm, aqui pelo menos, uma importância muito maior do que a que se supõe. Pode dizer, que, sem ela, é difícil entender o que foi a política do bolchevismo (a de Lênin e Trotski, em particular), nos anos 191718.

1. Seria possível esquematizar os problemas principais que se colocam, quando se pretende refletir sobre a insurreição de outubro de 1917 e sobre o que ocorre no primeiro semestre de 1918. As questões são essencialmente as seguintes. A insurreição de outubro de 1917 foi uma verdadeira revolução? Ou foi, como pretenderam alguns historiadores e homens políticos – de direita, e de esquerda nãoleninista – mais um golpe de Estado do que uma revolução? Pergunta já antiga, e que merece discussão. A segunda questão é: porque razões o poder estabelecido em outubro (novembro) de 1917 era constituído apenas por membros do partido bolchevique? Ou seja, por que, ou em que condições, a insurreição de outubro leva ao poder um governo de um só partido? Tais perguntas remetem aos acontecimentos que antecedem o movimento de outubro, e ao processo do próprio movimento. As questões seguintes, de igual, ou talvez de maior importância, remetem ao que ocorreu no período de outubro (novembro) de 1917 a junho/julho de 1918. Elas são essencialmente duas. Por que razão ou razões, o poder bolchevista evolui, ou involui, em alguns meses, de um regime de estilo autocrático, mas no interior do qual subsistiam certos espaços de liberdade, para um regime autocrático fechado? Essa mudança decorre da irrupção da guerra civil, como se pretende frequentemente? E, segunda pergunta: qual o curso que tomam as relações entre as massas populares e o bolchevismo, no período que vai de outubro (novembro) de 1917 a junho/julho de 18? A base popular do bolchevismo aumenta, como se pretende frequentemente, ela se mantém no nível alcançado em outubro, ou ela se deteriora substancialmente? Eis aí o quadro das questões. Dados os limites desse texto, não poderia desenvolver muito a discussão, e, como já observei, as referências às fontes têm de ser mais ou menos limitadas.

2. Para a interpretação bolchevista tradicional, nada poderia parecer mais abstruso do que pôr em dúvida o caráter de “revolução” do movimento de outubro. Entretanto, o problema é menos simples do que parece. “Revolução” se opõe, em geral, a “golpe de Estado”. Marc Ferro, autor de uma história da revolução de 17, afirma em algum lugar que, em outubro de 1917, houve as duas coisas. Revolução e golpe. Mas essa resposta é ela mesma ambígua. Que houve “golpe de Estado”, no sentido de que houve uma preparação militar vinda de cima para se apossar do poder, não é negada nem por Trotsky, na sua História da Revolução Russa. A questão é saber se esse “golpe de Estado” responde ou corresponde ao lado “revolução” do processo (se supusermos que houve também esse lado), ou se pelo contrário, ele, de algum modo, se lhe opõe.

Há razões para pôr em dúvida (ou “atenuar”, de alguma forma) o caráter de “revolução“ do processo de outubro . A participação popular foi muito pequena. Trotsky fala numa participação total ativa máxima de 25 mil a 30 mil,(4) o que, observa o historiador Orlando Figes, representaria “mais ou menos 5% de todos os operários e soldados da cidade”. Claro que se poderia discutir a importância do número de participantes. Mas observese, na revolução de Fevereiro, havia algumas centenas de milhares de pessoas na rua.(5) Dirseá que isso é normal, na medida em que Fevereiro foi uma revolução de muitas classes, enquanto que outubro teria sido uma revolução operária. O problema é que, em Fevereiro, já no dia 23, havia uns 100 mil operários na rua,(6) “um terço da força de trabalho industrial da cidade”. No dia 25, havia uns 200 mil.(7) A diferença em relação a outubro é muito grande. E observese que os 25 ou 30 mil participantes em outubro, de que fala Trotsky, representam o conjunto dos participantes ativos. Na famosa tomada do Palácio de Inverno, teria havido menos do que 15 mil, talvez bem menos.(8) Como se sabe, a vida da cidade funcionou mais ou menos normalmente durante o episódio insurreicional. Enfim, se “revolução” indica uma grande mobilização de massas, outubro não foi uma revolução. Entretanto, é verdade que os bolcheviques tinham apoio popular, de soldados, marinheiros e operários. Eles haviam conseguido maioria no soviete de Petrogrado, em setembro e também no de Moscou, e as eleições para as dumas mostram o seu progresso. Por outro lado, eles seriam majoritários no Segundo Congresso PanRusso dos Soviets, que se abre no momento mesmo do movimento de outubro (inicialmente – antes da retirada de mencheviques e SocialistasRevolucionários (SR) – os bolcheviques tiveram maioria relativa; absoluta, só com seus aliados SR de esquerda). Mas, além do fato de que a maioria popular de que eles dispunham se manifestou muito pouco em outubro, aqui abremse alguns problemas (em parte já invadindo a segunda questão). O primeiro é o de saber o que queriam os eleitores do partido bolchevique, assim como os delegados aos sovietes e ao Congresso dos Sovietes. Certamente, eles queriam o fim do Governo Provisório. Porém, a esquerda menchevique dirigida por Martov também o queria, e também a esquerda SocialistaRevolucionária (além de outros grupos da esquerda da esquerda). Mesmo o Préparlamento(9) havia votado uma moção de desconfiança em relação ao Governo Provisório. Mas essas maiorias dentro e fora dos sovietes, queriam um governo bolchevique, e, mais especificamente, só bolchevique? Tudo o que se sabe leva à idéia de que o que eles queriam era “um governo dos sovietes”, sem dúvida um governo não coinciliacionista dos sovietes, mas um governo que não fosse só do partido bolchevique. Inversamente, majoritário ou não, Lênin não pensa em manifestações de massa, e quanto aos sovietes e, particularmente, ao Congresso, fora um curto episódio sobre o qual voltarei logo mais adiante, ele não pretende, de modo algum, ser alçado ao poder através desses órgãos. Excetuando o referido interregno, ele conspira ativamente, e trata de convencer o seu partido de que é preciso não só tomar o poder, mas de que é necessário tomálo antes do Congresso dos Sovietes (como se sabe, Trotsky diverge, ele quer que as duas coisas coincidam, o que, por razões que veremos, acaba acontecendo). Poderseia perguntar: se Lênin convocasse as “massas” para grandes manifestações, elas teriam saído à rua? Se ele as tivesse convocado, certamente teria havido mais gente na rua, mas é duvidoso que houvesse muita. Há certa convergência, na idéia de que havia um refluxo do movimento de massas. Porém, o essencial é que ele não convocou. Ainda mais importante, por que Lênin quer tomar o poder antes do Segundo Congresso? A resposta que dá Figes parece convincente. Quaisquer que fossem os riscos, Lênin queria ter as mãos livres para governar, e não depender dos sovietes. Um governo indicado pelos sovietes teria de ser, de algum modo, um governo de coalisão. Ora, se os bolcheviques tomassem o poder antes do Congresso, haveria possibilidades bem maiores de que esse governo fosse um governo só do partido bolchevique. Lênin nunca deixou dúvidas sobre o problema de saber como ele gostaria que os bolcheviques governassem. A posição de Trotsky indicava uma diferença importante? Trotsky estava um pouco mais interessado em legitimar o poder bolchevique pelos sovietes, mas aparentemente não tinha uma perspectiva muito diferente da de Lênin.

Aqui, já entramos na segunda questão. Por que o governo que é entronizado em outubro é apenas bolchevique? A perspectiva de Lênin até as jornadas de julho é a de tomada do poder pelos sovietes (ou pelo menos a palavra de ordem é “todo poder aos sovietes”). Ele a retira, em seguida, porque considera que os sovietes se passaram para os moderados, para recolocála em setembro, quando os bolcheviques se tornam majoritários. Em setembro, há um momento em que ele considera possível uma tomada do poder através dos sovietes, com a participação de outras tendências (SR de esquerda e mencheviques internacionalistas, essencialmente). Kamenev, o melhor representante dos bolcheviques moderados tenta um acordo, e Lênin o apoia, isso no começo de setembro. Em quê tal tentativa poderia redundar não sabemos. Supondo que o acordo se fizesse – e em que bases ele se faria? – é de se perguntar como se comportariam os bolcheviques nessa coalisão. Mas fracassada essa tentativa, seu projeto passa a ser o de um governo apenas bolchevique, ou, em todo caso, um governo em que os bolcheviques teriam as mãos livres. Sabese o que aconteceu depois.

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Excurso I - Lênin e a tomada do poder por um só partido

Chegando à Rússia em abril, Lênin dá como perspectiva a luta contra o Governo Provisório e contra a direção moderada dos Sovietes, e propõe uma nova revolução e um governo dos sovietes (e não uma república parlamentar).(10) Perspectiva que não foi apoiada imediatamente por quase ninguém no partido. No final do mês, o projeto é um pouco atenuado, porque se reconhece a necessidade de um “longo período de agitação” para que as massas sigam o partido no seu caminho em direção à nova revolução.(11) Depois das jornadas de julho e da repressão contra a extremaesquerda, Lênin retira a palavra de ordem de “todo o poder aos sovietes” para recolocála em setembro,(12) quando os bolcheviques passam a ter maioria. Esse é o momento em que se abre a possibilidade de um acordo no interior da esquerda, e de uma tomada do poder pacífica pelos sovietes. Kamenev, o líder bolchevique que encarna melhor uma perspectiva democrática, se esforça por concluir uma aliança tripartidária, e é mesmo apoiado por Lênin, na primeira quinzena de setembro. Mas a aliança fracassa, os resultados da Conferência Democrática [uma conferência organizada por iniciativa dos SRs e mencheviques, para discutir precisamente a questão da aliança com os liberais] são contraditórios, e Lênin volta à perspectiva da revolução armada. Esse episódio foi muito utilizado para mostrar as intenções “democráticas” de Lênin, mas por várias razões, ela não prova muito. Lênin nunca pensou num verdadeiro governo de coalisão. Que o seu projeto sempre foi o de governar em regime de partido único poderia ser confirmado ainda por uma carta que ele envia a Lunatcharsky em 25 de março de 1917: “A independência e a separação do nosso partido, nenhuma aproximação qualquer que seja com outros partidos – são para mim um ultimatum. Sem isto, seria impossível ajudar o proletariado a avançar, através da revolução democrática, até a comuna, e eu não obedecerei a outros objetivos”.(13) Figes critica a ilusão de Deutscher, segundo o qual Lênin queria fazer do soviete uma espécie de parlamento à inglesa:(14) “[O abandono, entre julho e setembro da palavra de ordem “todo poder aos sovietes”] era revelador da atitude de Lênin em relação aos sovietes, em cujo nome o seu regime viria a ser fundado, [o fato de] que, sempre que os sovietes deixavam de servir os interesses do seu partido, ele estava pronto a abandonálos”.

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Formado o Comitê Militar Revolucionário dominado pelos bolcheviques, o qual vai assegurando poder sobre a tropa, Kerensky reage tentando fechar dois jornais bolcheviques. Começa uma mobilização de soldados e guardas vermelhos (os guardas vermelhos eram destacamentos de operários, constituídos no início, independentemente, mas que logo cairão sob o controle dos bolcheviques). Quando começa o Congresso dos Sovietes, a cidade já  está praticamente nas mãos dos adversários do Governo Provisório, que subsistia ainda, entretanto, apoiado por pequenas tropas, no Palácio de Inverno. Na sessão do Congresso, Martov propõe um governo com representantes de diferentes tendências revolucionárias. A proposta é recebida com apoio esmagador. Mas aí, protestando contra o movimento, socialistasrevolucionários de direita e mencheviques de direita se retiram. Martov fica e propõe, de novo, uma coalisão. Trotsky faz então o seu famoso discurso jogando todos os adversários do bolchevismo “na lata de lixo da história”. Martov e os mencheviques internacionacionalistas se retiram então. Os SR de esquerda ficam, mas não aceitam participar do governo, porque querem um governo de coalisão ampla (eles entrariam no governo em dezembro, e ficariam até março). Aqui evidentemente entra a discussão do papel da direita menchevique – que foi majoritária no partido até outubro –, e dos socialistasrevolucionários de direita. Se a formação de um governo exclusivamente bolchevique é lamentável, e se ela se deve certamente ao “vanguardismo“ de Lênin (e também de Trotsky, mas não de todo o partido bolchevique), ela se deve também, é claro, à política ilusória, para não dizer mais, de mencheviques e socialistas revolucionários, que insistiam na aliança com os liberais (o problema da aliança com os liberais é que ela impedia toda tentativa de responder de uma maneira mais satisfatória à ofensiva radical de operários e camponeses : o insucesso das tentativas de fazer uma política mais radical, por parte do líder SR Tchernov no ministério da Agricultura, e do menchevique Skobelev no ministério do Trabalho, o comprovam).

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Excurso II - Sobre o Governo Provisório

O Governo Provisório, do qual participarão os socialistas a partir de maio, é tradicionalmente considerado como um governo fraco, que foi incapaz de resolver os grandes problemas, guerra e terra principalmente, e que, por isso, caiu. Isto, em grandes linhas, é verdade. Porém, são necessárias algumas precisões. Rex Wade escreve em The Russian Revolution, 1917:(15)

“Quando se faz a lista das falhas do Governo Provisório e dos Defensistas revolucionários [os mencheviques de direita e os socialistasrevolucionários de direita, que participam do governo a partir da primeira coalisão em Maio] introduziram amplas (sweeping) reformas, especialmente, mas não só, no [campo dos] direitos civis e das liberdades. Estas reformas foram realmente notáveis, se comparadas com o que existia na Rússia havia apenas algumas semanas, e mesmo se comparadas com o mundo, na época. Eles tentaram criar uma sociedade democrática e mais igualitária, baseada na autoridade da lei e não na arbitrariedade, e um sistema político baseado em eleições e na vontade popular, e não na autocracia e no autoritarismo. (...) Dificilmente [se pode considerálos] moderados [se julgados] por qualquer medida normal do socialismo europeu da época, e menos ainda em comparação com a sociedade russa de antes de 1917. Eles (...) [se situavam] na faixa (edge) radical do pensamento europeu e mundial da época”.

Isto se refere tanto ao Governo Provisório, como em particular aos socialistas que participaram dele. Deve ser essencialmente correto, no que se refere às medidas políticas. Mas, para as medidas sociais, a coisa é mais complicada. Não há dúvida de que havia projetos bastante avançados, mas, ao que parece, só uma parte, em geral pouca coisa, pôde ser posta em prática.

Há três elementos principais num balanço dos avanços (incluindo os virtuais...) atribuiveis ao Governo Provisório. Por um lado, o que se fez no início, antes mesmo da entrada dos socialistas. Havia uma atmosfera de pacificação, e por exemplo, numerosos patrões aceitaram a redução da jornada a 8 horas, como resultado de conversações com o Soviet.(16) No que vem depois, acho que se deve destacar os projetos de Skobelev, ministro do trabalho mechevique de maio a agosto de 1917, e os de Tchernov, grande figura do centro SR, ministro da Agricultura, também de maio a agosto.

Quando (...) Skobelev se torna ministro do Trabalho (...) escreve o historiador Edward Acton ele anuncia confiante uma longa lista de reformas do trabalho” que pretendia introduzir: “pleno apoio legal para a jornada de oito horas, pleno direito de greve, estabelecimento de uma inspetoria do trabalho, um sistema amplo de proteção do trabalho, e uma vasta legislação social incluindo medidas imediatas de ajuda aos desempregados”.(17)

Tchhernov tenta introduzir uma moratória das vendas e arrendamento da terra, assim como um ampliação dos poderes dos comitês de camponeses.(18) Essas propostas recebam fogo cerrado da direita, e não são implementadas. Mas se Tchhernov e Skobelev são mal vistos pela esquerda, eles são (ou acabam sendo) também as “bêtes noires” da direita, inclusive do centrodireita.(19) Podemos discutir, até onde eles queriam ir. Mas, de fato, é importante salientar que eles viviam numa situação de extremo radicalismo – no campo e, depois, também, na cidade – e que eles tinham de enfrentar o problema, muito difícil, da guerra. A radicalização no campo (ocupação de terras) exigia uma lei agrária avançada. Sem dúvida, mencheviques e socialistasrevolucionários moderados – supondo que tivessem vontade – não poderiam ir mais longe, sem abandonar a aliança com os liberais. Mas por que razões eles não se dispuseram, ou se dispuseram tarde demais – grande parte dos mencheviques, acaba aderindo, tardiamente, às posições críticas de Martov – a abandonar a idéia do caráter imprescindível da aliança com os liberais? No que se refere aos mencheviques, mas não, salvo evolução posterior, para os SR, pesava é claro, a tese de que, dado o atraso da Rússia, a revolução só poderia ser burguesa, o que implicava para eles – mas não para todas as correntes que admitiam, de um modo ou de outro, o caráter necessariamente “burguês” da revolução – que não se poderia abandonar prática da coalisão. Mas havia também, um elemento (ilusoriamente) pragmático. O historiador Edward Acton, acentua um aspecto interessante. Os socialistas moderados temiam acima de tudo a contrarevolução, cujo ameaça exageravam, e julgavam que a melhor maneira de se defender contra ela, era se aliar aos liberais. Eles temiam, entre outras coisas, que o patriotismo dos soldados se voltasse contra os operários.(20)

Mas há dois elementos que são essenciais para pensar o fracasso do Governo Provisório. Um deles foi um erro fundamental, que se não desencadeou, acelerou muito a virada, que o privaria de base popular: a decisão de organizar uma ofensiva em junho de 1917. O outro é a questão da Assembléia Constituinte: o erro é aqui inverso ao da ofensiva; é de omissão ou, antes, de lentidão na tomada de uma iniciativa. Hoje, temse dificuldade em entender por que os socialistas moderados se dispuseram a tomar uma decisão tão negativa para o seu futuro político, como a da ofensiva de verão, e cujas consequências se poderia aparentemente prever. Do ponto de vista deles, o raciocínio não era, entretanto, tão irracional. Acton ressalta que, no raciocínio dos lideres moderados, uma paz em separado com a Alemanha poderia levar os Impérios Centrais à vitória na guerra, o que seria, uma catástrofe, pois, no seu entender, os Impérios Centrais vitoriosos acabariam ameaçando a revolução russa. Observese que, aos olhos dos socialistas, simpáticos à Entente, com a revolução de Fevereiro caíra o único argumento – de que fez uso abundante a SocialDemocracia oficial alemã – que poderia fundamentar um apoio aos Impérios Centrais: o de que a Alemanha e a AustriaHungria lutavam contra o que havia de mais reacionário na Europa, o Império Russo. A guerra teria se transformado numa luta das democracias (França, Inglaterra, Rússia, EUA) contra os governos capitalistasburocráticos da Europa Central. As tropas russas arvoravam estandartes vermelhos com slogans,(21) mas a ofensiva fracassou, passado o forcing inicial. A partir daí, a despeito da repressão que se desencadeia depois das jornadas de julho, a extremaesquerda cresce incessantemente.

A Assembléia Constituinte tem uma curiosa e trágica posição em toda essa história. Velha aspiração dos liberais e socialistas, ela é uma espécie de fantasma, cuja encarnação futura, ao mesmo tempo move e freia todo o processo. As questões mais importantes eram frequentemente abandonadas à futura Assembléia Constituinte. Era lá que o essencial seria decidido. Isso convidava ao adiamento das decisões. Sem dúvida, os problemas técnicos enfrentados pelas comissões encarregadas de organizar as primeiras eleições gerais livres na Rússia devem ter sido muito grandes. Mas, aparentemente, nem todos os partidos tinham pressa em organizar as eleições. Ao que parece, os Kadetes (democratasconstitucionalistas), que temiam o resultado, preferiam esperar que a situação se estabilizassse. A Assembléia Constituinte, foi convocada tarde demais. Como se sabe, quando ela é eleita, os bolcheviques já estão no poder.

A política do Governo Provisório foi, assim, mais complicada do que se diz em geral, mas teve um momento de desastre absoluto, que foi o da tentativa de iniciar uma ofensiva contra os alemães, em junho. Essa ofensiva, extremamente impopular entre soldados cansados da guerra, vai decretar o fim do Governo Provisório.

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Retomando o tema principal, e resumindo. A dificuldade em considerar o movimento de outubro como “revolução”, vem, em primeiro lugar, da escassa participação das “massas” no movimento. Esta seria compensada pelo fato de que, efetivamente, os bolcheviques tinham apoio da maioria dos operários, apoio manifestado nas eleições para as dumas, para os sovietes e o Congresso. Mas esse elemento justificante é, por sua vez, atenuado pela circunstância de que as “massas” e também as delegações em sovietes e no Congresso, eram muito mais antiGoverno Provisório (e prósoviete), do que propriamente favoráveis ao bolchevismo (e a fortiori a um governo só bolchevique). Lembremonos de que a palavra de ordem do bolchevismo era de novo “todo poder aos sovietes”, não “poder ao partido bolchevique” (como seria o caso, mutatis mutandis, com o partido nazista). Há assim uma descontinuidade entre o movimento de massas e o movimento de outubro, que torna difícil empregar sem mais o termo “revolução”. Porém, a idéia de golpe de Estado – pelo menos sem maiores explicações – é insuficiente, porque havia um amplo movimento, ou pelo menos uma “ampla atitude” de oposição ao Governo Provisório. Mas como esse movimento era, assim, antes antiGoverno Provisório do que próbolchevique (ou próbolchevique, mas só na medida em que o bolchevismo era o movimento que queria “o poder dos sovietes”), podese falar no “qüiproquó” de outubro, como escreve o historiador francês Nicolas Werth. E o que vem depois vai reforçar a tese do quiproquo. O pósoutubro revela como era frouxo e superficial o apoio “positivo” ao bolchevismo, até onde ele existia. E como o bolchevismo poria a seu serviço, da forma mais brutal, o movimento de outubro. O que aconteceu depois ilumina, retrospectivamente, o que se passou antes e durante outubro.

Por outro lado, a maneira pela qual é preparado e realizado o golpeinsurreição de outubro só confirma o que já se sabia anteriormente, pela leitura dos textos e a análise da política: que Lênin, e com ele o Trotski que aderiu ao bolchevismo, tinham em mente o projeto de um governo de partido único (na forma e no conteúdo, ou pelo menos no conteúdo).

3. As questões a propósito do pósoutubro são, de certo modo, mais importantes. Como evoluem as relações entre o poder bolchevique e as massas populares, depois de outubro? E como se explica o progressivo fechamento do regime; ele deriva, como se pretende frequentemente, da deflagração da guerra civil?

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Excurso - III Tentativas de um governo plural

A resistência ao golpeinsurreição de outubro é em geral pequena, de imediato. Kerensky consegue reunir algumas tropas perto de Petrogrado, sob o comando do general Krasnov as quais enfrentam guardas vermelhos (ajudados por operários, homens e mulheres),(22) e são derrotadas; há um choque sangrento com cadetes em Petesburgo; e uma luta mais prolongada, que dura vários dias, em Moscou. A idéia de uma coalisão das esquerdas ainda não fora liquidada. O episódio mais importante nesse momento é a intervenção do Vikzhel, o Comitê Executivo PanRusso da União dos Ferroviários, dirigida pelos SR de esquerda.(23) A União faz um apelo em favor de um governo que não fosse de um só partido e, pelo contrário, tivesse o apoio de “toda a democracia”, e ameaça entrar em greve, caso a proposta não fosse aceita. Em princípio, a proposta é aceita por todos os partidos, inclusive os bolcheviques: Krasnov ainda não fora derrotado, e a luta em Moscou duraria ainda algum tempo. O comitê central menchevique agora sustenta os internacionalistas de Martov, que são favoráveis ao acordo. As direitas menchevique e SR, pouco realistas, impõem como condição a não participação de Lênin e Trotsky no novo governo de coalisão. Mas as conversações continuam, tendo como pivô, do lado bolchevique, a figura que encarnava os moderados, no partido, Kamenev. Kamenev obtivera uma resolução favorável ao acordo numa reunião do Comitê Central Bolchevique (da qual estavam ausentes, entretanto, Lênin, Trotsky e Zinoviev). A resolução aprovava o princípio de um amplo governo de todos os partidos socialistas. No jornal bolchevique Izvestia de 1 de novembro de 1917, liase que os bolcheviques aceitavam a proposta dos ferroviários, e que “esperase que se forme um governo de coalisão socialista”.(24) Numa reunião subsequente, em 1 de novembro, Lênin se opõe violentamente à idéia de coalisão, ataca os negociadores Kamenev e Riazanov, e pede a expulsão de Lunatcharsky. Noguin, Riazanov e Lunatcharsky falam dos perigos da recusa de um compromisso (falase em “terror“, em “ditadura“, em mentalidade “de soldados” etc). Votase uma resolução impondo um certo número de condições, como a presença de Lênin e Trotsky no governo, e a exclusão de qualquer tipo de representação “não soviética” (dumas etc) no Comitê Executivo (isso também estava em discussão). A votação dá, entretanto, maioria aos que querem continuar negociando. No Comitê Central menchevique, acontece a mesma coisa. O princípio da coalisão sai vitorioso, mas por apenas um voto... A oposição se organiza, obtém nova votação, mas é derrotada pela mesma margem... Numa nova reunião do CC bolchevique, Lênin apresenta um verdadeiro ultimatum à oposição interna. “Cada membro do Comitê Central é levado à presença de Lênin, no seu birô particular, e instado a assinar o ultimatum sob risco de expulsão”.(25) Kamenev, Zinoviev, Rykov, Miliutin e Nogin apresentam a sua renúncia ao Comitê Central. Kamenev, propositadamente, toma a iniciativa de promover a leitura, no Comitê Executivo dos Sovietes (é Zinoviev quem lê), da resolução bolchevique de 2 de novembro. Protestos. Os SR de esquerda denunciam “a ditadura de um só partido político”.(26) Kamenev apresenta proposta expandindo o Comitê Executivo, de modo a incluir representantes do Congresso Camponês, das dumas, dos sindicatos, do exército e da marinha, mas, ao mesmo tempo, garante 50% de votos para os bolcheviques, além dos ministérios principais, no executivo, e a inclusão de Lênin e Trotsky no governo. Dada a situação, a proposta é aprovada por unanimidade. Mas Lênin, através do Comitê Militar Revolucionário, vai tomando todas as medidas necessárias para sabotar as negociações: fechamse jornais socialistas, e há novas prisões.(27) No dia 5, quatro membros do governo (Nogin, Rykov, Miliutin e Teodorovich) renunciam aos seus postos.(28) Eles dão a público uma carta, assinada também por Shliapnikov (que não renuncia),(29) e por seis outros bolcheviques entre os quais Riazanov.(30) Essa carta, como a declaração anterior dos cinco que renunciavam ao Comitê Central, é publicada pelo Izvestia.(31) Ela diz, entre outras coisas: “Somos favoraveis à criação de um governo socialista de todos os partidos socialistas (...) Entendemos que só existe uma [outra] perspectiva alternativa que é a da manutenção de um governo puramente bolchevique por meio do terror político. Este foi o caminho escolhido pelo Conselho dos Comissários do Povo. Não podemos nem queremos seguir esse caminho (...) ele levará um regime irresponsável (...) à destruição da revolução e do país.(32) Dos signatários dessa carta, pelo menos três foram executados nos grandes processos, e dois morreram na prisão. As conversações propostas pelo Vikhsel finalmente se interrompem (Lenin, Trotsky, Sverdlov e seus partidários queriam apenas ganhar tempo). Os membros do Comitê Central, e que haviam renunciado, voltam aos seus postos.(33)

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A marcha do governo bolchevique na direção de uma ditadura de partido único pode ser acompanhada em vários planos. O da autonomização progressiva do Sovnarkom (O Conselho de Comissários do Povo) em relação aos sovietes e ao Comitê Executivo dos Sovietes; o do sufocamento progressivo da liberdade de imprensa; o da repressão contra a pessoa dos representantes da oposição; o da liquidação das instituições de representação popular; o do controle de instituições e progressiva neutralização e depois expulsão dos representantes da oposição nessas instituições; o da constituição de órgãos de repressão. Em todos esses planos, sendo impossível evitar aqui, um toque de ironia, dirseia que a obra dos bolcheviques foi notável. Tudo isso deve ser pensado sobre o fundo das mudanças que se operam na atitude popular diante do novo poder. O fato essencial é a progressiva perda de prestígio do poder bolchevique, e o fortalecimento dos seus adversários, mencheviques e SR. Os acontecimentos principais do período são as eleições para a Assembléia Constituinte, em novembro, a primeira e única reunião da Assembléia, e o seu fechamento, em janeiro. A instituição da Tcheca (a polícia política), em dezembro. Depois, a paz de BrestLitovsk. Finalmente o início da “plena” guerra civil, e a expulsão das oposições do Comitê Executivo dos Sovietes.

É preciso começar descrevendo em grandes linhas, e à vol d’oiseau, as práticas autoritárias do novo regime, que vão num crescendo, embora com períodos de recuo, por razões diversas. A imprensa vai sendo progressivamente asfixiada. Primeiro a imprensa liberal, depois, pouco a pouco, a imprensa socialista (SR e menchevique). Mas os jornais fechados, abrem com outro nome.(34) Há mesmo jornais de direita que, de uma forma ou de outra, conseguem ir sobrevivendo.(35)Há assim uma espécie de guerra de gato com o rato, que dura até o verão de 18. Quanto às prisões (também intermitentes) começase com os liberais, mas em dezembro, muitos socialistas (líderes, inclusive) são presos. No início de janeiro, dois exministros liberais do Governo Provisório são assassinados por marinheiros bolcheviques, no hospital de uma prisão. A Assembléia Constituinte, cuja eleição já estava marcada (os bolcheviques decidem confirmar a data das eleições e realizálas) será fechada na sua primeira e única sessão, em 56 de janeiro. Os bolcheviques não haviam obtido mais do que um quarto dos votos nessas eleições, embora tivessem ganho nas grandes cidades. Os SR saem vitoriosos. Numa das proclamações após a vitória de outubro, os bolcheviques haviam se referido à convocação da Assembléia Constituinte, e eles haviam mesmo justificado a necessidade da derrubada do Governo Provisório, pela necessidade de garantir as eleições para a Assembléia Constituinte. A justificativa do fechamento é em parte geral (os sovietes são formas mais altas de representação – mas logo chegaria a vez dos sovietes...), em parte específica (as chapas dos candidatos SR só minoritariamente haviam separado os SR oficiais dos SR de esquerda). Este último argumento era muito frágil. Como explicaria Rosa Luxemburgo, crítica do fechamento da Assembléia Constiuinte (e também o menchevique Tseretelli, em discurso na sessão única da Assembléia), bastaria dissolver, em vez de dispersar, a Assembléia, e convocar novas eleições (pelo menos lá onde não havia duas listas SR). As manifestações em defesa da Constituinte foram menos poderosas do que se esperava, mas não desprezíveis. Houve uma em novembro, e outra no dia da sessão. A maioria dos participantes era de classe média, mas havia também – discutese quantos – operários. Fato mais importante: a manifestação de janeiro é dissolvida à bala (entre dez e vinte mortos, enterrados simbolicamente a 9 de janeiro, aniversário do Domingo Sangrento de 1905). Era a primeira vez em que o novo poder abria fogo contra manifestantes.

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Excurso IV - A Assembléia Constituinte e o seu destino

A convocação de uma Assembléia Constituinte era uma velho sonho de democratas e socialistas. Depois das jornadas de julho, o Governo Provisório anuncia que vai acelerar o processo de convocação da Assembléia Constiruinte e fixa datas para as eleições da Assembléia, e para a sua abertura, respectivamente 17 e 30 de setembro. Mas no início de agosto, mudamse os dias fixados: 12 e 28 de novembro. Antes disto, há o movimento de outubro. O novo poder, depois de alguma hesitação, confirma em 27 de outubro, essas duas últimas datas.(36) As eleições deveriam durar três dias, começando no dia 12. Isso ocorreu em Petrogrado, mas no resto do país, essencialmente por razões técnicas, sem dúvida, o calendário foi alterado.(37) Oliver Radkey, o autor do livro clássico sobre as eleições para a Assembléia Constituinte(38) faz o balanço das irregularidades e dos incidentes, que não foram poucos, mas que não beneficiaram só os bolcheviques, e conclui que “os aspectos normais da eleição contrabalançaram de longe as irregularidades”. “A ampla maioria do eleitorado exerceu livremente o direito de sufrágio” e seus boletins foram contados corretamente.(39) Os resultados deram a vitória aos SR, embora os bolcheviques tenham tido boa votação. Pelos dados de Smirnov (que se apóia num texto recente de um autor russo, L.G. Potrasov), votaram 47 milhões de votantes, sobre um total de 80 milhões de inscritos. Figes, que se apóia em Radkey – as diferenças entre os autores são, de qualquer modo, pequenas –, dá 16 milhões de votos para os SR (o que representaria, na sua contagem, 38 por cento), 10 milhões para os bolcheviques (24 por cento, idem), 5 por cento para os Kadetes (DemocratasConstitucionais), 3 por cento para os mencheviques; os SR ukranianos, que tinham grandes divergências com os SR russos a respeito da questão nacional, obtêm 12 por cento.(40) Os bolcheviques obtém maioria nas grandes cidades, quase a metade dos votos em Moscou,(41) o que significa que eles devem ter tido maioria absoluta entre os operários de Moscou e de Petersburgo.(42) A Assembléia deveria, em princípio, abrir no dia 28 (embora, em alguns distritos, as eleições ainda não houvessem sido realizadas).(43) Desde o dia seguinte às eleições, os bolcheviques começam a tomar medidas contra a Assembléia: decretam o direito de “revocação” de delegados (inútil supor “democratismo” nessa medida, como veremos), a exigência da metade dos deputados para que ela fosse aberta, e, mais do que isto, que ela só seria aberta por uma pessoa que o Sovnarkom tivesse dado poderes para tal.(44) Mesmo assim, há uma tentativa de abertura da Assembléia que culmina com uma manifestação convocada pela União pela Defesa da Assembléia Constiutinte, constituída por “representantes do Soviete de Petrogrado, dos sindicatos, e de todos os partidos socialistas, menos os bolcheviques e os SR de esquerda” (os dados sobre o número de manifestantes são incertos, provavelmente dezenas de milhares).(45) É nesse contexto que são presos vários dirigentes do partido Kadete, inclusive vários delegados à Assembléia.(46) Há intervenção na comissão organizadora da Assembléia Constituinte, novas credenciais são exigidas.(47) No dia 20 de dezembro, a abertura é fixada para o dia 5 de janeiro de 1918, se houvesse quorum. Mas já no dia 12, Lênin publicara as suas “Teses sobre a Assembléia Constituinte”. Nelas, ele se vale do argumento de que os SR haviam em geral apresentado uma lista única quando na realidade o partido se havia cindido, além dos argumentos gerais. Só o Soviete pode assegurar a passagem “a menos dolorosa possível ao socialismo”. Exigese, assim, da Assembléia, um reconhecimento “sem reserva” do “poder dos Sovietes”, da “revolução soviética” e dos seus decretos. Qualquer tentativa de encarar o problema “de um ponto de vista jurídico, puramente formal (...) sem levar em conta a luta de classe e a guerra civil” é “trair a causa do proletariado e se ligar ao ponto de vista da burguesia”.(48) A fração bolchevique na Assembléia é considerada “capitulacionista” e é substituída. Antecipase para o dia 8 de janeiro, três dias depois da futura abertura da Assembléia, o terceiro Congresso dos Sovietes. Lênin redige, uma chamada “Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador”, verdadeira declaração suicida da Assembléia Constituinte, que deveria ser lida e aprovada pela Assembléia na sua seção de abertura (através dela, a Assembléia se submeteria tanto no plano geral, como em todos os detalhes, ao poder bolchevique).(49) A “União pela Defesa da Asssembléia Constituinte” organiza uma manifestação (SRs, do grupo terrorista, planejavam um levante, mas o projeto, vetado pelo Comitê Central SR, foi abandonado).(50) A cidade está sob lei marcial, entre 10 e 12 mil marinheiros armados devem ser reunidos na cidade.(51) Participava da manifestação, cujo cortejo começa a se mover por volta do meiodia, o mesmo tipo de público que descera à rua em 28 de novembro, mas havia menos gente do que se esperava (supõese que menos do que os 50 mil indicados por alguns).(52) Eles se dirigiam ao Palácio de Táurida, onde se reuniria a Assembléia. Nas proximidades da perspectiva Liteinyi, as tropas próbolchevique abrem fogo sobre a multidão. Outras colunas menores (uma, segundo Pipes, composta principalmente de operários) também são contidas à bala, em outros pontos da cidade.(53) Era a primeira vez que um governo pósfevereiro abria fogo contra manifestantes. Supõese que houve entre dez e vinte vítimas. Simbolicamente, elas são enterradas a 9 de janeiro, aniversário do Domingo Sangrento (1905), quando manifestantes foram massacrados por tropas do Tzar. A sessão da Assembléia se abre por volta das 16  horas. Não sem dificuldade, a presidência provisória cabe ao deputado SR mais velho. Tchernov, o mais importante dirigente SR (do centro), é eleito presidente (contra Spiridinova, SR de esquerda).(54) Na tribuna, guardas vermelhos armados, alguns deles bêbados, gritam e vão provocar os oradores nãobolcheviques (alguns apontam sua arma; mais adiante, eles descerão até o plenário). Seguese um discurso de Tchernov, considerado em geral como fraco, mas ele visava principalmente (como diz Haimson) evitar um choque frontal com os bolcheviques e assegurar a continuidade da sessão. Tsereteli, o líder menchevique (um dos poucos mencheviques presentes), faz um discurso em parte autocrítico, que parece  muito forte, defendendo a Assembléia Constituinte, e propondo uma reconciliação no interior da “democracia revolucionária”.(55) O seu contraditor é o bolchevique Skvorstov (SkvortovStepanov), que tinha alguma coisa de um “scholar” (Haimson). A discussão é interessante, porque é teorizante, e se faz, entre outras coisas, em torno da noção de “vontade geral do povo”, que o bolchevique denuncia como “ficção” a serviço das classes dominantes (mas a continuação da história mostraria que o lado dele dificilmente poderia ser considerado como o do “proletariado”).(56) Raskolnikov, marinheiro de Kronstadt lê a chamada “Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador” que, posta em votação, é rejeitada (237 a 136, os SR de esquerda parecem ter se abstido). Os bolcheviques se retiram (Lênin não aparece em plenário, mas ocupa o camarote oficial, ele fica por lá, assistindo tudo, até as 10 da noite). Os SR de esquerda, só vão se retirar depois das duas horas da manhã.(57) A Assembléia aprova o armistício (o armistício, não o Tratado, que viria mais tarde) com a Alemanha, declara, confirmando a decisão do Governo Provisório, que a Rússia é uma República, e vota também uma lei agrária.(58) Às 4 da manhã, por ordem do comissário Dybenko, o chefe dos guardas vermelhos – detalhe interessante – um marinheiro anarquista, Tchhernov é “convidado” a encerrar a sessão porque “a guarda estava cansada“” Tchernov tenta ganhar algum tempo, mas finalmente encerra a sessão às 4:40, marcando nova sessão (que nunca se realizou) para o dia seguinte.(59) Nesse mesmo dia 6, o Comitê Executivo aprova um projeto de dissolução da Assembléia, proposto pelo Conselho de Comissários.(60) Assim, terminou a história da primeira Assembléia russa, eleita em condições amplamente democráticas.

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(2ª parte)

Nota: A primeira parte desse texto foi publicada no nosso número anterior. No início dela, resumi alguns dos problemas que o artigo (primeira e segunda parte) tentaria desenvolver. A insurreição de outubro de 1917 foi uma verdadeira revolução? Por que razões o poder estabelecido em outubro (novembro) de 1917 era constituído apenas por membros do partido bolchevique? Ou seja, por que (...) a insurreição de outubro leva ao poder um governo de um só partido? Por que razão (...) o poder bolchevista evolui, ou involui, em alguns meses, de um regime de estilo autocrático, mas no interior do qual subsistiam certos espaços de liberdade, para um regime autocrático fechado? Essa mudança decorre da irrupção da guerra civil, como se pretende frequentemente? Qual o curso que tomam as relações entre as massas populares e o bolchevismo, no período que vai de outubro (novembro) de 1917 a junho/julho de 18? A base popular do bolchevismo aumenta, como se pretende frequentemente, ela se mantém no nível alcançado em outubro, ou ela se deteriora substancialmente? – A primeira parte, já publicada, ocupou-se da primeira e da segunda questões, e iniciou a discussão da terceira. O restante vem no que segue. O texto se interrompeu após a narrativa da liquidação violenta da Assembleia Constituinte pelo poder bolchevique, no início de janeiro de 1918, Assembleia livremente eleita, e na qual os socialistas-revolucionários eram majoritários.

O poder do Conselho de Comissários vai se tornando cada vez maior, em relação ao Comitê Executivo Central dos Sovietes. A tarefa é facilitada pelo fato de que os mencheviques e os socialistas-revolucionários (SR) haviam-se retirado do Comitê (os mencheviques voltarão em março, os SR voltam antes). Mesmo assim, há debates e eventuais desafios – mas em geral sem efeito ou de efeito muito limitado – ao poder bolchevista (os protestos vêm dos SR de esquerda, que entretanto, entrarão no governo em dezembro; de alguns socialistas, mencheviques inclusive, que representam outras organizações – sindicatos por exemplo – ou de bolcheviques com posições divergentes). Os Congressos dos Sovietes são controlados cada vez mais pelos bolcheviques, que excluem as oposições das comissões de credenciais.

Se a repressão se faz gradativamente, deixando durante alguns meses, certos espaços de liberdade, isso se deve por um lado à prudência dos bolcheviques, que nos primeiros dias têm de enfrentar oposições sindicais (de esquerda) e militares-armadas (de direita), e mais adiante têm de justificar, em parte também dentro do seu partido, seja o fechamento da Assembleia Constituinte, seja, depois, o Tratado de Brest-Litovsky. Nesse contexto, insere-se o problema das relações com os SR de esquerda. Os bolcheviques tinham interesse em dar uma fachada democrática ao seu governo, e, assim sendo, permitem a entrada dos SR de esquerda em dezembro de 1917, e atenuam em alguma medida a repressão tendo em vista garantir essa aliança de fachada (ao que parece, mesmo se os SR de esquerda foram afinal favoráveis ao fechamento da Assembleia Constituinte, foi a necessidade de poupar os seus aliados que levou os bolcheviques a aceitar a realização de uma primeira e última sessão da Assembleia). Por outro lado, os sentimentos democráticos eram relativamente fortes dentro de certos setores do partido bolchevique. Desde antes de outubro, toda uma série de dirigentes bolcheviques é muito reticente (para não dizer mais) em relação aos métodos do “socialismo de soldados” que os bolcheviques empregam. Em ocasiões e formas diferentes, Miliutin, Rykov, Noguin, Riazanov, Lunacharsky e até Zinoviev manifestam-se em favor de um caminho mais democrático. Mas a figura que melhor encarna essa atitude é, certamente, Kamenev. O historiador francês Marc Ferro tem razão em insistir sobre o papel de Kamenev. Os radicais são Lênin, o “velho” líder, autor do “Que Fazer?”, e o recém-convertido Trotsky, neófito ultra, entusiasmado com o modelo jacobino, que ele combatera brilhantemente na juventude.

Esse caminho repressivo é função da guerra civil? Nada leva a responder pela afirmativa. Porém essa resposta falsa se transformou num formidável mito a serviço do bolchevismo. Um problema prévio, para discutir essa questão, é saber quando começa a guerra civil. Como observa Evans Mawdsley, grande especialista da guerra civil, de certo modo ela começa imediatamente. Mas até o verão, essa guerra não ameaça o poder bolchevique e é, em grande parte, periférica. Que representa a guerra civil até junho de 1918? Depois dos combates do após outubro imediato (pequena batalha contra os cossacos perto de Petrogrado, luta em Moscou, resistência dos cadetes [militares] em Petrogrado), a guerra civil se trava principalmente contra os cossacos (primeiro nos Urais, depois no sul – no Don e no Kuban), mas eles são derrotados e, se não definitivamente, não representam perigo imediato. Também o exército de voluntários começa a se organizar no sul, com os generais Alexeev e Kornilov, mas tem de bater em retirada (a célebre “marcha do gelo”) e perde em combate o seu comandante militar (Kornilov). Há um pequeno desembarque inglês em Murmansk, logo depois do tratado da assinatura do Tratado de Brest-Litovsk, porém ele se faz inicialmente com a anuência dos bolcheviques, temerosos do avanço alemão e de ameaças a partir da Finlândia(61) Finalmente, há a intervenção na Ucrânia, onde a Rada (Conselho) proclama a independência. A intervenção seria apenas um episódio da história complicada de intervenções e guerra civil na Ucrânia, mas, por ora, (e apesar das dificuldades iniciais), ela termina pela vitória vermelha no final de janeiro.(62) Pouco depois da morte de Kornilov, Lênin declara no Soviete de Moscou: “Pode-se dizer com certeza que, no essencial, a guerra civil está terminada”.(63) Enfim, houve vários episódios militares, mas nada disso representou um perigo real para o poder bolchevique, e, principalmente, não há nada que indique que essa guerra civil incipiente explique a repressão. Muito mais sério, era o avanço alemão, que vai levar ao Tratado de Brest-Litovsky em março. Volto a ele mais adiante, mas também a guerra com a Alemanha não explica o autoritarismo crescente, em grandes linhas, do poder instaurado em outubro (há uma relação entre Brest-Litovsky e a questão da democracia e do pluripartidarismo, mas, como veremos, ela não é simples).

De onde vem o fechamento progressivo do regime? Por um lado, como já indiquei, ele está na base da política não de todo o partido bolchevique, mas certamente de Lênin e de Trotski. Lênin é dominado pela ideia de que as verdadeiras revoluções devem ser violentas e intolerantes (ver por exemplo as referências de Trotski a respeito), e ele aceita, senão deseja, a guerra civil (a citação acima poderia sugerir o contrário, mas o significado do texto é, mais ou menos, o de que, supondo um momento a contra-revolução militarmente derrotada, os bolcheviques “aceitam” a paz civil). É verdade porém que os bolcheviques, pelo menos em determinadas ocasiões, precisavam de uma fachada democrática. Mas a razão principal, podemos dizer, a verdadeira razão, está na progressiva deterioração do prestígio bolchevique perante as grandes massas. Isto é, o grande motivo está no fato de que os bolcheviques vão perdendo apoio. E mais: no fato de que esse enfraquecimento da base popular do bolchevismo corresponde a um fortalecimento das oposições mencheviques e SR, e também SR de esquerda, partido este que participa do governo até março. Esse processo, que contradiz o mito da repressão-por-causa-da-guerra civil, foi cuidadosamente ocultado pela historiografia e pela literatura oficial (stalinista mas também leninista-trotskista).

Por ocasião do levante de outubro, os bolcheviques não gozam de apoio majoritário no país (as eleições para a Assembleia Constituinte, realizadas menos de um mês depois, não lhes dão mais do que um quarto dos votos), mas têm o apoio dos operários, principalmente o das grandes cidades, entre os quais devem ter obtido maioria absoluta (eles têm maioria – e maioria esmagadora – entre os soldados e marinheiros estacionados na proximidade dos grandes centros, de Petrogrado principalmente, mas perdem para os SR, nas guarnições instaladas longe dos grandes centros).(64) Esse apoio iria crescendo, numa marcha triunfal em direção a uma plena legitimação do regime? É o que a literatura tradicional pró-bolchevique (stalinista e trotskista) sugere, mas a tese é falsa. Ela põe no mesmo saco reforço do poder e legitimidade, duas coisas diferentes. Na realidade, a partir de dezembro, começam a aparecer sinais de descontentamento. As razões desse descontentamento são várias. O bolchevismo havia jogado a carta da mobilização e da intervenção das “massas” até o limite do caos, e agora, transmutado em poder de Estado, esse espontaneísmo criava problemas. Os operários pediam aumentos e indenizações de toda sorte, que o governo não estava em condições de conceder. Por outro lado, há uma progressiva liquidação das dumas, que asseguravam o funcionamento da administração. Não há poder administrativo suficientemente competente para preencher esse vazio. Tudo isso agravado pela violência dos comissários, e as intervenções rudes das tchekas e dos guardas vermelhos. Finalmente, cresce a tensão com os camponeses. Estes não querem vender seus excedentes agrícolas pelo preço fixado pelo governo, considerado excessivamente baixo. E a troca por produtos industriais também se faz dificilmente. Para resolver o problema do abastecimento, os bolcheviques irão progressivamente intervir no campo, de forma violenta, o que provocará uma reação camponesa igualmente violenta.

No plano do cerceamento das liberdades, o fechamento da Assembleia Constituinte representou um passo essencial. Para, de certo modo, ratificar essa medida, um terceiro Congresso Pan-Russo dos Sovietes é marcado para dois dias depois da dispersão da Assembléeia. 94 % dos lugares é dado aos bolcheviques e aos SR de esquerda. A oposição é excluída da Comissão de Credenciais. A questão da Assembleia Constituinte nem sequer é discutida.(65)

Os bolcheviques haviam vencido em grande parte graças ao prestígio que ganharam junto aos soldados, com a bandeira da paz imediata. O decreto sobre a paz do Segundo Congresso propunha uma trégua de três meses aos beligerantes. Enviado aos aliados, ele é imediatamente rejeitado.(66) O poder bolchevique se dirige então às potências centrais. As conversações começam em 20 de novembro (6 de dezembro, pelo calendário gregoriano).(67) O assunto só nos interessa aqui na medida em que se relaciona com o processo que leva à constituição de um governo autoritário de partido único. Como se sabe, depois de vários meses de conversações marcadas por rupturas, os bolcheviques acabam assinando um tratado, no dia 3 de março. Muito se falou e escreveu a respeito do tratado de Brest-Litovski e das discussões que o precederam. Na realidade, o julgamento sobre uma coisa e outra é complexo. Lênin quer a paz, quase a qualquer preço, e fica em minoria, apoiado por Kamenev, Zinoviev e Stálin(68) (alinhamento original). Bukharin quer a guerra revolucionária. Trotski tem uma posição intermediária, a famosa “nem paz nem guerra” (os russos não assinam nada, mas declaram se retirar da guerra). Afinal, depois de uma série de peripécias, que não posso analisar aqui, e graças à adesão de Trotski, Lênin acaba obtendo maioria de um voto em favor da aceitação do ultimatum alemão.(69) As condições são muito duras (grandes concessões territoriais, pagamento das dívidas com juros, vantagens imensas para atividades comerciais e industriais de cidadãos dos Impérios Centrais atuando no interior da Rússia etc). A oposição ao tratado é geral “por parte de todo o espectro político, da extrema esquerda à extrema direita”.(70) Lênin ganha “reputação de infalibilidade”(71), quando, com a derrota dos Impérios Centrais, o tratado vem a ser denunciado (18 de novembro de 1918). Mas, observa Pipes, vários fatos (pagamentos aos alemães efetuados ainda no final de setembro etc) mostram que Lênin não previa uma derrota alemã a curto prazo. Mas por que Lênin optara de maneira tão nítida por esta posição? Essa seria a única alternativa para salvar a revolução, ou para salvar o bolchevismo (as duas coisas não vão juntas, simplesmente)? Leonard Shapiro(72) sugere que Lênin queria evitar a todo custo uma guerra revolucionária, porque esta implicaria, provavelmente, uma abertura política (frente única de vários partidos revolucionários e mobilização popular, diante da ameaça de esmagamento da revolução).(73) Por outro lado, quando a situação se agrava, entre a data da aceitação do ultimatum pelos russos (17 de fevereiro) e a ratificação do tratado (14 de março) quando as tropas alemãs iam ocupando sem resistência o território russo (sabe-se que um dos projetos do governo alemão era, simplesmente, a derrubada do governo bolchevique, governo de “judeus” e “maçons”,(74) Lênin faz aprovar um projeto (“a pátria socialista em perigo”) que contém, entre outras coisas, dois dispositivos: um que obriga os burgueses a trabalhos forçados como cavar trincheiras, sob ameaça de morte, e outro que legaliza a execução imediata de uma porção de categorias de pessoas, entre as quais os “agitadores contra-revolucionários”.(75)Sob esse aspecto, a guerra acentuaria o caráter autocrático do poder bolchevique, e não o contrário. Por outro lado, que possibilidades tinha a política dos “comunistas de esquerda” (os adeptos da guerra revolucionária)? Pipes insiste que essa posição era menos utópica do que poderia parecer, porque os alemães tinham muito medo de um sobressalto popular contra uma guerra anti-revolucionária, e que, por outro lado, a situação da Alemanha, e mais ainda da Áustria, já era difícil, em termos econômicos e militares.(76) Um resultado político maior da assinatura do tratado foi a saída do governo dos socialistas-revolucionários de esquerda. Eles votam contra o acordo no Comitê Executivo Central e se retiram do governo (no próprio governo, segundo Steinberg, citado por Pipes(77), os SR de esquerda defendiam uma posição próxima à de Trotski). O que se pode dizer de todo esse desenvolvimento, nas suas implicações para com o nosso tema? Por que, afinal, Lênin tem uma posição tão intransigente em relação ao acordo com as potências centrais? Aparentemente, há aí três elementos. Por um lado, suas dúvidas quanto à disposição ao combate por parte dos soldados, e mais grave do que isto, seu medo de perder o apoio dos soldados, caso se decidisse a continuar a guerra. O bolchevismo tivera o apoio da maioria dos operários pelo menos nas grandes cidades, mas tivera também um enorme apoio dos soldados, e isto na base de um motivo: sua tomada de posição em favor de uma solução para o problema da guerra. Lênin estava bem consciente de quanto dependia dos soldados. Como disse Martov, de certo modo o bolchevismo era um refém nas mãos deles. Em segundo lugar – isto explicitamente – Lênin sabia que uma guerra com a Alemanha e com a Áustria implicaria alguma aliança militar com a entente(78) (na realidade, ela implicou, em pequena medida, durante o período de incerteza: o desembarque inglês em Murmansk foi apoiado pelos bolcheviques); e isto ele não queria. Em terceiro lugar, ele devia temer sim algum tipo de incitação a uma frente única, e portanto, a uma abertura política por causa da guerra. Talvez por isso mesmo, quando a perspectiva da guerra parece se efetivar, foge para a frente, propondo imediatamente medidas de tipo terrorista. Quais as razões da oposição? Haveria talvez um certo purismo revolucionário (recusa em entregar territórios ao imperialismo alemão), mas, pelo que vimos, dada a situação alemã, o projeto de guerra revolucionária era menos utópico do que se poderia pensar. Por outro lado, e simetricamente em relação aos motivos de Lênin, havia, pelo menos por parte dos mencheviques (internacionalistas, e a fortiori os outros) o pressentimento de que essa paz representaria um novo fechamento do regime, e de que uma “guerra defensiva”, como eles diziam, teria efeitos contrários a essa tendência negativa.(79) Entre outros, vinha o argumento: esse governo é capaz de tanta repressão (capaz de “guerra” interna), mas quando se trata dos alemães, eles são pacifistas... E os mencheviques insistiam muito no fato de que os bolcheviques haviam desmoralizado o exército, e agora (todos) pagavam por isso. Havia também os escrúpulos em aceitar uma paz “com indenizações e anexações” (embora sob forma passiva). Isso pesou muito sobre a oposição. O respeito aos “princípios revolucionários” era então alguma coisa de muito sólido. E os próprios bolcheviques hesitavam em passar por cima deles.(80)É difícil dizer que possibilidades teria a perspectiva de “guerra revolucionária”. Mas a paz leninista tinha certamente um duplo caráter. Por um lado, ela dava um respiro à Rússia e, com ela, de algum modo, à “revolução“, mas ao mesmo tempo, era um elemento, novo naquele momento, de Realpolitik. Ela marcava, de alguma forma, o início de uma Realpolitik, que o stalinismo iria utilizar sem escrúpulo. E em geral, se inscrevia numa política orientada “de cima”, a partir da direção (a pretensa “vanguarda”). A oposição, mesmo se com alguma dose de utopismo, representava a abertura para um movimento impulsionado “de baixo”, a partir das bases. Assim, de uma forma ou de outra, o tratado de Brest-Litovsk acabou representando mais uma pedra na construção do regime autoritário de partido único.

Mas houve um elemento decisivo, ocultado pela historiografia oficial, e até aqui relativamente pouco estudado: a progressiva desintegração da base popular do bolchevismo.(81) Sobre esse assunto, pouco se falou, e, como já observei, tendeu-se a transformar em legitimidade (isto é, em real apoio popular), uma dominação de fato, fundada essencialmente na força e na violência. A historiografia oficial, e mesmo em parte para além dela, deu legitimidade ao que foi um processo progressivo de asfixiamento, duplicando no plano do discurso histórico a mitificação operada no plano da realidade efetiva.

A situação começa a se alterar já em dezembro:(82) Há um certo número de fatos que testemunham da desconfiança dos operários em relação ao governo bolchevique. Os soldados, na sua grande maioria, desejam a paz, e não querem lutar por nenhum governo. O problema do abastecimento vai se agravando. Em abril de 18, as grandes cidades russas estão à beira da fome.(83) Brovkin indica três causas, a seu ver, determinantes: 1) o fato de que os bolcheviques haviam fechado as agências de abastecimento das assembleias de voto universal (dumas e zemstvos); 2) o Tratado de Brest-Litovsky, que havia alienado da Rússia territórios extremamente ricos em termos agrícolas; 3) o apoio dos bolcheviques à ocupação de terras tinha gerado uma situação de caos no campo, que não era favorável ao desenvolvimento da produção agrícola.(84) O apoio operário ao bolchevismo era muito frágil. Mesmo os autores que tentaram apresentar o movimento de outubro como alguma coisa próxima de uma revolução operária, deixam claro o quanto o “bolchevismo” dos operários era algo bem diferente do apoio a um governo de partido único.(85) A ruptura vai aparecer claramente nas eleições para os sovietes das cidades, que ocorrem na primavera de 1918. Brovkin fez um estudo detalhado dos resultados.(86) Há uma série de eleições para diferentes sovietes de cidades em várias regiões da Rússia. O balanço é impressionante. “Em todas as capitais provinciais da Rússia europeia, onde houve eleições e em que os dados não desapareceram, os mencheviques e os SRs obtiveram maioria, na primavera de 1918”.(87) Trata-se de capitais provinciais ou grandes cidades industriais. Os mencheviques, junto com os SR, ganham nos 19 casos (em 30), em que os resultados são conhecidos.(88). A solução adotada pelos bolcheviques para enfrentar esse problema foi a violência. Cidade após cidade, eles intervêm nos sovietes, dissolvendo-os com a ajuda de força armada (guarda vermelha e Tcheka); ou então se recusam a abandonar as posições de direção.(89) Um outro fenômeno muito importante vai revelar o descrédito progressivo (pelo menos relativo ) dos bolcheviques junto aos operários. A formação das assembleias de representantes (upolnomochennye), no dizer de Figes “de longe, a ameaça mais poderosa que os bolcheviques encontraram por parte da classe operária”.(90) Há controvérsia sobre o momento exato em que nasce o movimento, mas nele tiveram um papel importante os mencheviques de direita, que já não tendo ilusões nos sovietes, mais ou menos controlados pelo poder, se dispuseram a criar uma organização paralela. Porém, o movimento não foi apenas menchevique, dele participam SRs (houve também SRs de esquerda), e muitos sem partido. Há uma discussão para saber qual o peso respectivo dos motivos econômicos e dos motivos políticos no movimento. Parece que os motivos econômicos eram poderosos, já que a situação era muito difícil; mas não há dúvida de que o movimento toma um caráter acentuadamente político, não só como mobilização de protesto contra as violências bolcheviques, como também como um movimento que levanta palavras de ordem políticas mais gerais como a da reconvocação da Assembleia Constituinte (Havia divisões entre os participantes: pró Assembleia Constituinte, pró liberdade dos sovietes sem Assembleia etc).(91) O movimento vai crescendo durante a primavera de 1918. Projeta-se um congresso geral das assembleias de representantes (conhece-se o manifesto de convocação,(92) redigido em termos dramáticos) e se marca uma greve geral de protesto contra a repressão no dia 2 de julho. Costuma-se dizer que a greve fracassa. As informações são contraditórias, mas ela fracassa efetivamente no sentido de que não obtém a satisfação das suas reivindicações. Entretanto, dadas as condições, o simples fato de convocar uma greve geral é por si mesmo um resultado, e, de resto, não se sabe ao certo quantos trabalhadores aderiram a ela.(93) Mas nesse intervalo, há dois fatos essenciais, que vão marcar o fim do período de relativa democracia. A eles se acrescenta, o início do que será propriamente a guerra civil. O primeiro deles é a expulsão de mencheviques e socialistas-revolucionários (não os SR de esquerda) do Comitê Executivo dos Sovietes, que ocorre no dia 14 de junho. Os socialistas-revolucionários de esquerda votam contra, mas a maioria bolchevique assegura a aprovação do ato. Junto com a expulsão, vem uma “recomendação” aos sovietes, para que façam o mesmo. O segundo são as eleições para o soviete de Petrogrado. Os bolcheviques tinham bloqueado, durante meses, as novas eleições que, estatutariamente, deveriam ocorrer. Finalmente, eles se decidem a realizá-las. As eleições ocorrem entre 18 e 24 de junho. Há um área de obscuridade em torno do resultado das eleições, mas uma coisa é certa (qualquer que tenha sido a magnitude exata do fenômeno): as eleições para o soviete de Petrogrado foram manipuladas pelos bolcheviques, de forma a garantir-lhes uma maioria esmagadora. A dúvida não concerne à manipulação, plenamente atestada, mas ao problema de saber precisamente quantos votos bolcheviques e oposição teriam numa eleição livre e honesta. Para discutir os resultados, utilizo o livro de Brovkin, e o livro de D. Mandel (também já citado), autor bastante favorável aos bolcheviques, além de um artigo de L. Haimson, publicado em três números da The Russian Review.(94) Uma fonte importante é um artigo do jornal que os mencheviques editavam em Estocolmo Echos de Russie (havia também uma edição em alemão) “Le bluff bolcheviste des élections de Petrograd” (nº 18-19).(95)O essencial é o seguinte:(96) Ao contrário do que ocorrera nas eleições de setembro e outubro de 17 em que se elegera grande parte do soviete anterior, deu-se (isto é, os bolcheviques deram) um grande peso ao voto por organização (tratava-se evidentemente de organizações que eles controlavam). Nas eleições de setembro/outubro de 17, foram eleitos 440 representantes de militares – creio que principalmente soldados – (num total de 791 delegados, portanto, mais da metade). A segunda maior representação era a dos operários, 259. Completavam o soviete, delegados eleitos de forma indireta, a saber, 60 representantes dos sindicatos, 17 das ferrovias, 12 dos partidos políticos e 3 dos sovietes distritais. Assim, a representação direta era esmagadora, embora houvesse também representação indireta. Ocorreu o contrário nas eleições de junho: o voto por organização dominava amplamente. Num total de aproximadamente 677 delegados (o total diminuíra um pouco, mas há alguma dúvida sobre o número exato), havia 144 delegados dos sindicatos (em lugar de 60), 72 representantes das ferrovias (em lugar de 17), 46 representantes dos sovietes distritais (em lugar de 3). Mais 88 delegados de conferências operárias que os bolcheviques haviam organizado para limitar a ação dos conselhos de representantes (claro que estes conselhos não tiveram representação); 58 representantes do exército vermelho, substituindo a seção dos militares que não existia mais: segundo Brovkin, esses representantes do exército vermelho “eram antes indicados pelos bolcheviques, do que eleitos de forma popular”(97); e 10 representantes da marinha. Incluindo os militares, os delegados que representavam organizações somavam 418, para um total de 677 (em setembro/outubro, a relação era de 92 para um total de 791). Assim, passa-se de mais ou menos 11% para mais ou menos 61%. Ora, esses delegados ou tinham sido diretamente indicados pelo poder bolchevique, ou vinham de organizações que eles dominavam (seja porque não houvera novas eleições, que renovassem os delegados eleitos em setembro/outubro de 17, seja porque o poder bolchevique já tinha assegurado maiorias por meio de métodos, na generalidade dos casos, muito duvidosos). É graças a esse tipo de manipulação, que eles vão assegurar 327 do total de votos por organização, que foi de 418 (ou 417, segundo uma outra fonte). (A maioria absoluta dos votos não bolcheviques de organizações veio dos socialistas-revolucionários de esquerda [58 em 90] que haviam participado do governo até março). Resta o problema do voto direto. E aqui, surge alguma dificuldade (mas que, como vimos, não põe em dúvida a realidade da manipulação geral). Brovkin cita fontes mencheviques (incluindo Echos de Russie), fontes oficiais e dados de autores russos dos anos 60. David Mandel fornece também alguns dados. Segundo um historiador russo dos anos 60 (M. N. Pothekin), os bolcheviques obtiveram 150 lugares contra 51 mencheviques e socialistas-revolucionários e 27 sem filiação. Os socialistas-revolucionários de esquerda teriam tido 32. Assim, o resultado teria sido: 78 opositores (incluindo os sem partido, em grande maioria senão na totalidade, da oposição), contra 150 bolcheviques, e 32 socialistas-revolucionários de esquerda (que talvez fosse melhor não contar nem num grupo nem em outro). Mas, segundo as fontes mencheviques, os dados são outros: os mencheviques e socialistas-revolucionários teriam tido maioria. Apenas na indústria metalúrgica, já teriam obtido 48 representantes (junto com os sem partido, 53). Entre os têxteis, eles teriam sido derrotados mas por 27 contra 15, e um socialista-revolucionário. O resultado global teria sido de 123 mencheviques e SRs (mais 10 sem filiação), contra 82 bolcheviques e 15 SRs de esquerda. (O total seria aqui de 230 e não de 260). O poder bolchevique teria manipulado, também aí, os resultados. Como julgar? O historiador David Mandel, simpático ao bolchevismo, afirma que os bolcheviques junto com os socialistas-revolucionários de esquerda não poderiam ter tido menos do que 50% dos votos nas fábrica “ainda em funcionamento”.(98) Ora, o problema é que nas circunstâncias, não se poderia somar simplesmente os votos bolcheviques com os dos socialistas-revolucionários, porque estes estavam em processo de ruptura. Nesse sentido, mesmo admitindo a justeza dos dados de Mandel, o balanço não seria muito favorável ao bolchevismo. Creio que, de fato, eles resistem melhor em Petrogado do que nas províncias. Aparentemente tiveram entre 30% (hipótese menos favorável) e 40% (hipótese mais favorável) dos votos operários. Isso indica um quadro diferente das províncias, mas que não tem mais nada a ver com a situação de setembro/outubro, quando obtiveram uma maioria tranquila. Não tendo aqui os dados diretos sobre a relação numérica exata existente no soviete, em setembro, poderíamos utilizar os resultados das eleições para a Assembleia Constituinte em novembro. L. Haimson, no seu artigo já citado da The Russian Review, fornece os resultados obtidos pelos diferentes partidos em bairros populares de Petrogrado.(99) Vê-se por essas dados que, em distritos populares periféricos, a porcentagem dos votos bolcheviques em relação aos SR (que se apresentaram com uma única chapa, englobando esquerda e direita), e excluindo os votos liberais (kadetes), varia mais ou menos entre 60% e 80% dos votos. Se o voto dos distritos operários permite medir o voto para o soviete (e em grandes linhas, isso deve ser verdade), os votos operários pró-bolcheviques passaram assim de mais ou menos 70% a mais ou menos 35%, e isto em Petrogrado (fora de Petrogrado, a situação do bolchevismo é muito pior). As diferentes formas de manipulação asseguraram aos bolcheviques um pseudo-resultado igual ao dos votos que eles tiveram em novembro: a decomposição da maioria bolchevique é escamoteada, e eles aparecem “consolidando a sua vitória”, com até mais de 70%! Enfim, mesmo se permanece alguma dúvida sobre a sua amplitude, houve certamente uma enorme manipulação, que garantiu a vitória dos bolcheviques e criou a impressão de que eles haviam consolidado legitimamente o seu poder. Foi o contrário o que de fato aconteceu. Como foi assinalado (por Orlando Figes)(100), a manipulação de eleições não é apanágio do stalinismo: ela começa na época do bolchevismo e, no quadro do “comunismo”, foi inventada pelos bolchevistas.

Depois desta eleição, os acontecimentos se precipitam. Valendo-se da sua “vitória”, o novo soviete põe na ilegalidade a assembleia de representantes (27 de junho).(101) Uma conferência de 40 representantes operários, de diferentes cidades (Petrogrado, Moscou, Tula Sormovo etc), reunida em Moscou em 23 de julho, é dispersado pela polícia, e os seus participantes são presos.(102)

A sequência da história, que não vamos analisar nesse texto, é conhecida. Os socialistas-revolucionários de esquerda perdem as ilusões de que poderiam vencer no quinto congresso dos sovietes, marcado para o início de julho, dada a manipulação de credenciais ou resultados. Durante o congresso, eles cedem à velha tentação terrorista. O embaixador alemão von Mirbach é assassinado, e os SR de esquerda tentam uma espécie de insurreição.(103). A guerra russo-alemã, que eles pretendiam provocar através do atentado, não vem. O governo bolchevique controla a situação internacional, e depois de um momento de susto, também a situação militar nacional. Como resultado do episódio, há prisões e execuções de socialistas-revolucionários de esquerda. Os SRs de esquerda têm o mesmo destino dos mencheviques e SRs: eles são expulsos do Comitê Executivo dos Sovietes, em julho. No final de agosto, uma militante SR pratica um atentado contra Lênin (as circunstâncias desse atentado são, até hoje, obscuras). O terror vermelho é oficializado em 5 de setembro. A história da resistência de esquerda recomeçará depois da guerra civil com as mobilizações operárias anti-bolcheviques de 1920, e com a insurreição de Kronstadt, de 1921.

Conclusão

No início desse trabalho, eu havia levantado uma séria de perguntas sobre a Revolução Russa, de fevereiro de 17 até junho/julho de 1918. Em forma bem resumida, as perguntas eram:

  1. (para o período anterior a outubro ou imediatamente posterior a ele) o movimento de outubro foi realmente uma revolução? Por que, ou em que condições os bolcheviques instituíram um poder de partido único?;
  2. (para o período posterior a outubro): por que razões o poder bolchevique, que admitiu certos espaços de liberdade, evolui para um poder autocrático? Essa evolução foi provocada pelo desencadeamento da guerra civil? A base popular do bolchevismo aumenta ou diminui no curso dos primeiro semestre de 1918?

Creio que a maioria dessas questões já foi respondida, mas tentemos resumir os resultados e tirar algumas conclusões finais. A primeira pergunta não pôde ser respondida nem na forma habitual, segundo a qual, outubro foi realmente uma revolução, nem na forma liberal extrema, segunda a qual, outubro foi simplesmente um golpe de Estado. Outubro foi um movimento “partidário” (e, nesse sentido, “de cúpula”) apoiado só por uma minoria dos membros das classes exploradas do país, mas que contou com certo tipo de apoio (na realidade um apoio em boa medida ilusório) da maioria do proletariado. A que remete a expressão “certo tipo de apoio”? Por um lado, ao fato de que a participação efetiva das “massas” (inclusive o proletariado, que votava majoritariamente nos bolcheviques) no movimento, foi muito pequena. Por outro lado, ao fato de que o que a grande maioria dos operários e grande parte dos camponeses desejava era o fim do governo provisório e, principalmente no que se refere aos operários, um governo dos sovietes”. Essas circunstâncias, se não eliminam a realidade do “golpe de Estado”, atenuam em alguma medida a brutalidade da operação. Houve golpe sobre o fundo de um apoio ambíguo e não participante. Aqui já podemos encadear a segunda pergunta. Por que os bolcheviques instituíram um governo de partido único? As “massas” – já indicamos – não se manifestaram a favor de um governo de partido único, e muito provavelmente não queriam tal governo, desejavam sim um poder múltiplo “dos sovietes”. O governo que nasce de outubro será, entretanto, composto apenas por representantes do partido bolchevique (a situação se altera de dezembro a março, quando os socialistas-revolucionários de esquerda participam do poder, mas o peso que eles tiveram foi, sem dúvida, pequeno). Por um lado, é evidente que Lênin e Trotski – insistamos, Lênin e Trotski, de forma alguma todo o partido bolchevique – jogavam a carta da “vanguarda”. Eles não excluíam coalizões, mas coalizões do tipo daquela que fariam em dezembro com os socialistas-revolucionários de esquerda; coalizões que não alteravam essencialmente o rolo compressor do partido bolchevique. Nesse sentido, se surgiu um governo de partido único, foi porque este era o projeto de Lênin e Trotski, e eles o realizaram com a ajuda de uma fatia do partido, e com a habilidade que lhes é conhecida. Mas evidentemente, a oposição facilitou o seu trabalho. É impossível criticar a política do bolchevismo, sem criticar conjuntamente a política da direita menchevique e da direita socialista-revolucionária. E isto antes e depois de outubro. A exigência supersticiosa de uma aliança com os liberais, no momento em que os liberais se recusavam a dar os passos que a situação exigia e – mais do que isto – no momento em que estes tendiam a buscar um acordo com as forças mais retrógadas (o radicalismo da extrema-esquerda não justifica essas tendências), foi um erro imenso, que abriu caminho para o poder bolchevista. Durante o movimento de outubro e depois dele, menchevistas de direita e socialistas-revolucionários de direita jogaram frequentemente a carta perigosa do boicote (especialmente o do Comitê Executivo Central dos Sovietes), com os consequências que se conhecem. A meu ver, isso tudo não elimina, entretanto, a responsabilidade do bolchevismo. Mas por que o governo bolchevique, depois de admitir um mínimo de jogo democrático, mergulha num autocratismo terrorista? É a guerra civil que explica essa “involução”, conforme reza a tese tradicional? Se é difícil dizer em que momento exato começou a guerra civil,(104) nem a primeira fase desta, que vai até o início de junho de 18, nem a segunda fase, que começa em julho de 18, explicam o fechamento do regime, embora certamente o sobredeterminem. A primeira fase não explica, porque não havia ameaça maior ao poder bolchevista. E se o fechamento de certo modo se completa com o levante dos tchecos,(105) que assinala o início da segunda fase, a da “plena” guerra civil, o processo de fechamento tinha começado bem antes e, apesar de alguns momentos de trégua, foi progredindo de forma inexorável. Isso mostraria que a primeira fase já exigia um processo de fechamento gradual? Não, primeiro porque não há evidência de que as medidas autoritárias foram respostas graduais a um começo de guerra civil (elas não crescem no ritmo dessa guerra, salvo a partir do início de julho, além do fato de que, como já vimos, a ideia de um poder autocrático estava dada de início como peça essencial do projeto leninista); e, mais do que isto, porque há outro fator que, esse sim, explica o fechamento progressivo. Esse fator é, como vimos, a deterioração progressiva da legitimidade do bolchevismo perante a única força estável que os apoiava, o proletariado (os camponeses-soldados querem a paz, e logo são dispersados enquanto força política própria). Tentei fornecer os elementos empíricos essenciais que mostram como o bolchevismo se desgasta perante as massas operárias (também, mas um pouco depois, perante as massas camponesas), desgaste cujos efeitos já são decisivos uns quatro meses depois de outubro... E isto, em boa parte, como resultado do autoritarismo do poder bolchevique Este fato bem atestado, foi sistematicamente mascarado na prática e na historiografia oficial. De tal forma que se poderia dizer: é menos verdade afirmar que a guerra civil provocou a autocracia de partido único, do que dizer que o autocratismo de partido único provocou a guerra civil.(106)

Dessas notas históricas e críticas, pode-se tirar algumas conclusões. Primeiro, como já foi dito, o de que a história da revolução russa não foi vítima apenas das falsificações stalinistas. Houve e há uma mitologia leninista-trotskista que oculta e deforma elementos fundamentais, no plano dos fatos como da sua significação. O que não significa que as teses liberais possam ser aceitas tais e quais, como “moeda corrente”.

A segunda conclusão, esta não no plano da historiografia mas no da filosofia da história, é a de que é difícil não valorizar as tendências, que não eram numericamente desprezíveis, daqueles que se recusavam a subir tanto na canoa do bolchevismo, como na canoa do menchevismo de direita e dos socialistas-revolucionários de direita. Esse centro, no interior da esquerda, foi certamente o que viu mais longe. Se ele acertou taticamente, isto é outro problema. Ele erra bastante, mas as condições lhe eram particularmente desfavoráveis. Quem constitui esse centro? Em boa medida os socialistas-revolucionários de esquerda, embora eles tenham errado ao aceitar o fechamento da Assembleia Constituinte (e tenham errado de novo, depois, ao apelar para os assassinatos). Mas eles insistiram na exigência de um governo plural dos sovietes, e foi esta a razão pela qual se recusaram a participar do primeiro governo pós-outubro. Além deles, houve duas forças de oposição de esquerda: o menchevismo internacionalista comandado por Martov, e o bolchevismo moderado cujo principal figura foi certamente Kamenev,(107) (houve ainda outras, a “mezhraionka” – os “interdepartamentais” – o grupo social-democrata independente, ao qual se liga Trotsky antes de aderir ao bolchevismo, além dos anarquistas [mas esses, no início – parte deles pelo menos – apoia o bolchevismo mais radical]). Martov combate sem concessões o menchevismo oficial, e acaba obtendo, tarde demais, entretanto, a hegemonia dentro do partido. Aqui não é o lugar para comentar o difícil problema de saber até onde haveria um caminho tático mais feliz para os menchevistas internacionalistas (em 18, Martov dirige com muita coragem e perspicácia o partido menchevique, o que ele faz até a sua morte na imigração em 23, embora entre 18 e 19 tenha tido, certamente, um período de relativa desorientação, marcado por uma atitude excessivamente pró-bolchevique). Kamenev passou para a história oficial como aquele que não entendeu a necessidade da revolução, mas provavelmente ele representou o contrário. Ele e alguns outros (Riazanov, Rykov, Miliut também Zinoviev, mas este é uma figura muito discutível) viram muito bem o curso funesto que tomaria a revolução sob a batuta do leninismo-trotskismo. Sua capitulação posteriores não elimina o mérito deles. (Trotski foi muito mais forte na resistência ao stalinismo, mas é difícil esquecer o que parece evidente: a sua adesão tardia ao bolchevismo – como a de seu grupo, os inter-departamentais, que se pretendiam independentes das duas facções – foi um fato maior na catástrofe em que desembocou o processo revolucionário). Pensar o que significou esse “centro” revolucionário, é, a meu ver, um ponto privilegiado para toda reflexão crítica sobre a revolução russa. Reflexão que, ao contrário das aparências, não é só uma exigência teórica ou histórica, mas uma exigência prática imediata, inclusive para o Brasil.

Paris, Boulogne-Billancourt (França) e São Paulo;
junho/agosto de 2009 e outubro/novembro de 2010.


Notas de rodapé:

(1) O presente texto foi planejado e escrito por mim. Mas nos seminários que fizemos em conjunto, nos departamentos de Filosofia e Ciência Política da USP, em agosto/outubro de 2008 (“a revolução russa”), e agosto/outubro de 2009 (“totalitarismos”), Cícero Araújo e eu expusemos e discutimos longamente a história da revolução de fevereiro e da insurreição de outubro. Mesmo se é difícil precisar o que devo às discussões do seminário (o tema deste texto é, aliás, um pouco defasado em relação ao que fizemos lá), a dívida é real: o texto não teria sido escrito, se não tivesse havido os seminários. Cícero Araújo foi também um dos principais organizadores do importante “Colóquio internacional – 90 anos de Revolução Russa” (não confundir com outros colóquios, bem menos críticos, que acabaram também se rotulando “internacionais”), realizado em São Paulo (e em Guarulhos) sob o patrocínio do CEDEC, do departamento de Ciência Política da USP, e da UNIFESP em 2007, e que, entre outros, contou com a participação dos grandes especialistas das revoluções russas Edward Acton, Nicolas Werth e Ronald Suny. (retornar ao texto)

(2) O autor vem estudando a língua russa russo já há alguns anos, de forma intermitente. Mas, por ora, pelo menos, seus conhecimentos não lhe permitem trabalhar com as fontes russas originais. (retornar ao texto)

(3) Se preferir, o leitor poderá omitir os excursos. O texto principal tem continuidade (retornar ao texto)

(4) Referido por Orlando Figes, A People’s Tragedy, the russian revolution 18911924, Londres, Pimlico, 1996, p. 492493. (retornar ao texto)

(5) Ver Figes, op. cit., p. 3089. (retornar ao texto)

(6) Rex A. Wade, The Russian Revolution, 1917, New York, Cambridge University Press, 2008 (2005), p. 31. (retornar ao texto)

(7) Ver Figes, op. cit., p.309. (retornar ao texto)

(8) Figes, op. cit., p. 493 diz que “na imediações (region) do Palácio de Inverno”, haveria mais ou menos 10 ou 15 mil pessoas, mas que nem todos participaram da célebre “tomada”. Pipes protesta, quando o historiador revisionista Sunny (que, como diz Pipes, é na realidade um especialista na questão das nacionalidades) afirma que havia 20 mil, no “assalto” ao Palácio de Inverno (ver Pipes. “1917 and the Revisionists”, The National Interest, spring 1993, p. 72). (retornar ao texto)

(9) “Um organismo (...) indicado pela Conferência Democrática [ver mais adiante] na vã esperança de dar à República certa forma de legitimidade até a convocação da Assembléia Constituinte“ (Figes, op. cit., p. 467). (retornar ao texto)

(10) Cf. Wade, op. cit, p. 74. (retornar ao texto)

(11) Ver Figes, op. cit., p 393. (retornar ao texto)

(12) Ver Figes, op. cit., p. 4656. (retornar ao texto)

(13) Carta de Lênin a A.V. Lunatcharsky, 25/3/17, citada por Israel Getzler em Martov, a political biografy of a russian social democrat, Melbourne Cambridge at the University Press, Melbourne University Press, 1967, p. 158). (retornar ao texto)

(14) Ver Figes, op. cit., p. 465, e nota. (retornar ao texto)

(15) Wade, op. cit., p. 299. (retornar ao texto)

(16) Ver Figes, op. cit., p. 367. (retornar ao texto)

(17) Edward Acton, Rethinking the Russian Revolution, Londres, Holder Arnold, 1990, p. 159. (retornar ao texto)

(18) Ver Howard White, “The Provisional Governement“, in Edward Acton, Vladimir Yu. Cherniaev e William G. Rosemberg, Critical Companion to the Russian Revolution, 19141921, Londres, Arnold, 1997, p. 396, e Acton, op. cit., p. 15960 (retornar ao texto)

(19) White, art. cit., in Acton, Cherniaev e Rosemberg, op. cit., p. 443. (retornar ao texto)

(20) Ver Acton, op. cit., p. 161. (retornar ao texto)

(21) Ver a respeito Allan Wildman, The End of the Russian Imperial Army, vol II, the road to soviet power and peace, Princeton, N.J., Princeton University Press, 1987, p. 89. (retornar ao texto)

(22) Ver Wade, op. cit., p. 248. (retornar ao texto)

(23) Ver Wade, op. cit., p. 249; Figes, op. cit., p. 496; também Vladimir Brovkin, The Mensheviks after October, socialist opposition and the rise of Bolshevik Dicatorship, Ithaca e Londres, Cornell University Press, p. 21 e s., e 70 e s.; e Leonard Shapiro, The Origins of the Communist Autocracy, political opposition in the soviet State, first phase, 19171922, Londres, The London School of Economics and political Science, 1955, p. 70 e s.. Shapiro informa que havia também um forte setor próbolchevique no interior do Vikhsel. (retornar ao texto)

(24) Brovkin, op. cit., p. 22. (retornar ao texto)

(25) Figes, op. cit., p. 499. (retornar ao texto)

(26) Brovkin, op. cit., p. 28, o autor cita a resolução SR de esquerda. (retornar ao texto)

(27) Ver Brovkin, p. cit., p. 32. (retornar ao texto)

(28) Ver Richard Pipes, The Russian Revolution 18991919, Londres, Colllins Harvill, 1990, op. cit., p. 519. (retornar ao texto)

(29) Ib. (retornar ao texto)

(30) Ver Brovkin, op. cit., p. 33. (retornar ao texto)

(31) Ver Figes, op. cit., p. 499. (retornar ao texto)

(32) Brovkin, op. cit., p. 3233. (retornar ao texto)

(33) Ver Figes, op. cit., p. 511. (retornar ao texto)

(34) Ver Brovkin, op. cit., p. 106. Cf., idem, p. 32. (retornar ao texto)

(35) Ver Pipes, op. cit., p. 324 e 560. (retornar ao texto)

(36) Ver Nikolai Smirnov, “The Constituent Assembly“, in Acton, Cherniaev e Rosenberg, op. cit.,p. 327. (retornar ao texto)

(37) Ver ib; e Pipes, op. cit., p. 540. (retornar ao texto)

(38) Oliver Radkey, Russia Goes to the Polls, the election to the allrussian Constituent Assembly, 1917, Ithaca e Londres, Cornell University Press, 1987 (1950). (retornar ao texto)

(39) Radkey, op. cit., p. 47 e 52. (retornar ao texto)

(40) Smirnov, art. cit. in Acton, Cherniaev e Rosenberg, op. cit., p. 327; e Figes, op. cit., p. 507 e 508. (retornar ao texto)

(41) Ver Radkey, op. cit., p. 40 e 150 (tabelas); e Smirnov, op. cit., in Acton, Cherniaev e Rosenberg, op. cit., p. 327. (retornar ao texto)

(42) Ver os dados fornecidos por Leopold Haimson, no que se refere aos bairros operários periféricos em Petesburgo, no seu artigo “The Mensheviks after the October Revolution“, Part I, The Russian Review, an american quarterly devoted to Russia past and present, Cambridge University Press, vol. 38, nº 4, outubro de 1979, p. 456 e s (especialmente p. 471). (retornar ao texto)

(43) Ver Smirnov, art. cit., in Acton, Cherniaev e Rosenberg, op. cit, p. 327. (retornar ao texto)

(44) Id, p. 328. (retornar ao texto)

(45) O texto citado é de Pipes, op. cit., p. 544. Ver também Figes, op. cit., p. 509. Figes calcula em mais ou menos 50 mil o número de manifestantes, o que representaria mais ou menos o dobro dos participantes ativos no movimento de Outubro. (retornar ao texto)

(46) Ver Pipes, op. cit., p. 545. (retornar ao texto)

(47) Ver Smirnov, art. cit., in Acton, Cherniaev e Rosenberg, op. cit., p. 328, 329. (retornar ao texto)

(48) Lénin, Oeuvres, tomo 26, Paris, Éditions Sociales, Moscou, Éditions du Progrès, 1977, “Thèses sur l‘Assemblée Constituante”, p. 397 e s.. (retornar ao texto)

(49) Ver Lénin, op. cit., tomo 26, “Déclaration des Droits du Peuple Travailleur et Exploité”, p. 445; Figes, op. cit., p. 513; e Smirnov, art. cit., in Acton, Chernaiev e Rosenberg, op. cit., p. 329. (retornar ao texto)

(50) Ver Pipes, op. cit., p. 548. (retornar ao texto)

(51) Ver Pipes, op. cti., p. 543544; e Figes, op. cit., p. 513. (retornar ao texto)

(52) Ver Pipes, op. cit., p. 551; e Figes, op. cit., p. 514. (retornar ao texto)

(53) Ver ib e ib. (retornar ao texto)

(54) Ver Leopold Haimson, “The Mensheviks after the October Revolution“, Part III, art. cit., in rev. cit, vol. 39, nº4, outubro e 1980, p. 466. (retornar ao texto)

(55) Ver id., p. 469476. (retornar ao texto)

(56) Id., p. 477479. (retornar ao texto)

(57) Ver Pipes, op. cit., p. 453 e Figes, p. 516. (retornar ao texto)

(58) Ver Wade, op. cit., p. 285, e Pipes, op. cit., p. 554. (retornar ao texto)

(59) Ver Figes, op. cit., p. 516517. (retornar ao texto)

(60) Ver Smirnov, art. cit., in Acton, Cherniaev e Rosenberg, op. cit., p. 332. (retornar ao texto)

(61) Ver a respeito Evan Mawdsley, The Russian Civil War, Edimburgh, Birlinn, 2005 (1987), p. 17 e s., e p. 50. (retornar ao texto)

(62) Idem, ibidem, p. 25 e 26. (retornar ao texto)

(63) Idem, ibidem, p. 22. (retornar ao texto)

(64) Ver Oliver Radkey, Russia goes to Polls, Ithaca e Londres, 1989 (1950), p. 37 e s. Como observa Pipes, se se trata de medir o apoio de que dispunham os bolcheviques em outubro, é preciso considerar o fato de que a eleição se deu depois da promulgação do decreto sobre a paz, o que deve ter modificado o resultado em favor deles. Mas essa melhora não dura muito. (retornar ao texto)

(65) Sobre o Terceiro Congresso, ver Brovkin, op. cit., p. 62 e Pipes, op. cit., p. 555. (retornar ao texto)

(66) Ver Pipes, op. cit., p. 571, 572. (retornar ao texto)

(67) Idem, ibidem, p. 576. (retornar ao texto)

(68) Idem, ibidem, p. 582. (retornar ao texto)

(69) Idem, ibidem, p. 587. (retornar ao texto)

(70) Idem, ibidem, p. 597. (retornar ao texto)

(71) Idem, ibidem, p. 603. (retornar ao texto)

(72) Ver Leonard Schapiro, The Communist Party of the Soviet Union, Londres, Eyre & Spottiswoode, 1960, p. 184, e o comentário de Brovkin, op. cit., p. 66. (retornar ao texto)

(73) Pipes, op. cit., p. 590. Shapiro observa que “as únicas unidades no exército, cujo moral era bom, eram anti-bolcheviques”. (retornar ao texto)

(74) Idem, ibidem, p. 586. (retornar ao texto)

(75) Idem, ibidem, p. 587, 588. (retornar ao texto)

(76) Idem, ibidem, p. 572. (retornar ao texto)

(77) Idem, ibidem, p. 583, n*. (retornar ao texto)

(78) Ver as “Teses...” de Lênin, de 7 de janeiro (20), citadas por Pipes, op. cit., p. 582: “[o governo russo] se tornaria um agente da França e da Inglaterra”. (retornar ao texto)

(79) Ver a respeito Brovkin, op. cit., p.67: “Os líderes mencheviques acreditavam que a guerra defensiva oferecia uma oportunidade notável no sentido de sustar a escalada na direção do conflito civil na Rússia, e no sentido de mobilizar apoio para a unidade nacional e a Assembleia Constiuinte”. (retornar ao texto)

(80) Ver E. Acton, Vl. Cherniaev e W. G. Rosemberg, A Critical Companion to The Russian Revolution 1914-1921, Bloomington e Indianoppolis, Indiana University Press,1997, p. 296, artigo de Michael Melancon, “The left Socialist Revolutionaires“. Mas para uma análise detalhada da posição dos SR de esquerda – inclusive nas suas peripécias – em relação ao tratado, ver Lutz Höfner, Die Partei der Linken Sozial-Revolutionâre in der Russischen Revolution von 1917/18, Colônia, Weimar, Viena, Bôhlau Verlag, 1994, particularmente p. 331-394. Para o contexto internacional do Tratado, incluindo a análise da posição dos governos dos Impérios Centrais, ver Pipes, op. cit., 567-605. (retornar ao texto)

(81) Sobre essa questão fundamental – ela será o centro da parte final desse texto, e, até certo ponto, do conjunto dele – há um livro pioneiro que é Leonard Shapiro, The Origin of the Communist Autocracy, political opposition in the soviet state, first phase, 1917-1922, Londres, The London School of Economics and Political Science, G. Bell and Sons, LTD, 1955. Dos livros recentes, destaco Brovkin, op. cit. e também (livro esgotado, que só obtive quando esse texto já estava escrito) Behind the Front Lines of the Civil War: Political Parties and Social Movements in Russia, 1918-1922, Princeton, 1994 .Ver também Vladimir Brovkin (ed), The Bolcheviks in Russian Society, the revolucion and the civil wars, New Haven e Londres, Yale University Press, 1997. Para o nosso tema, interessam especialmente os artigos de O. V. Volobuev sobre o menchevismo, o de Michael Melancon sobre os SR de esquerda, o de Scott Smith sobre os SR, e o de Sergei Pavliuchenkov sobre os operários sob o “comunismo de guerra”. O texto de Brovkin sobre as mulheres é impressionante. (Já dispomos de um exemplar deste livro.) (retornar ao texto)

(82) Ver Brovkin, op. cit., p. 54 e s.. (retornar ao texto)

(83) Idem, ibidem, p. 95. (retornar ao texto)

(84) Idem, ibidem, p. 95-97. (retornar ao texto)

(85) Ver por exemplo Diane Koenker, Moscow Workers and the 1917 Revolution, Princeton (N.J), Princeton University Press, p. 336-346. Koenker mostra que a maioria dos operários moscovitas era pela derrubada do governo provisório mas sem se dispor a uma participação ativa (ver, p. e., p. 342), e fica evidente pela sua descrição que os operários eram, na realidade, favoráveis ao “poder dos sovietes” (ver, p.e., 340). Ver também David Mandel, The Petrograd Workers and the Soviet Seizure of Power, Londres, Macmillan, 1984, p. e., p. 300 onde o autor se refere à “batalha pelo poder do soviete” (Brovkin, op. cit., p. 55, alude aos dois livros). (retornar ao texto)

(86) Pipes, corrobora esses dados através de um manuscrito inédito, em russo de G. Aronson (“Na perelome”, “na ruptura”), que faz parte dos arquivos Nievskii, manuscrito que ele considera o melhor balanço da ruptura (ver Pipes, op. cit., p. 558, 560 e 895, n. 40). (retornar ao texto)

(87) Ver Brovkin, op. cit., p. 159. (retornar ao texto)

(88) Brovkin faz uma análise por região e por cidade: região industrial central – Kaluga, Riasan, Tver, Vladimir, Kostroma, Tula, Yaroslav; região das terras negras – Orel, Voronezh, Kursk, Tambov; regiões do alto Volga e dos Urais – Vologda, Arkhangelsk, Saratov, Nijnii Novgorod, Samara, Viatka, Kasan; e região baixo Volga, Kuban e Don – Rostov, Tsaritsyn...). (retornar ao texto)

(89) Para a análise detalhada dessas intervenções, ver Brovkin, op. cit., p. 126-160. Exemplos: intervenção no soviet de Kaluga (em 8 de junho) (ver p. 131), recusa em abandonar os postos no Comitê Executivo de Kostroma (ver p. 132), dispersão do soviet de Tula (ver p. 137), dispersão do soviet de Yaroslav (ver p. 141), dispersão do soviet de Orel (ver p. 142), dispersão do soviet de Zlatous (ver p. 154) etc. (retornar ao texto)

(90) Ver Figes, op. cit., p. 624. (retornar ao texto)

(91) Sobre o movimento das assembleias de representantes ver Brovkin, op. cit., sobretudo p. 162-196, 221-222, 247-248 e 251-254. Também Grégorii Aronson, “Ouvriers russes contre le bolchevisme” in Le Contrat Social, Paris, vol. X, nº4, julho-agosto de 1966, p. 201 e s. Uma posição contrária à de Brovkin, tentando reduzir a importância das assembleias de representantes (seus motivos seriam essencialmente econômicos etc), pode ser encontrada no artigo de W.S. Rosenberg, “Russian Labor and Bolshevik Power after October”, Slavic Review, v. 44, n. 2, verão de 1985. O artigo vem seguido por duas intervenções, de Moshe Levin e de Vladimir Brovkin, e de uma tréplica final de Rosenberg. O texto traz dados importantes, mas os pressupostos de Rosenberg parecem frágeis e muito marcados pelas posições “oficiais” do bolchevismo. É um pouco surpreendente que Figes (op. cit., p. 852, n. 62) prefira a interpretação de Rosenberg à de Brovkin. Parece difícil negar que tenha havido também uma motivação política importante. (retornar ao texto)

(92) “A vida se tornou dura e difícil. Mais e mais fábricas estão sendo fechadas. O exército de desempregados é cada dia maior. A fome e o domínio arbitrário se tornam cada vez mais fortes e não há saída... Nessas horas terríveis e agitadas não podemos esperar ajuda de parte alguma. Temos de ajudar a nós mesmos... Trabalhadores de toda a Rússia, nós os representantes (upolmomochennye) das fábricas e usinas (plants) de Petrogrado os convocam para o Congresso Pan-Russo. Representantes livremente eleitos da classe operária virão de todas as cidades, e juntos procurarão e hão de encontrar o caminho da salvação para eles mesmos e para todo o país: suprimento alimentar, desemprego, ruína geral, ausência de direitos para os povo, renascimento das nossas organizações – tudo será discutido e decidido” (Brovkin, op. cit., p. 245). (retornar ao texto)

(93) Ver Brovkin, op. cit., p. 248. (retornar ao texto)

(94) Ver L. Haimson, “The Mensheviks after the October Revolution”, part I, The Russian Review, 1979, v. 38, nº 4, p. 470, 471. As outras duas partes do artigo de Haimson, a ultima das quais tem importantes materiais sobre as discussões na única sessão da Assembleia Constituinte, foram publicadas na mesma revista, respectivamente no vol. 39, nº 2, abril de 1980, e no vol. 39, nº 4, outubro de 1980. (retornar ao texto)

(95) Consegui um número do jornal na Bibliothèque Nationale de France, de Paris, mas infelizmente não era o que contém o artigo (aparentemente a British Library também não possui o nº 18-19; ele existe nas coleções americanas). (retornar ao texto)

(96) O que segue resume o texto de Brovkin, op. cit., p. 239 e s. (retornar ao texto)

(97) Brovkin, op. cit., p. 239. (retornar ao texto)

(98) Ver D. Mandel, op. cit., p. 406, ele fornece alguns dados a respeito, mas admite que, na realidade, ter-se-ia, talvez, um quadro menos favorável aos bolcheviques. (retornar ao texto)

(99) Ver L. Haimson, art. cit., Part I, The Russian Review, 1979, v. 38, nº 4, p. 470, 471. (retornar ao texto)

(100) Ver Prlando Figes, A People's Tragedy, the russian revolution 1891-1924, Londres, Pimlico, 1997 (1996), p. 685. Devo a localização da referência a Cícero Araújo. (retornar ao texto)

(101) Ver Brovkin, op. cit., p. 243. (retornar ao texto)

(102) Ibidem, ibidem, p. 254. (retornar ao texto)

(103) Há dúvidas sobre quais eram efetivamente os seus objetivos, mas eles não parecem ter tentado, de fato, tomar o poder. (retornar ao texto)

(104) Ver a respeito o importante livro de Evan Mawdsley, op. cit., por exemplo, p. 54 e 75. (retornar ao texto)

(105) A guerra civil “plena” ou propriamente dita, começa com um fato curioso e, em certo sentido, acidental. Soldados tchecos, na maioria soldados do exército austro-húngaro aprisionados pelos russos, abandonavam o país, com o consentimento do governo soviético. Viajando pela trans-siberiana, eles deveriam, em princípio, deixar a Rússia por Vladivostock, com o projeto de se juntar, na Europa, às tropas que lutavam contra os Impérios Centrais. Um incidente de percurso, e uma declaração brutal de Trotski, leva os tchecos a se revoltarem. Eles darão apoio à oposição SR que se organizava no Volga, sob a bandeira da Assembleia Constituinte. Isso marca, propriamente, o início da guerra civil. (retornar ao texto)

(106) Ver Mawdsley, op. cit., p. 75. (retornar ao texto)

(107) Ver as judiciosas considerações sobre a importância política de Kamenev em Marc Ferro, A Revolução Russa de 1917, tradução de Maria P.V. Resende, São Paulo, Perspectiva, 2004 (1967), p. 144, 145 (trata-se do livro “pequeno” de Marc Ferro, sobre a revolução). (retornar ao texto)

Inclusão: 25/11/2022