A Doutrina Militar Unificada e o Exército Vermelho

M. V. Frunze

Julho de 1921


Primeira edição: a partir de Izbrannye proizvedenie ( Moscovo, 1940), originalmente publicado em Armiia i revoliutsiia, # 1 (Julho, 1921).
Fonte: http://www-personal.ksu.edu/~stone/FrunzeDoctrine.
Tradução: João Filipe Freitas
HTML: Fernando A. S. Araújo.
Direitos de Reprodução: Licença Creative Commons licenciado sob uma Licença Creative Commons.

Uma das mais importantes questões que atraí a atenção do nosso pensamento militar contemporâneo é a questão da chamada “doutrina militar unificada”.

Tem servido como objecto de uma discussão viva em artigos de uma série de militares especialistas colocados nas páginas do jornal agora defunto “Assuntos Militares”; pessoal militar tem abordado esta questão de forma séria e sincera, como testemunham os procedimentos de muitas conferências militares fazendo luz nas questões da reorganização do Exército Vermelho.

Tudo isso fala pela presença de profundas questões teóricas e interesse prático emergiram por esta questão. Mas, infelizmente, a matéria ainda não saiu da área do simples interesse, para o que até agora não só não tenta o estudo sistemático da doutrina militar, mas os diversos conteúdos do conceito ainda estão num grau nebuloso e indeterminado.

Em particular, os artigos dos nossos antigos especialistas militares trouxeram à luz o desagrado nas opiniões e nos pontos de vista. Correu literalmente como no provérbio: “tantas opiniões, como quantas as cabeças.” Como reconhecido pelos representantes de vanguarda do mundo militar, parece que o nosso antigo estado maior general não possuí qualquer tipo de determinadas visões, na questão básica da teoria militar, e ainda mais do que isso, não há uma clara concepção de que é que cada questão substancial consiste: a capacidade para pô-las com propriedade, falta.

Este facto, que fala acima de tudo para os extremamente magros recursos teórico-militares que herdamos do antigo exército, pode, levar a tristes ruminações nas possibilidades de mais esforços nessa direcção. Precisamos de reconhecer, sem dúvida, que há alguns fundamentos para esse tipo de medos, mas apenas para alguns.

Vale a pena lembrar a situação político-social na qual os nossos velhos camaradas nos assuntos militares têm desenvolvido e trabalhado o seu pensamento. Na atmosfera da polícia estatal autocrática, que suprimiu qualquer iniciativa pessoal e social, contra o ambiente do nosso atraso geral económico e político, debaixo de hábitos e maneiras de ver o mundo, extremamente enraizados em todas as esferas da actividade social, decerto que não podemos falar de uma espécie de larga criatividade académica.

Todas estas deformidades aparecem especialmente agudas no estado dos nossos assuntos militares, onde o pensamento curioso foi implacavelmente cortado pela raiz e a iniciativa foi minada. Portanto, não se pode objectivamente culpar o antigo Estado-Maior General para que a confusão e impotência mostrada numa série de questões. No entanto, um facto é um facto, e todos aqueles que detêm os interesses da nossa querida república soviética e querem ver o desenvolvimento e fortalecimento do seu poder militar devem ter isso em conta.

Pensamos que, com base em relações sociais recém-criados, numa situação não só permitindo mas exigente diretamente de cada cidadão honesto energia e máxima iniciativa, que a nossa teoria militar será capaz de desenvolver rapidamente e crescer mais forte também. Pensamos que no meio do antigo Estado Maior, não vamos encontrar mais do que alguns trabalhadores capazes de rasgar, a partir do seu eu espiritual, as roupagens do Adão do Velho Testamento, que não são capazes de pensar de forma diferente do que dentro dos limites de molduras estreitas e hábitos apresentados por uma visão de mundo burguesa, impregnada de um espírito de embotamento filisteu e estagnação.

A condição básica para o trabalho fecundo dos nossos velhos especialistas é composto por essa capacidade de livrar-se dos restos de velhas rotinas, para compreender todas as complexidades da destruição do velho mundo que acontece à nossa volta, para assumir o ponto de vista das novas classes sociais que se deslocam para a arena da vida. A experiência prática que muitos deles receberam nas fileiras do Exército Vermelho dará material suficiente para esta tarefa.

Tudo isso, tomado em conjunto com a actividade recém-iniciada da jovem geração dos nossos militares trabalhadores, crescendo durante o período de guerras revolucionárias, a partir das classes mais baixas da população, dá total garantia de que no futuro próximo, de que a questão de analisar a nossa experiência militar vai avançar juntamente com a elaboração desses pontos de vista unificados, que devem servir de base para a formação do Exército Vermelho e e de cuja a ausência nós sentimos  dolorosamente,  desde o do topo até a base do Exército Vermelho.

Este artigo apresentado à atenção do leitor é uma tentativa de levantar a questão de uma "doutrina militar unificada" do ponto de vista dos interesses de Estado e de uma revolução operária e esboçar como um exemplo de um caminho que, parece-nos, a resolução do problema deve seguir.

II

Antes de tudo, o que queremos exatamente dizer com "doutrina militar unificada"? Qual é o significado prático desta ideia?

Uma resposta a esta pergunta é já evidente a partir do olhar mais superficial sobre a essência das guerras contemporâneas, o carácter de tarefas militares actuais e as condições da sua resolução.

Guerras do período histórico atual em comparação com épocas anteriores têm uma série de características. Em tempos anteriores, os resultados de confrontos armados dependia em pequenos grupos comparativamente de população, ou em formações que estão definidas e formadas, que consideravam a guerra a sua profissão, ou sobre aqueles temporariamente incluídos nas fileiras das tropas para esses objetivos. Agora, no entanto, os participantes da guerra são nações inteiras. Não são milhares e dezenas de milhares de pessoas que lutam, mas milhões — as guerras desenham-se na sua esfera e subordinam decisivamente todos os aspectos da vida social, e arrastam em sem excepção, interesses sociais e do Estado. O teatro de operações militares não é mais um espaço estritamente delimitado, mas um enorme território com dezenas e centenas de milhões de habitantes; meios técnicos de luta são infinitamente desenvolvidos e têm se tornando mais complexos, criando novas categorias e mais recentes especialidades, tipos de armas, e assim por diante.

Sob essas condições, a exigência básica da arte e ciência militares — a coesão de um plano geral e uma forte coordenação na sua conduta — poderiam realmente ser deixados por resolver. Enquanto em guerras anteriores a liderança directa do comandante de unidades individuais de formação geral era uma ocorrência normal, agora não podemos falar disso, desse modo. Entretanto, a unidade, a integridade e o acordo são necessários mais do que em qualquer momento anterior. E são necessários não apenas no período em que as operações militares já se desenvolveram, mas também, quando os preparativos preliminares para essas operações estão em desenvolvimento, pois, como regra geral, esse trabalho preparatório, tanto pelo Estado, como um todo e o seu aparato militar, em particular, desempenharão um papel decisivo. O Estado deve determinar antecipadamente o carácter de política geral e, em particular, a política militar, embora salientando correspondentemente possíveis objetos dos seus esforços militares, desenvolvendo e estabelecendo um plano específico de actividades gerais do Estado, tendo em conta os confrontos futuros e preparando as suas tarefas antecipadamente por um uso propício da energia nacional.

Quanto ao aparelho militar, deve assumir uma forma organiizacional exigida pelos objectivos gerais do estado, com base no programa geral de estado, e por mais trabalho para criar uma forte unidade de todas as forças armadas, conectando-as de cima para baixo por um traço comum de pontos de vista sobre o carácter das tarefas militares, em si, e acerca dos meios para levá-las a cabo.

Este trabalho de desenvolvimento de unidade de pensamento e vontade nas fileiras do exército é um assunto extremamente complexo e difícil e só pode ter êxito quando é concluída metodicamente [“planomerno”], com base na situação precisamente formulada e sancionada pela opinião geral da classe dominante do país.

Do que foi dito acima, fica claro que o estudo da "doutrina militar unificada" tem grande significado prático para todo o desenvolvimento militar da República. Este estudo deve, acima de tudo, indicar o carácter desses confrontos militares que nos esperam. Devemos nos preparar para a defesa passiva do país, não configurando ou perseguir qualquer tipo de atribuições activas, ou devemos ter essas tarefas activas em mente? Política militar e de desenvolvimento de todo carácter das nossos forças armadas, do carácter e do sistema de formação de soldados individuais e das maiores formações, propaganda político-militar e, em geral, todo o sistema de educação do país depende da resolução de uma forma ou de outra desta pergunta.

Este estudo deve absolutamente ser unificado como uma expressão da vontade unificada da classe social no poder.

Aqui está uma lista exemplificativa de ideias gerais e das tarefas práticas provenientes deles, os quais devem ser incluídos na compreensão da "doutrina militar unificada". Já foi referido que não existe formulação mais ou menos geralmente aceite e exacta desse conceito na nossa literatura militar. Mas, apesar de toda a diferença de opinião expressa no conceito de "doutrina militar unificada," a maioria dos pontos básicos das várias formulações geralmente coincidem. Com base no que foi dito acima, esses pontos básicos podem ser divididos em duas categorias:

  1. técnicas e
  2. políticas.

A primeira é constituída por aquelas respeitantes à base organizacional do desenvolvimento do Exército Vermelho, o carácter da preparação militar das tropas, e métodos de resolução de tarefas militares. Para o segundo refere-se à ligação entre o lado técnico do desenvolvimento das forças armadas com a estrutura geral da vida do Estado, determinando que o ambiente social em que o trabalho militar deve ter lugar, e o próprio caráter de tarefas militares.

Desta forma, é possível propor esta definição de "doutrina militar unificada": "doutrina militar unificada" é a instrução aceita no exército de um determinado estado, estabelecendo o caráter de desenvolvimento, métodos de treino de tropas das forças armadas do país, orientações na base dos pontos de vista dominantes do Estado acerca do caráter das tarefas militares diante deles, e os meios de resolver essas tarefas, proveniente da essência de classe do estado e determinada pelo nível de desenvolvimento das forças produtivas do país.

Esta formulação não pretende uma finalidade construtiva e consistência lógica completa. Esse não é o problema. O que é importante é o conteúdo básico do conceito: a sua cristalização final é uma questão para posterior pesquisa prática e teórica.

III

Tendo estabelecido o conteúdo lógico geral de "doutrina militar unificada", vamos passar agora para a questão do conteúdo prático concreto deste entendimento na aplicação a exércitos realmente existentes em vários estados.

Em conexão com isto, é especialmente interessante deter-se no exemplo dos três estados que manifestaram fortemente contornos de uma única ideologia militar (doutrina militar), completamente desenvolvida e incorporada de forma precisa em suas forças armadas. Tenho em mente a Alemanha, França e Inglaterra. Começamos com o primeiro. A Alemanha até muito recentemente foi o estado com o mais poderoso aparato militar, um sistema estruturado de organização das suas forças armadas e de uma ideologia militar completamente definida, unificado para ambos os elementos principais do exército e todo o país.

A linha básica da doutrina militar alemã na sua parte técnica (ou seja estritamente militar) é o espírito extremamente agressivo, acentuadamente expresso. A ideia de actividade, de se esforçar para completar tarefas militares pela conduta ofensiva enérgica, corajosa e inabalável permeia todos os manuais alemães e instruções para altos comandantes. Essa ideia também determinou a estrutura de todo o aparato militar alemão, enfatizando a resolução de problemas operacionais e criando no Estado-Maior alemão um órgão poderoso e autoritário, gerindo todas as actividades para o planeamento militar e treino de tropas. Toda a educação e treino das tropas continuou neste espírito taticamente ofensivo e como resultado final preparou umas forças armadas perfeitamente estruturadas e preparadas, que as suas qualidades de combate mais proeminentes foram revelados na medida certa nos imensos campos de batalha  da guerra imperialista.

Perguntamos: o que, ou a quem foi foi devido a que a Alemanha se obrigasse a ter estas forças armadas qualitativamente superiores? A primeira resposta já foi dada: a Alemanha desenvolveu o seu exército, com base numa "doutrina militar unificada", construída em correspondência com os princípios da arte militar. Mas esta é apenas uma primeira resposta. Devemos perguntar ainda: por que é que, o exército alemão tem uma tal doutrina, porque foi que a doutrina incutida de cima para baixo, enquanto, ao mesmo tempo, na Rússia, por exemplo, não havia nada semelhante, embora a Rússia também possuísse, sem dúvida, o conhecimento teórico da arte militar.

Esta questão não pode ser respondida, apontando para os dotes militares de exceção de figuras militares alemães, que, supostamente, pela força de seu génio descobriram os segredos da vitória e criaram a doutrina militar alemã que levantou o seu exército às alturas inatingíveis. Tal explicação é infantilmente ingénua, mas é preciso tomar nota dela, porque alguns dos artigos dos nossos especialistas militares mostram consistentemente tentativas de vincular a essência da criação de uma doutrina militar pelas actividades e talentos de gente individualmente genial (ver, por exemplo, tal definição: "a doutrina militar é a voz profética do génio militar" e absurdos similares).

Os contornos básicos da doutrina militar alemã não são de todo um acidente; acaba por ser total e completamente um produto da estrutura geral da vida alemã no período que antecedeu a guerra imperialista. O que, de facto, foi o Império Alemão até 1914? Era um estado capitalista economicamente e politicamente poderoso com coloração imperialista acentuada, um estado que conduzia de uma política abertamente predatória, e, enquanto dependia das suas forças materiais e culturais, buscava a hegemonia mundial. A presença de concorrentes fortes na forma de outros países imperialistas (França, Inglaterra, Rússia, e outros), que haviam criado anterior historicamente a unidade do Estado-nacional e apreendido com sucesso os melhores pedaços de recursos do mundo, forçou a Alemanha imperialista a exercer toda a sua força na luta por posição mundial. A classe burguesa no poder na Alemanha subordinou toda a vida do país para este objetivo básico do estado: a vitória sobre os seus concorrentes. A imprensa, as ciências, as artes, as escolas, o exército — todos foram organizados e dirigidos pela burguesia para um objectivo. O burguês conseguiu mesmo corromper camadas significativas de proletariado alemão e subordinar à sua influência — uma classe que foi objetivamente oposta a essa linha de conduta predatória, tomada pela burguesia. E neste contexto, nesta atmosfera de admiração geral para o exército e pela frota, com base da política externa mais activa, colocando diante do exército tarefas ofensivas definidas, nenhum outro tipo de doutrina militar alemã poderia ter sido criada para além do que nós temos diante de nós. No pessoal da estado-maior general alemão e em todo o exército alemão, na própria personalidade do Imperador Guilherme, como nunca antes, toda a Alemanha refletiu o "burzhui" auto-satisfeito [termo pejorativo para burguesia] e senhorios, certos da sua força e seus sonhos de extáticos de poder mundial. "A Alemanha acima de tudo" — foi o slogan que envenenou a consciência da maioria da nação alemã na era da guerra imperialista. E os regimentos alemães eram leais a este slogan, também, seguramente, seguindo os princípios da sua doutrina, uma vez que colidiram violentamente e em vagas através das planícies da Bélgica, em 1914.

Os primeiros confrontos com exércitos inimigos mostraram o acerto estratégico e táctico das posições da doutrina alemã.

Tal foi o caso com a Alemanha. A conclusão que se pode tirar é a seguinte: todos os assuntos militares de um determinado estado, até e incluindo a formação, com base nos quais são construídas as suas forças armadas, são um reflexo de toda a estrutura de sua vida, e, em última análise, do seu modo de vida económico, como uma primeira fonte de toda a sua força e recursos. Os generais alemães nunca teriam conseguido criar a sua doutrina militar, e mesmo se tivessem conseguido, eles não teriam sido capazes de inculca-lo tão completamente no exército alemão, se as condições correspondentes da vida alemã, não os tivesse bafejado.

IV

Agora a França.

Este país também é um representante do imperialismo predatório. Assim como ocorre com a burguesia alemã, a França esteve sempre pronta para aproveitar as mercadorias estrangeiras e actuou em tais circunstâncias, não é pior do que a "militarista" Alemanha. Mas na realidade a burguesia francesa teve diferenças significativas de seus vizinhos orientais. Em disputas com os concorrentes sobre os recursos, eles não tinham o descaramento aberto e a auto-confiança, que marcou a clique dirigente alemã. Vale a pena lembrar, os conflitos de 1905, 1909 e 1911 com a mesma Alemanha sobre Marrocos e da política covarde, predatória e astuta que a França seguiu nesse caso, agarrando-se aos recursos que escorregavam das suas mãos e ao mesmo tempo não ter o poder de decisão para iniciar um duelo.

Este carácter único da política externa francesa, é determinado em geral pela posição económica e política da Terceira República. No seu desenvolvimento, a indústria francesa tinha caído muito atrás das indústrias de outros países avançados; da população francesa durante uma série de anos, não tinha crescido, e a frase "a população permanece numa posição estacionária" tornou-se a caracterização habitual da população francesa de acordo com os dados da estatística anual. No lugar da apreensão aberta de território estrangeiro, acompanhada do risco de ficar preso numa luta difícil, o capital francês procurou um caminho diferente, mais calmo, para a exploração de mão-de-obra estrangeira, amplamente à procura de negócios de qualquer tipo, com o capital estrangeiro com o objectivo de uma divisão mundial de recursos.

Este espírito da burguesia francesa — oportunista, insegura de si mesma e de sua força, passivo — determinou o carácter geral da doutrina militar francesa. Independentemente da presença do exército francês das mais ricas tradições militares, começando com o grande Turenne (Henry de la Tour d'Auvergne) e terminando com Napoleão, independentemente dos exemplos brilhantes da arte militar que tinha dado no espírito de bravo, atacando estratégias e táticas, a doutrina militar dos exércitos da Terceira República foi inferior ao da Alemanha. É caracterizada por uma falta de confiança nos seus pontos fortes foi, uma ausência de planos ofensivos gerais, uma incapacidade de buscar bravamente decisão em batalha, em vez disso procurando amarrar a sua vontade ao inimigo e não considerando a vontade deste último. O conteúdo positivo da doutrina que rege o exército francês na época mais recente consistiu essencialmente em tentar decifrar o plano do inimigo, ocupando para este fim uma posição de contemporização, e apenas com o esclarecimento da situação, procurando decisão numa ofensiva geral. Essas foram as linhas essenciais da doutrina militar francesa, plantando as suas impressões sobre a imagem inteira de actividades do exército francês na última guerra, especialmente no seu primeiro período, o da manobra. Aqui vale a pena sublinhar que, nos seus dotes individuais, os comandantes franceses foram quase piores do que os alemães. Além disso, muitos deles teoricamente não simpatizavam com a sua própria doutrina, mas na verdade simpatizavam com a doutrina alemã e o seu espírito de maior actividade. Apesar de tudo isso, eles não podem mudar o espírito geral do Exército Francês, toda a sua estrutura interna, e o carácter dos pontos de vista de governar no método de resolver problemas militares, uma vez que estes eram um produto de factores mais poderosos do que a força de personalidades individuais.

Desta forma, o exemplo da França confirma tudo o que dissemos sobre a questão da doutrina em conexão com a Alemanha. A estrutura militar de um determinado estado, o carácter da visão e perspectivas na esfera militar, e, finalmente, o próprio conteúdo dos princípios dos assuntos militares é determinado por toda a estrutura da vida de um determinado período e, em particular, pela essência e carácter da classe social que tem o poder num dado momento.

Quanto à Inglaterra, o seu exemplo é curioso, no qual as especificidades geográficas e históricas da sua posição dirigem a atenção das suas classes dominantes não para forças terrestres, mas para a marinha. A Inglaterra foi e é um poder essencialmente colonial. A exploração das colónias era a principal fonte para o enriquecimento da burguesia britânica, e o apoio do governo colonial era a sua maior tarefa militar. Em conexão com isso, o controle do mar adquirido para o capital inglês era de uma importância de vida ou morte. Esta ideia tornou-se acima de tudo, o princípio básico da doutrina militar inglesa. Isto foi concretamente expresso na fórmula obrigatória para todos os governos ingleses de épocas passadas: ter uma frota, iguais em poder para as próximas duas potências navais combinadas. Até recentemente, este programa foi inabalavelmente seguido, mas agora, com o aparecimento na concorrência de um rival como os Estados Unidos da América, a posição mudou, e as energias da burguesia inglesa deve procurar alguma nova fórmula, dada a sua política agressiva.

Algumas palavras sobre a doutrina militar do exército russo sob o czarismo. Depois do que foi dito acima sobre a nossa doutrina militar, levantar esta pergunta pode parecer estranho. Não obstante a doutrina, ainda informe, existia no exército czarista, e apesar de não apresentar quaisquer aspectos positivos, os exemplos negativos podem mostrar o vínculo estreito entre o pensar sobre a guerra e a estrutura geral da vida.

O lado político dessa doutrina consistia na ideia das três partes — Ortodoxia, Autocracia, e Nacionalidade — martelado na cabeça dos jovens soldados nas aulas de sofisticação renomeada. No que se refere à sua parte técnico-militar, as nossas instruções consistiam em simples empréstimo de originais estrangeiros, a maior parte apenas em edições sintéticas; tanto aqui como na doutrina era a criança natimorta dos nossos poucos teóricos militares, permanecendo estranha, não só para a massa do corpo de oficiais, mas também para a sua liderança mais alta. Isto exibe toda a mediocridade incomparável, toda a podridão interna e flacidez da defunta Rússia czarista. Na realidade, o exército foi sempre objecto de um cuidado especial do czar, e, no entanto, esse mesmo exército nas suas mãos acabou por estar completamente despreparado para o combate.

O que tem sido mostrado permite-nos tirar uma conclusão geral sobre a questão que nos interessa: O primeiro deles é o pensamento que temos repetido mais de uma vez, de que os assuntos militares de um determinado estado, tomados como um todo, não são uma quantidade auto-suficiente, mas como um todo são determinados pelas condições gerais da vida de esse estado. O segundo — que o carácter da doutrina militar aceita no exército de um determinado estado é determinado pelo caráter da classe social que está na liderança. O terceiro — a condição básica da vitalidade da doutrina militar consiste na sua forte correspondência com os objetivos gerais do Estado e com os recursos materiais e espirituais que tem à sua disposição. Quarta — é impossível inventar uma doutrina capaz de ser um princípio organizacional vital para um exército. Todos os elementos básicos já são dados no contexto circundante, e os trabalhos de investigação teórica consistem na descoberta desses elementos e a sua inclusão num sistema em correspondência com as posições fundamentais da ciência militar e as exigências da arte militar. Quinta — a tarefa teórica básica dos trabalhadores dos Operários e Camponeses do Exército Vermelho (RKKA) deve ser o estudo do carácter das estruturas sociais que nos cercam; a determinação do carácter e a essência das tarefas militares que crescem da essência desse Estado; um estudo sobre as condições que permitam a sua realização no que diz respeito a pré-requisitos materiais e espirituais; um estudo sobre as particularidades da construção do Exército Vermelho e da aplicação a este de métodos de luta; harmonização das exigências da ciência e arte militares com todas essas particularidades que são objectiva e directamente relacionados com o carácter de nosso Estado proletário e da época revolucionária que vivemos.

V

Quais são os elementos de base que devem estar subjacentes à doutrina militar de nosso Exército-Vermelho de Operários e Camponeses?

Para responder a isso, voltemo-nos primeiro para uma análise de nosso estado. Pelo seu carácter e pela sua essência a nossa pátria apresenta-se como uma formação de estado de um tipo completamente novo. Diferentemente de todos os outros estados já existentes no globo, a RSFSR [República Socialista Federativa Soviética Russa] é o único país do mundo onde o poder pertence ao trabalho. Começando a partir de Outubro 1917, quando a classe operária da Rússia, unida com os camponeses trabalhadores, tomou o poder das mãos da grande e da pequena burguesia. Vivemos num estado operário-camponês, onde o papel principal pertence à classe trabalhadora.

A ideia básica e sentido de ditadura do proletariado consiste na tarefa de destruir as relações de produção capitalistas e substitui-las por uma estrutura fundada na propriedade socializada dos meios de produção e da distribuição planeada dos produtos dessa produção. Esta ideia está em contradição insolúvel com os fundamentos da existência de estados restantes do mundo, onde por agora o capital reina.

Ditadura do proletariado significa a mais sincera, a mais implacável guerra das classes trabalhadoras contra a classe dos governantes do mundo antigo — a burguesia que, contando com a força do capital internacional, com a força e coragem das suas ligações internacionais, e, finalmente, no conservadorismo espontâneo da massa pequeno-burguesa, que são um inimigo ameaçador e poderoso do mundo recém-nascido. Entre o nosso Estado proletário e todo o mundo burguês restante só pode haver um relacionamento: guerra longa, teimosa desesperada até a morte — uma guerra, exigindo resistência colossal, a disciplina, a dureza, compromisso inabalável, e a unidade de vontade. A forma exterior destas relações mútuas podem mudar superficialmente dependendo das mudanças nas condições de luta e de curso; um estado de guerra aberta pode dar o seu lugar a algum tipo de relações convencionais, permitindo um certo grau a coexistência pacífica dos lados opostos. Mas essas formas baseadas nos tratados não são capazes de mudar o carácter básico de relações mútuas. E é necessário para perceber completamente e reconhecer abertamente que a existência paralela do nosso estado soviético proletário com os estados do mundo burguês-capitalista, a longo prazo é impossível.

Com as energias multiplicadas dez vezes pelo derrube da burguesia em apenas um país como uma premonição de seu destino, a burguesia não pode descansar enquanto não destruir o ninho, que serve como o terreno fértil e fonte de perigo para a dominação mundial. No primeiro momento conveniente, as ondas do mar burguesa-capitalista que circunda a nossa ilha proletária vão jogar contra ela, esforçando-se por lavar todas as conquistas da revolução proletária. E, ao mesmo tempo, a chama do fogo revolucionário brotará com mais frequência e de forma mais acentuada em vários países do mundo burguês, e as colunas de proletários ameaçadoras que se preparam para uma tempestade mostram de algum modo, tentativas de sentido oposto. Essa contradição pode ser resolvida e removida somente pela força das armas numa luta sangrenta de inimigos de classe. Não há outra saída, nem pode haver.

A partir disto chegamos à seguinte conclusão: a consciência de cada trabalhador, de cada camponês, de cada soldado, e acima de tudo de cada membro do partido dos trabalhadores comunistas no poder deve ser preenchido com o pensamento de que, actualmente, o nosso país está em estado de cerco e permanecerá nesse estado enquanto o capital reinar no mundo, que a energia e a vontade do país devem ser direcionadas, por agora, para a criação e fortalecimento de nosso poderio militar, que a propaganda do estado deve preparar psicologicamente a opinião geral com a ideia luta activa inevitável com o nosso inimigo de classe, com o cuidar e prover as necessidades do exército. Só em tal atmosfera pode a matéria de desenvolvimento das nossas forças armadas ser concluída com êxito.

Este momento de consciência geral da inevitabilidade e importância das tarefas militares que se colocam perante o estado é o primeiro e mais importante elemento no futuro doutrina militar unificada do Exército Vermelho Operário-Camponês.

Aqui é importante notar ainda outra particularidade que caracteriza a doutrina do exército de trabalhadores. Uma vez que a burguesia do mundo é obrigada a impulsionar as massas trabalhadoras para alcançar objetivos militares estranhos para eles, fazer isso com a ajuda de todos os subterfúgios possíveis, construído tanto na emoção de certos instintos multidão (ambição, o chauvinismo nacional mais extremo, e outros), ou decepção em massa. Vale a pena lembrar, por exemplo, a história das "Chaves para os Lugares Santos," a herança bizantina (Rússia), a ideia de revanchismo (França), e assim por diante.

Para um Estado operário como a Rússia Soviética, não há necessidade para esses meios enganosos. O interesse de classe dos trabalhadores na vitória de revolução e da ideia da sua solidariedade internacional, como um meio de alcançar a vitória é totalmente adequado para a criação de laços mais fortes para os objetivos da luta geral. Temos provas claras de que este elemento se tornou uma parte componente viva da visão do mundo de grandes massas trabalhadoras da Rússia? Sem dúvida que sim. Fontes de energia espiritual entre a classe trabalhadora, lutando por sua liberdade, são totalmente suficientes. É necessário apenas as despesas desses suprimentos ser realizada na direcção correcta e com o planeamento e coordenação suficientes. A propaganda militar, organizada à escala estatal, deve ser o meio para alcançar este objectivo.

O PUR (Direcção Política da RKKA) deve ser o órgão que elabora tudo relacionado com esta questão, e todos os órgãos de educação, sob a liderança geral da Glavpolitprosvet [Direcção Principal de Política, Propaganda, e da Educação] deve ser responsável por colocar as medidas em prática. Apenas uma organização desse tipo de responsabilidades pode criar o mesmo reforço propício do poderio militar da República, que teve lugar na Alemanha. O papel das escolas alemãs neste assunto já é bem conhecido. É necessário apenas recordar a frase bem conhecida de que "a honra da vitória em Sadowa e Sedan pertence ao professor." É igualmente necessário para a honra da vitória na revolução mundial, ocorrendo diante de nossos olhos, que faça parte dos nossos professores e propagandistas, na escola e fora e dela.

Quanto ao conteúdo político-social concreto desta parte da nossa futura doutrina militar, é encontrado como um todo e totalmente desenvolvido na ideologia da classe operária, no programa do Partido Operário Comunista Russo. A velha fórmula do exército czarista — "Ortodoxia, Autocracia, Nacionalidade" — deu lugar às ideias do comunismo revolucionário, poder soviético como uma forma específica da ditadura do proletariado, da fraternidade e da solidariedade internacional do trabalho. Três anos de actividade por parte das secções políticas e células comunistas do Exército Vermelho trouxeram já, resultados bastante concretos no sentido de uma larga educação política de massa do Exército Vermelho num novo espírito, e, continuando na mesma direcção, essa actividade deve-se preparar para as nossas forças armadas unificadas, fortemente coesas do topo, graças a uma única ideologia política.

A tarefa básica de hoje, neste contexto, juntamente com aprofundar e expandir o trabalho político nos níveis mais baixos, é o trabalho sobre a adesão do oficial de corpo [comandante] à massa geral do Exército Vermelho. O Estado deve jogar todo o peso da sua influência imediatamente para acabar com essas reminiscências de desunião que ainda são observadas no Exército Vermelho. As pessoas com uma ideologia oposta à do trabalho devem ser retiradas do sistema. Isso não significa de modo algum a necessidade de todo o corpo de oficiais se tornar membro do Partido Comunista. Mas significa alcançar uma posição em que o corpo de oficiais se torne essencialmente Soviético, eliminando assim qualquer base para a suspeita dirigida contra eles, para que estes (os oficiais) e a massa de soldados do Exército Vermelho vão se sentir em completa união e compreensão mútua.

VI

Quanto à questão do carácter das tarefas militares que podemos enfrentar — ou seja, elas devem ser de carácter estritamente defensiva ou se o Exército Vermelho estiver pronto, se necessário, para passar para a ofensiva — a partir das ideias apresentadas acima, a conclusão é claramente determinada.

A política geral da classe trabalhadora, a classe ativa, por natureza, uma classe que se esforça para a vitória sobre o todo o mundo burguês, não pode não estar activo no mais alto grau. É verdade, se considerados os recursos materiais apenas do nosso país, que os limites dessa actividade tornaram-se suficientemente estreito e definido para o tempo presente por esse nível de desenvolvimento económico e a posição geral em que actualmente estão. Por isso, é possível que, para um determinado intervalo de tempo, as energias activamente revolucionárias da classe trabalhadora não vai ser dirigido para o alcance das metas do tipo activo. Mas este facto não altera a essência da questão. Este princípio da grande estratégia aplica-se integralmente à política:

"aquele que vence é aquele que encontra em si o poder de decisão para o ataque, o lado que só defende está virado para a derrota."

A classe trabalhadora será forçada, pelo próprio curso do processo revolucionário, para ir para a ofensiva contra o capital quando a oportunidade adequada se apresentar. Desta forma, neste momento temos acordo completo entre as exigências da arte militar e da política em geral. Quanto ao fornecimento de material para as possibilidades de realização da presente linha ofensiva, vale a pena considerar que a base de nossa ofensiva pode não ser a Rússia sozinha, mas toda uma série de outros países também. Tudo depende do grau de maturidade do processo revolucionário dentro desses países e as capacidades da sua classe trabalhadora de se mover para lutar com seus inimigos de classe.

O carácter de classe dos confrontos que se aproximam, dando-nos ajuda nos interesses da causa geral de todos os elementos proletários, destrói de forma significativa as consequências negativas, das indicações acima da posição económica difícil do nosso país. O proletariado pode e vai atacar, e ao lado do proletariado, que serve na sua maior arma, o Exército Vermelho, irá atacar também.

A partir disto segue-se a necessidade de educar o nosso exército, no espírito de maior actividade, para prepará-lo para a conclusão das tarefas revolucionárias através de operações ofensivas, conduzidas com energia, decisão e com bravura. Se nos voltarmos para a experiência de combate do Exército Vermelho já tem, vemos que há muito tem vindo a realizar-se, essencialmente, desta forma. Quase todas as operações significativas durante a Guerra Civil carregam traços manifestando um espírito de actividade e de iniciativa do nosso lado. Pode mesmo dizer-se que, por vezes, que a nossa actividade foi além de todos os limites, quase com a incapacidade de avaliar a situação actual e não evitando os perigos do risco excessivo.

Tudo isso é completamente natural, pois num exército criado e liderado pelo proletariado, um espírito que não seja o mais activo não poderia existir. O carácter activo de se abordar os confrontos militares mencionados acima apresenta uma série de exigências práticas para a nosso estado-maior. É necessário estabelecer os procedimentos dos estados-maiores para que o Exército Vermelho possa desempenhar as suas funções contra qualquer objectivo [napravlenie] operacional e em qualquer parte da frente. Os limites dessa frente num futuro próximo são determinados por toda a extensão do velho mundo.

Já agora, a preparação de nosso oficial de corpo [comandante] deve incluir não só o treino militar, mas também as condições económicas e políticas de possíveis teatros de acção militar. Isto apresenta o aparelho militar em geral, com imenso trabalho preparatório imenso no alcance e importância. Analisando a natureza provável dos nossos confrontos militares futuros, podemos prever de antemão que avanços teremos em termos tecnológicos, ser mais fraco do que os nossos adversários. Esta circunstância tem um significado extremamente grave, e além de exercer todos os esforços e meios para alcançar a igualdade tecnológica, devemos procurar maneiras de igualar um pouco esta desvantagem.

VII

Nós temos alguns meios para fazer isso. O primeiro e mais importante deles é a preparação e formação do nosso exército, no espírito de operações de manobra em grande escala. A extensão do nosso território, a possibilidade de recuar distâncias significativas sem perder a capacidade de continuar a luta, e outros factores presentes e condições adequadas para a aplicação de manobras de um carácter estratégico, que está fora do campo de batalha. O nosso oficial de corpo [comandante] deve ser treinado principalmente nas ideias de manobrabilidade, e toda a massa do Exército Vermelho deve ser ensinada a arte da realização, de forma rápida e metódica, de manobras de marcha. A experiência da recente guerra imperialista nos seus estágios iniciais, e igualmente toda a experiência de nossa guerra civil (que tem em geral um carácter de manobra), dá-nos o mais rico material para o estudo sobre isso.

Neste contexto (dada a escassez geral de nossos meios militares), a engenharia de defesa e de agressão [sic], desempenhando um papel tão colossal na guerra imperialista, deve mover-se para o último lugar no nosso exército. O papel auxiliar que esses métodos devem jogar consiste em servir como um meio de apoio para as operações de campo. Uso de condições locais, ampla aplicação de fortificações artificiais, a criação de barreiras artificiais temporárias, que prevê a conclusão de manobras gerais de marcha — esta é a esfera apropriada para a aplicação desses métodos e medidas. Em particular, o papel e a importância das fortificações, nas nossas operações futuras, serão minúsculas. Vai ser muito mais rentável para fortalecer as nossas forças de campo, em detrimento de fortificações.

Mais uma vez a experiência da Guerra Civil nos dá o material mais rico deste ponto de vista. A actividade dos guerrilheiros na Sibéria, a luta em regiões cossacas, os "basmachi" no Turquestão, a revolta de Makhno e o banditismo em geral na Ucrânia e em outras regiões apresentaram um campo ilimitado para o estudo e para as conclusões gerais de carácter teórico. Mas uma condição necessária para a fecundidade dessa ideia de "pequena guerra", repito, é o desenvolvimento atempado de um plano e a criação de todas as condições que permitam o seu desenvolvimento amplo. Portanto uma das tarefas do nosso estado-maior deve ser o desenvolvimento da ideia de "pequena guerra" e a sua aplicação para as nossas futuras guerras com inimigos tecnologicamente mais avançados do que nós.

O carácter da manobra das nossas operações futuras levanta a questão de reavaliar o papel e a importância da cavalaria na batalha contemporânea. O carácter posicional da recente guerra imperialista criou em muitas mentes a impressão de que a cavalaria, como uma força independente, activa, não pode desempenhar um papel especial e deve ir para um lugar secundário.

Na verdade, a experiência da guerra civil deu exemplos brilhantes de acções de cavalaria independentes tanto do nosso lado e sobre os nossos adversários, e deu à cavalaria a sua antiga importância, mas é sabido que nem todos consideram a experiência da guerra civil apenas, suficientemente convincente, e a questão não pode, portanto, ser considerada clara para todos.

Pela nossa profunda convicção, em futuras operações a cavalaria vermelha terá um papel extremamente importante, e, portanto, cuidar mais da sua preparação e desenvolvimento deve ser uma das nossas primeiras responsabilidades. A fim de melhor preparar a cavalaria para operações de combate, deve ser dada uma atenção especial à experiência colossal da Guerra Civil, e no desenvolvimento, com base nesta pesquisa, de directivas especiais para antigos comandantes de cavalaria.

VIII

Organizacionalmente, um Exército Vermelho permanente é a única base possível para as nossas forças armadas num futuro próximo. Isso decorre do que temos dito sobre o carácter de nossas missões militares. Esta questão já pode ser considerada definitivamente resolvida, em conexão com as correspondentes resoluções do X Congresso do Partido Comunista da Rússia e de decretos governamentais subsequentes. Nós podemos permitir que a transição para um sistema de milícia com base [na] Vsevobuch [organização responsável pelo treino militar universal] apenas a um grau que prevê reduções específicas sobre os gastos do governo sem prejudicar a capacidade do Exército Vermelho para realizar missões.

No que se refere a vida interna do Exército Vermelho, ele deve ser organizado para atingir a convergência máxima com os ideais da sociedade comunista. É claro que, devido aos actuais níveis das forças produtivas, a propaganda sobre a igualdade completa do corpo de oficiais com os soldados é impossível, e poderia atrair apenas os interessados em destruir a força e o poder do Exército Vermelho. Isso é claro para a grande maioria dos soldados do Exército Vermelho; no entanto, a estrutura interna e rotinas do exército do Estado soviético dos Operários-Camponeses devem estar livres de quaisquer privilégios não provenientes das exigências do serviço. Só nesta base é concebível para criar essa coesão camarada e compreensão mútua das fileiras altas e baixas no exército, que é a segurança mais importante para a força física e espiritual do Exército Vermelho.

No treino da unidade, o elemento do exercício no Exército Vermelho deve mover-se para o último lugar; em que, a própria compreensão do exercício deve ser completamente mudado. Exercício no velho sentido da palavra — isto é, a formação puramente mecânica de elementos da unidade com a aplicação de medidas duras de disciplina — não podemos sequer falar. Nós não temos nenhuma razão para nos esforçarmos para atingir esse nível de formação dos nossos soldados, que seria o ideal para os amantes de desfiles e exibições. É o suficiente para atingir um certo nível de estrutura, rapidez e exactidão na realização de atividades específicas. Isso não deve ser mecânico; é preciso organizar tudo sobre a realização destes efeitos através do desenvolvimento máximo da iniciativa pessoal e independência de cada soldado do Exército Vermelho. A este respeito, as particularidades características do nosso Estado e nosso exército, abre as mais amplas possibilidades. Temos a oportunidade de construir a unidade do nosso exército não através de disciplina severa, mas pelo desenvolvimento mental máximo dos soldados do Exército Vermelho. Enquanto cada Estado burguês deve temer a introdução dos escravos do capital para o conhecimento e desenvolvimento espiritual, para nós, este desenvolvimento é a garantia mais verdadeira de realizações vitoriosas. Todo o aparato do nosso treino do soldado individual deve ser aplicado a essa exigência.

A manutenção da disciplina de serviço nas fileiras do exército é uma condição obrigatória e necessária da sua força, e neste sentido as exigências do Estado soviético são mais decisivas. Mas, ao mesmo tempo, há uma imensa diferença entre a nossa compreensão contemporânea da disciplina do que no antigo exército czarista. A disciplina no Exército Vermelho deve ser baseada não no medo de punição ou compulsão, mas em vez disso, consciente e voluntário do cumprimento, por cada um, do seu dever de serviço, e o primeiro exemplo desse tipo de disciplina, deve ser o do oficial de corpo [comandante].

Como deve a disciplina ser mantida? Em primeiro lugar, pela auto-consciência dos elementos principais da massa do Exército Vermelho, as suas células comunistas, os seus trabalhadores políticos, e todo o corpo de oficiais [comandante], a sua auto-contenção, a dedicação à revolução, heroísmo e auto-sacrifício. Em segundo lugar, a capacidade do corpo de oficiais para se conectar, a abordagem, até certo ponto, para se combinar com a grande massa do Exército Vermelho. Em terceiro lugar, pela justeza da liderança política e técnica do Exército Vermelho, fortalecendo a fé da massa do Exército Vermelho na combinação completa entre os [recursos] dos oficiais do Exército Vermelho e as suas atribuições. Sem essas condições, a manutenção da disciplina num exército revolucionário como o nosso Exército Vermelho é uma tarefa impossível. É claro, é absolutamente impossível passar sem alguns elementos de compulsão, mas a sua aplicação deve estar dentro dos mais estritos limites. Só pode ser reconhecido como o verdadeiro Comandante Vermelho, aquele que sem qualquer compulsão alcança completa submissão à sua vontade.

Em termos gerais, estes devem ser os elementos básicos da doutrina militar que irá formar a base para o desenvolvimento e fortalecimento do poder da Federação Soviética. Para cumprir o seu objectivo, as ideias de nossa doutrina devem penetrar e permear todas as nossas instruções e manuais militares, deve tornar-se uma parte orgânica da visão de mundo, da massa do Exército Vermelho e, especialmente, do seu corpo de oficiais. Parece-me inteiramente adequado apresentar os conceitos práticos básicos que saíem da doutrina num manual especial, o que seria um catecismo básico do Exército Vermelho.

Este é um círculo duro de ideias gerais que, parece-me, aqueles que trabalham em questões de teoria militar nos seus elementos gerais devem manter por perto. Sem dúvida, o que está sendo apresentado aqui é apenas uma tentativa de levantar questões e atrair a atenção correspondente. Quanto a respostas finais, elas só podem vir como resultado do trabalho longo e obstinado do pensamento militar-teórico com base na experiência colectiva.

Eu  gostaria de expressar o meu desejo mais ardente — que o desenvolvimento da questão da doutrina do Exército Vermelho ocupasse esse lugar na nossa literatura e nas nossas actividades práticas que merece por direito, graças ao seu significado especial para o desenvolvimento das forças armadas da República.


Inclusão 09/06/2015