Sobre as Correntes Filosóficas dentro do Movimento Feminista

Anuradha Gandhi


1. Feminismo Liberal


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O pensamento feminista liberal possui uma longa história nos séculos XVIII e XIX com pensadoras como Mary Wollstonecraft (1759-1797), Harriet Taylor Mill (1807-1858), Elizabeth Candy Stanton (1815-1902) argumentando em favor dos direitos das mulheres sobre uma base filosófica de cunho liberal. O movimento pelos direitos iguais para as mulheres, especialmente a luta pelo direito ao voto, foi principalmente baseada no pensamento liberal. Os primeiros filósofos políticos liberais, como John Locke e Jean-Jacques Rousseau, que defendiam o domínio da razão e a igualdade para todos, não incluíram as mulheres entre aqueles que entendiam merecer a igualdade, particularmente a igualdade política. Falharam ao aplicar teorias liberais à posição da mulher na sociedade.

Os valores do liberalismo, incluindo a crença-chave na importância e autonomia do indivíduo se desenvolveram no século XVII. O liberalismo emergiu com o desenvolvimento do capitalismo na Europa, em oposição aos valores feudais-patriarcais fundados na desigualdade. Era então a filosofia da burguesia ascendente. Os valores feudais estavam baseados na crença da superioridade inerente da elite — especialmente os monarcas. O resto eram súditos, subordinados. Eles defendem a hierarquia, com direitos e poder desiguais. Em oposição a esses valores feudais, a filosofia liberal fez avançar uma crença na igualdade e liberdade naturais dos seres humanos. "Eles defenderam uma estrutura política e social que iria reconhecer a igualdade de todos os indivíduos e provê-los com uma igualdade de oportunidades. Essa filosofia era rigorosamente racional e secular e a mais poderosa e progressiva formulação do período do Iluminismo. Era marcada por intenso individualismo. Ainda que os filósofos liberais mais famosos do século XVIII tais como Rousseau e Locke não aplicassem os mesmos princípios à família patriarcal e à posição das mulheres nesta. Era a parcialidade patriarcal residual do liberalismo que se aplicava somente aos homens comerciantes". (Zillah Eisenstein).

Mary Wollstonecraft pertencia ao setor radical da aristocracia intelectual na Inglaterra que apoiava as Revoluções Francesa e Americana. Ela escreveu Reivindicação dos Direitos da Mulher em 1791 em resposta à interpretação conservadora de Edmund Burke sobre o significado da Revolução Francesa. Nesse folheto, argumentou contra as noções feudais-patriarcais de uma dependência natural das mulheres pelos homens, que mulheres eram feitas para satisfazer os homens, que não poderiam tornar-se independentes. Wollstonecraft escreveu antes do aparecimento do movimento de mulheres e seus argumentos são baseados na lógica e na racionalidade. Por detrás da análise de Wollstonecraft estão os princípios básicos do Iluminismo: a crença na capacidade humana de raciocinar e nos conceitos de liberdade e igualdade que sustentaram e acompanharam as Revoluções Americana e Francesa. Reconhecia a razão como a única autoridade e argumentava que a não ser que as mulheres fossem encorajadas a desenvolver seu potencial racional e a depender apenas de seu próprio julgamento, o progresso de toda a humanidade seria bloqueado. Ela argumentou principalmente a favor das mulheres assistirem à mesma educação que os homens para que também fossem embebidas com as qualidades do pensamento racional e assim ter acesso a oportunidades para ganhar e liderar uma vida independente. Criticou fortemente as ideias de Rousseau sobre a educação das mulheres. Segundo ela, as ideias de que a educação das mulheres deveria ser diferente da dos homens contribuíram para fazer daquelas pessoas mais fracas e artificiais. A lógica de Rousseau era a de que mulheres deveriam ser educadas de uma maneira que imprimisse nelas a noção de que a obediência é a maior das virtudes.

Os argumentos utilizados refletem limitações de classe de seu pensamento. Ao mesmo tempo em que escreveu que as mulheres das "classes comuns" possuíam maior virtude porque trabalhavam e eram, em certa medida, independentes, também acreditava que "as mulheres mais respeitáveis são as mais oprimidas". Seu livro foi influente até mesmo na América nesta época.

Harriet Taylor, também parte dos círculos intelectuais burgueses de Londres e esposa do famoso filósofo utilitário James Stuart Mill, escreveu Sobre a Emancipação [Enfranchisement] das Mulheres em 1851, em apoio ao movimento de mulheres, que havia acabado de emergir nos Estados Unidos. Dando fortes argumentos liberais contra os oponentes dos direitos femininos e a favor de que as mulheres passassem a ter os mesmos direitos que os homens, escreveu, "nós negamos o direito de qualquer parcela de uma espécie de decidir por outra parcela, ou de qualquer indivíduo decidir por outro, o que é e o que não é 'o seu devido lugar'. O devido lugar para todos os seres humanos é o maior e mais alto que eles sejam capazes de alcançar...". Notando a importância do fato de que a sociedade não havia entendido direitos iguais para as mulheres, escreveu "o mundo é muito jovem e acabou de começar a se livrar da injustiça. Só agora está se livrando da escravidão negra... Podemos admirar que ainda não tenha feito tanto para as mulheres?" De fato, a base liberal do movimento de mulheres da forma que ele emergiu em meados do século XIX nos EUA está clara na Seneca Falls Declaration de 1848. A declaração dessa primeira Convenção Nacional começa assim: "nós acreditamos que essas verdades sejam autoevidentes: que todos os homens e mulheres são criados iguais; que eles são dotados por seu Criador com certos direitos inalienáveis; que entre esses está o direito à vida, à liberdade e a perseguir a felicidade...".

Na fase seguinte do movimento de mulheres, no fim da década de 60, entre as principais proponentes de ideias liberais estavam Betty Friedan, Bella Abzzug, Pat Schroeder. Friedan fundou a National Organization of Womans (NOW) em 1966. As feministas liberais emergiram entre aquelas que trabalhavam em grupos de direitos das mulheres, agências governamentais, comissões, etc. Sua preocupação inicial era alterar as leis que negavam igualdade para a mulher na esfera da educação, do emprego, etc. Elas também fizeram campanhas contra as convenções sociais que limitavam as oportunidades das mulheres com base no gênero. Mas, tão logo essas barreiras legais e educacionais começaram a cair ficou evidente que a estratégia liberal de mudar as leis por dentro do sistema existente não era suficiente para conseguir justiça e liberdade para as mulheres. Elas mudaram sua ênfase para lutar por igualdade de condições ao invés de meramente igualdade de oportunidade. Isso significou demandar que o Estado jogue um papel mais ativo na criação das condições nas quais as mulheres possam de fato concretizar as oportunidades que exigem. A demanda por assistência à infância, bem-estar, cuidados de saúde, salário desemprego, regimes especiais para a mãe solteira, etc., foram assumidas pelas feministas liberais. A luta pela Emenda dos Direitos Iguais (ERA) também foi liderada por esse setor do feminismo. O trabalho do setor feminista liberal se deu através de organizações em nível nacional e, desta forma, foram notadas pela mídia. Um setor entre as liberais, podendo-se citar de exemplo Zillah Einstein, argumenta que o liberalismo possui o potencial de ser uma ideologia emancipadora porque as mulheres trabalhadoras podem, através de suas experiências de vida, ver a contradição entre a democracia liberal enquanto ideologia e a o patriarcado capitalista que as nega a igualdade prometida pela ideologia. Mas o liberalismo não era a tendência mais influente no movimento feminista nessa fase.

Crítica

O liberalismo, enquanto filosofia, surgiu do ventre da sociedade feudal do Ocidente conforme a burguesia lutava para conquistar o poder. Assim, ele incluía um ataque aos valores feudais de uma verdade divinamente ordenada e de hierarquia (desigualdade social). Defendeu a razão e os direitos iguais para todos os indivíduos. Mas essa filosofia era baseada em um individualismo extremado e não em esforços coletivos. Consequentemente, promovia a visão de que se a igualdade formal e legal fosse concedida a todos, então os indivíduos deveriam se aproveitar das oportunidades disponíveis e ter sucesso na vida. A questão das diferenças de classe e seu efeito nas oportunidades disponíveis às pessoas não era levada em consideração. Inicialmente, o liberalismo jogou um papel progressivo na destruição da instituições sociais e políticas do feudalismo. Mas, no século XIX, após o crescimento da classe trabalhadora e de seus movimentos, as limitações do pensamento liberal vieram à tona. Isso porque a burguesia, que havia chegado ao poder, não entendeu os direitos que ela havia professado para os pobres e outros setores oprimidos (como as mulheres, ou os negros nos Estados Unidos). Eles tinham que lutar por seus direitos. O movimento de mulheres e o movimento negro, nessa fase, conseguiram reivindicar seus direitos utilizando o argumento dos liberais. Mulheres das classes burguesas estavam na linha de frente desse movimento e não estenderam a questão dos direitos às classes trabalhadoras, incluindo as mulheres da classe trabalhadora. Mas, conforme a ideologia da classe trabalhadora aparecia, várias tendências socialistas encontraram apoio entre os setores ativos da classe trabalhadora. Elas começaram a questionar o próprio sistema político e socioeconômico da burguesia e os limites da ideologia liberal, com sua ênfase na igualdade formal e na liberdade individual. Nesta fase, o liberalismo perdeu seu papel progressista e nós entendemos que as principais organizações de mulheres tanto nos Estados Unidos, quanto na Inglaterra que lutavam pelo sufrágio tinham um objetivo estreito e se tornaram pró-imperialistas e anti-operárias. Na fase presente, as feministas liberais tiveram que ir além dos confinamentos estreitos da igualdade formal e fazer campanhas por direitos coletivos positivos como medidas de bem-estar para mães solteiras, prisioneiras, etc., e exigir um Estado de bem-estar social.

O liberalismo possui as seguintes fraquezas:


Inclusão 30/09/2019