A Constituinte

Graciliano Ramos

1945


Primeira Edição: ....
Fonte: Revista Princípios nº 5, março de 1983.
Transcrição e HTML: Fernando A. S. Araújo.
Direitos de Reprodução: Licença Creative Commons licenciado sob uma Licença Creative Commons.

capa

Senhoras

Senhores

Camaradas.

Exigimos uma Assembleia Constituinte livremente eleita — é preciso dizer isto, repetir isto sempre, em todos os recantos do Pais. Esta reclamação impõe-se, entra nas consciências, e os políticos que a principio desejavam a Constituinte, e depois não a desejavam, começam a desejá-la de novo, mas de maneira singular: como dádiva de um presidente escolhido na vigência de leis que se fazem, desfazem, refazem, voltam a desfazer-se. Louvam um presente, coisa outorgada, ouço mais ou menos a reprodução do que sucedeu em 1.937, com mais aparato, máscara de legitimidade.

É contra isso que protestamos. Descontenta-nos a ideia de, encobertos nos remendos da carta mais fascista ainda existente, remendos cada vez mais encolhidos e esgarçados, eleger um ditador, confiantes nesta promessa generosa: receberemos aquilo que de fato nos pertence. Realmente, se nos falta uma Constituição, se a que nos rege é apenas um simulacro de Constituição, só poderemos eleger um tirano, e nenhuma vantagem haverá nisso, embora ele seja a melhor das pessoas, absolutamente digna. Se aceitássemos tal arranjo, ficaríamos a depender dessa estranha magnanimidade, a depender de um indivíduo, situação que a experiência nos diz ser por todas as razões inconveniente. Que nos alvitra um dos candidatos?

— Escolham-me, e eu permitirei que a Câmara edifique uma espécie de lei básica.

Mas donde vem essa linguagem? Estamos cansados de ouvir salvadores vaidosos que nos trituram a paciência, nos amolam com o pronomezinho irritante: eu, eu, eu, eu. Não temos a ingenuidade necessária para confiar nos messias que se arrogam o direito de conduzir as massas arbitrariamente e nos concedem liberalidades no papel e em discursos, arengam com outros messias, uma lavagem pública de roupa suja, como se tivéssemos interesse em remexer mazelas pessoais, e não nos entendem, não nos conhecem, nunca nos entenderão e nunca nos conhecerão. Afastaram-se em demasia de nós, nem percebem que acumulamos decepções sobre decepções, anos, século? de decepções, e vêm repisar-nos cantigas velhas, caducas, sugeridas por um individualismo estreito e mesquinho.

Por que haveríamos de aceitar a concessão que nos propõem? Ela não se basearia naquele velho privilégio real, já ninguém possui a faculdade que as religiões criaram de conceder ao povo isto ou aquilo: seria uma consequência da nossa vontade expressa pelo voto. Esta vontade é a nossa arma, e não nos resolvemos a aliená-la, numa credulidade talvez fatal.

— Eu farei, asseveram estadistas capengas, fechando os olhos a algumas revoluções, que apesar de tudo se realizaram neste pobre mundo.

A nossa linguagem é outra. Nada pedimos, pois a criatura mais honesta se achará em dificuldades se no momento de saldar as suas contas estiver de mãos vazias. O cumprimento de certas obrigações não depende dos bons propósitos do devedor. E aí não há exatamente dívida: há uma oferta, de execução duvidosa.

É natural que a recusemos, digamos claramente o nosso intuito. Empregaremos todos os esforços por uma Assembleia Constituinte livremente eleita. Só ela nos dará tranquilidade, a paz que a reação procura estorvar por vários meios, forjando intrigas, semeando mentiras, estabelecendo a desordem, fingindo corrigi-la e atirando nos espíritos o gérmen de novas desordens, porque é dessas desarmonias que vive a reação. Desejamos trabalhar em sossego, livres das ameaças estúpidas que há dez anos tornaram isto uma senzala. O nosso pequenino fascismo tupinambá encheu os cárceres e o campo de concentração da Ilha Grande, meteu neles sujeitos inofensivos, até devotos do padre

Cícero, gente de penitência e rosários, pobres seres tímidos que nos perguntavam com surpresa verdadeira:

— Por que é que estamos presos?

Usaremos todas as nossas forças para que essas infâmias não se repitam. E para que elas não se repitam, exigimos uma Assembleia Constituinte livremente eleita.

Fascistas confessos, de cruz gamada e sigma, despiram as camisas sujas, lavaram as mãos torpes, são agora uns inocentinhos bem comportados, zumbem com sorriso de sujos:

— Não temos nada com isso.

Profissionais da política malandra, que recebiam instruções da embaixada alemã, da embaixada italiana, possibilitaram o golpe de Novembro e se beneficiaram com ele, purificaram-se, estão alheios a indecências e apontam um culpado.

— Foi ele.

E jornalistas que aplaudiram as injustiças mais terríveis, as violências mais ferozes, também se distanciaram do amo, cospem no prato, arranjam um bode expiatório.

Desses grupos, mais ou menos avariados, surgem cavaleiros andantes, Quixotes resolvidos a pôr as coisas nos eixos e desfazer agravos. É intuitivo que não acreditamos neles. Impossível responsabilizarmos um homem só pelas misérias que choveram sobre nós. Há muitos autores delas — e os piores são os que hoje simulam essa pureza tardia e querem democratizar o País de cima para baixo. É o que sempre fizeram. Na democracia deles o povo não entra. Fugimos dessa mistificação. E reclamamos com insistência, gritamos cem vezes, mil vezes, exibindo esta necessidade: uma Assembleia Constituinte livremente eleita.

Leia a Apresentação deste texto feita por Clóvis Moura


Inclusão 13/04/2016