Marx e o Reino da Consciência

António Gramsci

4 de maio de 1918


Primeira edição: Sem assinatura, Il Grido del Popolo, 4 de maio 1918 - disponível em https://www.resistenze.org/sito/ma/di/cg/mdcgba13-008114.htm

Tradução:  Desconhecida
Transcrição de: Alexandre Linares para o Marxists Internet Archive
HTML de: Fernando A. S. Araújo
Direitos de Reprodução:.....


Nosso Marx

Somos marxistas? Existem marxistas? Somente tu, estupidez, és eterna. Essa questão provavelmente ressuscitará estes dias, por ocasião do centenário, e consumirá rios de tinta de estultice. A vã quinquilharia e o bizantinismo são heranças imarcescíveis dos homens. Marx não escreveu um catecismo, não é um messias que tenha deixado uma fieira de parábolas carregadas de imperativos categóricos, de normas indiscutíveis, absolutas, fora das categorias do tempo e do espaço. Seu único imperativo categórico, sua única norma é: "Proletários do mundo inteiro, uni-vos." Portanto, a discriminação entre marxistas e não marxistas teria de consistir no dever da organização e da propaganda, no dever de organizar-se e associar-se. Isto é muito e, ao mesmo tempo, muito pouco: quem não seria marxista? E, sem dúvida, assim são as coisas: todos são um pouco marxistas sem o saber. Marx foi grande e sua ação foi fecunda não porque tenha inventado a partir do nada, não por haver engendrado com sua fantasia uma original visão da história, mas porque com ele o fragmentário, o irrealizado, o imaturo, se fez maturidade, sistema, consciência. Sua consciência pessoal pode converter-se na de todos, e já é de muitos; por isso Marx não é apenas um cientista, mas também um homem de ação; é grande e fecundo na ação da mesma forma que no pensamento, e seus livros transformaram o mundo, assim como transformaram o pensamento.

Marx significa a entrada da inteligência na história da humanidade, significa o reino da consciência.

Sua obra surge precisamente no mesmo período em que se desenvolve a grande batalha entre Thomas Carlyle e Herbert Spencer relativa à função do homem na história.

Carlyle: o herói, a grande individualidade, mística síntese de uma comunhão espiritual, que conduz os destinos da humanidade para margens desconhecidas, evanescentes no quimérico país da perfeição e da santidade.

Spencer: a natureza, a evolução, abstração mecânica inanimada. O homem: átomo de um organismo natural que obedece a uma lei abstrata como tal, mas que se faz concreta historicamente nos indivíduos: a utilidade imediata.

Marx situa-se na história com a sólida postura de um gigante: não é um místico nem um metafísico positivista é um historiador, um intérprete dos documentos do passado, e de todos os documentos, não apenas de uma parte deles.

Este era o defeito intrínseco das investigações relativas aos acontecimentos humanos: o não examinar e não levar em consideração mais do que uma parte dos documentos. E essa parte era escolhida não pela vontade histórica, mas pelo preconceito partidário, que continua a ser isso ainda que inconscientemente e de boa fé. As investigações não tinham como objetivo a verdade, a exatidão a reconstrução integral da vida do passado, mas a acentuação de uma determinada atividade, a valoração de uma tese apriorística. A história era domínio exclusivo das idéias. O homem considerava-se como espírito, como consciência pura. Dessa concepção derivavam duas conseqüências errôneas: as idéias acentuadas eram freqüentemente arbitrárias, fictícias. E os fatos aos quais era dada importância eram anedotas, não história. Se apesar de tudo, foi escrita história, no real sentido da palavra, isso deveu-se à intuição genial de alguns indivíduos, não a uma atividade científica sistemática e consciente.

Com Marx a história continua sendo domínio das idéias, do espírito, da atividade consciente dos indivíduos isolados ou associados. Mas as idéias, o espírito, se realizam, perdem sua arbitrariedade, não são mais fictícias abstrações religiosas ou sociológicas. A substância que adquirem está na economia, na atividade prática, nos sistemas e nas relações de produção e de troca. A história como acontecimento é pura atividade prática (econômica e moral). uma idéia se realiza não quando é logicamente coerente com a verdade pura, com a humanidade pura (a qual não existe a não ser como programa, como finalidade ética geral para os homens), mas quando encontra na realidade econômica justificação, instrumento para afirmar-se. Para conhecer com exatidão quais são os objetivos históricos de um país, de uma sociedade, de um grupo, o que importa antes de tudo é conhecer quais são os sistemas e as relações de produção e de troca daquele país, daquela sociedade. Sem este conhecimento é perfeitamente possível redigir monografias parciais, dissertações úteis para a história da cultura, e serão captados reflexos secundários, conseqüências distantes; mas não será feita história, a atividade prática não ficará explícita com toda sua sólida compacticidade.

Caem os ídolos de seus altares e as divindades vêem como se dissipam as nuvens de incenso doloroso. O homem adquire consciência da realidade objetiva, se apodera do segredo que impulsiona a sucessão real dos acontecimentos. O homem conhece-se a si mesmo, sabe quanto pode valer sua vontade individual e como pode chegar a ser potente se, obedecendo, disciplinando-se de acordo com a necessidade, acaba dominando a realidade mesma, identificando-a com seus fins. Quem conhece a si mesmo? Não é o homem em geral, mas aquele que sofre o jugo da necessidade. A busca da substância histórica, o ato de fixá-la no sistema e nas relações de produção e de troca, permite descobrir que a sociedade dos homens está dividida em duas classes. A classe que possui o instrumento de produção necessariamente já conhece a si mesma, tem consciência, ainda que seja confusa e fragmentária, de sua potência e de sua missão. Tem fins individuais e os realiza através de sua organização, friamente, objetivamente, sem se preocupar se o seu caminho está calçado com corpos extenuados pela fome ou com os cadáveres dos campos de batalha.

A compreensão da real causalidade histórica tem valor de revelação para a outra classe, converte-se em princípio de ordem para o ilimitado rebanho sem pastor. A grei obtém consciência de si mesma, da tarefa que tem de realizar atualmente para que a outra classe se afirme, toma consciência de que seus fins individuais ficarão em mera arbitrariedade, em pura palavra, em veleidade vazia e enfática enquanto não disponha dos instrumentos, enquanto a veleidade não se converta em vontade.

Voluntarismo? Essa palavra não significa nada, se se utiliza no sentido de arbitrariedade. Do ponto de vista marxista, vontade significa consciência da finalidade, o que quer dizer, por sua vez, noção exata da potência que se tem e dos meios para expressá-la na ação. Significa, portanto, em primeiro lugar, distinção, identificação da classe, vida política independente da de outra classe, organização compacta e disciplinada para os fins específicos próprios, sem desvios nem vacilações. Significa impulso retilíneo até chegar ao objetivo máximo, sem excursões pelos verdes prados da cordial fraternidade, enternecidos pelas verdes ervazinhas e pelas suaves declarações de estima e amor.

Mas a expressão "do ponto de vista marxista" é supérflua, e até pode produzir equívocos inundações meramente verbais. Marxistas, de um ponto de vista marxista... todas expressões desgastadas como moedas que tenham passado por excessivas mãos.

Karl Marx é para nós mestre de vida espiritual e moral, não pastor com báculo. É estimulador das preguiças mentais, é o que desperta as boas energias dormidas e que se deve despertar para a boa batalha. É um exemplo de trabalho intenso e tenaz para conseguir a clara honradez das idéias, a sólida cultura necessária para não falar vagamente de abstrações. É bloco monolítico de humanidade que sabe e pensa, que não tem papas na língua para falar, nem põe a mão no coração para sentir, mas que constrói silogismos de ferro que aferram a realidade em sua essência e a dominam, que penetram nos cérebros, dissolvem as sedimentações do preconceito e a idéia fixa e robustecem o caráter moral

Karl Marx não é para nós nem a criança que geme no berço, nem o barbudo terror dos sacristãos. Não é nenhum dos episódios anedóticos de sua biografa, nenhum gesto brilhante ou grosseiro de sua exterior animalidade humana. É um vasto e sereno cérebro que pensa um momento singular da laboriosa, secular, busca que realiza a humanidade por conseguir consciência de seu ser sua mudança, para captar o ritmo misterioso da história e dissipar seu mistério para ser mais forte no fazer e no pensar. É uma parcela necessária e integrante do nosso espírito, que não seria o que é se Marx não tivesse vivido, pensado, arrancado chispas de luz com o choque de suas paixões e de suas idéias, de suas misérias e de seus ideais.

Glorificando a Karl Marx no centenário de seu nascimento, o proletariado glorifica a si mesmo, glorifica sua força consciente, o dinamismo de sua agressividade conquistadora que vai desquiciando o domínio do privilégio e se prepara para a luta final que coroará todos os esforços e todos os sacrifícios.


Inclusão 29/05/2005
Última alteração 29/04/2020