Trabalhadores e camponeses

Antonio Gramsci

2 de agosto de 1919


Primeira Edição: L'Ordine Nuovo, 2 August 1919

Tradução: Elita de Medeiros - da versão disponível em https://www.marxists.org/archive/gramsci/1919/08/workers-peasants.htm

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Durante a guerra e por motivos de guerra, o Estado italiano assumiu, entre suas responsabilidades, a regulação da produção e da distribuição de bens materiais. Era uma espécie de confiança da indústria e do comércio, uma forma de concentração dos meios de produção e troca, e uma equalização das condições de exploração das massas proletárias e semiproletárias que produziram efeitos revolucionários. Não é possível compreender o caráter essencial do período atual sem levar em conta esses fenômenos e as consequências psicológicas por eles produzidas.

Em países ainda atrasados por causa do capitalismo, como Rússia, Itália, França e Espanha, existe uma nítida separação entre a cidade e o campo, entre operários e camponeses. Na agricultura, sobrevivem formas econômicas genuinamente feudais e uma psicologia correspondente. A ideia do Estado capitalista liberal moderno ainda é desconhecida; as instituições econômicas e políticas não são concebidas como categorias históricas, que tiveram um início, passaram por um processo de desenvolvimento, e que podem se dissolver após criar as condições para formas superiores de convivência social: eles são concebidos, ao contrário das categorias naturais, perpétuas, irredutíveis. Na realidade, a grande propriedade permaneceu fora da livre concorrência, e o Estado moderno tem respeitado sua essência feudal, desenvolvendo fórmulas jurídicas, como a detenção em custódia, que mantêm, de fato, a existência e os privilégios do regime feudal. A mentalidade do camponês permaneceu, assim, como um do servo da terra, que se revolta violentamente contra os patrões em determinadas ocasiões, mas é incapaz de se considerar parte de um coletivo (a nação para os donos e a classe para os proletários) e de desenvolver uma ação sistemática e uma revolta permanente para mudar as relações econômicas e políticas da existência social.

A psicologia dos camponeses era, em tais condições, incontrolável, e sentimentos reais permaneceram ocultos, implicados e confundidos em um sistema de defesa contra explorações, meramente egoísta, sem continuidade lógica, materializado em falsa indiferença e falso servilismo. A luta de classes confundiu-se com banditismo, chantagem, queima de florestas, engorda de gado, sequestro de mulheres e crianças, com ataques ao município: era uma forma de terrorismo básico, sem consequências constantes e eficazes. Objetivamente, então, a psicologia do camponês foi reduzida a uma pequena soma de sentimentos primordiais causados pelas condições sociais criadas pelo Estado parlamentar-democrático: o camponês foi deixado completamente à mercê dos latifundiários e de seus bajuladores e funcionários públicos corruptos, e a principal preocupação em suas vidas era defender-se fisicamente contra desastres naturais inesperados, e contra os abusos e crueldade bárbara dos proprietários de terras e funcionários públicos. O camponês sempre viveu fora do domínio da lei, sem personalidade jurídica, sem individualidade moral: ele permaneceu um elemento anárquico, o átomo independente em um tumulto caótico, contido apenas pelo medo da polícia e do demônio. Ele não entendia de disciplina: era paciente e tenaz na luta individual para tirar frutos escassos e minguados da natureza, capaz de grande sacrifício na vida familiar; mas era impaciente e selvagemente violento na luta de classes, incapaz de propor um objetivo geral e de persegui-lo com perseverança e luta sistemática.

Quatro anos de trincheira e derramamento de sangue mudaram radicalmente a psicologia dos camponeses. Esta mudança é especialmente clara na Rússia, e é uma das condições essenciais da revolução. Aquilo que não foi provocado pela industrialização, com seu processo normal de desenvolvimento, foi provocado pela guerra. A guerra forçou as nações mais atrasadas por causa do capitalismo, aquelas menos equipadas com meios mecânicos, a alistar os homens disponíveis, a opor grandes massas de carne viva às máquinas de guerra dos impérios centrais. Para a Rússia, a guerra significou a união de indivíduos anteriormente dispersos em um território totalmente vasto, significou uma concentração de humanos que durou anos e anos ininterruptos de sacrifício, com o perigo sempre imediato de morte, sob uma disciplina igualmente feroz: os efeitos psicológicos de suportar as mesmas condições de vida coletiva por esse tempo foram imensos e ricos em consequências imprevistas.

Os instintos egoístas individuais se turvaram, um espírito unitário comum foi formado, os sentimentos foram equalizados, e um hábito de disciplina social foi formado: os camponeses conceberam o Estado em sua grandeza complexa, em seu poder não medido, em sua construção complicada. Eles conceberam o mundo, não mais como uma coisa indefinidamente grande como o universo e fortemente confinado como a torre da igreja da cidadezinha, mas em sua concretude de Estados e povos, de forças e fraquezas sociais, de exércitos e máquinas, de riquezas e pobrezas. Elos de solidariedade foram formados, os quais, de outra forma, apenas décadas e décadas de experiência histórica e lutas intermitentes teriam causado: em quatro anos, na lama e no sangue das trincheiras, um mundo espiritual emergiu ansioso para se afirmar em formas e instituições sociais permanentes e dinâmicas.

Assim nasceram, no front de guerra russo, os conselhos de delegados militares, de modo que os soldados camponeses puderam participar ativamente da vida dos soviéticos de Petrogrado, de Moscou, e de outros centros industriais russos, e adquiriu consciência da unidade da classe trabalhadora. Foi assim que, à medida que o exército russo se desmobilizava e os soldados voltavam aos seus locais de trabalho, todo o território do Império, do [Rio] Vístula ao Pacífico, ficou coberto por uma estreita rede de Conselhos locais, órgãos básicos da reconstrução do Estado e do povo russo. Nesta nova psicologia fundou-se a propaganda comunista, transmitida desde as cidades industriais, e fundaram-se as hierarquias sociais livremente promovidas e aceitas através das experiências de vida revolucionária coletiva.

As condições históricas na Itália não eram e não são muito diferentes daquelas da Rússia. O problema da unificação das massas operárias e camponesas se apresenta nos mesmos termos: acontecerá na prática do Estado socialista e será fundado na nova psicologia da vida comum na trincheira.

A agricultura italiana deve transformar radicalmente suas operações para sair da crise causada pela guerra. A destruição da pecuária força a introdução de máquinas, obriga a uma rápida passagem para uma cultura industrial centrada na disponibilidade de instituições técnicas bem equipadas com maquinários. Contudo, essa transformação não pode acontecer em um regime de propriedade privada sem causar um desastre: é preciso que isso aconteça em um Estado socialista, no interesse dos camponeses e operários, associando-se em unidades de trabalho comunistas. A introdução de máquinas no processo produtivo sempre provocou profundas crises de desemprego, só aos poucos superadas pela elasticidade do mercado de trabalho. Hoje, as condições de trabalho mudaram radicalmente: o desemprego agrícola já se tornou um problema insolúvel pela impossibilidade efetiva de emigração, e a transformação industrial da agricultura só pode acontecer com o consentimento dos camponeses pobres, por meio de uma ditadura do proletariado corporificada em conselhos de operários industriais e de camponeses pobres.

Os operários de fábrica e os camponeses pobres são as duas energias da revolução proletária. Para eles, especialmente o comunismo representa uma necessidade existencial: a vinda do comunismo significa vida e liberdade; a continuação da propriedade privada significa o perigo inerente de ser aniquilado, de perder tudo, até mesmo a vida física. Eles são o elemento irredutível, a continuação do entusiasmo revolucionário, a vontade de ferro de recusar compromissos, de avançar implacavelmente para uma realização plena, sem ser desmoralizada por contratempos parciais e transitórios, sem ter ilusões de sucessos fáceis.

Eles são a espinha dorsal da revolução, os batalhões de ferro do exército proletário que avança, derrubando obstáculos com um golpe ou sitiando-os com suas ondas humanas que se despedaçam, corroem-se com o trabalho paciente, com sacrifício incansável. O comunismo é a sua cultura, é o sistema de condições históricas em que adquirirão personalidade, dignidade e cultura, e por meio dessa cultura, os operários de fábrica e os camponeses pobres se tornarão o espírito criativo do progresso e da beleza.

Qualquer obra revolucionária tem chance de sucesso apenas na medida em que se baseia nas necessidades de sua vida e nas demandas de sua cultura. Isso deve ser compreendido pelos dirigentes do movimento proletário e socialista, e é necessário que compreendam quão importante é o problema de dar, à força implacável da revolução, a forma adequada à sua psicologia geral.

Nas condições atrasadas da economia capitalista de antes da guerra, não era possível formar e desenvolver organizações camponesas amplas e profundas, nas quais os trabalhadores do campo pudessem se educar em uma concepção orgânica da luta de classes e na disciplina permanente, necessárias para a reconstrução do Estado após a catástrofe capitalista.

As conquistas espirituais realizadas durante a guerra, as experiências comunistas acumuladas em quatro anos de derramamento de sangue, sofridas coletivamente, ficando ombro a ombro nas trincheiras cheias de lama e sangue podem se perder, se não conseguirmos trazer todos esses indivíduos para órgãos de uma nova vida coletiva, em cujo funcionamento e prática as conquistas se solidifiquem, as experiências se desenvolvam, integrem, sejam conscientemente direcionadas para o desenvolvimento de uma finalidade histórica concreta. Assim organizados, os camponeses se tornarão um elemento de ordem e progresso; abandonados à própria sorte, na impossibilidade de desenvolver uma ação sistemática e disciplinada, eles se tornarão uma massa informe, uma desordem caótica de paixões, amargurada a ponto de barbáries mais cruéis que os sofrimentos inauditos que ocorrem de forma cada vez mais chocante.

A revolução comunista é essencialmente um problema de organização e disciplina. Dadas as reais condições objetivas da sociedade italiana, os protagonistas da revolução serão as cidades industriais, com suas massas compactas e homogêneas de operários. Precisamos, então, voltar nossa maior atenção para a nova vida que essa nova forma de luta de classes provoca dentro da fábrica e no processo de produção industrial. Contudo, apenas com as forças dos operários de fábrica, a revolução não será capaz de se estabelecer de forma sólida e generalizada: é preciso ligar a cidade ao campo; formar, no campo, instituições de camponeses pobres, entre as quais o Estado socialista poderá promover a introdução de máquinas e realizar o grande processo de transformação da economia agrária. Na Itália, este trabalho é menos difícil do que se pensa: durante a guerra, uma grande parte da população rural entrou nas fábricas da cidade, e entre eles a propaganda comunista rapidamente se enraizou. Essa população deve servir de cimento entre a cidade e o campo, deve servir para desenvolver um forte trabalho de propaganda que destrói a desconfiança e o rancor. Considerando seu profundo conhecimento da psicologia rural e da confiança de que goza, deve começar precisamente a atividade necessária para realizar a criação e o desenvolvimento de novas instituições que incorporem, no movimento comunista, as vastas forças dos trabalhadores no campo.


Inclusão: 04/05/2021