Carta para Tania Schucht

Antonio Gramsci

2 de janeiro de 1928


Tradução: Elita de Medeiros - da versão disponível em https://www.marxists.org/archive/gramsci/1928/new-year-letter.htm

HTML: Fernando Araújo.

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Querida Tania,(1)

E então o ano novo começou. É preciso fazer planos para uma vida nova, segundo a tradição: mas embora tenha pensado muito sobre tal plano, nunca consegui concretizá-lo. Essa sempre foi uma grande dificuldade em minha vida, desde meus primeiros anos racionais.

Naquela época, as escolas de ensino fundamental atribuíam, nessa época do ano, como tema de composição, a pergunta: O que você vai fazer da sua vida? Uma pergunta difícil, que resolvi pela primeira vez, aos oito anos de idade, fixando meus olhos na profissão de carroceiro. Descobri que o carroceiro reúne todas as características de utilidade e deleite: sacode as rédeas e guia os cavalos, mas, ao mesmo tempo, realiza um trabalho que enobrece o homem e lhe dá o pão de cada dia.

Permaneci fiel a essa orientação também no ano seguinte, mas por motivos que eu descreveria como extrínsecos. Se eu pudesse ser sincero, teria que dizer que minha aspiração mais viva era me tornar um Assistente de Tribunal. Por quê? Porque naquele ano veio à minha aldeia, como Assistente de Tribunal, um homem idoso que possuía um pequeno poodle muito charmoso, sempre vestido com esmero, com pequenas fitas vermelhas no rabo, uma capa minúscula nas costas, um colarinho envernizado e um pequeno freio de cavalo em torno de sua cabeça.

Não conseguia separar a imagem do pequeno poodle de seu dono ou de sua profissão, mas com muitos arrependimentos e por causa de uma lógica formidável e de um forte senso de dever que faria corar os grandes heróis, renunciei a essa perspectiva que tanto me seduzia. Sim, descobri que seria inútil tentar ser um Assistente de Tribunal e assim possuir um poodle tão maravilhoso: eu não sabia de cor os oitenta e quatro artigos da Constituição da República! Exatamente isso!

Eu havia chegado à segunda turma do ensino fundamental (a primeira revelação das virtudes cívicas do carroceiro!) e comecei a pensar, no mês de novembro, em fazer os exames de dispensa, para passar para a quarta turma, saltando sobre a terceira: Eu me considerava capaz de tanto, mas quando me apresentei ao Diretor de Estudos para atender ao apelo protocolado, me deparei com, à queima-roupa, a pergunta: Mas você conhece os oitenta e quatro artigos da Constituição? Eu nunca sequer tinha pensado nesses artigos: tinha-me limitado a estudar a noção de direitos e deveres do cidadão contidos no meu livro.

Aquela foi uma advertência terrível para mim, que me impressionou mais porque tinha participado, pela primeira vez, no passado dia 20 de setembro(2), do desfile comemorativo, com uma pequena lanterna veneziana, e tinha gritado com os outros: Viva o Leão de Caprera!(3) Viva os mortos de Staglieno(4) (não me lembro exatamente se chamei os mortos ou o profeta de Staglieno; possivelmente ambos, para variar), certamente porque era para ser promovido um concurso e poder conquistar os títulos jurídicos, tornando-me um cidadão ativo e perfeito. No entanto, não conhecia os oitenta e quatro artigos da Constituição. Que tipo de cidadão eu era, então? E como eu poderia aspirar tão ambiciosamente a me tornar um Assistente de Tribunal e possuir um cachorro com uma fita e uma capa? O Assistente de Tribunal é uma engrenagem na roda do estado (mas eu tinha pensado que ele era a roda inteira); ele é um depositário e guardião da lei, também um protetor contra qualquer tirano que queira nos pisar. E eu ignorei os oitenta e quatro artigos!

Assim os meus horizontes ficaram limitados, e mais uma vez aclamei as virtudes cívicas do carroceiro, que de qualquer maneira podia ter um cão, mesmo ele, e deixá-lo ficar completamente sem fitas ou capa. Veja como os planos construídos de maneira muito rígida e esquemática explodem, destruindo-se contra a dura realidade, quando se tem uma consciência vigilante e zelosa.

Abraços,
Antonio


Notas de rodapé:

(1) Tania Schucht era cunhada de Antonio Gramsci, e estava encarregada de seus negócios. A carta provavelmente foi enviada da ilha-prisão de Ustica. (retornar ao texto)

(2) O dia 20 de setembro é a data em que se celebra a unificação da Itália. É a data em que, em 1870, a brigada dos Bersaglieri entrou em Roma e pôs fim ao poder temporal do Papa. A data não é celebrada no Vaticano. Os Bersaglieri surgiram na Sardenha, onde Gramsci nasceu e cresceu. (retornar ao texto)

(3) Garibaldi era o Leão de Caprera. Caprera é uma pequena ilha na costa da Sardenha, para onde Garibaldi foi ao se aposentar. Ele nasceu em Nice. (retornar ao texto)

(4) Staglieno é o cemitério em Gênova em que estão sepultadas muitas das grandes figuras da classe política italiana, inclusive o revolucionário Mazzini (descrito por Marx como ‘aquele asno eterno’). Jornalista e teórico da República, Mazzini também é conhecido como ‘o profeta’. Staglieno é o maior cemitério da Europa. (retornar ao texto)

Inclusão: 12/04/2021