Revolução Hoje?

Armênio Guedes

Junho de 1986


Fonte: Lua Nova: Revista de Cultura e Política. Entrevista publicada no vol.3 no.1 São Paulo, junho de 1986
Transcrição e HTML: Fernando A. S. Araújo.

Qual o papel que a idéia de revolução tem, nos dias de hoje, na organização do pensamento de esquerda? LUA NOVA fez esta pergunta a Armênio Guedes, que responde abaixo:

A idéia de uma transformação social, ou melhor, de uma revolução socialista, está presente na cabeça dos homens desde que o capitalismo surgiu na cena histórica. É com Marx, porém, na metade do século passado, que essa idéia toma forma mais definida e passa a se materializar na consciência de milhões de pessoas.

Para dar à revolução social um conteúdo científico, resgatando-a da utopia e do romantismo até então predominanates no movimento operário, Marx empreendeu um estudo profundo do capitalismo e das lutas sociais e políticas que, depois da Revolução Francesa, começaram a se alastrar na Europa e na América. Na base das idéias elaboradas por ele e por seu amigo Engels, e, também, na base do fecundo trabalho político por ambos realizado, surgiram os partidos socialistas, que passaram a ter importância decisiva na organização da ação e do pensamento na organização da ação e do pensamento anti-capitalista, de esquerda, de todo o mundo.

Esses partidos, na medida em que assimilavam o socialismo científico de Marx e Engels e ganhavam base de massas, foram, pouco a pouco, compreendendo que sozinhos, como vanguardas, mesmo quando abrigavam em suas fileiras grandes contingentes de militantes, seriam condenados ao isolamento e não estariam em condições de sensibilizar e atrair para a luta revolucionária a maioria do povo. Por isso dedicaram-se, desde que apareceram, tanto na Europa como na América, a estimular os trabalhadores e demais classes subalternas a se reunirem nos mais variados tipos de organizações, fossem sindicatos, cooperativas ou centros culturais, onde os socialistas, militantes de vanguarda, deveriam obrigatoriamente, atuar.

Através da difusão de seu ideário revolucionário e da organização de lutas parciais e de conquistas também parciais, também empreenderam a tarefa de levar o grosso da população explorada a compreender a necessidade de uma transformação social radical, quer dizer, de uma revolução socialista. Essas organizações, não estritamente políticas, ao longo de muitos decênios cresceram e se transformaram, em muitos países, em pontos de apoio para nuclear o pensamento e a atividade, tanto do mundo do trabalho como da cultura.

Essa linha de ação seguida em todas as partes do mundo, primeiro pelos partidos socialistas tradicionais, depois da revolução russa de 1917, pelos partidos comunistas filiados à Internacional Comunista foi, em nosso século XX, às vezes diretamente, outras indiretamente, um dos mais importantes fatores, senão o mais importante, para mobilizar, reunir e organizar o pensamento e a ação de milhões de homens de todos os continentes. Basta citar, nesse sentido, o que significou, nos anos trinta, antes da Segunda Guerra Mundial, a criação das frentes populares para conter o avanço internacional do facismo e defender o regime democrático nos países em que ele estava ameaçado.

Não há dúvida, portanto, de que durante um longo e tumultuado período da história contemporânea, principalmente naquele que se situa antes e depois das duas guerras mundiais, a idéia da revolução social penetrou profundamente na mente de milhões de seres humanos e se transformou numa força material de primeira grandeza, organizando o pensamento da esquerda e o pondo em ação imensos contingentes de explorados e oprimidos de todo o mundo.

E hoje, neste final de século, a idéia de uma revolução social ainda exerce o mesmo papel na organização do pensamento das esquerdas?

A partir dos nos cinqüenta, quando o mundo tomou conhecimento das deformações produzidas pelo stalinismo nos países socialistas, o modelo de revolução e de poder revolucionário soviéticos, que se tornou universal depois da vitória de outubro de 1917, começou a perder sua força de atração e entrou em crise. Uma crise que teve repercussão em todo o pensamento da esquerda, principalmente nos seus segmentos mais radicais. A verdade é que o grosso do movimento revolucionário contemporâneo, com raras exceções, tomou como modelo, como fonte de inspiração, a política e o regime dos países do "socialismo real". Assim é que, hoje, os inúmeros partidos e movimentos que se identificaram com o ortodoxia soviética de revolução "explosiva" e, conseqüentemente, com a idéia de criação de um poder socialistas autoritário e burocrático, de um socialismo essencialmente distributivista, mas incapaz de criar a riqueza que daria "pão e rosas", para todos, perderam sua capacidade de organizar o pensamento e a ação da esquerda, na medida em que não admitem a crise daquele modelo e não revêem criticamente suas posições.

Esta situação de crise, que se prolonga há vários anos, tem sido aproveitada pelas forças conservadoras e reacionárias para restaurar e reabilitar suas posições políticas e ideológicas que, tempos atrás, estavam inteiramente desacreditadas. Do lado das forças revolucionárias, como era de se esperar, teve início, e agora se aprofunda, o debate sobre a experiência histórica do socialismo. É o que ocorre na Itália, para citar apenas o exemplo mais conhecido. Aí, os comunistas organizados no PCI tomam, como ponto de partida para sua reflexão sobre a crise de esquerda, o fato de a URSS ter deixado de ser — como a primeira maior experiência de um regime socialista — o que foi durante várias décadas: exemplo e estímulo do movimento revolucionário internacional. Com essa discussão, que tenta fugir a todo tipo de ortodoxia e doutrinarismo, os comunistas italianos buscam o caminho para sair da crise e inaugurar uma fase nova, superior, da luta dos trabalhadores e de todos os explorados contra o capitalismo — uma luta que vem de longe e que é mais atual do que nunca.

Quando essa fase nova surgir, e sobre isso não temos dúvidas, a idéia de revolução — e aqui pouco importam as novas formas que ela deverá assumir — voltará a desempenhar papel decisivo na organização da ação e do pensamento de esquerda. Haverá, então, condições para rearticular os grandes movimentos sociais de nossa época, atualmente dispersos e manipulados por forças políticas que lhes são estranhas. Nos dias difíceis que atravessamos, isso é uma esperança e um consolo para as esquerdas de nosso país e de todo o mundo.


Inclusão 06/12/2015