Sobre a Guerra de Guerrilha

Ho Chi Minh

Julho de 1952


Primeira Edição: Transcrição de um discurso de Ho Chi Minh, no mês de julho do ano de 1952. No discurso, Ho remete à revolução de agosto de 1945, quando o Viet Minh (liga pela independência do Vietnam), força revolucionária organizada para libertação nacional, conseguiu forçar a destituição do imperador Bao Dai, fantoche controlado pelo imperialismo francês, o que resultou na independência do Vietnam. O propósito desse movimento era fazer frente à invasão japonesa do período da 2ª Guerra Mundial, que expulsou as forças francesas da região. Ho persuadiu o imperador a declarar a independência a fim de impedir que os japoneses passassem a exercer domínio sobre o Vietnam, substituindo os franceses nesse empreendimento. A partir de então, o Viet Minh seguiu na luta armada contra as tentativas francesas de tentar retomar e manter o controle político, o que só viria a encontrar desfecho no ano de 1954, com a vitória das forças revolucionárias de libertação nacional. Portanto, a tradução que se segue acontece num contexto de mobilização e organização das lutas do partido contra a colonização (entre a revolução de agosto de 1945 que dá início a um momento mais intenso da luta de libertação nacional, e a vitória em Dien Bien Phu no ano de 1954 sobre o domínio francês), destacando o caráter multidimensional da militância num contexto de guerra, que compreende aspectos como preocupação com questões econômicas, de propaganda, de educação e formação dos quadros e análises de conjuntura formuladas pelo comitê central do partido enquanto fundamentos a partir dos quais se organiza a estratégia da luta armada e a própria militância.

Fonte: LavraPalavra - https://lavrapalavra.com/2020/05/21/sobre-a-guerra-de-guerrilha/

Tradução: Mario Matos - a partir da versão disponível em http://lesmaterialistes.com/files/images/img92/proc16.pdf

HTML: Fernando Araújo.


I

Meus irmãos e irmãs aqui presentes se esforçaram, adquiriram méritos e suportaram privações. Isso é louvável.

Mas não se esqueçam que esses méritos não são pessoais, mas pertencem ao conjunto de nossas tropas e de nossos compatriotas. Sem a ajuda de nossas tropas e de nossos compatriotas, nossas virtudes não podem ser colocadas em prática.

II

Desde a campanha de Hoa Binh, a guerrilha provocou um notável estrondo nos domínios do inimigo. Particularmente, nossos compatriotas e quadros tem a maior confiança em si mesmos para vencer o inimigo. Isso é muito importante, e é uma mudança muito favorável. Vocês devem saber que nossa resistência será longa e amarga, mas necessariamente vitoriosa. Longa, porque ela deve ser conduzida até a derrota do inimigo, até o dia em que o inimigo bater em retirada.

A opressão que os imperialistas franceses fazem pesar sobre nós há mais de vinte e quatro anos é como uma doença crônica grave, não pode ser curada em um dia ou em um ano.

Não sejam, portanto, tão apressados. Não queiram uma vitória imediata. Vocês cairiam no subjetivismo. A resistência de longo fôlego implica privações e sacrifícios, mas ela vencerá. 

Essa resistência longa e árdua precisa ser conduzida com o apoio de nossas próprias forças. Devemos focar de modo particular nesse princípio, sobretudo nos territórios sob controle dos inimigos. 

A ajuda de países amigos é certamente importante, mas ela não tem autorização para ficar à disposição de outros. Um povo que não conta com suas próprias forças e que só espera a ajuda de outros não merece ser independente.

Nessa resistência de longa duração, o que as milícias de guerrilha devem fazer no território inimigo? Qual é sua tarefa? Elas devem resistir longamente.

Frustrar o intento do inimigo de alimentar a guerra pela guerra, que faz os vietnamitas lutarem entre si. Não podendo se valer dos recursos humanos e materiais disponíveis em nossas zonas livres, o inimigo os reúne em seus domínios. Nós devemos impedi-lo. Assim, frustrando seus objetivos, atuaremos de modo eficaz na preparação do contra-ataque geral, e o inimigo se achará, cada vez mais, enfraquecido e terminará por ser vencido.

III

 Nos domínios do inimigo vocês deram testemunho de muitas qualidades: abnegação, coragem, união. Eu cito essas qualidades para falar das principais falhas que vocês devem corrigir. 

1 — Os quadros dos exércitos, das forças populares, da administração e do partido não estudam suficiente e minuciosamente as diretrizes e as ordens do comitê central e do governo. Essa é uma lacuna muito grave. O comitê central e o governo tem uma ampla visão, e é depois de terem estudado a situação e tirado lição da experiência adquirida nas diferentes regiões do país que eles formulam suas diretrizes.

Nossos quadros devem estudar cuidadosamente essas diretrizes para aplicá-las de modo apropriado à situação concreta de cada localidade. Nas regiões não se tem a visão ampla, vêem-se as árvores e não a floresta, a parte e não o todo; Um trabalho que numa determinada região é considerado um sucesso, pode ser, na realidade, um erro se o reproduzimos para uma situação mais ampla, mais geral. E isso ocorre quando não estudamos a fundo as diretrizes do governo e do comitê central.

2 —  Não é bom que as unidades regulares, as formações regionais e as milícias de guerrilha saibam apenas lutar: saber lutar é importante. Mas saber apenas lutar, negligenciando a política, a economia, a propaganda e a educação da população é conhecer apenas um aspecto das coisas, pois o combate não pode ser dissociado da política e da economia. Se lutarmos sem pensar sobre a questão econômica, ficaremos sem arroz e não poderemos mais combater. Portanto, lutemos, mas é preciso também pensar nos outros problemas.

3 —  Outro erro: as unidades regulares, as formações sociais e as milícias de guerrilha querem lutar os grandes combates, alcançar grandes vitórias ao invés de fazer um estudo minucioso da situação, das nossas possibilidades e da dos inimigos, a fim de determinar o modo apropriado de atingir os objetivos e a maneira de combater. Também, na prática, pecamos em mais de um ponto.

Em todos os lugares, só atacaremos quando tivermos certeza da vitória, senão iremos nos abster, sobretudo quando nos encontrarmos cercados pelo inimigo.

4 —  Os quadros militares só conhecem as questões militares, os quadros administrativos, as questões administrativas e os quadros do partido, as questões do partido, são como um homem que está sobre apenas uma de suas pernas.

É perigoso que os quadros conheçam apenas um domínio, pois esse conhecimento não seria completo, e o bloco formado pelos diversos elementos militares, administrativos e do partido não seria poderoso e compacto se lhe faltasse apenas um desses elementos.

Contudo, os quadros do partido e da administração deixam quase que integralmente aos quadros militares a tarefa de combater o inimigo, eles não sabem que a direção do partido deve se estender todos os domínios, que uma batalha só pode ser vencida por meio de uma ação coordenada em todos os domínios.

5 —  No que se refere aos quadros do partido, devido as dificuldades engendradas pela situação, sobretudo pelo fato de não manterem firmemente em mãos o principal, quer dizer, o fundamento da organização do partido, no momento atual, nas zonas provisoriamente ocupadas, as bases do partido ainda não são sólidas. Saibamos que com uma forte organização partidária, tudo se encaminhará bem.

6 —  A luta contra a espionagem ainda deixa a desejar, o segredo ainda não está à salvo.

7 —  O trabalho de agitação junto às tropas fantoches obteve sucesso, mas não em todos os lugares. Realizada com sucesso onde os quadros têm a iniciativa, em outros lugares é feita com indiferença. As guardas do inimigo nos meios rurais e nas cidades se mantêm vigilantes. É preciso remover esses obstáculos. Vocês devem trocar de táticas pra fazer progredir o trabalho de agitação.

8 —  A respeito da propaganda nos domínios do inimigo, nós a fizemos com muito sucesso antes da Revolução de Agosto graças às nossas iniciativas, apesar da presença dos japoneses, dos franceses e dos traidores; a propaganda foi feita ao pé do ouvido e pelos jornais.

Agora, o comitê central do partido e o governo fazem seu melhor para introduzir os jornais Cuu Quoc (Saúde Nacional), Nhan Dan (O povo) nas zonas sob controle inimigo, mas isso ainda não é suficiente e se faz com muita dificuldade.

No território inimigo, é necessário criar jornais litografados ou impressos em argila. Não é necessário um grande formato nem uma tiragem cotidiana se pudermos difundir a linha principal e a política do governo, fazendo a população compreender tanto o sentido do nosso sucesso como as falhas e os crimes do agressor. É nisso que reside o trabalho de educação do partido. 

IV 

Agora, falemos do que é preciso fazer:

1 —  Antes de tudo é preciso realizar uma união estreita de nossas frentes, que dizer, entre o exército, as organizações populares, a administração e o partido. Para cada trabalho, é preciso discutir minuciosamente, cotejar os prós e os contras, realizar uma unidade de pensamento e ação, ajudar um ao outro, praticar a autocrítica e a crítica de modo honesto pra progredirmos todos juntos.

2  — É preciso estudar minuciosamente as diretrizes e as ordens do comitê central e do governo, aplicá-las de modo correto e executá-las integralmente.

3 —  Um ponto essencial: as tropas – regulares, regionais ou guerrilhas – devem permanecer estreitamente unidas à população; se estiverem separadas, conhecerão a derrota.

Permanecer estreitamente unida à população é trabalhar com o propósito de conquistar seu coração, sua confiança, é agir de tal modo a ter sua estima e seu afeto. Assim feito todo o trabalho, tão difícil quanto possa ser, haverá boa condução e nos trará sem erro, a vitória. Por isso, é preciso defender a população, ajudá-la e educá-la.

Educar a população não quer dizer pegar livros e obrigá-la a ler e estudar. Se vocês agirem assim, estarão indo contra seus próprios interesses, os interesses da revolução. Isso seria burocracia e autoritarismo. É preciso estimular a população a fazer de bom grado o que nós pedimos; se a coagimos ou obrigamos a fazer algo, obteremos resultados momentâneos e não permanentes. 

4  — As unidades regulares operando no domínio inimigo têm o dever de ajudar, sob todos aspectos, as formações regionais e as milícias de guerrilha em sua organização e instrução, ajudá-la sim, mas não fazer tudo em seu lugar. Pois devem também prestar assistência à população. Algumas unidades têm realizado isso muito bem, outras ainda apresentam limitações. Um provérbio vietnamita diz: “Numa cabaça nos curvamos, num cano nos deitamos”(1).

Isso significa que nas zonas sob controle do inimigo é preciso aplicar a tática de guerrilha e não a tática de guerra regular como nas zonas livres. É preciso absolutamente se precaver dos grandes combates, de querer ganhar as grandes vitórias, exceto no caso em que o sucesso é cem por cento garantido.

5  — A guerrilha não tem a meta de ganhar grandes batalhas, mas de causar danos nas forças do inimigo, de suprimir seus sono e apetite, de esgotá-lo, usá-lo moral e materialmente para, ao cabo, aniquilá-la. E fazer isso de tal modo que, em qualquer lugar que se assentem, os inimigos sejam envolvidos por nossos guerrilheiros, que caiam sobre uma mina, que sejam expulsos a tiros. Assim os soldados franceses escrevem em seu idioma: “No Vietnã, a morte nos aguarda em cada buraco nas rochas, em cada mata bosque, em cada lagoa…”.

Se vocês conseguirem corrigir suas falhas e fazerem seus trabalhos como eu digo agora, seu êxito será certo. Mas enquanto restar um só inimigo em nosso solo, não se poderá dizer que já conseguimos a vitória. Se o inimigo, mais forte que nós em armamento e em experiência de guerra, tem sofrido derrotas, é porque pecou por subjetivismo. Protejam-se, portanto, de cair no subjetivismo, de subestimar o inimigo e consequentemente o sucesso virá.

Quando do retorno a suas casas, digam a nossos combatentes, a nossos compatriotas para disputar com garra em todos os domínios. Trata-se de cumprir façanhas no combate, de organizar a agitação nas iminências dos soldados inimigos e dos fantoches, de aumentar a produção e praticar a organização econômica: “O exército é forte enquanto sacia sua fome”.

Sem o aumento da produção e a prática da organização da economia, não teremos comida suficiente para a guerra, prometem que irão assim fazer? (todos respondem com um “sim” ressoante). Se vocês promente, então tem que realizar a todo custo.

Ainda esta questão: vocês devem registrar os méritos de nossas tropas e de nossos compatriotas para que o comitê central e o governo os felicitem. As menções e recompensas constituem um meio de educação e estímulo. Elas estimulam os mais merecedores e incitam os outros a militar com ardor. Até aqui, as instâncias locais tem feito muito poucos registros, vocês devem remediar isso com seu melhor e suprir essa lacuna.

Eu peço, por fim, que transmitam a nossos compatriotas, a nossos quadros e combatentes, em particular aqueles mais velhos nas milícias, às guerrilheiras das milícias e às crianças da resistência, minha expressão de solícita consideração, bem como do comitê e do governo. O comitê central do partido, o governo e eu mesmo somos felizes e certos de que nossas tropas e nossos compatriotas, nos domínios do inimigo, aplicarão corretamente a linha e as diretrizes da resistência para atingir rapidamente a vitória.


Notas de rodapé:

(1) On s’arrondit dans une gourde, s’allonge dans un tuyau. Trata-se de uma forma de destacar a importância da versatilidade, da capacidade de adaptação necessárias às unidades regulares. (retornar ao texto)

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Inclusão: 29/07/2020